O Arquivo Gama Lobo Salema: perspectivas de estudo / The Gama Lobo Salema archive: study perspectives

May 30, 2017 | Autor: Rita Nóvoa | Categoria: History of Archives, Family history, Personal and Family Archives, Family Archives
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O Arquivo Gama Lobo Salema: perspectivas de estudo Rita Luís Sampaio da Nóvoa

Introdução* As últimas décadas trouxeram uma profunda e fértil transformação no campo científico da Arquivística, transformação essa que veio romper definitivamente com os “resíduos tóxicos”1 deixados pelo positivismo Oitocentista e abrir novas perspectivas sob a influência pós-modernista. Já longe das concepções que aquela primeira corrente fez perpetuar acerca dos arquivos, do arquivo2 e dos arquivistas, a renovada postura epistemológica, metodológica e teórica daquilo que podemos designar «Nova Arquivística» desvendou um universo bastante mais rico e, ao mesmo tempo, bastante mais problemático do que aquele que a tradição arquivística cria prevalecer. Desencadeando diferentes processos de reequacionamento de pressupostos tidos como óbvios e estruturais, esta «Nova Arquivística» implantou metamorfoses * A realização deste trabalho deveu grandemente à enorme amabilidade e hospitalidade com que tenho vindo a ser recebida pelo Sr. Embaixador António Pinto da França, actual proprietário do Arquivo Gama Lobo Salema. Agradeço também à Prof. Dr ª. Maria de Lurdes Rosa a disponibilidade constante, as correcções e as sugestões. 1   GEARY, Patrick - Uma paisagem envenenada: etnicidade e nacionalismo no século XIX. In, O Mito das Nações. A Invenção do Nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 2008. Cap. 1, pp. 23-47. 2   A distinção entre arquivos (plural) e arquivo (singular) é utilizada por Terry Cook para discernir as instituições (arquivos) dos conjuntos documentais (arquivo). COOK, Terry - The Archive(s) is a Foreign Country: Historians, Archivists and the Changing Archival Landscape. The Canadian Historical Review. Vol. 90, n.º 3 (2009), p. 498.

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significativas, desde logo ao nível mais básico da concepção dos seus objectos de estudo: o(s) arquivo(s), tradicionalmente interpretados como “place of study”, como repositórios neutros, naturais e orgânicos ao serviço dos inquéritos historiográficos, transmutaram-se em “object of study”3, em destinatários de um esforço problematizante necessário e imprescindível. Deste modo, contestaram-se as premissas de cientificidade e objectividade promovidas pelo século XIX, ancoradas na ideia de que não só os conjuntos documentais se constituíam de forma neutra, natural e orgânica como essas mesmas características eram transponíveis para a preservação da documentação dentro dos arquivos. Assim, o(s) arquivo(s) deixaram de ser interpretados como um “value-free site of document collection and historical inquiry”4 para se revelarem como complexos e heterogéneos testemunhos tanto das realidades que presidiram aos contextos de produção dos documentos como dos processos racionais e intencionais que guiaram as diferentes etapas de conservação que vieram culminar com a transformação do arquivo em arquivos. Por entre essa complexidade e heterogeneidade emergiram diferentes problemas que condensam hoje as atenções da «Nova Arquivística», problemas esses que, em essência, acabaram por abalar a enraizada e inquestionada capacidade e autoridade do(s) arquivo(s) enquanto autenticadores da produção historiográfica e do próprio passado5. Aqui, o arquivo e os arquivos, na qualidade de construções sociais, culturais e políticas, foram despidos da sua suposta neutralidade e naturalidade e passaram a assumir valores, significados e funções que contestam a possibilidade de um acesso simples, directo e pouco problemático aos vestígios deixados por sociedades passadas. Exemplo ilustrativo reside no trabalho desenvolvido pelos arquivistas dentro dos arquivos. Encarados pela tradição arquivística como guardiães neutros da documentação, os arquivistas assemelhavam-se a “passive keepers” cuja intervenção não devia comprometer a «objectividade» oferecida pelos acervos. Interrogada essa mesma «objectividade», também o papel dos guardiães foi reavaliado e sua pretensa passividade foi substituída pela noção de que os arquivistas são, na realidade, “active mediators”6 que (re)criam a forma como o passado nos é dado a conhecer na qualidade de “editores”7 desse mesmo passado.  BLOUIN, Francis X. Jr. - History and Memory: The Problem of the Archive. PMLA. Vol. 119, n.º 2 (2004),

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p. 297.

  COOK, Terry - The Archive(s) is a Foreign Country…, cit., p. 517.  Part II: Archives in the Production of Knowledge. Introduction. In BLOUIN, Francis X. Jr.; ROSENBERG, William G., (eds.) - Archives, Documentation and Institutions of Social Memory. Essays from the Sawyer Seminar. EUA: Michigan University Press, 2007, pp. 85-88. 6   COOK, Terry – The Archive(s) is a Foreign Country…, cit., p. 533. 7   Part II: Archives in the Production…, cit., p. 87. 4 5

