O Apostolado da Oração e a socialização religiosa das camadas populares, in António Matos Ferreira and João Miguel Almeida (org.), Religião e cidadania: protagonistas, motivações e dinâmicas sociais no contexto ibérico. Lisbon: Centro de Estudos de História Religiosa, 455-467

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Edição apoiada por: FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CIÊNOA

ANTÓNIO MATOS FERREIRA JOÃO MIGUEL ALMEIDA (COORDENAÇÃO)

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CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA RELIGIOSA UNIVERSIDADE

CATÓLICA

LISBOA

2011

PORTUGUESA

O APOSTOLADO DA ORAÇÃO E A SOCIALIZAÇÃO RELIGIOSA DAS CAMADAS POPULARES TIAGO PIRES MARQUES

A segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX foram marcadas por uma grande efervescência de associativismo religioso. Os movimentos cívicos de motivação religiosa desenvolveram-se, numa lógica de intervenção direccionada e relativamente especializada, de acordo com o tipo de acção social e o sector da sociedade visados. São conhecidas associações com finalidade assistencial e caritativa, de intervenção na educação, de acção pastoral junto da juventude e das mulheres, socioprofissional, de apostolado familiar e de intervenção na imprensa e pela imprensa 1• Porém, se para o século XX este associativismo tem sido objecto de atenção por parte dos historiadores - nomeadamente no que respeita à Acção Católica e às juventudes católicas -, são menos conhecidas, pelo menos de forma sistemática, tanto as iniciativas verificadas no século XIX, como aquelas que revestiram um carácter mais especializado (o caso da Associação dos Médicos Católicos). Apesar da sua diversidade, estas associações caracterizaram-se pelo facto de se colocarem no plano da sociedade civil, reivindicando-se de uma identidade e fé católicas como base de uma intervenção social, cultural e política. Mais difíceis de caracterizar são as associações formadas com o objectivo declarado de cultivar a fé religiosa, mas sem, no entanto, perderem de vista o objectivo de uma intervenção cívica. Com Pinharanda Gomes, podemos chamar-lhes movimentos de culto. De acordo com uma resenha elaborada por este autor, os movimentos de culto conheceram um surto significativo a partir dos anos 60 do século XIX. Para o período que medeia entre esta década e os anos 40 do século XX, podemos elencar os seguintes movimentos: o Apostolado da Oração (1864); as Zeladoras do Sagrado Coração (1864); os Círculos Rurais Fé e Caridade (1904); a Fraternidade e Cruzada Nun'Álvares (1908); a Cruzada do Rosário pela Salvação de Portugal (1907?); a Cruzada Eucarística das Crianças, anexa ao Apostolado da Oração ( 1921); a Legião J. Pinharanda Gomes - Associações de fiéis nos séculos XVIII-XX. Contributo de bibliografia institucional. Lisboa: [s.n.], 1998.

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de Maria (1921); a Associação das Almas Vítimas do Coração de Jesus (data fundação desconhecida); Exército Azul de Nossa Senhora de Fátima (1946 ; e Movimento Esperança e Vida (França, 1946; Portugal 1958). A estes movimentos somou-se a revitalização de velhas congregações, e::: particular, das congregações marianas, numa dinâmica de socialização relig; cujo alcance e efeitos permanecem largamente por estudar. Ora, no conjunto des· movimentos, o Apostolado da Oração ocupa um lugar destacado: federador ~ outras associações e iniciativas cultuais, este movimento constituiu, segundo al clero português de finais do século XIX, o contexto organizacional e espiritual uma renovação do sentimento religioso entre as camadas populares. O Apo ::>lado da Oração impõe-se, pois, como objecto de estudo. Neste artigo, analisaeste movimento olhando-se às suas singularidades sociológicas, organizacion~ teológicas e devocionais. Tomando em linha de conta a sua implantação e os ~ efeitos, argumentaremos que o Apostolado da Oração teve um impacto signifi- tivo na cultura da sociedade portuguesa deste período. Os problemas aqui analisados inscrevem-se no debate sobre o problema continuidades e rupturas na história do catolicismo, em especial após o ConcL... de Trento e em relação com as mudanças verificadas com o Concílio Vaticano : Deve, por exemplo, considerar-se que o catolicismo pós-tridentino foi dominar.· até ao Vaticano II? Analisando a investigação dos anos 60 aos anos 90, Joseph .~ Komonchak defendeu que, num debate onde se cruzavam elementos de ordeI:": historiográfica e teológica, a perspectiva de uma continuidade fundamental en tr~ o último quartel do século XVI e o Concílio de Vaticano II era largamente dom..nante, quer entre os defensores, quer entre os críticos desta forma de catolicismoEsta noção tem, contudo, sido questionada a partir de diversos ângulos. Num del atende-se à diferenciação e secularização interna do catolicismo sob pressão de processos de laicização e secularização do Estado e da sociedade3• Esta perspecti\ tem colocado em evidência as dinâmicas de modernização internas à própria Igre ~

