O antigo Turvo e seu tempo

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O ANTIGO TURVO E SEU TEMPO

LUCIANO BRG D’ALESSANDRO

SUMÁRIO

I – AS M INAS G E RAIS DO S CAT AG UÁS E DO RIO DAS VE L HAS ...... .... .... .... .... .... ..p ág . 0 3 II – UM PO RT O DE PAS S AG E M DO CAM INHO VE L HO ..... . .... .... .... .... .... .... .... .... .... ..p ág . 0 5 III – O S PRIM E IRO S HAB IT ANT E S DO ANT IG O T URVO ......... .... .... ... . .... .... .... . ... ....p ág . 0 8 IV – O CO NDE DA B ARCA..... .... .... .... .... .... ..... .... .... .... .... ... . .... .... .... .... .... .... .... .... .... ...p ág . 1 6 V – O S NAT URAL IS T AS ....... .... .... .... .... .... . ..... .... .... .... .... .... ... . .... .... .... .... .... .... .... .... ...p ág . 2 0 VI – AUG US T E DE S AINT - HIL AIRE ...... .... ..... .... .... .... .... ... . .... .... .... .... .... .... .. .. .... .... ..p á g . 2 3 VII – A VIAG E M PE L A RE G IÃO DO ANT IG O T URVO E M 1 8 19 ........ .... .. . .... .... ... . ....p ág . 2 4 VIII – A VI AG E M PE L O E NTO RNO DO ANT IG O T URVO E M 1 8 22 ........ . ... .... .... .... . . p ág . 2 9 IX – A PUB L ICAÇÃO DO S RE L AT O S DE VIAG E M ........ .... . ... ... .... .... .... .... .... .... .... . ... .p ág . 3 6 X – O DE S APARE CIM E NT O DO NO M E TURVO .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... . ... .... .... . .. . p ág . 4 0

I – AS MINAS GERAIS DOS CATAGUÁS E DO RIO DAS VELHAS

A colonização do centro sul do Brasil Colônia ocorreu em meio a descoberta de grande quantidade de ouro nos sertões da colônia portuguesa, o que aconteceu no início do último quartel do século XVII. O ouro foi descoberto em duas pequenas regiões distantes entre si cerca de sessenta quilômetros. Estas duas regiões ficaram conhecidas como As minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas. Encontrado a cerca de trezentos quilômetros do litoral, o ouro extraído nas regiões das minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas era transportado para o litoral pelo único caminho aberto até então, o Caminho da Vila de São Paulo para as Minas Gerais e para o Rio das Velhas, depois chamado Caminho Velho. Desde os sertões das minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas, a rica mercadoria era transportada por caravanas que transitavam pelo Caminho Velho ora por campos, ora por serras, ora serras e florestas. Os viajantes seguiam até a Vila de São Paulo, e depois ao porto da Vila de Santos, onde a valiosa carga era embarcada para o Reino de Portugal. Naqueles primórdios da extração do ouro, os viajantes que deixavam os cerca de sessenta quilômetros que separavam as ricas jazidas das Minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas deviam seguir em sentido sudoeste, até transpor a serra da Mantiqueira, o que ocorria na chamada garganta do Embaú. Após transpor a serra, os viajantes desciam em direção ao vale do rio Paraíba. Ao atingir o rio Paraíba os viajantes abandonavam o sentido sudoeste, adotando o sentido oeste, subindo o curso do rio Paraíba em direção à Vila de São Paulo. Era nesta vila que o ouro transportado pelos viajantes era transformado em barras, sendo fundido na Casa de Quintar da Vila de São Paulo, quando ocorria a cobrança do quinto, o imposto devido a Real Fazenda. Uma vez fundido em barras, o ouro extraído nos sertões do Brasil Colônia deixava a Vila de São Paulo para ser embarcado para o Reino de Portugal pelo porto da Vila de Santos. O fluxo de viajantes que transitava pelo Caminho velho persistiu desde os tempos da descoberta do ouro, ocorrida nos primeiros anos do último quartel do século XVII até o ano de 1695, quando a coroa portuguesa deu início a um amplo processo de reforma administrativa no Brasil Colônia.

Naquele no ano foi aberta outra casa de fundição de ouro no Brasil Colônia, a Casa de Quintar da vila de Taubaté. Assim, com grande economia de recursos, o ouro passou a ser enviado para Portugal pelo porto de Paraty, não muito distante da Vila de Taubaté, e não mais pelo distante porto da Vila de Santos, onde o viajante deveria chegar após custosa viagem passando pela Vila de São Paulo. Nove anos depois, em 1704, a Coroa determinou a transferência da Casa de Quintar aberta na Vila de Taubaté para a Vila de Paraty, além do fechamento da já centenária Casa de Quintar da Vila de São Paulo, que se encontrava aberta desde 1601. Assim, o trecho do Caminho Velho que transitava pelo vale do rio Paraíba no sentido da Vila de São Paulo perdeu grande parte de seu movimento. Os viajantes que vinham das minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas passaram a abandonar o Caminho Velho quando da chegada ao vale do Paraíba. A partir de então, os viajantes passaram a atravessar o rio Paraíba seguindo viagem pelos caminhos que transpunham a serra do Mar até atingir a Vila de Paraty. Em 1708, teve inicio uma reação à reforma administrativa em curso no Brasil Colônia. Foi quando teve início a chamada Guerra dos Emboabas. Ocorrida entre os anos de 1708 e 1709, a Guerra dos Emboabas caracterizouse por pequenas escaramuças na região dos sertões do ouro. As escaramuças envolveram de um lado os paulistas, os habitantes da Vila de São Paulo, aliados aos habitantes da Vila de Taubaté. Do outro lado, sob as ordens da Coroa estavam colonos oriundos do nordeste do Brasil, colonos oriundos das ilhas açorianas e colonos oriundos do Reino de Portugal. A vitória da coroa portuguesa na Guerra dos Emboabas possibilitou levar adiante as reformas na administração do Brasil Colônia. Assim, em 1709 foi criada a Capitania de São Paulo e Minas Gerais, com capital na Vila de São Paulo. Dois anos depois, a 11 de julho de 1711, a Vila de São Paulo foi elevada de categoria, passando a ser chamada Cidade de São Paulo. Ainda naquele ano, surgiram várias vilas e arraiais na região das minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas. No lugar do Arraial da Barra do Sabará, surgiu então a Vila de Sabará; o Arraial do Carmo foi elevado à categoria de cidade com o nome de Cidade de Mariana e o Arraial do Ouro Preto foi elevado à categoria de vila, surgindo assim Vila Rica. Em 1713, a reforma administrativa chegou ao vale do rio das Mortes, região onde havia sido encontrado ouro no final do século XVII. Naquele ano, o Arraial do Rio das Mortes foi elevado à categoria de vila, surgindo assim a Vila de

São João Del Rei. Passados cinco anos, em 1718, o Arraial de Santo Antonio foi elevado a Vila de São José Del Rei. Em 1720, mais uma reforma aconteceu na colônia portuguesa. Naquele ano, a Capitania de São Paulo e Minas Gerais foram divididas, surgindo assim a Capitania de São Paulo, com capital na Cidade de São Paulo, e a Capitania de Minas Gerais, com capital em Vila Rica. Ainda naquele ano a Capitania de Minas foi dividida em cinco comarcas. Na divisa com a Capitania de São Paulo foi instalada a Comarca do Rio das Mortes, com sua cabeça (sede) instalada a nordeste das terras sob sua jurisdição, na Vila de São João Del Rei. Não muito distante da região de São João Del Rei encontram-se as nascentes do rio Grande, o rio que integrava toda a Comarca do Rio das Mortes. Em seu extenso curso, após percorrer as terras da comarca do rio das Mortes, este importante rio firma seu curso em direção oeste, seguindo para as planícies centrais do Brasil. Já nestas planícies, após encontrar-se com o rio Paranaíba, esse extenso rio começa a correr para o sul, passando a ser conhecido como rio Paraná. Continuando seu curso, as águas que um dia formaram o rio Grande encontram o oceano apenas no estuário do rio da Prata. Foi a partir dos primeiros anos do último quartel do século XVII que as tropas de muares carregadas do ouro extraído nas Minas Gerais dos Cataguás e do rio das Velhas passaram a cortar as nascentes do rio Grande. Após mais de quarenta anos, em 1720, com o final da reforma administrativa levada a efeito pela Coroa portuguesa, as tropas de muares e sua preciosa carga passaram a cortar também a Comarca do Rio das Mortes.