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Tal processo de (re)criação e edição consta claramente na tarefa de selecção (“appraisal”) desempenhada pelos arquivistas, a qual passa pela determinação de quantos e quais documentos devem ser preservados pelos arquivos e de quantos e quais devem ser destruídos. Patrick Geary denomina-os, por isso, “destroyers of the past”8 evocando precisamente o (por vezes desconfortável e polémico) papel afecto ao apuramento daquilo que será lembrado e daquilo que será esquecido. Daí que Terry Cook afirme que a investigação histórica começa não quando o historiador abre as caixas de documentação na sala de leitura dos arquivos mas sim quando o arquivista enche as ditas caixas9. Isto porque a consulta das potenciais «fontes» historiográficas traz consigo diversos processos de filtragem e “edição” implicados nos critérios que fundamentaram não só a referida selecção e transformação dos documentos mas também os próprios instrumentos e ferramentas que guiam o investigador até à informação. Todos estes pressupostos visam, no fundo, chamar a atenção para as profundas camadas de significados que mediam a configuração actual de qualquer arquivo histórico e o seu contexto de produção e, consequentemente, para a inevitabilidade dessas mesmas camadas influenciarem a apreensão do dito arquivo e a própria inteligibilidade do passado por ele espelhado. Os chamados «arquivos de família» não constituem, portanto, uma excepção. De facto, autores como o já citado Terry Cook ou como Armando Malheiro da Silva, precursor, em Portugal, da mudança de “paradigmas” arquivísticos, levaram a cabo uma fértil combinação entre estes esforços problematizantes e o estudo daquela tipologia de arquivo, contribuindo para uma vaga recente de (re)valorização e (re) descoberta dos arquivos familiares10. Tal vaga veio contradizer a tendência impressa nas práticas arquivísticas tradicionais de secundarizar os conjuntos documentais gerados e preservados fora da esfera das instituições e organismos de Estado, sublinhando precisamente a sua capacidade de questionar “versões do processo histórico construídas, sobretudo ou apenas, a partir dos acervos dos corpos sociais mais «administralizados» e/ou mais representados nos arquivos do Estado nação”11. 8   GEARY, Patrick – Medieval Archivists as Authors: Social Memory and Archival Memory. In, BLOUIN, Francis X. Jr.; ROSENBERG, William G., (eds.) – Archives, Documentation and Institutions of Social Memory. Essays from the Sawyer Seminar. EUA: Michigan University Press, 2007, p. 106. 9   COOK, Terry – The Archive(s) is a Foreign Country…, cit., pp. 511-512. 10   COOK, Terry – Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais: Para um Entendimento Arquivístico Comum da Formação da Memória em um Mundo Pós-Moderno. Revista Estudos Históricos. Vol. 11, n.º 21 (1998), pp. 129-149; SILVA, Armando Malheiro da – Arquivos Familiares e Pessoais. Bases Científicas para Aplicação do Modelo Sistémico e Interactivo. Revista da Faculdade de Letras – Ciências e Técnicas do Património, I série, Vol. III (2004), pp. 55-84; SILVA, Armando Malheiro da – Arquivos de Família e Pessoais. Bases Teórico – Metodológicas para uma Abordagem Científica. In, Arquivos de Família e Pessoais. Seminário. Vila Real: Associação Portuguesa Bibliotecários Arquivistas e Documentalistas, 1997, pp. 51-106. 11   ROSA, Maria de Lurdes – Problemáticas Históricas e Arquivísticas Actuais para o Estudo dos Arquivos de Família Portugueses (Épocas Medieval e Moderna). Revista de História da Sociedade e da Cultura. Vol. 9

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Dentro do campo da Arquivística, esta capacidade de questionamento conduziu à necessidade de reflectir, por um lado, acerca do lugar dos arquivos de família dentro de estruturas teóricas e técnicas originalmente traçadas para servir os acervos institucionais e estatais e, por outro, sobre as eventuais especificidades e problemas afectos à concepção e ao tratamento daqueles conjuntos documentais familiares. Surgiram, então, questões maiores como: o que é exactamente um arquivo de família? É possível ou desejável tecer uma definição universal ou as especificidades de cada “área cultural”12 minam as tentativas de uniformização? Podem ou devem os arquivos de família ser equiparados aos restantes arquivos históricos ou as características que lhes são próprias exigem suportes teóricos e linhas metodológicas específicas? Sem pretender oferecer respostas a todas estas interrogações, abordaremos adiante alguns tópicos a elas inerentes através da apresentação de um conjunto (exemplificativo e não exaustivo) de perspectivas de estudo sugeridas pela análise de um arquivo de família específico, o designado “Arquivo Gama Lobo Salema” (AGLS). Longe de esgotar a plena riqueza oferecida por este acervo – que conta hoje com cerca de 2000 documentos produzidos e conservados durante os séculos XV a XX por diversos grupos familiares enquadrados no universo da média nobreza local com ligações estreitas à Coroa -, o propósito último das páginas que se seguem passa por acompanhar algumas das questões centrais implicadas no estudo da maioria dos arquivos de família tal como eles se apresentam num contexto que agrega exemplares Portugueses, Espanhóis, Italianos e Franceses. Assim, interessar-nos-á focar, primeiro, um conjunto de desafios que se ergueu perante a investigação desenvolvida acerca do Arquivo Gama Lobo Salema e que trouxe consigo diversas das condicionantes que, por norma, atravessam o estudo dos acervos de índole familiar. Tais condicionantes afectam não só o lugar actualmente ocupado pelos arquivos de família na Historiografia e na Arquivística mas também o modo como o passado por eles conservado pode ser compreendido, pelo que devem estar no centro das atenções do historiador/arquivista que se dedique àquela tipologia de conjuntos documentais. Daqui avançaremos, de seguida, para a análise dos eixos centrais ou, se quisermos, das principais características que marcam os arquivos de família e que os distinguem dos restantes arquivos históricos. Como veremos, o Arquivo Gama Lobo Salema é um exemplar ilustrativo de muitos dos elementos que se consideram ser estruturais nas práticas documentais e nas atitudes que, no Antigo Regime, levaram à constituição e à conservação dos acervos familiares. Conhecer o funcionamento, o modo de organização e inventariação e os usos, funções, valores e significados (2009), pp. 36-37. 12   BORJA DE AGUINAGALDE, F. – Archivo de Família: Materiales para un manual. Victoria: IRARGI, 1991. Cit. por PEIXOTO, Pedro de Abreu – Perspectivas para o Futuro dos Arquivos de Família em Portugal. Caderno BAD, nº. 001 (2002), p. 81.

