O Argumento Moral a favor do Vegetarianismo (James Rachels - TRADUÇÃO)

July 3, 2017 | Autor: Luiz Abrahão | Categoria: James Rachels, Ética, Bioética, Ética Aplicada, Vegetarianismo, Direitos dos Animais
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O Argumento Moral a favor do Vegetarianismo1 James Rachels [Tradução de Luiz Henrique de Lacerda Abrahão]

A ideia de que comer carne é moralmente condenável pode soar um tanto ridícula. Afinal de contas, comer carne é um ato corriqueiro e cotidiano em nossas vidas; mais do que isso, pessoas sempre comeram carne – e muitas delas, inclusive, consideram impensável uma dieta alternativa. Então, não é fácil julgar aquela prática como genuinamente incorreta. Além disso, o vegetarianismo é comumente associado a religiões orientais (cujos preceitos nos são alheios) e a concepções bizarras e infundadas acerca de nosso bem-estar. Uma olhada rápida em materiais vegetarianos confirma a ideia de que tudo aquilo não passa de pura maluquice; alguns panfletos ostentam títulos como “Vitória através dos Vegetais”2, sem contar a promessa de que somente alcançaremos a sabedoria e a saúde perfeita através de uma alimentação sem carnes. Bobagens como essas podem ser desconsideradas. Contudo, há outros argumentos a favor do vegetarianismo que merecem atenção. O mais contundente deles apela para o princípio segundo o qual é errado causar sofrimento desnecessário. O erro contido na crueldade com animais é, com frequência, avaliado a partir dos efeitos dessa crueldade com animais nos seres humanos. Assim, ainda que os próprios animais não sejam moralmente relevantes, a crueldade com eles gera consequências negativas em nós – e, por essa razão, a crueldade com animais seria errada. Em termos legais, a crueldade com animais se enquadra no âmbito dos “crimes sem vítimas” e o problema de justificar proibições legais nesse caso é comparável à dificuldade de fundamentar a proibição de outros atos (como a prostituição ou a divulgação de pornografia) nos quais nenhuma pessoa é lesada. Em 1963, o reputado jurista Louis Schwartz escreveu o seguinte sobre a proibição de tortura a animais: “Nosso principal objeto de preocupação não concerne ao cão maltratado [...] Mas aos sentimentos dos outros seres humanos, 1

Capítulo 7 do livro Can Ethics Provide Answers? And Other Essays in Moral Philosophy. Totowa, N.J.: Rowmanand Littlefield, 1997, pp. 99-107. Uma versão anterior desse texto aparece como “Vegetarianism and ‘The Other Weight Problem’”, in: World Hunger and Moral Obligatio. William Aiken and Hugh LaFollette (eds), Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1977: 180-193; e “Do Animals Have a Right to Life?”, in: Ethics and Animals, Harlan B. Miller and William H. Williams (Eds.). Clifton, N.J.: Humana Press, 1983: 275-284. 2 Referência à obra Victory Through Vegetables, publicada em 1970 por Joan Wiener e Barbara (Henry Holt & Company, Inc.) (N.T)

muitos dos quais – ainda que acostumados com o abate de animais para alimentação – identificamse prontamente com um cão ou um cavalo torturados e reagem com grande sensibilidade aos sofrimentos deles”. Esse ponto de vista também é compartilhado por alguns filósofos. Kant, por exemplo, sustentava que não temos deveres com relação a animais não-humanos. O Imperativo Categórico – o princípio fundamental de moralidade – aplica-se estritamente às relações entre pessoas: “O imperativo prático será, pois, o seguinte: ‘Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio’”.3 Com relação aos demais animais, ele sublinha: “Contudo, quando se trata de animais, não temos deveres específicos. Animais não possuem autoconsciência e não são mais que simples meios para um fim. Esse fim é o homem”. 4 Acrescenta também que não deveríamos ser cruéis com os animais prioritariamente porque “quem é cruel com os animais se torna bruto também com os homens”.5 Essa forma de conceber a questão é absolutamente inaceitável. A crueldade com animais deve ser combatida não só em razão dos impactos secundários dela nos humanos, mas por causa dos seus efeitos imediatos nos próprios animais. Animais torturados sofrem da mesma forma que humanos torturados sofrem – esse é o motivo fundamental pelo qual torturar é errado. Condenamos a tortura em humanos por diversos motivos, entretanto, o principal motivo remete ao fato de que as vítimas sofrem. Ora, na medida em que animais não humanos também sofrem, a mesma razão se aplica para combatermos a tortura a eles – e é indefensável se opor ao sofrimento de apenas um, e não ao sofrimento de ambos. O fato da crueldade com animais ser errada não significa que sempre é injustificado causar dor em um animal – do mesmo modo como, algumas vezes, é justificável causar dor em seres humanos. Entretanto, é necessário um motivo sólido para fazê-lo; e, se a dor for extrema, a justificativa precisa ser igualmente forte. Serve como exemplo o tratamento destinado ao gatoalmiscarado (Civettictis civetta), um animal extremamente inteligente e sociável. Esses bichos são capturados e enfiados em gaiolas apertadas colocadas dentro de galpões escuros. O fogo mantém