II – UM PORTO DE PASSAGEM DO CAMINHO VELHO Ainda no início do século XVIII, novos caminhos foram abertos ligando o litoral à região das minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas. Foi em decorrência do surgimento dessas novas rotas comerciais que o Caminho da Vila de São Paulo para as Minas Gerais e para o Rio das Velhas passou a ser conhecido apenas como Caminho Velho. Ao transitarem por estes caminhos antigos do Brasil Colônia, quando os viajantes encontravam rios impossíveis de se atravessar a vau estava o

viajante diante de um porto de passagem, ou porto de peagem dos caminhos antigos. Era nesses locais onde os viajantes que seguiam pelos caminhos antigos encontravam canoas que ajudavam na travessia dos rios, pagando pelo serviço de transporte a peagem ou o pedágio. Dentre os muitos portos de passagem pelos rios que existiam no curso do Caminho Velho, dois portos tinham um nome pitoresco. Tratava-se do porto de passagem do rio Turvo Grande e do porto de passagem do rio Turvo Pequeno. O porto do Turvo Grande era o porto de passagem que o viajante que seguia para as regiões auríferas encontrava cerca de duas léguas após o Caminho Velho ter deixado as densas florestas e a serra da Mantiqueira. Ao encontrarem o porto do rio Turvo Grande os viajantes estavam já a transitar pela Região dos Campos, uma região caracterizada por morros suaves, cobertos de capim e matas esparsas. A chegada ao porto do Turvo Grande sinalizava aos viajantes que buscavam atingir as minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas o início da terceira e última parte do penoso trajeto de cerca de trinta dias que durava a viagem do litoral às regiões auríferas. Duas léguas após terem atravessado o rio Turvo Grande os viajantes encontravam o porto de passagem do rio Turvo Pequeno. O rio Turvo Grande e o rio Turvo Pequeno são os rios formados pelas águas que correm nos flancos da chamada serra do Turvo, uma ramificação da serra da Mantiqueira. Situada em uma formação de gnaisse que se estende por centenas de quilômetros, a serra do Turvo não é muito longa, estendendo-se por apenas cerca de trinta quilômetros sentido nordeste. O rio Turvo Grande tem seu curso no flanco esquerdo da serra do Turvo. Já o rio Turvo Pequeno tem a maioria de seu curso pelo flanco direito da serra. No terço final de seu curso, o rio Turvo Pequeno corta a serra do Turvo. Após três quilômetros, o rio Turvo Pequeno encontra o Caminho Velho no porto passagem do rio Turvo Pequeno. Mais adiante, ao final de seu sinuoso curso, o rio Turvo Pequeno encontra o rio Turvo Grande, criando assim o rio Turvo. Após breve curso, o rio Turvo deságua no rio Aiuruóca, até então o mais volumoso afluente do rio Grande. O porto de passagem do rio Turvo Grande e o porto de passagem do rio Turvo Pequeno tiveram seu apogeu até o primeiro quartel do século XVIII. Foi nesta época que houve a abertura de novos caminhos para As minas gerais dos

Cataguás e do rio das Velhas, o diminuiu o fluxo de viajantes entre o porto de passagem do rio Turvo Grande e o porto de passagem do rio Turvo Pequeno, no Caminho Velho. Em 1749, alguns anos após o apogeu do Caminho Velho, em virtude da construção de uma capela em homenagem a Nossa Senhora Aparecida em uma elevação próxima ao porto de passagem do rio Turvo Pequeno, a povoação do entorno começou a se concentrar próximo à capela. Aos poucos, os moradores da região do rio Turvo Grande também passaram a construir suas casas na povoação que se formou ao redor da capela localizada não muito distante do rio Turvo Pequeno. Foi por este motivo que a povoação que se formou a partir da construção da capela próximo ao rio Turvo Pequeno passou a ser chamada de povoação do Turvo Grande e Pequeno. Passados muitos anos, já em 1827 a povoação do Turvo Grande e Pequeno era conhecida com o nome de Arraial do Turvo. Quase quarenta anos depois, em 1864, o Arraial do Turvo foi transformado em Vila do Turvo. Passados quatro anos, me 1868, surgiu a Cidade do Turvo. Por fim, na terceira década do século XX, a Cidade do Turvo passou a ser chamada de Cidade de Andrelândia.

O antigo Turvo, MG, hoje Andrelândia, situada no flanco esquerdo da serra do Turvo.

III – OS PRIMEIROS HABITANTES DO ANTIGO TURVO O estranho nome atribuído a essa região das nascentes do rio Grande, o curioso nome de Turvo, era comum nesta pequena parte da Comarca do

Rio das Mortes. De fato, servindo-se do nome Turvo os primeiros viajantes que chegaram à zona assim chamaram vários lugares desta região das nascentes do rio Grande. Foi assim que surgiu a denominação do maior acidente geográfico da região, a serra do Turvo. Da mesma maneira, o nome Turvo foi adotado para os rios que correm nos vales formados pela serra do Turvo. Em consequência, por esses nomes ficaram conhecidos os dois portos de passagem que cruzavam esses rios. Por fim, o nome Turvo foi atribuído à povoação de Madre Deus, então chamada de Madre Deus do Turvo, hoje Cidade de Madre Deus de Minas. Essa cidade está situada a seis léguas de distância da serra do Turvo e a duas léguas da chamada serra dos Dois Irmãos. Vê-se, portanto, que não foram poucos os locais dessa região das nascentes do Rio Grande que se serviram do nome Turvo. Dentre esses vários locais onde se encontra o nome Turvo, um local em especial suscita dúvidas da mesma maneira que suscita dúvidas o vocábulo turvo. Trata-se de uma escultura que se encontra em um rochedo existente em uma grande montanha destacada, localizada no meio da serra do Turvo. Pelo que se observa da escultura no rochedo, tem-se a impressão de que o intuito dos primeiros viajantes que chegaram à zona foi chamar pelo nome de Turvo a esta escultura. Como sabemos o adjetivo turvo não define com clareza o que aborda, implicando em uma visão enevoada, marcada pela ausência de nitidez. Por conta disso, o nome de Turvo foi atribuído à escultura que se observa no rochedo encravado na montanha da serra do Turvo. Este enorme rochedo encontra-se em uma das laterais da grande montanha. O rochedo e a imensa escultura estão voltados para o norte, para o vale do rio Turvo Grande. O rochedo tem mais ou menos trezentos metros de base por cinquenta metros de altura. Ao se contemplar o rochedo nota-se a existência de duas grandes manchas brancas. A primeira mancha branca está situada na lateral, à esquerda do observador. A outra mancha branca está localizada no meio do rochedo. É na mancha branca localizada no meio do rochedo que se observa a enevoada inspiração dos primeiros habitantes que chegaram à zona para chamarem de Turvo a diversos lugares desta região das nascentes do rio Grande.

Imagem feita a partir de um dos cumes a serra do Turvo. Ao cento a montanha destacada e o rochedo.

A face norte da montanha destacada da serra do Turvo e o rochedo.

Vista apenas do rochedo na montanha da serra do Turvo. Ao centro observa-se a mancha branca.

Imagem da mancha branca feita desde a base do rochedo. Uma sombra escura na mancha branca evidencia um baixo relevo. A direita da sombra escura, embaixo, vê-se uma mancha amarela.

Imagem obtida desde a base do rochedo. Vê-se a mancha branca e o baixo relevo. Observa-se um corte no rochedo, em 90º, e ao lado deste a mancha amarela em vertical.

A escultura evidenciada pelo baixo relevo forma uma figura caracterizada da cintura para cima. A escultura tem mais ou menos 25ms de altura. Na parte superior da escultura, exatamente onde ocorre o baixo relevo, evidencia-se o que seria a cabeça de um busto. O baixo relevo tem mais ou menos 1,5m de profundidade e 5ms de altura. A cabeça formada apresenta apenas um olho visível, pois o outro olho estaria encoberto pela mão esquerda da escultura, que se encontra erguida pelo braço até a altura dos olhos. O corte que se observa desde a base do paredão de gnaisse, em 90º, cria a perspectiva para que, ao lado do baixo relevo se forme a mão esquerda da escultura. O braço da escultura estaria alçado até a altura o olho, terminando com a mão a despejar em um copo o que seria um líquido de cor amarela. Esta visão de um líquido despejado é provocada por uma mancha amarela que se observa desde a base do paredão e está situada ao lado do imenso corte no rochedo.

A escultura na mancha branca. Embaixo, à direita, estão as copas das árvores

À esquerda a escultura no rochedo; à direita, uma representação artística.

Vista parcial do rochedo. Ao centro a escultura formada na mancha branca.

A escultura vista desde a direita.

Na base do rochedo, à esquerda, foram feitas muitas pinturas rupestres. Entre poucas pinturas zoomórficas, vê-se uma grande variedade de pinturas rupestres geométricas, uma tradição que atravessa milhares de anos.

A mancha branca localizada à esquerda do rochedo. Embaixo estão as pinturas rupestres geométricas.

Pinturas rupestres geométricas: três círculos concêntricos - o princípio, o meio e o fim

Vários círculos concêntricos: a

dinâmica interação do princípio, do meio e do fim.