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atribuídos aos arquivos equivale, portanto, a conhecer facetas dos grupos familiares que, na maioria dos casos, dificilmente se deixariam vislumbrar através dos acervos produzidos e conservados por entidades públicas. Aí reside precisamente grande parte da riqueza do uso destes arquivos para a escrita da História. Mas, como afirmámos, a recuperação dessa riqueza não se faz sem se superarem alguns desafios.

Desafios Um dos primeiros, que surge como resultado da já enunciada tendência para manter os arquivos de família fora da tutela dos arquivos públicos, está relacionado com questões eminentemente práticas plasmadas, desde logo, no recenseamento e no acesso à documentação. Excepção feita a países, como o Canadá, que seguem a metodologia dos chamados “arquivos totais”, a maioria dos casos caracteriza-se, por norma, não só pela ausência de dados sobre o número total de arquivos de família existentes e sobre a sua localização13 mas também pela quase completa dependência em relação aos proprietários particulares no que ao acesso diz respeito14. O Arquivo Gama Lobo Salema constitui um exemplo ilustrativo deste cenário tendo em conta que, apesar de a sua doação a um arquivo público ter sido já formalizada, permanece ainda dentro do espaço privado com usufruto de reserva em vida. Daqui resulta que o estudo que temos vindo a desenvolver acerca do acervo se encontre estreitamente ligado tanto ao interesse como à disponibilidade do seu detentor. Se este aspecto pode efectivamente condicionar o conhecimento sobre os arquivos de família, traz também, quanto a nós, alguns benefícios que não se encontram na investigação desenvolvida dentro dos arquivos públicos. Entre eles conta-se uma perspectiva privilegiada sobre algo que comummente se diluí com a passagem dos conjuntos documentais para a custódia pública: os significados, valores e funções que lhes são atribuídos pelas famílias que herdaram os acervos. De facto, o contacto com a esfera privada exigido pelas condições de conservação do arquivo acaba por oferecer ao historiador/arquivista a possibilidade de pensar o arquivo de um ponto de vista que normalmente não é evidenciado por não ser historiográfico nem arquivístico ao encontrar-se antes ligado a uma concepção

  PEIXOTO, Pedro Abreu – Perspectivas para o Futuro…, cit., p. 83-84.  GONZÁLEZ, Carlos Mas – Cuadros de Clasificación de Archivos Nobiliarios. La Iniciativa de la Sección Nobleza del Archivo Histórico Nacional. In, SÁEZ, Carlos (ed.) – Actas del VI Congreso Internacional de Historia de la Cultura Escrita. Calambur, 2002. Vol. II, p. 493. 13 14

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“afectiva”15 dos registos escritos, onde se articulam memórias, «narrativas» e tradições orais ao nível individual e familiar. Como mostrou Claude-Isabelle Brelot, são múltiplos os benefícios que podem sobrevir à investigação conduzida pelo historiador/arquivista que, à laia de etnógrafo, atente às ditas memórias, «narrativas» e tradições, as quais podem conter informações que não são disponibilizadas pelos registos escritos ou que completam as lacunas deixadas por estes últimos16. Apesar de sujeitos a confirmações posteriores com recurso à documentação, estes outros repositórios de «fontes», cruzados com o próprio arquivo, podem então ajudar aquele historiador/arquivista/etnógrafo a compreender a história (real ou imaginada) do acervo, do seu percurso recente ou mesmo dos diferentes factores que condicionaram a sua actual organização e disposição, como veremos de seguida. Não obstante estas potenciais vantagens do desafio lançado pela ligação dos arquivos de família à esfera privada, tal ligação não deixa de acarretar alguns outros problemas, desta feita relacionados com o trajecto organizacional da documentação. Como sublinham vários autores, uma das dificuldades que caracteriza o estudo da maioria dos acervos familiares passa pelo estado de desordem com que geralmente se apresentam perante os investigadores17 o qual resulta, em parte, da forma como os arquivos são conservados no universo privado e dos mecanismos disponíveis para garantir essa conservação em espaços que não estão preparados para o efeito. Mais uma vez, o Arquivo Gama Lobo Salema revela-se um cenário ilustrativo. Como atestou a «narrativa» articulada pelo actual depositário do acervo, o resgate do conjunto documental – na iminência de ser vendido por falta de espaço – implicou diversas viagens durante as últimas décadas, viagens essas que levaram mesmo ao transporte de parte do arquivo para fora do País e ao seu desmembramento temporário. Desconhecemos ainda as implicações exactas deste percurso custodial atribulado (será que se traduziu na destruição ou perda acidental de alguma documentação?) mas parece seguro que trouxeram consequências significativas ao nível da organização do arquivo, consequências essas que procuraremos iluminar precisamente com recurso à já referida Etno-História. No entanto, podemos afirmar que o dito percurso não foi o único elemento que contribuiu para a complexificação dos actuais moldes organizacionais do acervo. Num sentido semelhante, há ainda que equacionar outros potenciais factores de desordem que atravessam grande parte dos arquivos de família, a saber, as diferentes 15   BRELOT, Claude-Isabelle – Archives Privées, Archives Publiques, Mémoire Familiale: Questions de Méthode et de Déontologie. In Archives Familiales et Noblesse Provinciale. Hommage à Yves Soulingeas. Grenoble: Presses universitaires de Grenoble, 2006, p. 78. 16   BRELOT, Claude-Isabelle – Archives Privées …, cit., p. 83. 17   BRELOT, Claude-Isabelle – Archives Privées…, cit., p. 495; LAFUENTE ÚRIEN, Aránzazu – Archivos Nobiliarios. In, Archivos Nobiliarios: Cuadro de Clasificación. Sección Nobleza del Archivo Histórico Nacional. Madrid: Ministerio de Educación, Cultural y Deporte, 2000, p. 29.