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Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007 (A 66//67), p. 69. 4 Immanuel Kant, Lectures on Ethics, Trans. Louis Infield (New York: Harper, 1963), p. 239. 5 Immanuel Kant, Lectures on Ethics, p. 240.

a temperatura média dos galpões em 42,9°C.6 Eles permanecem confinados ali até a morte. O que justifica tamanha maldade? Os gatos-almiscarados têm o azar de produzirem uma substância utilizada na fabricação de perfumes. O almíscar – que, enquanto eles sobreviverem, é extraído dos seus órgãos genitais uma vez por dia – faz com que o aroma do perfume se impregne um pouco mais após cada aplicação. (O calor estimula a “produção” do almíscar.) A regra de Kant – “Animais são apenas meios para um fim, e esse fim é o Homem” – aplica-se perfeitamente nesse exemplo. Para satisfazer um dos nossos interesses mais fúteis, aqueles animais são flagelados ao longo de toda sua existência. Não é difícil convencer as pessoas de que esse uso de animais é injustificável – e que, portanto, temos um dever moral de não apoiar tais crueldades comprando produtos oriundos dessas práticas. O argumento é simples: (1) causar sofrimento é injustificado (exceto se houver uma razão forte); (2) a produção de perfume através de almíscar gera sofrimento; (3) nosso bem-estar não é um motivo forte o bastante para justificar esse sofrimento; então, (4) tal utilização de animais é errada. Tão logo as pessoas se conscientizam do processo de produção do almíscar, elas passam a achar moralmente censurável o uso desse produto. Todavia, mostram-se assombradas quando descobrem que um argumento análogo se aplica à utilização de animais como comida. Bichos criados e abatidos para alimentação também sofrem – e o fato de gostarmos do sabor deles não é um argumento válido para maltratá-los. Grande parte das pessoas subestima completamente o nível de sofrimento a que são submetidos animais criados e abatidos para alimentação. De forma vaga, essas pessoas reconhecem que matadouros são cruéis e que os métodos de abate deveriam ser mais humanizados. Contudo, de forma geral, a ida ao matadouro é um episódio relativamente rápido na vida do animal; fora isso, as pessoas imaginam que os animais são bem tratados. Mas nada está mais longe da verdade do que essa ideia. Atualmente, a produção de carne é um negócio rentável e os animais indefesos são tratados mais como máquinas em uma fábrica do que como seres vivos. Vitelos passam a vida toda encarcerado em jaulas tão apertadas que sequer conseguem se virar ou mesmo deitar confortavelmente – isso porque o exercício tonifica os músculos, o que reduz a qualidade da carne; além disso, permitir que animais ocupem um espaço adequado seria

Muriel [Dowding], a Lady Dowding, “Furs and Cosmetic: Too High a price?”, in Animals, Men, and Moral. Stanley Godlovitch (ed.), Roslind Godlovitch and John Harris. New York: Taplinger, 1972: 36. 6