Por conta do grande número de pinturas rupestres geométricas existentes, sabia- se que se tratava de um sítio arqueológico com referências aos conhecimentos da Medicina Antiga. Esta notícia não passou despercebida aos primeiros viajantes que atingiram a zona, uma vez que os mesmos acabaram por se valer dos opostos grande e pequeno para atribuir nomes aos rios que margeiam a serra. Porém, quanto à enevoada escultura observada no rochedo, como a mesma suscitou dúvidas nos viajantes, estes acabaram por se servir do nome Turvo para batizar a escultura, do que resultou na utilização da denominação turvo em toda esta pequena região das nascentes do rio Grande. De maneira encantadora, observa-se nesse rochedo a associação de duas manifestações artísticas. Ao centro do rochedo está a escultura chamada de Turvo pelos primeiros viajantes que atingiram a zona. Já na base do rochedo estão muitas pinturas rupestres geométricas representativas dos princípios da Medicina Antiga, os princípios das três dimensões, da dualidade, etc. O conhecimento da Medicina Antiga foi representado pelos povos antigos de maneira diversa. Entre os povos que viveram no neolítico a medicina antiga foi representada através de pinturas rupestres geométricas e monumentos

líticos. No Egito antigo, a Medicina Antiga alcançou grande desenvolvimento em virtude da continuidade das dinastias, tendo sido representada em diversos monumentos e teorizada. Já na Grécia antiga os conhecimentos da Medicina Antiga ganharam as ruas, tendo alcançado grande popularidade.

IV – O CONDE DA BARCA No final do século XVII, enquanto na Europa se vivia o iluminismo e Isaac Newton escrevia a teoria da gravitação universal, em Minas Gerais acontecia o apogeu do Caminho Velho e dos portos de passagem do rio Turvo Grande e do rio Turvo Pequeno. Passados mais de cem anos, em 1808, em decorrência da invasão de Portugal pelas tropas do imperador Napoleão Bonaparte, a corte portuguesa foi transferida para o Rio de Janeiro. A presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro, o que perdurou até 1821, possibilitou a vinda ao Brasil de muitos intelectuais europeus. Dentre os membros da corte portuguesa que se instalaram no Rio de Janeiro, um intelectual se destacava, tratava-se António de Araújo e Azevedo, político, diplomata, cientista, botânico e escritor. Batizado no dia 14 de maio de 1754, em Ponte de Lima, arcebispado de Braga, Portugal, filho do Senhor do Morgado e da Casa da Lage, António de Araújo e Azevedo estudou filosofia em Coimbra e depois matemáticas e história no Porto. Em 1787, já diplomata, esteve na Holanda como embaixador extraordinário. Em 1795, 1797 e 1801, Antônio de Araújo e Azevedo foi embaixador plenipotenciário junto à República Francesa. Na seqüência ocupou funções diplomáticas na Rússia. Em julho de 1804, o já renomado diplomata António de Araújo e Azevedo foi designado Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra do Reino de Portugal. Em 1808, a bordo da nau Medusa, António de Araújo e Azevedo chegou ao Brasil Colônia na frota que trouxe para o Rio de Janeiro os membros da corte portuguesa. Na extensa lista de cargos que ocupou no Brasil constam as pastas da Fazenda, do Exército e dos Negócios Estrangeiros. Em dezembro de 1815, quando da criação do Reino Unido de Portugal e Algarves, António de Araújo e Azevedo recebeu de D. João VI o título de 1º Conde da Barca. O Conde da Barca foi Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves entre os anos de 1815 e 1816. Depois de ter sido personagem ilustre na administração portuguesa no Brasil,

António de Araújo e Azevedo faleceu repentinamente na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1817, aos sessenta e três anos. Embora não se tenha nenhum registro da presença de António de Araújo e Azevedo, o Conde da Barca, na região do antigo Turvo, duas manifestações artísticas sugerem relações do Conde da Barca com essa região. Uma dessas representações artísticas seria uma gravura do Conde da Barca. Neste opúsculo onde se busca apresentar a região do antigo Turvo, com sua escultura no rochedo, é significativa a pose feita pelo Conde da Barca para elaboração desta gravura. A pose do Conde da Barca faz lembrar a escultura que se observa no rochedo da serra do Turvo. Na gravura, o Conde da Barca apresenta uma pose voltada para a esquerda, assim como ocorre com a escultura no rochedo. Ademais, o Conde da Barca apóia-se em um livro para conseguir manter seu braço esquerdo erguido. O braço alçado está com a mão na altura dos olhos, com o dedo indicador esticado e pronto para apoiar na cabeça, apontando para o cérebro. Os demais dedos da mão esquerda permanecem entreabertos; a imagem da mão entreaberta faz lembrar o que ocorre com a escultura no rochedo.

Antònio de Araújo e Azevedo, o Conde da Barca

Outra manifestação artística a estabelecer vínculos do Conde da Barca com a região do antigo Turvo encontra-se no processo de urbanização da povoação do Turvo Grande e Pequeno. Ao que parece ocorrida nas primeiras décadas do século XIX, é possível que a mais antiga via aberta na povoação do Turvo Grande e Pequeno tenha sido construída de maneira a homenagear Conde da Barca. Passados mais de cem anos do apogeu do porto do rio Turvo Pequeno, já no começo do século XIX, a urbanização da povoação transformou a praça da igreja da povoação. Com a criação de várias praças novas, unidas à praça onde estava a igreja, formou-se uma grande avenida composta por várias praças. Assim teria aparecido essa suposta homenagem ao conde da Barca: o conjunto formado pela avenida e

as várias praças dentro revelam uma grande barca. A barca está disposta no sentido nordeste sudoeste, com a proa voltada em direção ao litoral, para sudoeste.

Andrelândia, o antigo Turvo. No alto o rio Turvo Pequeno e uma ponte no lugar onde antes estava o porto de passagem. Observa-se a avenida em forma de uma grande barca voltada para sudoeste.

No centro da barca encontra-se a igreja matriz de Andrelândia. As linhas da igreja não estão em harmonia com as linhas que formam a barca. A divergência decorre da época em que as obras foram construídas. Primeiro, em 1749, houve a autorização para construção de uma capela na povoação do Turvo Grande e Pequeno. Depois, nas primeiras décadas do século XIX uma avenida em forma de barca foi construída. Assim, embora houvesse a construção da avenida, a igreja permaneceu na mesma posição em que estava quando da sua primeira construção.

A avenida com o formato de uma barca e a igreja

V – OS NATURALISTAS Dentre os vários intelectuais europeus que estiveram no Brasil após a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808 estava o geólogo alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777–1855). Von Eschwege permaneceu no Brasil de 1810 a 1821, sempre a serviço da Coroa portuguesa. Durante sua longa estadia no Brasil Von Eschwege catalogou variados exemplares minerais, sendo hoje considerado o pai da geologia brasileira. Sobre a região onde se situava o antigo Turvo tem-se apenas uma anotação desse naturalista. Em uma obra publicada no ano de 1833, passados 12 anos desde sua estadia no Brasil, Von Eschwege assim escreveu sobre a região onde se encontra o rio das Mortes, um dos grandes afluentes do rio Grande, em suas nascentes: “É de estranhar que as riquezas da região do Rio das Mortes, a primeira a ser palmilhada pelos paulistas, permanecessem por longo tempo desconhecidas. De fato, só muito mais tarde (1703) é que foram descobertas por Tomé Fontes d´El Rei (São João del Rei), e, posteriormente (1704), por João Siqueira Afonso (Aiuruóca), ambos naturais de Taubaté.”. Von Eschwege reporta-se ao fato de que a descoberta de ouro, que ocorreu em duas regiões, distantes entre si em cerca de 50 quilômetros, As minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas, traz consigo uma estranheza. Isto se deve ao fato de que viajando desde o porto de Paraty, no litoral, para As minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas, seria muito difícil se chegar à região chamada de As minas gerais dos Cataguás e do rio das Velhas sem ter passado pela região do Rio das Mortes. Assim, concluiu o viajante alemão pela estranheza com o que lhe fora relatado, uma vez que o ouro do Rio das Mortes estaria no caminho para se chegar às regiões do rio das Velhas e de Vila Rica (Ouro Preto), onde primeiramente o ouro foi encontrado no interior do Brasil Colônia. A presença de intelectuais europeus no Brasil no início do século XIX se deveu também a viajantes que se dedicaram apenas a catalogar a fauna e a flora brasileira. Dentre esses intelectuais estavam dois alemães, o zoólogo

Johann Baptist Ritter von Spix (1781-1826) e o botânico Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). Esses dois bávaros vieram ao Brasil na comitiva da grã-duquesa austríaca Leopoldina, futura esposa do príncipe herdeiro, D. Pedro. D e 1817 e 1820, Spix e Martius empreenderam uma gigantesca viagem pelo interior do Brasil Colônia, em uma missão científica patrocinada pelo Rei da Baviera, Maximilian I. Nesses três anos Spix e Martius viajaram da cidade do Rio de Janeiro a vila de São Gabriel da Cachoeira, na Amazônia – seguindo viagem por São Paulo, Vila Rica, cidade da Bahia (Salvador), Oeiras, São Luís, Belém, Tabatinga e Japurá. No início da viagem, no percurso entre São Paulo e Vila Rica, os dois naturalistas passaram pelas nascentes do rio Grande. Após deixarem a cidade de São Paulo, seguiram para oeste até atingir a vila de Itu. Foi a partir dessa vila que Spix e Martius seguiram para nordeste, atravessando as montanhas cobertas de florestas, até chegarem à vila da Campanha e a Região dos Campos, nas nascentes do rio Grande. Em fevereiro de 1818, após atingirem o arraial do Rio Verde, hoje cidade de Três Corações, assim os naturalistas anotaram suas impressões sobre a passagem pelas nascentes do rio Grande: “...a estrada para Vila de São João do Príncipe (sic) se separa em duas; a oeste, ela segue mais pelo vale, passando por Boa Vista, Brambinho e Arraial das Lavras do Funil; tem mais povoamento e é um tanto mais comprido. A leste, vai outra pela montanha, por veredas pouco freqüentadas. Tomamos este último caminho, pois contrariava-nos descer desta região serena, onde, sem sermos perturbados, podíamos entregarnos aos sentimentos alegres com que na montanha a alma do viajante se sente rejuvenescida. O acolhimento amável, verdadeiramente patriarcal que nos deram no alto da montanha solitária, numa quinta isolada, a Fazenda do Córrego dos Pinheiros, condizia com a nossa disposição de espírito. Parecia que aqui se estava acostumado à sociedade dos vizinhos... Naquela oportunidade os naturalistas acabaram por errar ao ler a bússola. Eles escreveram que o viajante que seguia do arraial do Rio Verde para as Lavras do Funil teria que seguir para oeste. Na verdade, o viajante que seguia do arraial do Rio Verde até atingir Lavras do Funil, hoje cidade de Lavras, teria que ir para nordeste, e não para oeste.