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camadas de manipulação da documentação sucedidas após a desactivação do arquivo dentro da esfera privada. Referimo-nos, por exemplo, à intervenção de membros da família que detém o acervo ou de “investigadores não profissionais” que, cultivando um determinado interesse pelos registos escritos, interferem na sua organização18. Com a excepção de alguns apontamentos genealógicos produzidos no século XX19, o AGLS parece não ter sido alvo deste tipo de interferência no que ao ordenamento dos documentos diz respeito. Em tendo sido, os seus vestígios são hoje difíceis de identificar já que o arquivo sofreu uma extensa reformulação afecta ao processo de tratamento arquivístico encomendado pelos proprietários a dois arquivistas profissionais, Nuno Daupiás d’Alcochete e Manuel de Almeida Pereira, e executado ao longo da segunda metade de Novecentos. O que nos traz a um outro desafio. De facto, se o tratamento a que a documentação foi submetida veio, em princípio, contrariar o cenário de desordem que enunciámos (facilitando, assim, alguns aspectos das investigações desenvolvidas após o dito tratamento como, por exemplo, o acesso à informação ou a caracterização geral dos registos contidos no arquivo) trouxe, todavia, alguns problemas. Um deles, denunciado pela «Nova Arquivística», reside não na referida desordem mas naquilo que podemos designar como «ilusão de ordem». Tal «ilusão» foi apontada por Terry Cook como consequência das tendências arquivísticas tradicionais para esconder o “caos” que muitas vezes define a organização dos conjuntos documentais e das entidades responsáveis pela sua produção e conservação20. Deste modo, tanto os primeiros como as segundas, co-(re)criados pelos arquivistas, acabam por se afastar da sua operacionalidade e organicidade originais para dar lugar à execução de pressupostos “normativistas”21 e funcionais que acentuam sobretudo o factor «recuperação da informação» . Como escreve Armando Malheiro da Silva, a heterogeneidade, complexidade e aparente desordem que caracterizam os arquivos de família colocam “graves e insolúveis questões” a esta Arquivística dita “descritiva” precisamente por oferecem “máxima resistência” a «edições» ou co-(re)criações “artificiais” arquitectadas e aplicadas “à margem do contexto originário de produção”22. Diversos estudos dedicados aos acervos familiares exploram com detalhe uma dessas «edições», a saber, os chamados «quadros de classificação», elementos onde é facilmente reconhecível a mencionada «ilusão de ordem». Observemos o esquema de classificação elaborado para o Arquivo Gama Lobo Salema na sequência do tratamento arquivístico a que o conjunto documental foi sujeito:   GONZÁLEZ, Carlos Mas – Cuadros de Clasificación …, cit., p. 495.   Arquivo Gama Lobo Salema, Documentos de Família, cx. 1, pp. 1-2. 20   COOK – The Archive(s) is a Foreign Country…, cit., p. 528. 21   SILVA Armando Malheiro da, – Arquivos de Família e Pessoais…, cit., p. 51. 22   SILVA Armando Malheiro da, – Arquivos de Família e Pessoais…, cit. p. 51.

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I – Documentos de Família II – Documentos Pessoais Gama Lobo III – Documentos Pessoais Gama Lobo Salema IV – Instituições Vinculares V – Juízo das Capelas VI – Títulos de Bens de Vínculo VII – Títulos de Bens Livres VIII – Administração da Casa IX – Anexos

Sem pretender analisar pormenorizadamente todos os aspectos que mereceriam ser tidos em consideração no que a esta matéria diz respeito, focamos apenas um exemplo ilustrativo que está relacionado com a existência de apenas duas secções dedicadas aos chamados “documentos pessoais”, uma consagrada à família Gama Lobo e outra aos Salemas. Tal deve-se à opção tomada pelos arquivistas de conceber os Gama Lobo e os Salema como os “ramos principais” em torno dos quais a totalidade da documentação foi articulada – sendo que a maioria das outras secções do quadro de classificação encontra-se também subdividida pelas duas famílias –, o que oblitera da ferramenta de mediação da informação a presença dos restantes grupos familiares, que ascendem aproximadamente às três dezenas. Como resultado, dilui-se uma das características centrais dos acervos familiares, corporizada precisamente na existência de arquivos dentro do arquivo23, isto é, de múltiplos e «caóticos» conjuntos documentais de proveniências distintas que foram sendo agregados por intermédio das alianças matrimoniais ou na sequência da extinção das Casas. Nesse sentido, perante a «ilusão de ordem» criada pelo quadro de classificação, torna-se necessário percorrer a própria documentação para que se possa compreender quantos acervos existem dentro do Arquivo Gama Lobo Salema, como se processou a sua anexação e que tipo de relação orgânica se estabeleceu entre as diferentes entidades produtoras e conservadoras dos registos escritos.