2 Para uma formulação mais desenvolvida desta questão no debate historiográfico sobre o catolicismo, \'e' Joseph A. Komonchak- Modernity and the Construction of Roman Catholicism. Cristianesimo nella ston.:;. 18 (1997) 353-357 (353-385). 3

Na linha de historiadores como Jean-Delumeau e Émile Poulat, António Matos Ferreira é, para o caso português, o historiador mais representativo desta perspectiva. Ver, por exemplo, António Matos Ferreira - L. Révolution Française et le développement du Catholicisme au Portugal: quelques questions et perspectives. (Perspectives de l' impact révolutionnaire et de l'émergence du libéralisme dans !e Catholicisme portugais). ln La Révolution Française vue parles Portugais. Paris: Centre Culturel Portugais-Fondation Calouste Gulbenkian, 1990, p. 101 - 120; e também «Le Christianisme dans l'Europe. II - La Péninsule lbérique ln Histoire du Christianisme. Vai. 12: Guerres mondiales et totalitarismes (1914-1958). Coord. Jean-Marie Mayeur. Paris: Desclée-Fayard, 1990, p. 402-450. Para uma elaboração teórica desta perspectiva, esclarecedora quanto aos conceitos de diferenciação, laicização, secularização, dessacralização e secularização interna, ver François-André lsambert - De la religion à l'éthique. Paris: Cerf, 1992, p. 18-29.

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Católica, em que se inclui, não só a hierarquia eclesiástica, mas os crentes nas suas iniciativas de intervenção na sociedade civil. Porém, a distribuição das continuidades e rupturas tem sido igualmente questionada a partir de um segundo ângulo, este acentuando as tendências reactivas à modernidade. Autores como Joseph A. Komonchak, William Christian Jr. 4 e Jonathan Mitchell5 têm sustentado que o início do século XIX representou uma ruptura com o catolicismo pós-tridentino. Deve-se a Komonchak a formulação mais radical deste tese: «in the nineteenth and twentieth century the Catholic Church constructed for itself a new sociological form which differed in significant ways from the Catholcism of earlier eras. This modem Roman Catholicism took the form of a counter-society, legitmated by a counter-culture, as a response to and in opposition to the emerging liberal culture and society which advanced with such apparent inexorability throughout those years» 6 • Este catolicismo «moderno», na caracterização deste autor simultaneamente um catolicismo concebido por oposição à modernidade, seria, pois, uma construção dos séculos XIX e XX e não um simples prolongamento do catolicismo que emergiu do Concílio de Trento. Na formulação deste argumento, Komonchak, tal como Christian e Mitchell, chamam a atenção para a reinvenção das devoções populares, no registo de um «misticismo contra-revolucionário»7 • Dinamizadas por associações espirituais de leigos católicos, estas devoções articularam-se estreitamente, segundo estes autores, com a centralização papal e com o discurso teológico de recusa da modernidade. Este artigo procura explorar este segundo ângulo de análise da história do catolicismo através do caso do Apostolado da Oração.

