O ARQUÉTIPO DE TRICKSTER PRESENTE NAS ALUCINAÇÕES E PESADELOS DE UM PACIENTE DE 55 ANOS: DESVELANDO O ENIGMÁTICO

May 24, 2017 | Autor: Lucas Rezende | Categoria: Trickster, Psicanálise, Psiquiatria, Psicose
Share Embed


Descrição do Produto

O ARQUÉTIPO DE TRICKSTER PRESENTE NAS ALUCINAÇÕES E PESADELOS DE UM PACIENTE DE 55 ANOS: DESVELANDO O ENIGMÁTICO Lucas Tadeu Rezende [email protected]

Resumo- Os sonhos são o caminho real para o inconsciente. Se forem repetitivos têm particular valor. Pesadelos costumam serem descritos como sonhos aterradores, com orientação e alerta imediata ao despertar, envolvimento de ameaça à sobrevivência ou à segurança, resultando num despertar abrupto durante o sono. Vários estudos sugerem que existe uma estreita relação entre a frequência dos pesadelos e o transtorno depressivo, principalmente nas depressões mais graves. Em sua teoria sobre o inconsciente, Jung postulou que este se apresenta de duas formas: o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. Este último seria não apenas de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui os conteúdos e os modos de comportamento, os quais são „cum grano salis‟ os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos, o ser do palhaço encontra eco no ser do trickster: arquétipo do inconsciente coletivo que insurge para brincar com a lei e rir. Buscar as bases do palhaço no trickster é reconhecê-lo como peça importante da cultura, e, portanto, de nós mesmos. Palavras-chave: Trickster, Arquétipos Junguianos, Depressão e Psicose. Área do Conhecimento: Psicologia Introdução

quanto mais aparente for a ideação suicida (AGARGUN et al., 1997).

Freud afirmou que os sonhos são o caminho real para o inconsciente. Se forem repetitivos têm particular valor (ZARIN DA; EARLS F, 1993). Ainda segundo os autores, em relação aos pesadelos, os temas mais comuns são alimentos, exames, sexo, desesperança e sentimentos de impotência. Pesadelos costumam serem descritos como sonhos aterradores, com orientação e alerta imediata ao despertar, envolvimento de ameaça à sobrevivência ou à segurança, resultando num despertar abrupto durante o sono (DSM-IV, 1994). A ocorrência de pesadelos é bem notada durante o sono REM (rapid eye movement), com vivificação dos sonhos presenciada, visivelmente marcante (SCHREDL et al., 2003), e a lembrança dos eventos ocorridos nos sonhos. Quando indivíduos apresentam enorme frequência de pesadelos, consequentemente há estresse psicológico com grandes impactos social, ocupacionais e clínicos (BLAGROVE et al., 2004). Vários estudos sugerem que existe uma estreita relação entre a frequência dos pesadelos e o transtorno depressivo, principalmente nas depressões mais graves, havendo notória remissão de pesadelos após a intervenção farmacológica (OHAYON et al., 1996; HUBLIN et al., 1999). Paradoxalmente, observou-se uma associação significativa de pesadelos frequentes em pacientes com depressão grave e ideação suicida (DE MAN e LABRECHE-GAUTHIER, 2002). Nestes pacientes, os pesadelos são de enorme carga psicológica, causando enorme estresse psicológico e social

Metodologia Este trabalho baseia-se em um estudo de caso de um paciente psicótico (CID F 32.3) de 55 anos do sexo masculino que por ter seus direitos preservados, será denominado como Paciente N durante todo o artigo. O embasamento teórico utilizado foi através de livros-texto e levantamento de artigos científicos na base de dados: SCIELO, MEDLINE, CAPES, LILACS e DEDALUS. Para a localização dos artigos foram utilizadas as seguintes palavras: trickster, arquétipos junguianos, arquétipos e inconsciente coletivo, psicologia analítica e psicose, depressão grave e sintomas psicóticos. Os mesmos termos em inglês. Foram incluídos os artigos dos últimos 50 anos. A técnica utilizada é a análise da bibliografia encontrada, que compreende leitura, seleção, fichamento e arquivo dos tópicos de interesse para estudo. Discussão A seguir será apresentado o discurso do paciente quando refere sobre seus pesadelos/alucinações: (...) Entrevistador: O senhor costuma ter muitos pesadelos envolvendo temas recorrentes de monstros e palhaços como referido pelo senhor no nosso primeiro encontro. Chegou a descrever um pesadelo no qual cavalos com cara de monstros o perseguem, o senhor poderia falar mais sobre esses pesadelos com esses temas recorrentes