O outro caminho, que rumava para leste a partir do arraial do Rio Verde, seguia em direção da região do antigo Turvo, o que faz supor que os naturalistas tiveram condições de conhecer a montanha e da serra do Turvo. Observa-se desde a perspectiva do arraial do Rio Verde que a região do antigo Turvo encontra-se em posição oposta à região das Lavras do Funil, o que poderia esclarecer o equívoco lesteoeste cometido por Spix e Martius, que então informaram estar a oeste a localidade de Lavras do Funil.

Os dois caminhos de Três Corações para São João Del Rei, a nordeste e a leste

Em

fevereiro

de

1818,

assim

escreveram

naturalistas acerca do caminho percorrido a leste do arraial do Rio Verde: ...Estas serras, em grande parte coberta, até ao cume, de agradáveis campos ervosos, apresentam lombadas planas, longamente extensas, das quais saem ramificações para os vales, e reúnem as cadeias entre si. Abismos tremendos ou gigantescos píncaros, dispostos em escarpas ameaçadoras, aqui não se vêem; ao contrário a vista aqui se tranqüiliza ante o aspecto agradável de vales não muito profundos, de cabeças de colinas guarnecidas de pastos, sobre cujos pendores suaves correm aqui e ali claros regatos. Não se tem a impressão dos altos Alpes europeus sublimes, denteados; todavia, também não é aspecto de natureza menor o que o viajante encontra aqui; ao contrário, o característico destas paisagens é de grandiosidade, a par de simplicidade e suavidade; elas contam-se entre as mais encantadoras que apreciamos nos trópicos. Como os largos cumes da serra, que se apresentam com a forma de sarcófagos, se elevam em quase igual altitude (entre três e quatro mil pés), e por sua vez os vales, em forma de calha, também não são

os

muito profundos, poder-se-ia chamar toda esta parte da serra de platô ondulado, por se ir perdendo nele pouco a pouco a serra da Mantiqueira (...) Numa profunda garganta do vale, alcança-se depois o Rio Grande, que nasce não longe daí, a sudeste, na montanha de Juruoca. O Rio que aqui não tem ainda mais de cinco toezas (10m) de largura, passa num alto leito de rocha, cercada toda em volta pelos mais lindos campos e colinas, e forma aqui um salto muito grande cujo estrondo repercute ao longe, no vale. Diretamente em cima do salto, está uma ponte de madeira, que com o tumultuar das águas embravecidas, ameaça ruína continuamente (...) Não somente para o sul, isto é, para o Paraguai, e daí para Buenos Aires, pode-se viajar nesse extenso rio, mas igualmente pelos seus afluentes ao norte é possível a viagem até poucas léguas da Vila Boa, capital de Goiás...

VI – AUGUSTE DE SAINT-HILAIRE

Mais um infatigável naturalista participou da leva de intelectuais europeus que vieram ao Brasil no início do século XIX. Trata-se do francês Augustin François César Prouvensal de Saint-Hilaire, chamado Auguste de Saint-Hilaire. O botânico Auguste de Saint-Hilaire nasceu no ano de 1779, na cidade de Orléans, no Departamento do Loiret, na região centro norte da França, a 120 quilômetros de Paris. Entre 1816 e 1822, Auguste de Saint-Hilaire fez várias viagens pelo interior do Brasil, poucas vezes servindo-se de barcos. Dentre essas viagens, o botânico fez três viagens por Minas Gerais. A primeira viagem de Auguste de Saint-Hilaire por Minas Gerais se iniciou no dia 7 de dezembro de 1816. Naquele dia, cavalgado seu burro, o viajante francês partiu da cidade do Rio de Janeiro seguindo para o interior, em direção a Capitania de Minas Gerais. Nessa sua primeira viagem, o botânico seguiu direto da cidade do Rio de Janeiro a Vila Rica pelo Caminho Novo do Rio de Janeiro a Minas. Após passar um mês na região de Vila Rica, o botânico seguiu para o norte. Auguste de Saint-Hilaire atingiu a Vila do Fanado, hoje Minas Novas. Depois, seguindo viagem, atravessou o rio São Francisco cavalgado até chegar à divisa com a Capitania de Goiás. O botânico retornou desta árdua viagem atravessando novamente o rio São Francisco, cavalgando em sentido sul. Após experimentar grandes

privações, o viajante atingiu a paragem de Coração de Jesus e depois a paragem de Curmatai, quando finalmente abandonou a árida região dos sertões. Depois, o viajante atingiu o arraial do Tijuco, hoje cidade de Diamantina. Em 20 de outubro de 1817, o naturalista deixou o Tijuco, seguindo para o sul. Auguste de Saint-Hilaire retornou a Vila Rica após passar por Caeté e Sabará. De Vila Rica, o naturalista seguiu em direção de Congonhas do Campo, já na Comarca do Rio das Mortes. Aos 13 dias de fevereiro de 1818, o naturalista deixou a povoação de Congonhas, seguindo em direção ao rancho do Marçal, o sítio aonde iria permanecer alguns dias, situado a uma légua da vila de São João Del Rei. O botânico chegou ao rancho do Marçal dois dias após deixar a povoação de Congonhas. Como já referido, nesse mesmo mês de fevereiro de 1818, em viagem da cidade de São Paulo para Vila Rica, encontravam-se na região de São João Del Rei os naturalistas alemães Spix e Martius. Nesta sua primeira estadia pela região da vila de São João Del Rei, assim o botânico Auguste de Saint-Hilaire escreveu em seu diário de viagem: Na comarca do Rio das Mortes acham-se as altas serras de Ibitipoca e o pico de Aiuruoca, que pertencem à serra do Espinhaço e à serra da Canastra que fazem parte da serra das Vertentes. A despeito da referencia equivocada às serras da Canastra e do Espinhaço, então o viajante Auguste de Saint-Hilaire se reportou às serras de Ibitipoca e de Aiuruóca. Situadas ao sul de São João Del Rei, trata-se de duas das serras situadas no entorno da região do antigo Turvo, as quais distam entre si cerca de 90 quilômetros; na metade desta distância encontra-se a montanha do Turvo. O viajante Auguste de Saint-Hilaire deixou o rancho do Marçal no dia 22 de fevereiro de 1818. Primeiro, seguiu em direção à vila de Barbacena visando atingir o Caminho Novo. Desde Barbacena, cavalgando pelo Caminho Novo do Rio a Minas, o viajante chegou à cidade do Rio de Janeiro em 17 de março de 1818, vinte e cinco dias após ter deixado o rancho do Marçal.