As duas fundações do Apostolado da Oração Na literatura religiosa, o Apostolado da Oração é geralmente associado a dois momentos fundadores: um primeiro, em 1844, ano da fundação do Apostolado enquanto movimento espiritual; um segundo, em 1861, marcando o início do processo no qual o Apostolado ganhou dimensão e os seus elementos mais característicos8. O momento da primeira fundação remete para o contexto da formação 4

William Christian Jr. - Visionaries. The Spanish Republic and the Reign of Christ. Berkeley- Los Angeles: University of Califórnia Press, 1996, p. 2-3. 5 Nathan D. Mitchell - The Mystery of the Rosary. Marian Devotion and the Reinvention of Catholicism, New York and London: New York University Press, 2009, p. 123-129. 6 Joseph A. Komonchak - Modernity and the Construction of Roman Catholicism, p. 356. 7 Joseph A. Komonchak - Modernity and the Construction of Roman Catholicism, p. 363. 8 Esta síntese foi elaborada com base nos seguintes documentos, ambos de carácter apologético: Henri Ramiere, SJ - L'apostolat de la priere en union avec le creur de fésus. 9• ed. Precedido de Charles Parra SJ - Le Fere Ramiere et l'Apostolat de la Priere. Toulouse: Apostolat de la Priere, 1929; D. Abilio Augusto Vaz das

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dos jesuítas: de acordo com a literatura apologética, em Vals, pequena cidade do sul de França, os seminaristas, ansiosos por partirem para as missões, viam-se confrontados com um plano de estudos moroso que os impedia de satisfazer a aspiração missionária. O padre François-Xavier Gautrelet terá então lançado a ideia de que, rezando em intenção daqueles que encontrariam nas missões, os futuros sacerdotes poderiam, desde logo, ser missionários em oração. Esta ideia ter-se-á concretizado no movimento do Apostolado da Oração, designação que dava o título a uma obra de literatura espiritual de 1846, e que aludia ao círculo do apóstolos de que a Igreja era, de um ponto de vista teológico, um prolongamento «místico». Ora, um aspecto crucial que vem marcar este movimento desde a sua fundação consistiu no facto de se abrir este círculo «místico» eclesial aos leigos através de uma rede que se estenderia gradualmente em núcleos de 12 9 • O projecto delineado por Gautrelet foi rapidamente posto em prática e, ainda na década de 40, uma confraria de fiéis solicitava ao papa Pio XI indulgências para o seus membros. O papa acolheu favoravelmente o pedido, concedendo uma indulgência de 7 anos aos membros da confraria. Em 1855, o padre Henri Ramiere, jesuíta recordado como uma personalidade particularmente carismática, assumia comando do movimento. Mantendo o nome e o princípio da oração em intenção de terceiros como veículo de uma intervenção religiosa efectiva, Ramiere reescreveu a obra do padre Gautrelet, associando-lhe elementos novos, que viriam a ser cruciais no sucesso do movimento. A principal novidade consistia na introdução de um elemento devocional, o Sagrado Coração de Jesus, que, ainda que recolhido na tradição católica, adquiria, sob a pena de Ramiere, um novo significado: contra as práticas devocionais puramente rituais e exteriores, a devoção deveria operar-se através de uma intensa união mental, pela oração, ao Sagrado Coração de Jesus. Publicado em 1861, o texto espiritual fundador tomava o título de L'Apostolat de la Priere, Sainte Ligue des creurs chrétiens unis au Creur de Jésus pour obtenir le triomphe de l'Eglise et le salut des âmes. Tratava-se simultaneamente de um texto teológico, de um manual de espiritualidade, dirigido ao clero e aos fiéis, e de um manual de instruções de organização prática do movimento. A obra reflecte os desenvolvimentos teólogicos da década de 50 do século XIX, assinalada pelo dogma da Imaculada Conceição (1854 ) e pela extensão da festa do Sagrado Coração a todo o mundo católico (1856). Contemporânea de preparação das encíclicas de 1864, de condenação de modernidade (a encíclica Quanta cura e o Syllabus), o movimento inscreveu-se tipicamente na dinâmica de reinvestimento nas devoções entendidas como «vacinas» contra as

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Neves - Pastoral sobre o Apostolado da Oração e o Monumento ao Cristo Rei. Porto: Tipografia Porto Médico, 1952. 9

Charles Parra, S.J. - Le Fere Ramiêre et l'Apostolat de la Priere, p. xxii.