sobre monstros, palhaços e em especial com os cavalos com a face monstruosa. Tudo que o senhor puder falar sobre o assunto é bem vindo. Paciente N: E que quando eu vejo esses cavalos eu “to” parado num lugar e ele passa, às vezes eu tenho consciência que eles estão na cama e eu não “to” dormindo eu “to” acordado, e eles ficam passando na minha frente, correndo na minha frente, é assim que eu vejo. O palhaço eu não tenho visto sabe, acho que ele “canso” um pouco de mim. Entrevistador: Mas quando o senhor o via, como que era? Paciente N: A era... era real.

Entrevistador: Geralmente esse de vez em quando, tem a ver com alguma situação em especial? Paciente N: Não. Eu posso ter um dia muito bom, que ás vezes acontece de eu ter um dia mais tranquilo, um dia mais agradável, aparece, não tem... não é quando eu “to” com crise não. Entrevistador: Ele não tem um padrão para aparecer? Paciente N: Não tem, não é quando eu “to” com crise não, ele aparece sem eu menos esperar, sem eu ter algum problema. Entrevistador: O palhaço conversam com o senhor?

ou

os

monstros

Entrevistador: Era um sonho ou ...? Paciente N: Não. Paciente N: Eu comecei a ver com o olho fechado não dormindo, eu comecei a ver ele com o olho fechado, depois eu o vi com o olho aberto. E era real de eu sentir a respiração do palhaço de tão perto de mim que ele chegava. Eu não via o corpo eu só via a cara dele, só o rosto do palhaço.

Entrevistador: Não falam nada? Paciente N: Não nem os palhaços, nem os monstros, nem os palhaços, nem os monstros. Entrevistador: Eles ficam fazendo o que?

Entrevistador: E o monstro? Paciente N: O monstro eu vejo, que é o cavalo com cara de monstro, e o palhaço eu só via o rosto dele, e era tão real, que eu sentia a respiração dele, tão perto que ele chegava e isso eu via com o olho aberto, não “tava” dormindo não, eu via com o olho aberto, eu via com o olho fechado, depois eu via com o olho fechado. Entrevistador: Quando o senhor via isso era geralmente associado a alguma situação, o senhor estava nervoso antes, estava ansioso?

Paciente N: O palhaço ficava me encarando assim, bem pertinho, com aquele nariz vermelho que é próprio do palhaço, pertinho de mim assim e os cavalos ficam passando pertinho de mim, eu “to” parado eles ficam passando com cara de monstro, com cabeça, “cara”, rosto de monstro, cara “né". Entrevistador: Como é esse rosto, essa “cara” dele? Paciente N: Não sei descrever. Entrevistador: É uma sombra, um chifre?

Paciente N: Não é que quando acontecia essas coisas eu vivia vinte e quatro horas deprimido, eu chorava dia e noite, depressão profunda, então era terrível. Então eu não tinha período bom pra mim eu tava doente vinte e quatro horas. Quantas vezes eu deixei máquina funcionando no serviço e ia embora chorando, largava tudo e vinha embora chorando. Entrevistador: E os cavalos apareciam nessas situações? Paciente N: Não, os cavalos agora de pouco. Entrevistador: Ah sim. Quanto tempo mais ou menos começaram? Paciente N: Um mês atrás.