Eixos O que nos traz aos eixos que caracterizam um arquivo de família tal como ele é entendido num cenário maior que reúne exemplares oriundos de Portugal, Espanha, França e Itália. Como definir, então, o conceito de arquivo de família?24. Aranzazu   LAFUENTE ÚRIEN, Aranzazu, – Archivos Nobiliarios…, cit., p. 19.   Esta questão constitui, na realidade, um outro desafio que se ergue perante o estudo dos arquivos de família ligado à diversidade de propostas avançadas acerca do conceito de arquivo de família e, consequentemente, 23 24

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Úrien, autora cuja proposta de definição parece gozar de uma aceitação algo transversal, descreve o conceito da seguinte forma: “Los archivos familiares – y en especial los archivos nobiliarios – son el complejo resultado de las actividades de una familia a lo largo de diversas generaciones, resultado de las actividades personales y públicas de sus miembros, de la administración de sus bienes y propiedades o del ejercicio de potestades jurisdiccionales y de patronato eclesiástico. En ellos ademas han actuado diversos factores a lo largo del tiempo que han podido modificar la integridad y el normal proceso de acumulación de documentos del fondo de archivo. Un archivo familiar no puede entenderse al margen de la evolución histórica de la familia que lo ha creado, la política de sus alianzas matrimoniales, la actividad económica, las épocas de gloria o sus bancarrotas. Si en un principio se conservaron por una finalidad práctica de salvaguarda de derechos y propiedades, a lo largo del tiempo se han consolidado como memoria escrita de la historia de la propia familia”25

No seguimento desta noção, podemos afirmar que os traços distintivos inerentes aos arquivos de família se encontram interligados, por um lado, aos reflexos das entidades responsáveis pela sua produção/conservação que neles transparecem e, por outro, às funções e significados que aquelas lhes atribuíram. Assim, é possível identificar nos acervos familiares algumas das feições que definiram as sociedades de Antigo Regime como, por exemplo, a diluição entre a esfera privada e a esfera pública. Ao contrário das dinâmicas trazidas pelo século XIX, as quais vieram demarcar com rigor os limites que separam a actividade pública ou profissional de um indivíduo da sua existência privada e que trouxeram também uma clara divisão de poderes, no período de vigência dos arquivos de família aqueles dois universos fundiam-se26. Daí que se encontrem conservados no Arquivo Gama Lobo Salema 42 documentos27 (cartas, alvarás, decretos e portarias régias, consultas, avisos e requerimentos) e um livro de registos produzidos pelo Conselho da Fazenda28 entre 1646 e 1831. A sua integração no acervo dos Gama Lobo – e depois no dos Gama Lobo à ausência de uma definição universal. Devido à complexidade inerente a este problema – a qual exigiria espaço para a articulação de outras noções como arquivo, colecção, arquivo privado ou arquivo pessoal e nos afastaria, assim, do objecto central deste artigo – optámos por não o desenvolver. Remetemos para as seguintes referências bibliográficas: LAFUENTE ÚRIEN, Aranzazu, – Archivos Nobiliarios…, cit., pp. 13-15; SILVA, Armando Malheiro da, – Arquivos de Família e Pessoais..., cit., pp. 81-82; PEIXOTO, Pedro Abreu, – Perspectivas para o Futuro…, cit., pp. 79-80. 25   LAFUENTE ÚRIEN Aranzazu, – Archivos Nobiliarios…, cit., p. 16. 26   LAFUENTE ÚRIEN Aranzazu, – Archivos Nobiliarios…, cit., p. 17. 27   Arquivo Gama Lobo Salema, Anexos, cx. 57, p. 268 (1646-1831). 28   Arquivo Gama Lobo Salema, Anexos, cx. 58, p. 270 (1694-1715).