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doenças morais da modernidade'º· Com efeito, Ramiere pretendia conciliar um certo modelo de interioridade, formado na tradição dos exercícios espirtuais jesuítas, com o universo devocional das congregações e das práticas de piedade popular. Acolhido pelo papa Pio IX, como via para uma reconquista espiritual e moral cristã, este modelo não vingou, contudo, sem tensões e resistências internas à Igreja: como o testemunham as publicações do Apostolado da Oração, pelo menos até aos anos 30 do século XX, a associação da espiritualidade mística da primeira fundação do Apostolado à devoção do Sagrado Coração suscitou, entre no meio eclesiástico, críticas teológicas". Esta combinação de elementos percebidos como heteróclitos constituiu dois elementos marcantes na formulação espiritual do padre Ramiere. É interessante, neste ponto, olhar de perto ao texto religioso, no qual sobressaem os seguintes elementos: a) Um elemento de ligação espiritual dos fiéis. as orações nascem no Coração de Jesus, ao qual aos fiéis se unem espiritualmente, e que constitui o «motor», o «modelo>>, a «razão>>, a «alavanca>>, a «ligação viva» do Apostolado da Oração 12 ; b) Uma dinâmica de mobilização devocional: o movimento deve constituir, não apenas um apostolado espiritual, mas uma «liga>>, que propague activamente a devoção ao Sagrado Coração pelo mundo inteiro 13 ; c) Uma militância política e social: um forte elemento militante dentro de uma visão de combate entre o «Reino de Cristo» (mais tarde, designado de «Reino Social do Coração de Jesus») e os poderes das trevas; a Igreja é um exército, comandado por Cristo, que tem como missão combater o mal, corporizado pelas forças da modernidade; trata-se de uma reconquista cristã por métodos pacíficos 14 • Para a realização destes fins, o padre Ramiere propunha aos membros do Apostolado uma disciplina religiosa e espiritual detalhada sob a divisa «orar, comungar e sofrer», tantas vezes repetida na abundante literatura do Apostolado. Um dos principais elementos desta disciplina consistia na dedicação, pelo fiel, das suas intenções todas as manhãs, oferecendo tudo aquilo que se realizaria durante o seu dia em reparação dos pecados e pela redenção do mundo. O quotidiano constitui, nesta espiritualidade, o modo privilegiado de escansão do tempo, os seus diversos momentos adquirindo um certo sentido religioso, uma sacralidade.



William Christian rr. - Visionaries. The Spanish Republic and the Reign of Christ, p. 3. Parra fala concretamente de «contraditores e censores» da obra de Ramiere. Charles Parra, sr - Le Fere Ramiere et l'Apostolat de la Priere, p. x:ix. 12 Charles Parra, sr - Le Fere Ramiere et l'Apostolat de la Priere, p. x:ix. 13 Charles Parra, sr - Le Fere Ramiere et l'Apostolat de la Priere, p. xxi. " Charles Parra, sr - Le Fere Ramiere et l'Apostolat de la Priere, p. xx-xxi.