VII - A VIAGEM PELA REGIÃO DO ANTIGO TURVO EM 1819

Em finais de 1818, Auguste de Saint-Hilaire iniciou os preparativos para empreender uma grande viagem. Nessa longa viagem o botânico seguiria do Rio de Janeiro a Goiás, passando pela vila de São João Del Rei. Desde Goiás, o viajante seguiria ainda para o sul do Brasil passando pela cidade de São Paulo. No dia 16 de janeiro de 1819, Auguste de SaintHilaire partiu da cidade do Rio de Janeiro novamente cavalgando pelo Caminho Novo do Rio a Minas. Porém, pouco depois o naturalista deixou o Caminho Novo, seguindo pelo Caminho do Rio Preto, ou Caminho do Comércio, cavalgando em direção ao arraial do Rio Preto. Depois, o viajante subiu por estreitos caminhos pelas florestas, para enfim alcançar novamente a região das nascentes do rio Grande. O local onde o naturalista então apareceu foi na região do antigo Turvo. Após pernoitar no lugar chamado Alto da Serra, Auguste de Saint-Hilaire deixou as densas florestas, anotando em seu diário de viagem em 15 de fevereiro de 1819, ao se preparar para pernoitar na Fazenda de Sítio: Depois de ter deixado a mísera choça onde passei a noite (14 de fevereiro) caminhei ainda durante curto tempo por um vale profundo, rodeado de matas virgens. (...) Imediatamente após ter atravessado as densas matas, encontrei durante algum tempo arbustos de pouco mais de um metro de altura... Em breve só se viam subarbustos no meio das Gramíneas... Mais adiante os subarbustos foram rareando e passei a encontrar apenas Gramíneas e algumas outras ervas. Finalmente, nos trechos mais áridos, só se via um capim rasteiro e ralo... Em meio aos morros nus e desertos que se apresentavam diante de meus olhos quando saí da mata, a capela de Bom Jardim, construída no alto de um deles, quebrava um pouco a monotonia da paisagem. Naquele dia atravessei o Rio Grande... Depois de ter andado quatro léguas, a partir do Alto da Serra, parei numa fazenda de aparência bastante modesta chamada Sítio, construída numa baixada, à beira de um riacho, e rodeada de morros baixos e

arredondados. O fundo do vale tinha uma orla de árvores, e viam-se capões nas reentrâncias das encostas... O dono da propriedade... recebeu-me bastante delicadamente e mandou descarregar minha bagagem num quarto grande e razoavelmente limpo, cujo teto era forrado com uma esteira... Após dobrar a serra da Mantiqueira, o botânico francês cavalgou ainda por um tempo até deixar as matas. Passou pela povoação de Bom Jardim e atravessou o rio Grande, para atingir um local denominado Sítio, situado às margens de um ‘pequeno riacho’. Ao que parece, o Sítio a que se refere Saint-Hilaire seria o local onde hoje se encontra a cidade de Arantina, um local banhado pelo rio Turvo Pequeno, que então constitui nada menos que um pequeno riacho. No dia seguinte, a 16 de fevereiro de 1819, o naturalista seguiu viagem dentro da região do antigo Turvo, agora pelo vale do rio Turvo Pequeno. Durante uma viagem de três léguas, na maior parte do tempo o viajante cavalgou ao lado da serra do Turvo. Por fim, o naturalista cavalgou margeando a montanha onde se encontra o rochedo, porém na face oposta da montanha, não tendo por isso a visão da face onde se encontra o rochedo e a escultura. Seguindo ainda o curso do rio Turvo Pequeno, o naturalista finalmente contornou a serra do Turvo, que então é cortada pelo rio Turvo Pequeno. Pouco depois, de um local alto, o naturalista avistou a povoação do Turvo e ao fundo a serra de Aiuruóca. Em seguida, o viajante cavalgou ainda por uma légua pelo alto dos campos até atingir a Fazenda das Laranjeiras, situada a duas léguas de distância da serra do Turvo. Durante a cavalgada até a fazenda das Laranjeiras, por todo o tempo se descortinou atrás do naturalista uma vista panorâmica da serra do Turvo e do rochedo existente na montanha destacada.

Andrelânda, o antigo Turvo. A esquerda, semi encoberta, a serra do Turvo, em imagem obtida desde o local por onde passou Auguste de Saint-Hilaire em 16 de fevereiro de 1819

Quando de seu pouso na Fazenda das Laranjeiras, ao escrever seu diário da viagem ocorrida naquele dia o naturalista omitiu qualquer

referência a serra que circundara por todo aquele dia, a serra do Turvo. Naquela noite de 16 de fevereiro de 1819, assim Auguste Saint-Hilaire escreveu sobre a viagem que realizara naquele dia, tendo em boa parte desta viagem uma vista privilegiada da montanha destacada da serra do Turvo: Deixando Sítio, passei, durante o trajeto de três léguas portuguesas, diante de duas ou três choupanas pouco importantes, deixando à esquerda a povoação de Turvo, que está situada em um lugar baixo. Via ao longe a Serra da Juruoca, que se eleva muito acima dos morros circunjacentes e dista oito léguas do lugar onde eu iria passar a noite. (...) A Fazenda das Laranjeiras, onde pernoitei no dia em que deixei o Sítio é construída numa baixada e rodeada de árvores...

À esquerda, a continuação da serra do Turvo, ao fundo a Serra de Aiuruóca.

Como se vê, após ter cavalgado pelo vale existente na margem direita da serra do Turvo; após ter contornado a serra do Turvo e cavalgado por longo tempo tendo atrás de si a vista da serra do Turvo, e da montanha destacada com seu rochedo, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire nada escreveu sobre a serra que circundara por todo aquele dia 16 de fevereiro de 1819. No dia seguinte, a 17 de fevereiro de 1819, o naturalista deixou a Fazenda das Laranjeiras cavalgando em direção da Fazenda das Vertentes do Sardinha, onde iria pernoitar. Sobre a viagem dquele dia, assim o botânico registrou em seu diário: Deixando Laranjeiras, fui pernoitar no dia seguinte na Fazenda das Vertentes do Sardinha, que já descrevi mais acima e pertencia ao comerciante da gado Antônio Francisco de Azevedo. Como essa fazenda fica a pouca distância da de Laranjeiras, tive bastante tempo para ir coletar plantas na Serra dos Dois Irmãos. Dá-se este nome a duas montanhas que eu vira de longe durante toda a jornada da

véspera; estão situadas uma ao lado da outra,

sua altura é

aproximadamente a mesma, e ambas têm a forma de uma pirâmide curta, de base muito larga. Para ir da Fazenda das Vertentes do Sardinha à serra é necessário dar uma volta de uma légua e meia aproximadamente. Acompanhado por José Mariano, fui até o pé da serra montado no meu burro; ali desmontei e subi a pé um dos morros. Ao longo de uma boa extensão de subida tinha sido construído um muro de pedras empilhadas umas sobre as outras e muito bem feito. Onde terminava o muro, o qual levando-se em conta a região, deve ser considerado uma obra extraordinária, não havia mais caminho, e continuei a subir entre as pedras e rochas que cobrem a montanha. (...) Chegado ao topo da montanha, descortinei uma imensa extensão de terra, a Serra da Juruoca e muitas outras; além disso nenhuma habitação apreciável, nenhuma povoação atraia os meus olhares. (...) A excursão que fizera a um dos dois montes não me compensou bastante do trabalho para que sentisse a tentação de galgar o segundo; desci com muita dificuldade pelo meio das pedras, e, cavalgando o meu animal, voltei à Fazenda das Vertentes”.

A Serra dos Dois Irmãos, em imagem obtida desde a base do rochedo da serra do Turvo

Como se vê, Auguste de Saint-Hilaire anotou em seu diário de viagem ter subido numa das montanhas que compõem a serra dos Dois Irmãos, serra essa que se encontra a cerca de vinte quilômetros da serra do Turvo, de onde foi obtida a imagem acima. Porém, naquele dia 17 de fevereiro de 1819, ao escrever seu diário de viagem, novamente o botânico nada escreveu sobre serra do Turvo e sua montanha destacada. Após essa curta estadia dentro da região do antigo Turvo, Auguste de Saint-Hilaire deixou a região continuando sua viagem em direção às nascentes do rio São Francisco, indo pernoitar na Fazenda de Chaves. Sobre a cavalgada de 18 de fevereiro de 1819, assim registrou o viajante: Dalí eu me dirigi à Fazenda de Chaves...

A duas léguas aproximadamente da Fazenda das Vertentes do Sardim (Sardinha), encontra-se o Rio Grande, que nesse ponto tem pouca largura... Atravessa-se esse rio por uma ponte de madeira muito mal conservada, como todas as da província (1819), e à qual a ausência de um parapeito torna muito perigosa para os animais de carga... A pouca distância do Rio Grande encontra-se o lugarejo de Madre Deus, construído sobre uma elevação e composto ao todo de uma dezena de casas reunidas à volta de uma capela. Todas, sem exceção, estavam fechadas, e José Mariano, o meu tropeiro, que conhecia perfeitamente a região, me disse que a maioria das casas só era ocupada quando vinha algum padre de S. João celebrar missa na capela. Depois de Madre Deus a topografia do terreno se torna mais regular, embora a região continue elevada... Na seqüencia dessa viagem, Auguste de Saint- Hilaire conheceu boa parte do Brasil. O naturalista viajou pelas nascentes do Rio São Francisco, seguindo até atingir a Capitania de Goiás. Depois, viajou para a cidade de São Paulo, onde deixou o resultado das colheitas que fizera na viagem até então. A partir de São Paulo, o viajante atingiu Curitiba e depois Desterro, hoje Florianópolis, chegando enfim à Capitania do Rio Grande. O naturalista somente terminou esta longa viagem no ano de 1821, tendo atingido o estuário do Rio da Prata. Por fim, o naturalista tomou uma embarcação que o levou de volta à cidade do Rio de Janeiro.