inviavelmente caro. Nessas baias, os vitelos estão impedidos de realizar coisas básicas (como se limpar – o que eles, naturalmente, desejam fazer), afinal, não há espaço o bastante nem para virarem a cabeça. Evidentemente, tais filhotes também sentem falta de suas mães; e, exatamente como bebês humanos, também precisam de algo para sugar. (É possível vê-los tentando sugar as grades do cercado.) Para ficarem com a carne anêmica e suculenta, são alimentados com uma dieta líquida carente de ferro e sem ruminação. É incontestável que eles sentem falta dessas coisas básicas. O vitelo necessita tanto de ferro que, se conseguisse se virar, lamberia a própria urina (ainda que, claro, não apreciem isso). O espremido cercado – que impede a movimentação do animal – resolve esse problema. A vontade de ruminar é considerável porque, sem isso, o vitelo é incapaz de digerir. O animal também não recebe palha para deitar porque, se recebesse, a comeria – o que estragaria a carne. Para vitelos, o matadouro não significa um fim indesejado para uma existência feliz. Apesar do processo de abate ser aterrorizante, para eles a morte pode efetivamente aparecer como uma misericordiosa libertação. O tratamento destinado a outros animais que jantamos também pode ser descrito em termos bastante parecidos. Para produzir animais aos milhões, é preciso mantê-los aglomerados em espaços minúsculos. Em geral, quarto ou cinco galinhas são mantidas em uma área menor que a de uma folha de jornal. Impedidos de andar ou de esticar suas asas – menos ainda de construir ninhos –, pássaros se tornam violentos e atacam uns aos outros. O problema é agravado porque eles ficam tão apertados que sequer conseguem se mexer; então, suas patas crescem e se enroscam na grade de arame da gaiola, aprisionando-os. Um pássaro aprisionado não consegue fugir de agressões, independentemente do seu grau de desespero. A mutilação dos animais aparece como uma solução eficiente. Para minimizar lesões que causam entre si, criadores cortam os bicos das aves. A amputação é dolorosa – contudo, por certo, não tão excruciantes quanto outros tipos de mutilação realizadas cotidianamente. Bois são castrados – não para evitar “vícios” não naturais prevalente em galinhas, mas porque, dessa forma, eles ganham peso e reduzem os riscos de contaminação por hormônios masculinos. Analgésicos, em geral, não são utilizados.

“O procedimento consiste em imobilizar o animal e decepar o escroto com uma faca, expondo os testículos. Em seguida, cada testículo é puxado, até o cordão que o liga ao corpo arrebentar-se;

em animais mais velhos pode ser necessário cortar o cordão”.7

Enfatizamos que o tratamento descrito acima não é exceção. Muito pelo contrário: dado que a produção de carne é um negócio lucrativo, essa conduta se configura como a forma usual de lidar com animais criados para consumo. Conforme Peter Singer anuncia, era isso que acontecia com o seu jantar quando ele ainda era um animal.8 Há algum responsável por tamanha crueldade? Produtores de carne afirmam que não há motivo para serem considerados perversos. Eles somente adotam a noção expressa por Kant: “Animais são apenas meios para um fim; e esse fim é o homem”. Práticas cruéis acontecem porque elas são eficientes, não por causa da crueldade dos produtores – afinal, o principal interesse deles é produzir carne (e ovos) a baixo custo para consumo humano. Porém, se faz sentido classificar algo como imoral – certamente esse algo consiste em tal uso dos animais. Na medida em que nossa alimentação não depende de comer animais, o único motivo para mantermos o hábito remonta ao fato de gostarmos do sabor da carne. Entretanto, esse motivo não passa nem perto de conseguir justificar tamanha crueldade. Quer dizer que devemos suspender completamente o consumo de carne? Uma alternativa é responder: “O problemático não é comer animais, apenas fazê-los sofrer. Talvez fosse o caso de contestar o modo como eles são tratados, e inclusive batalhar por um tratamento melhor para eles. Mas isso não significa que devemos suspender o consumo”. Parece plausível pensar assim. Mas só até notarmos a impossibilidade de equacionar um tratamento digno dos animais com a produção de carne em quantidade suficiente para compor nossa dieta cotidiana. Métodos cruéis são usados na indústria porque são econômicos; permitem aos produtores comercializar um produto pelo qual as pessoas podem pagar. Uma produção humanizada de carne de vaca, porco e galinha seria tão cara que apenas os ricos conseguiriam comprar. (É possível eliminar crueldades sem gastar muito – por exemplo, bois poderiam ser anestesiados antes da castração, entretanto, apenas isso não reduz o preço da carne. É impossível eliminar as crueldades – como a superlotação – sem enormes investimentos.) Em outros termos, buscar um tratamento