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É importante determo-nos na questão da imagem e do símbolo. Com efeito, nesta articulação do universal e do local, a eficácia da imagem do Sagrado Coração não deve ser secundarizada. Na sua multiplicidade de formas, o Sagrado Coração revelou-se de uma grande plasticidade. Tal como o rosário, era uma imagem portátil, na sua concisão, e susceptível de combinações variadas. Por outro lado, o símbolo do coração cristalizava um certo número de significados correntes: na tradição mística, era o coração que «tanto amou os homens», apresentado por Cristo a Santa Margarida Maria Alacoque na célebre visão de Paray-le-Monial. em 1675 26 ; para a teologia, era a mediação, na forma de amor, entre o Verbo feito carne - Jesus Cristo - e Deus Pai; no sistema popular de mediações devocionais, o Sagrado Coração estabelece uma ponte entre a humanidade e Deus 27 • Com ele comunicam outros mediadores, nomeadamente a Virgem Maria, também atravé do seu Coração (Imaculado) («ir a Jesus por Maria»). Se Jesus era guerreiro contra os poderes das trevas, pelo coração, era também um amigo, e mesmo um amigo íntimo e protector. Por outro lado, o coração significa igualmente o centro da pessoa: é pelo coração que os seres humanos sofrem, amam e morrem. Contemplar o Sagrado Coração através do próprio coração significava procurar o centro de si no Coração de Jesus, centro do corpo místico da Igreja. Enfim, na análise exploratória da literatura apologética revelaram-se múltiplas as virtualidade imagéticas e metafóricas do coração na expressão de uma afectividade religiosa: simultaneamente carne e espírito, o coração arde de amor, sofre, sangra, palpita. une-se com outros corações 28 • A espiritualidade do Sagrado Coração era, pois, acessível e apelativa às classe populares e ao clero 29 , procurando conciliar uma certa noção de interioridade com uma sensibilidade devocional a que não faltavam elementos mágicos. Esta combinação inscrevia-se já na concepção de oração do padre Ramiere. Para o sacerdote, o poder da oração não se limitava às graças espirituais. Pelo contrário. «o seu poder estende-se a tudo: entre as mãos dos amigos de Deus, a oração é um instrumento universal que a eles serve em todos os usos, quer no alívio das necessidades temporais, quer no das necessidades espirituais; ela coloca a natureza As palavras relatadas por Santa Margarida Maria Alacoque a propósito da visão de Junho de 1875 fo rmam o centro do cânone da devoção moderna ao Sagrado Coração: «Voici ce Cceur qui a tant aimé les hommes qu'il n'a rien épargné jusqu'à s'épuiser et se consumer pour leur témoigner son amour. Et pour reconnaissance, je ne reçois de la plupart que des ingratitudes, par leurs irrévérences et leurs sacrileges, et parles froideurs et les mépris qu'ils ont pour moi dans ce sacrement d'amour» . Sainte Marguerite-Ma rie. Sa vie par elle-même. Texte authentique. Préf. Maurice Gaidon. Paris e Fribourg: Éditions Saint-Paul, 1979. 27 Encontramos uma apologética desenvolvida da mística do Sagrado Coração em Charles Parra, SJ - Le Sacré Coeur. Histoire, Mystique, Théologie, Pratique. Toulouse: Apostolat de la Priere, 1945. O poder da imagem religiosa é equiparado, nesta obra, ao poder da imagem cinematográfica. Cf. na mesma obra a p.

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Ver, por exemplo, Bento Rodrigues (Pe.) - Sermão pregado no Monte Sameiro .. ., passim. Seria importante averiguar da penetração desta devoção nas camadas sociais burguesas e urbanas.

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inteira às suas ordens. É uma espécie de charme [no francês original] celeste ao qual nada resiste. Tem-se visto santos fazerem milagres quase a brincar [comme en se jouant]; diríamos que o Todo Poderoso se fez seu servidor, e que não esperava, para agir, senão as ordens das suas orações» 3º. A oração, mesmo interior, tinha pois uma eficácia sobrenatural (ou mágica, para utilizar um conceito antropológico). No mesmo espírito de uma democratização dos bens religiosos, o Apostolado da Oração veiculava a noção de que a santidade era acessível a todos através dos trabalhos quotidianos, mediante a oração, a comunhão e a entrega de sacrifícios, cuidadosamente contabilizados. No espírito do Apostolado da Oração, «O ideal de santidade não é já um sonho de imaginação ou um desejo irrealizável, mas uma conquista de todos os dias» 31• Ora, os sacrifícios podiam ser graduados segundo as capacidades de cada um para suportar o sofrimento redentor: desde os pequeninos sacrifícios à oferta de si próprio como vítima de expiação pelos pecados do mundo. Foi neste contexto que se verificou o surgimento de uma mística vernacular, na qual surgiram diversas figuras femininas incarnando o ideal da «vítimas de expiação»: Marthe Robin, Thérese Neumann e, em Portugal, Alexandrina de Balasar são apenas os casos mais conhecidos32 • A difusão da devoção ao Sagrado Coração fez-se, tal como advogara o padre Ramiere, com amplo recurso à imprensa periódica. Iniciada pelo já citado Le Messager du Sacré-Coeur de Jésus, estas publicações multiplicaram-se a partir dos anos 80 do século XIX, contando-se igualmente o Almanach illustré de l'Apostolat de la Priere e as publicações afectas às várias secções especializadas e locais do Apostolado da Oração 33 • Uma análise exploratória destas publicações permite observar que, também aqui, é patente a orientação para as camadas populares: seguindo o modelo do almanaque, esta literatura periódica estruturava-se segundo o calendário mensal, numa proximidade pretendida ao quotidiano, que investia de um sentido religioso através de textos edificantes, testemunhos, retratos históricos e notícias diversas. Os textos eram pontuados por imagens, a que se atribuía, sem dúvida, uma função maior 34• Mas a acção do Apostolado foi sobretudo de terreno e de proximidade com as populações. Especializando-se em Ligas do Sagrado Coração segundo a faixa etária, o sexo e meio sócio-profissional, com extensões ao mundo ultramarino, 30