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Salema com a fusão das duas Casas em 183329 – deveu-se à acção de uma «linhagem» de escrivães iniciada em meados do século XVI por Estêvão da Gama. Tanto este como o seu filho, Fernão Gomes da Gama (I), e o seu neto, Fernão Gomes da Gama (II), ocuparam o cargo de escrivão da Casa da Índia e Mina. Na segunda metade do século XVII, Fernão Gomes da Gama (II) acumulou o ofício de escrivão da Fazenda por desistência do seu cunhado, Sebastião Perestrelo, ofício esse que, a partir daí, foi sendo legado aos seus sucessores até à morte do último escrivão, António Xavier da Gama Lobo Salema de Saldanha e Sousa Cabral e Paiva, em 183430. O mesmo princípio é detectável noutro conjunto documental, desta feita emanado da Casa do Infantado entre 1707-1711 e 1728-173531. A sua presença no AGLS explica-se em moldes análogos ao anterior ao estar afecta a uma das actividades «públicas» desempenhadas por Francisco Nunes Cardeal, procurador da Fazenda do Estado e Casa do Infantado desde 1704 e segundo marido de Catarina Teresa de Sousa Mexia, esta última mãe de Antónia Maria de Sousa Mexia que casou com Fernão José da Gama Lobo em 1714. Num sentido semelhante, da dinâmica público/privado emerge ainda um outro reflexo do contexto de produção e conservação dos arquivos de família ligado à prevalência do direito privado e à inexistência de um aparelho estatal que garantisse o funcionamento de registos públicos. Perante este cenário, cabia às famílias assegurar, dentro da esfera privada, a capacidade de provar a posse e titularidade dos seus bens, propriedades e privilégios, capacidade essa que, por seu turno, se corporizou nos próprios arquivos32. Assim, a função primordial da maioria dos documentos preservados residiu precisamente na sua qualidade de instrumentos de poder, de “muniments” como escreve Eric Ketelaar33, facto que explica a predominância no interior dos acervos familiares de documentação relativa ao património e aos processos implicados na sua aquisição e transmissão. Daí que 42 das 59 caixas que encerram os registos 29   Em 1760 Sebastião Xavier da Gama Lobo († 1770) desposou Ana Leonor Salema de Saldanha Cabral e Paiva († 1829). Por morte sem geração dos dois irmãos desta última, António José Salema Lobo de Saldanha e Sousa († 1821) e José Maria Salema Lobo de Saldanha e Sousa Cabral e Paiva († 1833), a sucessão das duas Casas passou para o filho mais velho do casal, António Xavier da Gama Lobo Salema de Saldanha e Sousa Cabral e Paiva († 1834). 30   Sucessão da «linhagem» de escrivães: Estêvão da Gama († 1567) – Escrivão da Casa de Índia e Mina; Fernão Gomes da Gama (I) († depois de 1596) – Escrivão da Casa da Índia e Mina; Fernão Gomes da Gama (II) († 1676) – Escrivão da Casa da Índia e Mina e Escrivão da Fazenda; Sebastião da Gama Lobo (1629 – 1720) – Escrivão da Fazenda; Fernão José da Gama Lobo (1697-1753) – Escrivão da Fazenda; Sebastião Xavier da Gama Lobo († 1770) – Escrivão da Fazenda; António Xavier da Gama Lobo Salema de Saldanha e Sousa Cabral e Paiva († 1834) – Escrivão da Fazenda. 31  Arquivo Gama Lobo Salema, Anexos, cx. 57, p. 269. Trata-se de uma relação das rendas da Casa e Estado do Infantado e de um registo da receita e despesa do almoxarifado da Vila de Ponte de Lima. 32   LAFUENTE ÚRIEN, Aranzazu, – Archivos Nobiliarios…, cit., pp. 17-18. 33  KETELAAR, Eric – Muniments and Monuments: the Dawn of Archives as Cultural Patrimony. Arch Sci. Vol. 7 (2007), pp. 345-346.

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contidos no Arquivo Gama Lobo Salema se reportem sobretudo a esta utilidade administrativista dos documentos. E qual é a extensão ou, se quisermos, qual é a «validade» desta utilidade administrativista, destes “muniments”? Em primeira instância poderíamos ser levados a julgar que o uso dos registos como provas da detenção de propriedades permaneceria válido apenas enquanto essa mesma detenção se verificasse, isto é, apenas enquanto as ditas propriedades fizessem parte do património familiar. Deste modo, quando tais propriedades deixassem de integrar o espólio das famílias, os documentos a elas relativos perderiam, portanto, a sua pertinência probatória. No entanto, os dados fornecidos pelo AGLS mostram-nos uma realidade bastante distinta. De facto, é possível verificar que esta função administrativista dos registos parece revelar-se independente da posse efectiva das propriedades e bens sendo que o seu propósito de provar que se possui (presente) se transforma, com o avançar dos séculos, em provar que se deve possuir (futuro). De forma a compreendemos esta metamorfose devemos atender a outro dos reflexos das sociedades de Antigo Regime, caracterizadas por Aránzazu Úrien como “litigiosas” e “litigantes”34. Esta faceta, ligada ao desejo de promoção social e à necessidade de garantir a sustentabilidade dos grupos familiares, propiciou o desencadeamento de inúmeros (e volumosos) processos de conflitos jurídicos relacionados precisamente com a posse de determinadas propriedades consideradas relevantes pelas famílias. Como nos demonstra o Arquivo Gama Lobo Salema, muitos desses processos foram despoletados pela reivindicação da titularidade de certos bens que os representantes das Casas acreditavam pertencer-lhes e que julgavam encontrar-se, por isso, injustamente detidos por outras entidades. Com o intuito de sustentar tal acusação de injustiça e de provar adequadamente que se devia possuir tais bens, diversos “muniments” produzidos e/ou conservados com o intento de provar a posse foram recuperados e transformados para servir estas novas demandas reivindicativas. De facto, do conjunto total de reflexos espelhados pelo AGLS este é, sem dúvida, aquele que se revela com maior notoriedade. Na realidade, não seria possível compreender a globalidade do arquivo sem explorar este cenário de conflito, o qual tem como palco central a segunda metade do século XVIII e a primeira da centúria seguinte e como principais personagens três membros da família Salema, Miguel José Salema Lobo de Saldanha e Paiva (1717–1785) e os seus dois filhos, António José Salema Lobo de Saldanha e Sousa († 1821) e José Maria Salema Lobo de Saldanha e Sousa Cabral e Paiva († 1833).   LAFUENTE ÚRIEN , Aranzazu, – Archivos Nobiliarios…, cit., p. 18.