VIII – VIAGEM PELO ENTORNO DO ANTIGO TURVO EM 1822

De retorno ao Rio de Janeiro, enquanto passava os últimos meses de sua longa estadia no Brasil, Auguste de Saint- Hilaire empreendeu uma rápida viagem, na qual pretendia resgatar os materiais de pesquisa que havia deixado na cidade de São Paulo quando de sua viagem anterior. Nessa última viagem o naturalista viajou para Minas Gerais, circundou a região do Turvo, seguindo depois para a cidade de São Paulo. Pouco depois, o viajante retornou por terra à cidade do Rio de Janeiro. A publicação em português do diário dessa rápida viagem de Saint-Hilaire pela região do Turvo teve como tradutor Vivaldi Moreira, o qual atribuiu o seguinte título: Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822). Contudo, o título da primeira edição francesa dessa obra havia sido outro:

Livre du Voyage Que j’ai entrepris de faire de Rio de Janeiro a Villa- Rica et de VillaRica a S. Paul, pour aller Chercher les 20 caisses que j’ai leissées dans cette dernière ville. Em português, Livro de viagem que tive de empreender do Rio de Janeiro a Vila Rica e de Vila Rica a São Paulo para procurar as 20 caixas que deixei nesta última cidade. Nesta sua última viagem pelo Brasil, Auguste de Saint-Hilaire deixou a cidade do Rio de Janeiro a 29 de janeiro de 1822. Novamente seguindo pelo Caminho Novo do Comércio, o viajante atingiu o arraial do Rio Preto no dia 6 de fevereiro. Dias depois, em 14 de fevereiro, o naturalista saiu das florestas e atingiu a região dos campos, chegando depois na vila de Ibitipoca, hoje Conceição de Ibitipoca, onde buscava herborizar na serra de Ibitipoca. Pouco depois, o viajante montou pouso na Fazenda do Tanque, já próximo a serra de Ibitipoca. Em sua estadia nesta fazenda, assim escreveu o naturalista Auguste de Saint-Hilaire em seu diário de viagem: Como faço questão de subir a Serra de Ibitipoca, onde, sem dúvida, encontrarei muitas plantas, não quis deixar o rancho de Antônio Pereira sem me por ao corrente de minhas análises. Era muito tarde quando partimos. Depois de subirmos encosta bastante íngreme, entramos nos campos. Foi com extremo prazer que tornei a ver uma quantidade desses encantadores subarbustos pelos quais comecei o meu herbário e desde dois anos não mais vira as elegantes cássias e aquelas melastomáceas, cujos fracos e cerrados ramos formam encantadores feixes, arredondados como bolas. (...) Não foram apenas campos que hoje percorremos; atravessamos matas também. Depois de mais ou menos uma légua, chegamos à Vila de Ibitipoca, situada num alto. Embora cabeça de distrito que se estende até Rio Preto, consta esta vila de algumas casinholas apenas e do pior aspecto. (15.02) Fui hoje herborizar na Serra de Ibitipoca... Na base das montanhas ficam bosques espessos que atravessamos subindo insensivelmente. De repente, encontramo-nos em imenso pasto cujo terreno é uma mistura de areia e terras escuras... A Serra da Ibitipoca não é pico isolado e sim contraforte proeminente de cadeia que atravessei desde o Rio de Janeiro até aqui. Pode ter até uma légua de comprimento e apresenta partes mais elevadas, outras menos, vales, penedos, picos e pequenas partes planas. As encostas são raramente muito

íngremes. Os pontos altos representam, geralmente, cumes arredondados e os rochedos mostram-se bastante raros... Seguimos um caminho que sobe, a pouco e pouco, e chegamos a um regato chamado Rio do Sal... Corre o Rio do Sal com rapidez numa encosta estreita e em vários lugares rochedos a pique o margeiam. Num deles, de cor esbranquiçada, ficam inúmeras manchas pretas formadas, tanto quanto pude avaliar, por expansões liquenóides. Lembra uma, e bastante, a figura de um eremita embuçado no hábito, segurando um livro. Dele fizeram um Santo Antônio e é objeto de veneração em toda a zona. Todos quantos perderam animais na serra vão rezar o terço diante da imagem e os encontram infalivelmente. Outros há que, em romaria e de vela em punho, visitam o rochedo onde está representado o santo e ali fazem penitência. (...) Depois de acabado o almoço, partimos todos a cavalo e subimos ao Pião, nome que se dá ao cume menos arredondado e mais alto de toda a serra. Deste pico se descortina horizontes mais extensos do que o da Serra de S. Gabriel. Quando o tempo está claro, avistam-se até as montanhas dos arredores do Rio de Janeiro. Atrás do Pião, e em grande extensão, acha-se a montanha absolutamente corta a pique. É difícil de reprimir uma espécie de terror, quando, adiantando-se alguém até o limite permitido pela prudência, descobre a imensa profundidade, espessas florestas escondidas em sombrios vales. Sob o Pião abre-se um abismo cuja profundeza não pode o olho calcular, mas que corresponde, dizem, e muito distante dali, a outra penedia muito mais baixa. Após herborizar na serra de Ibitipoca, Auguste de Saint-Hilaire se dirigiu à vila de Barbacena, lá chegando a 19 de fevereiro de 1822. Na seqüência de sua viagem, agora com destino à cidade de São Paulo, o naturalista atingiu novamente a vila de São João Del Rei quatro dias depois, em 23 de fevereiro de 1822. A 26 de fevereiro de 1822, o naturalista deixou a vila de São João Del Rei cavalgando pelo caminho a que chamou Caminho Novo do Paraíba. Em 28 de fevereiro, após atravessar o rio Grande, Auguste de Saint-Hilaire pernoitou na Fazenda da Cachoeirinha, quando assim escreveu em seu diário de viagem:

A região continua montanhosa, oferecendo excelentes pastagens nos cumes e capões de mata nas baixadas. Como o caminho segue quase sempre pelos cumes dos montes, descortina-se, geralmente, grande extensão de terreno, mas em nenhum lugar avistam-se habitações e se vêem muitos animais. Temos sempre à frente a Serra das Carrancas cujo cume, visto de longe, parece um tabuleiro, e cujos flancos oferecem poucas desigualdades. A cerca de duas léguas e meia (da fazenda) do Ribeirão encontrei o Rio Grande, que se atravessa sobre uma ponte de madeira, e cujo pedágio é arrecadado pela Fazenda Real. Apresentei os meus documentos ao homem encarregado de receber o dinheiro dos viajantes e ele me deixou passar livremente. No dia seguinte, a 01 de março de 1822, tendo atingido a fazenda de Carrancas, onde pernoitou, assim escreveu o naturalista Auguste de SaintHilaire: Depois de atravessar um riacho que forma pequena queda de água, da qual a fazenda tomou o nome de Cachoeirinha, atravessamos pastos e logo chegamos ao Juruoca. Esse rio mais volumoso do que o Rio Grande, no lugar onde o cortamos ontem, atravessamo-lo numa ponte de madeira em muito mau estado, mas onde não se paga pedágio algum, porque não foi construída à custa da Fazenda Real, e sim às expensas dos habitantes da vizinhança. Cortando sempre pastos, encontramos, a pouca distância do Rio Juruóca, o de Pitangueiras, que, segundo me disseram vai concluir com o Rio Grande. A ponte em que atravessa o Rio Pitangueiras é tão má que os burros por ela não podem passar sem perigo. Tínhamos, sempre à frente, a Serra das Carrancas e afinal ali chegamos. Em ponto algum é muito elevado e o caminho a corta no lugar onde tem menor altura. No cume, muito arenoso, revi algumas plantas interessantes, entre outras uma orquídea de dois cálices. Paramos, a pouca distância da raiz da Serra, numa fazenda que pertence à mesma família dos donos da Cachoeirinha e não parece menos importante que ela. Fui muito bem recebido e os donos da casa não nos permitiram cozinhar. Disseram-me que os pastos deste distrito eram tão bons quanto os que estendem entre São João e a Serra de Carrancas. Em compensação, as terras se mostravam melhores para a cultura. As matas, com efeito, ali são mais freqüentes e denotam mais selva.

No dia seguinte, desde seu pouso no rancho da Traituba, assim escreveu Auguste de Saint- Hilaire sobre a jornada de 2 de março de 1822, quando conheceu a vila de Carrancas: A cerca de quarto de léguas da fazenda encontramos a Vila de Carrancas, sede de paróquia. Quando muito, merece o nome de aldeia. Fica situada numa encosta de colina e compõe-se de umas vinte casas em volta de uma praça coberta de grama. A igreja ocupa o lado mais alto da praça. É pequena, mas construída de pedra e muito bonita por dentro. Não é à mineração que Carrancas deve sua origem. No lugar em que está situada existiu outrora muita fazenda com capelinha. Atraídos pelo desejo de ouvir missa, alguns cultivadores vieram estabelecer-se na vizinhança. Foi a fazenda destruída, mas a capela continuou a subsistir. Substituíram-na por uma igreja mais considerável e a pouco e pouco se formou a aldeia. Em 4 de março de 1822, seguindo pelo Caminho Novo do Paraíba, o naturalista deixou o caminho que percorria seguindo em direção à vila de Aiuruóca. O naturalista buscava atingir a serra da Juruoca, uma região que avistara em 1819, primeiro desde as imediações da povoação do Turvo e depois desde a serra dos Dois Irmãos. O naturalista permaneceu na vila de Aiuruóca de 05 a 07 de março de 1822. Assim Auguste de Saint-Hilaire escreveu em 05 de maio sobre a povoação de Aiuruóca, quando de seu pouso naquela vila: A região hoje percorrida é mais montanhosa e cheia de mata. Duas circunstâncias quase sempre coincidentes. Diante de nós descobríamos as montanhas vizinhas da cidade de Juruoca, que não são, dizem, senão ramificação da Serra da Mantiqueira, e no meio das quais se alça um morro conhecido em toda a região sob o nome de Papagaio. Esta montanha termina, segundo asseguraram, por inacessível rochedo e muito alto. Apenas pude ver a raiz da montanha, pois reinava muito espessa cerração. Mais ou menos meio quarto de légua antes daqui chegar, começa-se a descer num vale sombrio, extremamente profundo, cercado de montanhas cobertas de mata. O Rio Aiuruóca, que desce, disseram-me, do Morro do Garrafão, corre rapidamente no fundo do vale, e é à margem deste rio, entre montanhas e matas, que fica situada a cidade do mesmo nome. Construíram-na à ribanceira direita, um pouco acima de seu leito, e compõe-se de cerca de oitenta casas. Constituem elas três ruas, cuja