Henri Ramiere, SJ - L'apostolat de la priere en union avec Ie creur de ]ésus. 9• ed. Lyon: [s.n.], [s.d.], p. 189-190. 31 Code de vie de la cadette du Christ- Toulouse : Apostolat de la priere, 1933, p. 8. 32 Sobre as jejuadoras em Portugal, cf. João Pina Cabral- Sons of Adam, daughters ofEve. Oxford: Clarendon Press, 1986, p. 229. 33 Consultámos nomeadamente Le Petit Agent de Liaison. Croisade Eucharistique, órgão local da Cruzada Eucarística das Crianças nas dicoceses de Rennes e Nantes, publicado na década de 1930; e o Billet mensuel de l'Apostolat de la priere, complemento do Le Messager du sacré-Coeur, publicado a partir de 1932. 34 Análise exploratória do Almanach de l'Apostolat de la Priere. Année 1 (1885).

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o Apostolado organizou-se de forma capilar, procurando recobrir o conjunto do corpo social. Os objectivos específicos das Ligas variavam de acordo com o meio no qual se situavam. As Ligas do Sagrado Coração masculinas, por exemplo, tinham como objectivo principal fazer comungar os homens, que a hierarquia clerical considerava comungarem pouco 35 • Mais tarde, o mesmo modelo foi utilizado para prestar apoio espiritual aos soldados da 1 Guerra 36 • As Ligas femininas, por seu turno, atribuíam um estatuto e um papel religioso às mulheres leigas, na qualidade de «zeladoras». A importante função de socialização religiosa levada a cabo pelas zeladoras era reconhecida pela hierarquia católica. Por exemplo, em 1894, aquando da comemoração do cinquentenário do Apostolado da Oração no santuário Sameiro, o padre Bento José Rodrigues, director da obra em Portugal, sublinhava o papel das incansáveis e «intrépidas Marias do Calvário», a quem se deveria em grande parte a «restauração religiosa» 37 • Neste espírito, surgiram outras obras reconhecendo às mulheres leigas funções religiosas. Refira-se, a título de exemplo a Obra das Três Marias dos Sacrários-Calvários, movimento de reparação eucarística que, em união com Maria Imaculada, se propunha acompanhar os sacrários abandonados ou pouco frequentados 38 • A diversificação etária foi também um dos aspectos característicos do Apostolado. Em 1915, surgiu oficialmente uma secção infantil, com a designação, de ressonância militar, de Cruzada Eucarística das Crianças, com o objectivo de «formar o Cristo na criança» através da catequese e da comunhão frequente. Um princípio constitutivo deste braço do Apostolado era a ideia de que a criança era um vector de fé e de cristianização, em particular nos meios rurais e nas missões 39 • É importante referir que este movimento foi contemporâneo de uma reformulação da teologia da comunhão por Pio X, que, na encíclica Quam singulari, de 1910, e contra o que fora estabelecido pelo Concílio de Trento (que proibia a comunhão às crianças 40 ), fez recuar a idade da primeira comunhão à primeira infância (6 ou 7 anos) 41 • Para dar continuidade à formação iniciada na Cruzada, passada a infância, 35

Charles Parra, SJ - Apostolat de la priere. Manuel des hommes. Les Ligues du Sacré-Creur. Toulouse: Apostolat de la Priere, 1935, p. 4. J
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