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Singer, Libertação Animal, Op. Cit., p. 214. [A passagem citada por James Rachels apresenta ligeiras diferenças com o original. Mantivemos a versão atualizada no livro de Singer (N.T.)] 8 A descrição mais precisa é o capítulo 3 de Liberação Animal (trad. Marly Winckler e Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010). Para os o material factual nos dos parágrafos seguintes, me baseio nessa obra de Singer.

mais adequado em relação a animais implica em militar por um cenário no qual a maioria das pessoas adotasse uma dieta vegetariana. Resta, ainda, uma instigante questão teórica: caso fosse possível produzir carne de forma humanizada, sem maltratar os animais antes de os matar de forma indolor, ainda assim seria errado comer animais? A questão tem apenas um interesse teórico, uma vez que nossa verdadeira escolha no supermercado consiste em se compramos ou não os restos mortais de animais que, de fato, não foram tratados humanamente. Não obstante, é uma questão interessante e vale a pena considerá-la brevemente. Primeiro, é uma questão enfadonha se animais possuem um “direito à vida” o qual é violado quando os matamos por motivos banais; mas não deveríamos simplesmente aceitar essa tese até que seja provado que, de alguma outra forma, eles não têm tal direito. Admitimos que humanos têm direito à vida – ou seja, seria errado assassinar um ser humano normal e saudável, ainda que de forma indolor – e é improvável determinar algum motivo razoável para atribuir esse direito a humanos e não a outros animais. Como os humanos, outros animais vivem em comunidade, comunicam-se e possuem relações sociais duradouras; matá-los elimina vidas que não deixam de ser extremamente complexas, apesar de não tão ricas emocional e intelectualmente como as nossas. Tanto quanto os humanos, animais sofrem e também podem sentir felicidade, medo e angústia. Ora, qual a justificativa racional para afirmar que nós temos direito à vida, mas eles não? Ou, mais pontualmente, qual a justificativa racional para afirmar que um humano com grave atraso mental – que, em todos os aspectos relevantes, é inferior a um animal inteligente – possui direito à vida, mas animais não? Filósofos geralmente encaram questões desse tipo como se fossem “enigmas”: isto é, admitem que deve haver alguma resposta, mesmo que nossa limitada inteligência não consiga determiná-la. Mas talvez simplesmente não existam tais respostas aceitáveis. Se, intuitivamente, tudo indica que deve haver alguma diferença entre nós e os demais animais a qual confere a nós (mas não a eles) um direito à vida, pode ser que essa intuição esteja equivocada. A dificuldade de encontrar respostas satisfatórias para aquelas indagações deveria, no mínimo, suscitar uma dúvida quanto a ser correto matar animais (mesmo sem lhes causar sofrimento) até que, de certa forma, nos obriguemos a levar a sério a possibilidade de ser correto matar pessoas (mesmo sem lhes causar sofrimento).

Permita-me apresentar uma sugestão mais definida a esse respeito. Se queremos saber se animais possuem direito à vida, deveríamos partir da pergunta – por qual motivo os humanos possuem esse direito? O que confere aos humanos o direito à vida? Se humanos possuem direito à vida, e, digamos, as plantas não, precisamos encontrar alguma diferença entre ambos que explique o motivo de um possuir o direito e o outro não. É preciso definir aquelas características que os humanos possuem (e as plantas não) as quais nos qualificam a ter esse direito. Então, uma forma de abordar a pergunta consiste em procurar identificar tais características. Em seguida, investigar se algum animal não humano também as possui. Quanto às características que qualificam alguém a ter direito à vida, sugiro o seguinte: um indivíduo tem direito à vida se ele tiver uma vida. Como tantas outras ideias filosóficas, o conteúdo dessa afirmação é bem mais intrincado do que parece à primeira vista. Ter uma vida é diferente de simplesmente estar vivo. Estar vivo é uma noção biológica, ou seja, é somente possuir um organismo biológico funcionando. É o contrário de estar morto. Mas “uma vida”, no sentido que nos importa aqui, é uma noção biográfica (e não biológica). “A vida de Babe Ruth” não envolverá eventos biológicos da existência dele – ele tinha um coração, fígado, sangue e rins –, mas fatos relacionados à sua história, crenças, ações e relacionamentos:

George Herman Ruth nasceu em Baltimore em 1895, filho problemático de uma família pobre. Aos oito anos foi mandado para viver na Escola Santa Maria; aprendeu basebol e se tornou lançador dos Red Sox aos dezenove. Babe foi destaque por seis temporadas antes de virar rebatedor dos Yankee e vir a se tornar o mais idolatrado jogador da história daquele esporte. Ele conseguiu 60 rebatidas em uma única temporada; 714 ao todo. Era amigo de bebedeira de Lou Gehrig e casado com Claire. Morreu de câncer aos cinquenta e cinco anos.