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Estando ainda por completar, a lista de reivindicações ocorridas entre cerca de 1760 e a década de 20 do século XIX conta já com 8 processos distintos, uns com resultados favoráveis aos instigadores dos pleitos, outros ficando aquém das suas aspirações. O mais impressionante e significativo desses pleitos desencadeou-se na última década de Oitocentos com a morte sem geração do 3º Conde de Sandomil, Luís José Xavier de Miranda Henriques, agraciado com o título por D. Maria I ainda em vida de seu pai, Fernando Xavier de Miranda Henriques, 2º Conde de Sandomil. Este último acabou por sobreviver ao seu filho e veio a falecer em 1794 levantando-se, assim, a complexa questão da sucessão do título e dos bens e propriedades da Casa de Sandomil. Os Salema, encabeçados por António José, avançaram, então, com um demorado pleito de reivindicação tanto do título como do património afecto aos principais morgadios detidos pelos Condes (com especial ênfase para o morgadio instituído por Diogo Salema em 1586), processo esse que se arrastou ao longo de quase 3 décadas e gerou pelo menos 8 extensos volumes actualmente conservados no Arquivo Gama Lobo Salema35. Envolvendo outras famílias e outras personalidades que partilhavam as mesma aspirações dos Salema, o conflito chegou finalmente a uma conclusão entre finais da década de 10 do século XIX e 1821 (ano da morte de António José). Ainda em vida deste último, a sua Casa foi reconhecida como legítima sucessora das propriedades reivindicadas mas, apesar dos esforços36 do seu irmão e sucessor, José Maria, a Coroa não permitiu a continuação do uso do título. Como consequência, a família que prevaleceu anexou ao seu património não só uma quantidade assinalável de bens como absorveu também os documentos que lhes diziam respeito, aumentando, assim, significativamente o cartório da Casa. De facto, através da consulta do inventário do arquivo dos Condes de Sandomil, composto em 1815 e actualmente conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo37, foi-nos possível determinar que uma parte substancial dos documentos que actualmente compõem o Arquivo Gama Lobo Salema, que corresponde também à fracção dos registos mais antigos, foi integrada no acervo precisamente na sequência desta contenda (o que nos traz de volta aos «arquivos dentro do arquivo»). Em simultâneo, este conflito jurídico, à semelhança de outros e independentemente do desfecho, resultou também no acrescento de estratos de valores e 35   Arquivo Gama Lobo Salema, Instituições Vinculares, cx. 18, pp. 139-140; cx. 19, p. 141; cx. 20, p. 142; cx. 21, pp. 143-144; cx. 22, p. 145. 36   Conservou-se no Arquivo Gama Lobo Salema um rascunho de uma missiva enviada à Coroa por José Maria onde se elencam diversos argumentos (legitimidade da sucessão nos bens do condado de Sandomil, feitos dos antepassados, serviço prestados à Monarquia na carreira das armas) utilizados na tentativa de obter a permissão real para usar o título: Arquivo Gama Lobo Salema, Documentos Pessoais Salema, cx. 14, p. 113. 37   ANTT, Feitos Findos, Livros dos Feitos Findos, lv. 246.

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significados atribuídos aos documentos, acrescento esse que se materializou, de forma mais ou menos notória consoante os casos, na transformação dos documentos directamente relacionados com os pleitos e, por vezes, na reformulação da organização e inventariação do próprio arquivo. O microcosmos documental composto pelos testamentos fornece-nos um exemplo particularmente rico já que a sua capacidade de elucidar o percurso de transmissão dos bens (tanto ao longo das gerações que antecederam o testador como durante aquelas que lhe sucederam) parece ter transformado estes registos numa «fonte» privilegiada de potenciais recursos reivindicativos. E são diversas as marcas deixadas por esta nova valorização. Encontramo-las, desde logo, nas camadas de numeração e identificação dos testamentos, encarados como repositórios de informação de significativa importância que, portanto, devia ser facilmente recuperável e reconhecível. Por razão do mencionado pleito relativo ao condado, vários documentos que foram considerados relevantes para o processo receberam como etiqueta identificativa – inscrita na frente ou no verso do registo – “Morgado de Diogo Salema”, seguida do número do documento e do maço onde foi integrado38. Mas não são estes os testemunhos mais claros das novas funções concedidas aos legados testamentários. Na realidade, tais testemunhos são-nos dados a conhecer de forma bastante explícita através dos resumos/comentários redigidos sobre os documentos pelos próprios autores das reivindicações. É nesses resumos/comentários que muitas vezes identificamos as razões pelas quais os documentos foram valorizados, como sucede, por exemplo, no caso do testamento de Isidro de Almeida, datado de 1572. Na capilha que guarda um treslado do dito testamento pode ler-se: “Testamento de Isidro de Almeida com capela no dito convento de Campolide da invocação de S. Gregório e nela seu jazigo / Tem direito a esta capela a casa de Salemas a qual está na Coroa e a mesma Coroa fez mercê dela a umas castelhanas de que ainda hoje toma o nome de Castelhanas a dita quinta de que foi caseiro pelo ano de 1825 José Francisco o que tudo mostra bem claramente este maço que constitui esta capela não só pelas informações como também pelas suas confrontações e localidade da referida Quinta / Bem vistos e examinados que se deve pôr em acção / Para exame”39 38   A maioria dos números de documento e maço não foi, no entanto, preenchida, estando ainda por estabelecer a data e a razão da interrupção deste esforço de reorganização do arquivo. Ver, por exemplo, testamento de Vasco Queimado Vilalobos (Arquivo Gama Lobo Salema, Documentos pessoais Salema, cx. 12, p. 88) ou testamento de Leonor Gil (Arquivo Gama Lobo Salema, Documentos pessoais Salema, cx. 9, p. 57). 39   Arquivo Gama Lobo Salema, Instituições Vinculares, cx. 129, p. 16.