Paciente N: Não sei descrever. Não consigo descrever, o palhaço sim. Entrevistador: Como que é o palhaço? Paciente N: O palhaço é o rosto pintado, cabeleira, aquele “narizão” vermelho dele, e dá pra ver que é um palhaço, eu via, eu sentia, era tão real que eu sentia a respiração. Entrevistador: Como que o senhor se sente em relação a ver esse palhaço e ver os monstros? Como que o senhor sentia ao ver essas coisas? Paciente N: Eu sentia que eu não “tava” bem, eu não tinha medo, eu não tinha medo não, como eu não tenho medo dessas coisas, em vê, porque eu

sei que é produto da minha cabeça. Eu reclamei pra doutora X, que eu via esses palhaços, comecei ver com olho fechado, depois comecei ver com o olho aberto, aí cobra também, cobra andando pela parede. Entrevistador: Cobra o senhor vê também, e como são essa cobras? Paciente N: Não, não tenho visto, mas já vi. Entrevistador: Mas quando o senhor via como era? Paciente N: Era grande. Entrevistador: O senhor pode descrever ela? Cor, formato? Paciente N: Sabe essas cobras que tem na Amazônia, essas “baitelonas” mesmo. É daquelas grandonas andando pela parede, deitado aqui, não ficava muito perto não, eu tava deitado ela passou por cima de mim. Entrevistador: O senhor a sentia passando no senhor? Paciente N: Não eu só vi. Entrevistador: Só viu, não teve a sensação tátil? Paciente N: Não, é diferente do palhaço. Entrevistador: Você sente o calor, você sente tudo dele? Paciente N: Eu sentia o palhaço, agora a cobra não, eu tava deitado e elas, passou por cima. (...) O paciente possui várias alucinações e pesadelos com um “palhaço”, investigando nos arquétipos junguianos temos o seguinte: “Um palhaço é acima de tudo uma criação particular, uma exteriorização de algo extremamente íntimo e puro do indivíduo; uma essência que encontra no riso e no exagero a falta de barreiras para sua emergência. O palhaço não é um personagem que alguém apenas veste; o movimento é justamente o inverso, o personagem veste o palhaço. Cabe ressaltar, porém, que o verbete personagem é inapropriado para se referir ao palhaço, pois este último nunca é estanque e sua personalidade se desenvolve de forma conjunta com a do sujeito. Esse ser do palhaço encontra eco no ser do trickster: arquétipo do inconsciente coletivo que insurge para brincar com a lei e rir. Buscar as bases do palhaço no trickster é reconhecê-lo como

peça importante da cultura, e portanto, de nós mesmos.” (QUEIROZ, 1991). Em sua teoria sobre o inconsciente, Jung postulou que este se apresenta de duas formas: o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. O inconsciente pessoal corresponde às suas camadas mais superficiais (SILVEIRA, 1981), nas quais estão compreendidas as questões referentes à vida particular do indivíduo, como suas percepções, ideias, experiências, memória, representações incompatíveis com o consciente etc. Esta denominação é próxima da noção de inconsciente freudiano. Para Jung, este inconsciente pessoal se denomina por ele de inconsciente coletivo. Este não seria apenas de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui os conteúdos e os modos de comportamento, os quais são ‘cum grano salis’ os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos (JUNG, 2000). O inconsciente coletivo seria, então, o depositário de toda uma tradição cultural da humanidade, da qual não podemos escapar e na qual estamos inexoravelmente inseridos. Quando o paciente começa a nos falar sobre as alucinações com cobras e cavalos, ele não foge do arquétipo de Trickster, aliás o complementa; Beidelman (1980) nos alerta sobre as encarnações zoomórficas do Trickster, entre elas estão as de serpentes e cavalos. Essas formas que o Trickster encontrou para se manifestar na mente do paciente são todas formas dele satisfazer seus próprios desejos e necessidades. Isso demonstra que o trickster coloca em jogo o inesperado, o indefinido, desrespeitando, no nível do imaginário a própria ordem social (BALANDIER, 1982). Ainda segundo Balandier, o seu papel seria, sob muitos aspectos, semelhante ao de outros personagens – bufões, mascarados, bobos da corte – aos quais se concede licença para que possam zombar da ordem estabelecida “quebrando aparências e desfazendo ilusões”. Muito embora as transgressões cometidas por tais figuras sejam autorizadas pela sociedade, a própria ordem acabaria sendo reforçada, por meio de um processo catártico, e ainda com o mérito de revelar aos seus integrantes a desordem que poderia se instaurar caso as normas, os códigos e os interditos viessem a se dissolver. Elemento, a um só tempo, perturbador e agente da ordem, decorreria disto a ambiguidade do trickster. Resultados A teoria junguiana defende que o inconsciente coletivo é um tesouro de imagens eternas (SILVEIRA, 1981) que engloba tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de

imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos (JUNG, 2000). Estas imagens eternas adquirem a forma de arquétipos, que são a condensação deste material mítico e primitivo em seu estado puro, representando um modelo hipotético abstrato (JUNG, 2000). Os arquétipos emergem sob a forma de imagens arquetípicas – as quais temos acesso através dos sonhos ou da arte, por exemplo – que adquirem uma forma de acordo com o indivíduo e seu mundo. Este processo ocorre via inconsciente pessoal e sua exteriorização assume múltiplos matizes. Porém, o arquétipo original a que ele se liga é fielmente mantido e revelado. (...) Ele é necessariamente espetacular provoca o amor ou o ódio ou ambos, mas nunca a indiferença. (...) Segundo a concepção da psicologia analítica, ele é matéria de nosso ser, material do inconsciente coletivo que deve ser trazido à tona e trabalhado de forma a proporcionar ao homem uma vivência plena, uma busca que procure trazer à luz aquilo que realmente somos. Todos nós temos nosso palhaço. Ele apenas se encontra adormecido, pronto para ser descoberto, bastando apenas coragem e vontade para entrar em contato com essa nossa “besta interior”. (JUNG, 2000). . Conclusão Após o exposto, compreende-se que o “palhaço/cavalos/cobra” que o paciente citou em seus pesadelos/alucinações é inerente da natureza humana como produto da cultura e que esses arquétipos emergem através de imagens que temos acesso através de sonhos ou da arte. Mas a questão é: como este fruto da cultura se tornou um objeto de tortura psicológica ao paciente? Jung nos responde que é matéria de nosso próprio ser, material do inconsciente coletivo e que todos temos nosso arquétipo de Trickster e que ele encontra-se adormecido. “Ele provoca o amor ou o ódio ou ambos, mas nunca a indiferença”. Talvez nesta afirmação encontra-se a resposta. Reunindo o conteúdo do palhaço que é inerente a todos nós e tendo como gatilho os sintomas psicóticos do paciente, entende-se como essa figura passou a ser fruto de seu tormento, pois se atém ao ódio e jamais a indiferença. O “gatilho” de suas psicoses serviram para trazer a figura do palhaço/cavalos/cobra do mais profundo do seu subconsciente como um mecanismo de perturbação a sua paz, ou até mesmo um mecanismo de defesa a uma reação mais forte e devastadora proveniente de seu perfil psicótico. Agradecimentos

As penosas e sofridas mentes psicóticas que fazem do meu trabalho uma arte por meio da ciência de nossa época. Referências AGARGUN, M.Y.; KARA, H.; ÖZER, O. A; SELVI, Y.; KIRAN, U.; OZER, B. - Clinical importance of nightmare disorder in patients with dissociative disorders. Psychiatry and Clinical Neurosciences 57: 575-579, 2003. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder. 4.ed. American Psychiatric Association, Washington, DC, 1994. BALANDIER, Georges. O Poder em Cena. Editora da Universidade de Brasília: Brasília, 1982. BEIDELMAN, T.O. The moral imagination of the kanguru: some thoughts on trickster, translation and comparative analysis. American Ethnologist. 7 (1), 1980. BLAGROVE, M.; FARMER, L.; WILLIAMS, E. - The relationship of nightmare frequency and nightmare distress to well-being. J Sleep Res 13: 129-134, 2004 JUNG, Carl Gustav. Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo. In: Obras completas de Carl Gustav Jung, v.9, t.1. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 15. OHAYON, M.M.; PRIEST, R.G; GUILLEMINAULT, C. - Nightmares: their relationships with mental disorders and sleep disorders. Euro Neuropsychopharmacol 6: 136-137, 1996.

QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 93-107, 1991, p. 94. SCHREDL, M.; LANDGRAF, C.; ZEILER, O. Nightmare frequency, nightmare distress and neuroticism. North Am J Psychol 5: 345-350, 2003. SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. 7.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 72. ZARIN DA; EARLS F. Diagnostic decision making in psychiatry. Am J Psychiatry, 1993; 150: 197.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.