Apresentamos fatos da vida dele. Não são, contudo, fatos biológicos. A morte não é um mal quando põe fim ao fato de estar vivo, mas sim ao fato de ter uma vida. Tragicamente, alguns humanos não têm (e nunca terão) uma vida. Uma criança acometida pela doença de Tay-Sachs9 jamais crescerá para além dos 6 meses de idade; quando esse momento chegar, ocorrerá uma degeneração gradual e ela morrerá. Agora, suponha que essa criança contraia

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Doença neurodegenerativa causada pela atividade insuficiente da enzima hidrolítica hexosaminidase A. Os sintomas progressivos da doença de Tay-Sachs incluem: severa deterioração das habilidades mentais e física, cegueira, surdez, incapacidade de engolir, atrofia muscular e paralisia. (N. do T.)

pneumonia; não a tratar e deixar que morra é uma opção. Uma escolha como essa parece justificada porque, diante da inexistência de qualquer possibilidade de uma vida no senso biográfico, a vida no sentido biológico possui pouco valor. O mesmo tipo de raciocínio explica por que parece ser tão absurdo manter vivas pessoas em coma irreversível. Os familiares desses pacientes não tardam a perceber que simplesmente estar vivo não é o que importa. A mãe de um homem que morreu após seis anos em coma disse a um repórter: “Meu filho morreu aos 34 anos de idade após de ter vivido 28”.10 Esse é um relato extremamente emotivo e, em certo nível, até mesmo paradoxal – afinal, como alguém pode morrer aos 34 e ter vivido apenas 28 anos? –, contudo, é totalmente evidente o que ela tinha em mente. A vida daquele homem acabou quando entrou em coma, apesar dele ter permanecido vivo por mais 6 anos. Os limites temporais para estar vivo não precisam ser idênticos aos limites temporais de ter uma vida. Com base nisso, observamos que é insensato preservar a ideia de que qualquer animal (humano ou não humano) tem direito de viver simplesmente porque é um ser vivo. A doutrina da santidade da vida, caso seja interpretada como aplicável estritamente à vida biológica, é incapaz de sustentar essa noção. Minha sugestão é que um indivíduo tem direito de possuir uma vida biográfica. Segundo tal critério, ao menos alguns animais não humanos também teriam direito à vida. Partindo de um exemplo bastante óbvio, notamos que macacos possuem vidas extremamente complexas. São consideravelmente inteligentes, constituem famílias e vivem juntos em grupos sociais, além de aparentemente terem atitudes retrospectivas e prospectivas. Por certo, a vida deles parece não ser tão complexa emocional e intelectualmente como a dos humanos; entretanto, quanto mais aprendemos sobre eles, mais impressionados ficamos com as semelhanças entre eles e nós. De fato, ainda carecemos de conhecimentos acerca da vida dos membros da maior parte das outras espécies. Para emitir opiniões legítimas a respeito, precisamos de informações as quais poderiam ser obtidas mediante observações dos animais em seus respectivos ambientes naturais, em invés do laboratório, conquanto informações adquiridas em laboratório também sejam valiosas. Quando babuínos, cachorros e lobos foram estudados na natureza se verificou que as vidas de animais individuais (inseridos em grupos sociais) são extremamente variadas. Todavia, ainda estamos apenas começando a apreciar a riqueza do reino animal. Nosso estado atual de relativa ignorância quanto a outras espécies sinaliza que a situação parece ser a seguinte. Quando lidamos com mamíferos (com os quais somos mais próximos), é

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Miami Herald, 26 de Agosto de 1972, seç. A, p. 3.

