O Antigo Egito e a África Negra

May 26, 2017 | Autor: Rafael Gonzaga | Categoria: Egito Antigo, História das Áfricas
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O Antigo Egito e a África Negra Rafael Gonzaga de Macedo

Representação de Piye, o Faraó Negro, National Geographic, 2008 Na Bíblia, no Antigo Testamento, mais especificamente no livro de Isaías, há muitas referências ao Antigo Egito, em uma delas encontramos: “Vai, mensageiro veloz, até o povo alto e bronzeado, ao povo sempre temido, à nação poderosa e conquistadora cujas terras os rios dividem”. Apesar da ênfase nas características físicas, chamando os egípcios de “povo alto e bronzeado”, ainda hoje é necessário reafirmar o seguinte truísmo: o Antigo Egito, uma das mais conhecidas civilizações do mundo antigo, tão 1

presente no imaginário das pessoas e tão desconhecido ao mesmo tempo, não era exclusivamente branco, ele era, também, negro e não existia somente com sua face virada para o Norte (Mediterrâneo) e Leste (Oriente Médio), mas também estava intimamente ligado ao seu entorno africano, especialmente o Sul. Os motivos para um desconhecimento tão flagrante são muitos e vão desde as produções cinematográficas hollywoodianas até novelas brasileiras, com súditos, reis e rainhas de olhos claros e cabelos lisos até trabalhos acadêmicos

de

muitos

pesquisadores

que

escreveram

toneladas

de

monografias e livros sobre o Antigo Egito esquecendo que este também estava inserido em um contexto africano. Quando afirmamos “contexto africano” queremos dizer: em profunda relação com outros povos do continente.

Cena da novela “Os dez mandamentos”, 2015

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Pôster do filme “O Faraó”, 1954 Mas porque é preciso repensar o Antigo Egito para além das delimitações e categorias tradicionais dos livros de história ou do cinema? Ora, porque tais delimitações foram estabelecidas séculos depois por olhares, quase sempre, estrangeiros: primeiramente grego – Heródoto, o “pai” da história, fez uma viagem ao Egito para relatar aquele “estranho” povo em que “homens urinam sentados e mulheres em pé” - e muito posteriormente pelos Estados nacionais europeus a partir do século XVI. Estes últimos interpretaram o Antigo Egito a partir de seus próprios anseios e filtros culturais, representando-o mais como um antepassado europeu, em seu estado infantil, do que como uma civilização diferente e intrinsecamente envolvida com a África. Porém, a relação entre o Antigo Egito e a África Negra pode ser averiguada, antes de qualquer coisa, pela dependência egípcia do comércio africano de diversos produtos, como pedras preciosas e marfim, que chegavam via rotas comerciais milenares do Sul e através do Saara ao Oeste. E sabemos que onde há troca comercial há, também, troca cultural.

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Na antiguidade, a região que hoje denominamos Sudão, por exemplo, sempre representou para os egípcios uma enorme fonte de mão de obra, de animais e de minerais. Os sudaneses, ou núbios, denominação dos povos que viviam nessa região, eram extremamente valiosos para a composição do exército, desempenhando um importante papel nas conquistas do Império durante boa parte da história do Antigo Egito. Os núbios eram famosos por suas habilidades com o arco e flecha. Seus feitos deixaram vestígios e podem ser vislumbrados em belas estatuetas encontradas no século XIX, na tumba de Mesehti em Asyut. Na ocasião daquela escavação, foram encontradas pequenas peças de madeira pintada representando arqueiros núbios e soldados com escudos e lanças, todos eles devidamente representado com feições negras.

Estatuetas de madeira representando arqueiros núbios A importância dos Núbios, porém, não se limitava aos arqueiros, mas também na ação de hábeis “burocratas” que auxiliavam os faraós em diversas funções administrativas do Império. Tal papel culminou com a ascensão de um faraó núbio, em torno de 740 a.C., que deu origem à uma dinastia “etíope” chamada Koushita, representada pelo faraó negro Piye, rei da XXV dinastia egípcia.

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Outra representação do Faraó Negro Piye, National Geographic, 2008 Entretanto, a ascensão de uma dinastia “etíope” é muitas vezes representada, em livros didáticos ou sites de História Antiga, como uma invasão estrangeira ou, pior, como a decadência de uma suposta pureza egípcia, porém, como sugere historiadores africanos como Hamid Zayed, tal “invasão” ocorreu, sobretudo, por causa das transformações interna das forças políticas e sociais decorrente das relações culturais hibridas entre o Antigo Egito e o seu entorno africano. De qualquer forma, a dinastia “etíope” alargou a dimensão africana e ficou registrada não apenas nos sítios arqueológicos egípcios, mas também nos relatos de povos vizinhos, o que demonstra que os núbios se constituíram como parte da história do Egito e que assim devem ser reconhecidos. Além desse olhar mais abrangente, pode-se afirmar que a existência de rotas comerciais refletiu em um intenso fluxo cultural entre as diversas regiões africanas transbordando, até mesmo, para as margens do deserto do Saara ao Oeste e Sul. É o que parece demonstrar a existência de cultos análogos em diversas regiões da África, como a adoração ao carneiro, animal sagrado de Âmon, adorado no sul distante de Kush e também entre os Ioruba e os Fon, 5

bem como o intrigante parentesco entre o hausa, o wolof ou o songhai, línguas faladas na África Ocidental, com o egípcio, que era falado há cinco mil anos. Em suma, pode-se chegar à conclusão que os estudos da História Antiga devem um maior olhar para a África na antiguidade, para além mesmo das representações consagradas do Antigo Egito.

Referências bibliográficas: British Museum – Abd El Hamid Zayed. “Relações do Egito com o resto da África”. In: História Geral da África, Vol. II: África Antiga. Editado por Gamal Mokhtar, 2.ed. Brasília: UNESCO, 2010. Paulo Fagundes Visentini, Luiz Dario Teixeira Ribeiro, Analúcia Danilevicz Pereira (Org.). História da África e dos africanos. 2.ed. – Petrópolis: Vozes, 2013.

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