principal é bastante larga e paralela ao rio. A igreja paroquial ergue-se na extremidade mais elevada desta rua, é pequena, sem sino, e nada oferece de notável. Vêem-se além dela uma capela e outra igreja recentemente construída pela irmandade do Rosário e colocada num morro que domina toda a cidade. Como quase todas as aglomerações de Minas, parece muito pouco habitada nos dias úteis. Torna-se, porém, provavelmente mais movimentada nos domingos e feriados. Prova de que nem sempre vive tão deserta quanto hoje é o fato de possuir algumas lojas bem regularmente sortidas, vendas e até mesmo uma farmácia. Aqui chegando, fui ter à casa do vigário para o qual o de S. João me dera uma carta. Fui recebido por vários padres num grande vestíbulo rodeado de bancos. Estes senhores informaram-me de que o cura fazia a sesta. Assim, não lhe poderia falar. Pus-me a passear de um lado para outro, um pouco magoado com a recepção muito fria que me faziam, pois nem me convidaram para entrar. Afinal apareceu o vigário e a sua primeira recepção foi tão fria quando a de seus confrades. Pouco a pouco, porém, travamos conhecimento verificando eu que é um excelente homem. A 08 de março de 1822, quando finalmente conseguiu atingir a serra do Papagaio, assim escreveu o naturalista: (...) atravessamos terrenos pantanosos e alcançamos um dos pontos mais altos da Serra. Percorremos, ainda uma vez, magníficos pastos, e afinal atingimos, entre todos os quatro cumes da Serra do Papagaio, aquele que nos parecia o mais afastado, quando vínhamos de Aiuruoca. Há divergência sobre os nomes que é preciso dar a todas estas montanhas. Entretanto, em geral, chama-se aos quatro cumes Serra do Papagaio e o mais distante é o Papagaio. Quanto às montanhas vizinhas que se unem chamam-nas simplesmente região da Serra. Mas, para distingui-las de tantas outras, parece conveniente, como o fazem algumas pessoas, designá-las sob a denominação de Serra de Aiuruóca. (...) A Serra do Papagaio avança, como já contei, para o nordeste; avistávamos de um lado as campinas descobertas e onduladas que acabávamos de percorrer, a Serra de Carrancas que parece acabar por plataforma perfeitamente nivelada; e por fim, quase na raiz da montanha, a cidade de Aiuruóca, o rio do mesmo nome que aparecia, por intervalos, cercado do mato que o margeia.

Do lado oposto oferece a paisagem caráter inteiramente diverso: é austera e selvagem. Temos as altas montanhas da Mantiqueira ante os olhos. (...) Diante do terceiro morro, fica o que tem o nome de Papagaio propriamente dito. Une-se à base do terceiro morro e dele está apenas separado por precipício muito estreito; mas além disto fica isolado de todos os lados e alça-se a pique, a enorme altura. (...) Como ninguém ainda logrou maior êxito, a imaginação do povo deu largas a propósito desta montanha. Uns colocaram-lhe no alto grande lago, outros ali fazem brilhar fotos nas noites de verão, outros por fim pretendem que o diabo ali foi acorrentado por um santo sacerdote por ocasião da descoberta da zona. A 10 de março de 1822, o viajante retomou sua viagem atingindo novamente o Caminho Novo do Paraíba, a fim de retomar sua viagem chegando a Vila de Baependi. Auguste Saint-Hilaire transpôs a serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú apenas a 20 de março de 1822. No dia seguinte, após atravessar o rio Paraíba servindo-se porto da Cachoeira, o viajante assim anotou em seu diário de viagem “(...) Quando se atravessa o rio avista-se... ao longe, a Serra da Mantiqueira, cortada por imensas florestas e a gente não se pode cansar de contemplar uma paisagem que tem, ao mesmo tempo, algo de risonho e majestoso”. Em continuação a essa rápida viagem, o botânico se dirigiu a cidade de São Paulo para recolher as suas coleções que lá havia deixado em 1820. Chegou a São Paulo aos 03 de abril de 1822. No dia 11 de abril, já de posse de suas vinte caixas, o naturalista retornou por terra a cidade do Rio de Janeiro, aonde chegou em 04 de maio de 1822. Após esta viagem, Auguste de Saint-Hilaire finalmente embarcou para a Europa, lá chegando ainda no inverno de 1822. Nessa sua última viagem pelo Brasil, embora não tenha citado a serra do Turvo e sua montanha destacada, Auguste de Saint-Hilaire circundou a região do antigo Turvo ao passar pela vila de Ibitipoca, pela vila de Carrancas e pela vila de Aiuruóca. O botânico herborizou na Serra de Ibitipoca, onde está o pico do Pião, e na serra de Aiuruóca, onde está o pico do Papagaio. Entre as serras de Ibitipoca e de Aiuruóca encontra-se a serra do Turvo com a escultura no rochedo.

Google Os roteiros de Auguste de Saint-Hilaire pela região do antigo Turvo, em 1819, com círculos, e em 1822 , com quadrados

IX - A PUBLICAÇÃO DOS RELATOS DE VIAGEM Em 1822, o francês Jean-François Champollion havia decodificado os hieróglifos egípcios. Por conta disso, referências à cultura egípcia passaram uma constante nas obras literárias publicadas naqueles tempos. As publicações dos relatos de viagem dos naturalistas que estiveram no Brasil naquela época não foram exceção a essa corrente. Assim, no ano de 1823, dois anos após terem retornado de sua viagem ao Brasil, Spix e Martius publicaram em Munique o primeiro volume com relatos da viagem feita entre 1817 e 1821. Nessa publicação, ao descreverem a região por onde então transitavam, ou seja, as serras situadas nas imediações da serra do Turvo, os naturalistas se serviram de um termo egípcio para descrever a região, assim escrevendo: Como os largos cumes da serra, que se apresentam com a forma de sarcófagos, se elevam em quase igual altitude (entre três e quatro mil pés), e por sua vez os vales, em forma de calha, também não são muito profundos, poder-se-ia chamar toda esta parte da serra de platô ondulado, por se ir perdendo nele pouco a pouco a serra da Mantiqueira. Com a publicação do primeiro volume dos relatos da grande viagem empreendida entre 1817 e 1821, restava ainda em aberto a publicação de dois outros volumes da obra, então intitulada Viagem pelo Brasil. Mas, em 1826, contando quarenta e cinco anos, faleceu o zoólogo Johann Baptist Ritter von Spix. Assim, coube

apenas ao botânico Carl Friedrich Philipp von Martius a incumbência do terminar a publicação dos relatos das viagens dos naturalistas bávaros pelo Brasil, o que somente ocorreu no ano de 1831, com a publicação do último volume da obra Viagem ao Brasil.

O botânico Von Martius, em poses voltadas para a esquerda. Após retornar do Brasil e já velho.