razoável considerar que eles possuem vida no sentido biográfico. Sentem emoções e interesses, possuem sistemas sociais e tudo o mais, embora talvez não de forma idêntica aos humanos. Com efeito, quanto mais fundo avançarmos na escala da filogenética, menos certeza temos de que há alguma coisa parecida com a vida. No caso de insetos ou camarões, realmente falta a esses animais as capacidades mentais necessárias para ter uma vida, apesar de certamente estarem vivos. A maioria de nós possui uma intuição quanto à importância dessas gradações – por exemplo, julgamos que matar um ser humano é pior do que matar um macaco, assim como julgamos que matar um macaco é algo moralmente mais grave do que matar uma mosca. Quando chegamos às plantas – que estão vivas, mas às quais a noção de vida biográfica não se aplica – nossos escrúpulos morais quanto a matar desaparecem completamente. Se minha sugestão quanto ao direito à vida está correta, tais escrúpulos morais possuem uma base racional: assim como estamos justificados em conceber que outras criaturas possuem uma vida, como nós temos, estamos justificados em dizer que elas também possuem direito à vida, se nós temos. Por fim, vale mencionar que a matança de animais para alimentação reflete um padrão mais geral que caracteriza nossa relação com o mundo não humano como um todo. Animais são arrancados do seu ambiente natural para se tornarem objetos de entretenimento em zoológicos, circos e rodeios. São utilizados em laboratórios, não apenas em experimentos – os quais, em si mesmos, são moralmente questionáveis –, mas também para testar todo tipo de coisa, desde xampu até armas químicas. Bichos são assassinados de forma que suas cabeças possam ser usadas como peças de decoração em parede e as peles deles como roupas e tapetes ornamentais. Esse padrão de exploração cruel decorre, por certo, da concepção kantiana segundo a qual os animais não são mais do que coisas para serem utilizadas segundo nossos interesses. É essa mentalidade que precisa ser combatida – e não apenas uma de suas manifestações na nossa disposição em machucar os animais que comemos. A recusa dessa mentalidade, e, por conseguinte, da opinião de que os animais são meros objetos dos nossos caprichos, implica o desaparecimento da noção segundo a qual é correto matar animais (não importa se de forma indolor), ainda que para um simples tira-gosto. Porém, para aqueles de nós que não vivem em remotas fazendas familiares, ser ou não aceitável comer a carne de animais assassinados de forma indolor não passa de uma questão teórica. Afinal, a carne que adquirimos no supermercado não foi gerada de forma humanizada. Para produzi-la, animais foram maltratados de maneira similar à que descrevemos; e milhões de outros animais – cujas carnes em breve estarão disponíveis nas prateleiras – passam pelas mesmas experiências neste exato momento. O problema prático é se deveríamos sustentar tais ações

comprando e consumindo seus produtos? É desencorajador saber que, de fato, apenas um indivíduo abandonar o hábito de comer carne não salvará qualquer animal. Por sua própria natureza, o comportamento de um único consumidor não tem força para impactar visivelmente na indústria, dadas as dimensões do mercado de carne. Contudo, é preciso ver o comportamento individual em um contexto mais amplo. Existem milhões de vegetarianos e, como eles não se alimentam de carne, consequentemente existe menos crueldade no mundo do que havia anteriormente. A questão é: aliar-se àquele grupo ou ao das pessoas cujas escolhas causam sofrimento? Compare isso com a posição de alguém que, em 1820, reflete se deve ou não comprar escravos. Essa pessoa pode pensar: “A prática da escravidão é completamente imoral, mas não vou ajudar nenhum dos infelizes escravos caso deixe de participar da prática. Se eu não os comprar, outro o fará. A decisão de um único indivíduo é incapaz de alterar um mercado tão poderoso. Então, como os demais, posso adquirir escravos”. O primeiro elemento que percebemos é que esse sujeito foi extremamente pessimista quanto às possibilidades de um movimento bem-sucedido; mas, além disso, há outro equívoco nesse raciocínio. Se alguém realmente admite que uma prática social é imoral, isso já basta para recusar a participar dela. Em 1848, Henry David Thoreau comentou que, mesmo se alguém não quiser se engajar no movimento abolicionista e se opor ativamente à escravidão, “é o seu dever, no mínimo, lavar as mãos a respeito – e, se não pensa no assunto, também não deve sustentar a prática”.11 No caso da escravidão, tudo é muito claro. Se, porém, parece menos evidente no caso da exploração cruel de animais não humanos, talvez seja em razão da mentalidade kantiana ainda estar tão tenazmente enraizada em nós.

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Henry David Thoreau, Walden and Civil Disobedience [Walden ou Da Desobediência Civil], Owen Thomas (ed.). New York: W. W. Norton & Co., 1966: 229-230. Primeira publicação em 1848.

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