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Algo de semelhante verifica-se nas inscrições redigidas acerca do testamento de Diogo Fernandes Salema, elaborado em 1642. Sublinhe-se a exortação à “acção” e à utilização dos testamentos, também notória no legado de Isidro de Almeida: “Telheiras. Morgado instituído por André Bogalho Sobrinho e sua mulher Damiana Pereira em 1575 da sua quinta de Telheiras e suas anexas / Tem todo o direito a este morgado este casa de Salemas e que deve ter vida à vista dos documentos juntos que constituem este maço; que se não deve ter mais em esquecimento como até hoje se tem praticado / Para exame / É muito importante”40

Contudo, apesar da predominância desta faceta administrativa dos registos escritos, os usos, funções, valores e significados que lhes foram atribuídos pelas famílias não se esgotam aí. Na realidade, há que considerar também uma segunda faceta que complementa a primeira e que transforma os documentos, nas palavras de Eric Ketelaar, em “monumentos” (“monuments”41). Nesta perspectiva, os registos e o próprio arquivo surgem como um “património cultural” legado de geração em geração enquanto repositório de uma memória colectiva, de uma “consciência familiar” e de uma identidade social partilhadas que albergam também os símbolos do estatuto e do valor da linhagem42. Verificamos isso mesmo na continuação dos comentários ao referido testamento de Diogo Fernandes Salema, onde se escreveu: “Desate-se o maço e leiam-se as excelentes memórias e documentos”43.

  Arquivo Gama Lobo Salema, Documentos Pessoais Salema, cx. 13, p. 98. Sublinhado nosso.   KETELAAR, Eric – Muniments and Monuments…, cit., pp. 345-346. 42  SAVY, Pierre – Un aspect méconnu du «paysage documentaire» italien à la fin du Moyen Age: la production de registres en milieu seigneurial. In, Défendre ses Droits, Construire sa Mémoire. Les Chartriers Seigneuriaux XIIIe–XXIe siècle. Actes du Colloque International de Thouars (8-10 Juin 2006). Paris: Société de l’Histoire de France, 2010, pp. 141-142. 43   Arquivo Gama Lobo Salema, Documentos Pessoais Salema, cx. 13, p. 98. 40 41

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Conclusões Esta atitude dupla perante os acervos, que faz deles, simultaneamente, instrumentos de trabalho e “lugares de memória”44, atesta, em sintonia com as restantes características enumeradas, o potencial assinalável oferecido pelos arquivos de família não só à Historiografia mas também à Arquivística. Apesar dos desafios afectos ao acesso à documentação e à desconstrução de formatos arquivísticos que, por vezes, revelam um acentuado grau de complexidade, os benefícios inerentes ao estudo daquela tipologia de arquivos são notórios: por um lado, os obstáculos que erguem aos pressupostos tradicionalmente veiculados pelas práticas arquivísticas lançam novas questões e reflexões que, por seu turno, possibilitam o avançar do conhecimento acerca do tratamento tanto destes acervos como dos arquivos históricos em geral; e, por outro, a sua longa ausência do rol de fontes utilizadas para a escrita da História transforma-os em repositórios de informação pouco conhecida ou mesmo desconhecida, capazes de oferecer novas perspectivas sobre diferentes objectos de estudo ou mesmo de dar a conhecer temáticas ainda por explorar. Os breves apontamentos que deixámos acerca do Arquivo Gama Lobo Salema, ilustrando alguns destes benefícios, constituem apenas uma pequena parte da plena riqueza do arquivo, a qual esperamos desvendar em profundidade no futuro. No entanto, sabemos já que, por intermédio deste acervo, a história passível de ser escrita é larga e abrangente, incluindo, por exemplo, os percursos de um número alargado de famílias e de diversos indivíduos que ocuparam cargos de destaque próximos da Coroa; os aparelhos necessários para manter o funcionamento das Casas a administração dos bens e do património; os trâmites da sucessão de gerações e de administradores; as contendas e conflitos que afectaram significativamente o destino dos grupos familiares e, consequentemente, dos seus arquivos; ou as atitudes perante a conservação e gestão documental e as relações estabelecidas entre as famílias e os documentos. Neste cenário, o arquivo deve ocupar o centro das atenções do historiador/arquivista que, adoptando uma postura interdisciplinar, reflecte também sobre o modo como a organização dos conjuntos documentais e o seu percurso de conservação afectam a inteligibilidade das realidades em estudo e do próprio passado45. Como escrevem Étienne Anheim e Olivier Poncet, “l’archivistique, comme «science de la fabrique des archives», peut donner à l’historien les moyens de mieux comprendre comment lui-même «fabrique de l’histoire»”46. 44   BOURQUIN, Laurent – Mémoire familiale, mémoire seigneuriale: le chartrier de Chalancey (XVe-XIXe siècle). In, Défendre ses Droits…, cit., p. 211. 45   MORSEL, Joseph – En guise d’introduction: les chartiers entre «retour aux sources» et déconstruction des objets historien. In, Défendre ses Droits…, cit., pp. 9-34. 46   ANHEIM, Étienne; PONCET, Olivier - Fabrique des archives, fabrique de l’histoire. Revue de Synthèse. Vol. 125 (2004), p. 3.

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