Em 1823, no mesmo ano em que Spix e Martius publicaram o primeiro volume de sua obra com os relatos das viagens pelo Brasil, o botânico Auguste de Saint-Hilaire apresentou na Academia de Ciências do Instituto da França um relatório contendo seus seis anos de viagens pelo Brasil. Esse relatório foi publicado por A. Belin, em Paris, ainda no ano de 1823. Nesse mesmo ano, o relatório foi incluído nos Extrait des Mémoires du Muséum d’Histoire Naturelle (t.9, p.307), pertencente à Bibliothéque du Muséum d’Histoire Naturelle. O resumo das viagens de Auguste de Saint-Hilaire foi intitulado Esboço de minhas viagens no Brasil e Paraguai consideradas principalmente sob a relação com a Botânica. Naquele ano de 1823, ao terminar o relatório de suas viagens apresentado à Academia de Ciências, Auguste de Saint-Hilaire assim descreveu sua viagem ao entorno da região do antigo Turvo, ocorrida um ano antes, em 1822: Cheguei ao Rio de Janeiro sem acidente; mas me faltava ainda ir buscar, em São Paulo, as coleções que aí havia deixado. Querendo tornar essa última viagem bastante útil, no que dependia de mim, decidi passar pela Província das Minas. Parti do Rio de Janeiro no final de janeiro de

1822; subi uma segunda vez a Serra Negra; revi Barbacena e São João del Rei; subi duas altas montanhas que não conhecia ainda, as de Ibitipoca e de Juruoca; visitei o Pico do Papagaio, onde nenhum habitante tinha subido desde há muitos anos. E, apesar do pouco que dediquei a essas excursões, elas me forneceram ainda colheitas abundantes; o que prova que minhas pesquisas de dezoito meses, na Província das Minas, estavam longe de ter esgotado suas riquezas. Passei pela cidade de Santa Maria de Baependi, famosa por seus tabacos; revi, nos arredores matas de araucárias... Assim, naquele ano de 1823, ao publicar seu resumo de viagens para a Academia de Ciências do Instituto da França, o botânico Auguste de SaintHilaire fez surgir a primeira obra literária contendo referências às serras de Ibitipoca e de Juruoca e ao pico do Papagaio. Passados sete anos, em 1830, Auguste de Saint- Hilaire iniciou à publicação de seus relatos de suas viagens pelo Brasil. As publicações dos relatos de viagem se iniciaram na cidade de Montpelier. Naquele ano de 1830 ocorreu a publicação da primeira parte do relato da viagem empreendida entre os anos de 1816 e 1818, quando houve a primeira viagem do naturalista por Minas Gerais. Três anos depois foi publicada em Paris a segunda parte destes relatos de viagem. No prefácio da publicação de 1833, assim escreveu Auguste de Saint-Hilaire: ...A indulgência com a qual foi acolhido meu primeiro livro de Viagens ao Brasil encoraja-me a publicar o segundo. Não me afasto do plano seguido e continuo a ter como dever precípuo a observância da mais escrupulosa exatidão nas narrativas. (...) Agora vou me ocupar, sem descanso, com a redação do meu terceiro relato, que tornará conhecidas regiões sobre as quais não há, por assim dizer, nada publicado, tais como a parte oriental da Província de Minas Gerais, as montanhas onde nascem os famosos rios São Francisco e Tocantins, os desertos de Goiás, os deliciosos Campos Gerais, os arredores de Curitiba, a costa que se estende de Paranaguá a Santa Catarina, uma grande parte da Província do Rio Grande, as Missões do Uruguai, e enfim os picos do Ibitipoca, do Papagaio, Aiuruóca etc Como se vê no ano de 1833 o naturalista Auguste de Saint-Hilaire informou que a partir de então viabilizaria a publicação dos demais relatos de suas viagens pelo Brasil. Esses relatos dariam a conhecer, entre outras, as regiões dos

“picos do Ibitipoca, do Papagaio, Aiuruóca etc”, regiões essas que o naturalista havia destacado dez anos antes, ao publicar o resumo de suas viagens para a Academia de Ciências do Instituto da França. No ano de 1835, passados dois anos do término da publicação dos relatos da primeira viagem do naturalista pelo Brasil, Auguste de SaintHilaire foi eleito presidente da Academia de Ciências do Instituto da França. Entre os anos de 1847 e 1850, Auguste de SaintHilaire publicou os relatos da grande viagem feita entre os anos de 1819 e 1821. Primeiramente, no ano de 1847 foram publicados os relatos da viagem empreendida da cidade do Rio de Janeiro às nascentes do Rio São Francisco e à província de Goiás. Nessa obra, pela primeira vez é tornada pública referências à povoação do Turvo, à f azenda das Laranjeiras e a s erra dos Dois Irmãos, locais situados dentro da região do antigo Turvo, respectivamente localizados a cinco, doze e a vinte quilômetros de distância da montanha onde se encontra a escultura no rochedo. Então, completavam-se 25 anos desde a decodificação da escrita egípcia, completavam-se também 24 anos desde que Spix e Martius tornaram públicos seus relatos de viagem servindo-se do vocábulo sarcófago para descrever as serras que transitaram nos limites da região do antigo Turvo. No ano de 1847, ao publicar seus relatos narrando sua passagem dentro da região do antigo Turvo, ocorrida em 1819, Auguste de Saint-Hilaire se serviu de vocábulo da cultura do Egito antigo, conforme se observa: “...tive bastante tempo para ir coletar plantas na Serra dos Dois Irmãos. Dá-se este nome a duas montanhas que eu vira de longe durante toda a jornada da véspera; estão situadas uma ao lado da outra, sua altura é aproximadamente a mesma, e ambas têm a forma de uma pirâmide curta, de base muito larga.”. Da mesma maneira que Spix e Martius fizeram em 1823 ao descreverem serras não muito distantes da serra do Turvo, o botânico Auguste de Saint-Hilaire também se serviu de um vocábulo oriundo no Egito antigo ao se referir a acidentes naturais da região do antigo Turvo. Para descrever as duas montanhas que compõem a serra dos Dois Irmãos, uma formação geográfica situada a poucos quilômetros defronte da montanha destacada da serra do Turvo, o naturalista se serviu de um vocábulo que remete ao Egito antigo, o vocábulo pirâmide.

Com a morte de Auguste de Saint-Hilaire em 1853, acabou por ficar em aberto a publicação do livro referente à última viagem do naturalista pelo Brasil, ou seja, a viagem na qual o naturalista circundou a região do antigo Turvo no ano de 1822. Assim, a palavra empenhada por Auguste de Saint- Hilaire em 1833, de que viria publicar os relatos de viagem que dariam a conhecer “os picos do Ibitipoca, do Papagaio, Aiuruóca”, acabou não cumprida com a morte do naturalista. Essa lacuna na publicação dos relatos de viagem de Auguste de Saint-Hilaire somente seria preenchida no ano de 1887, quando foi publicado o relato da última viagem do botânico pelo Brasil. Conforme havia antecipado o botânico em 1833, o relato da viagem empreendida pelos picos do Ibitipoca, do Papagaio, Aiuruóca ocorrida em 1822 foi inserido no final de uma republicação da grande viagem empreendida entre os anos de 1819 e 1821, quando o naturalista atravessou a região do antigo Turvo.

X – O DESAPARECIMENTO DO NOME TURVO

Como se vê não foram poucos os anos em que ocorreram publicações de obras com referências aos acidentes geográficos existentes no entorno da região do antigo Turvo. Em 1823, houve a referência aos picos de Ibitipoca, Papagaio e Aiuruóca. Dez anos depois, em 1833, é repetida a referência aos picos de Ibitipoca, Papagaio e Aiuruóca. Em 1847, pela primeira vez são descritos locais existentes dentro da região do antigo Turvo, a povoação do Turvo, a serra dos Dois Irmãos e a Fazenda das Laranjeiras. Foi somente muitos anos depois, em 1887, que ocorreu publicação do último relato de viagem de Auguste de Saint-Hilaire, a viagem empreendida em 1822 pela região dos picos de Ibitipoca, Papagaio e Aiuruóca. Ou seja, somente naquele ano de 1887 que as referências aos acidentes geográficos existentes na região do antigo Turvo, tornadas públicas por Auguste de Saint-Hilaire em resumo de viagens apresentado na Academia de Ciências em 1823, foram finalmente publicadas em forma relatos de viagem. Ao que parece, essa lenta publicação dos relatos de viagem de Auguste de Saint-Hilaire, que se estendeu por 64 anos, do ano de 1823 ao ano de 1887, causou repercussões na povoação do antigo Turvo. Já no final do século XIX

ecoava pela povoação uma frase atribuída a um seu ex-pároco do Turvo, que dizia: “Turvo, turvo, mesmo que tu não queiras turvo serás sempre!”. Foi então que o nome que por mais de duzentos anos havia identificado essa pequena região das nascentes do rio Grande começaria a se perder. No final do século XIX, outro pároco do Turvo conseguiu autorização para construir uma capela em homenagem a Santo Antônio no alto da montanha onde se encontra o rochedo com a escultura chamada de Turvo pelos primeiros habitantes da região. Construída a capela, restou aos fieis a árdua tarefa de subir a montanha a pé ou em lombo de burros para assistir aos cultos Passaram-se os anos até que, certo dia, em meio a grande tempestade de vento, caiu faísca na capela, então já enfraquecida pelo tempo, a qual veio abaixo. A capela acabou reconstruída num campo próximo à montanha, no vale do rio Turvo Grande. Porém, desconhecendo a história da região, os habitantes começaram a chamar o local não mais de montanha do Turvo, mas sim de morro de Santo Antônio. Com o tempo, a própria serra do Turvo passou a ser chamada de serra de Santo Antônio. Por fim, na terceira década do século XX, na já cidade do Turvo, ocorreram eventos políticos que resultaram em vários feridos e na morte de dois cidadãos. Estes eventos funestos acabaram atribuídos ao nome da cidade, o nome cidade do Turvo. Foi assim que em substituição ao nome cidade do Turvo surgiu o nome cidade de Andrelândia, uma homenagem a André da Silveira, um minerador da região que no ano de 1749 havia conseguido do Bispado de Mariana uma autorização para construção de uma capela na povoação do Turvo Grande e Pequeno.

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