O ARREPENDIMENTO DE DEUS Uma análise semântica de
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O ARREPENDIMENTO DE DEUS Uma análise semântica de William Lacy Lane*
Resumo Há várias citações na Bíblia Hebraica de que Deus se arrependeu. Essa expressão é explicada como uma figura de linguagem para se referir a uma ação ou atitude divina em linguagem humana, ou simplesmente, um antropomorfismo. Porém, ao classificar essa linguagem, quase nada é dito sobre o significado do arrependimento de Deus. O presente artigo, através de uma análise semântica de expressões em que Deus é o sujeito do verbo , identifica pelo menos seis sentidos da expressão. Palavras Chaves Arrependimento, análise semântica, antropomorfismo, exegese bíblica.
Em artigo anterior investiguei a importância da análise sintática na exegese bíblica (LANE, 2003). Conforme proposto, a análise sintática se preocupa com a organização de elementos gramaticais em uma frase, sentença ou parágrafo para a melhor tradução das palavras hebraicas e suas formas gramaticais. Enquanto, a análise morfológica se preocupa com
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Mestre em Teologia no Antigo Testamento pelo Calvin Theological Seminary. Pastor da Igreja Presbiteriana de Castro.
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a forma gramatical, a análise sintática se preocupa com a função gramatical da palavra. Entretanto, conforme também indicado naquele artigo, outro passo importante da exegese é o estudo de vocábulos e seus significados. Esta tarefa tem sido executada através do estudo etimológico, isto é, um estudo da origem, composição e evolução do uso do termo em questão.1 Esse estudo consiste principalmente de uma análise diacrônica2 e se baseia nos significados oferecidos pelos léxicos. O
desenvolvimento
dos
estudos
lingüísticos
e
literários, no entanto, tem levado em maior consideração o contexto literário em que as palavras são usadas em um texto para se estabelecer o seu significado. Este estudo de significado das palavras, chamado de estudo ou análise semântica, tem grande utilidade para estudo exegético e interpretação de alguns textos problemáticos.3 Na exegese bíblica é comum o estudo de um termo hebraico, grego ou aramaico baseado na consulta a léxicos e dicionários teológicos que investiga os vários significados da
1
Etimologia é a “ciência que investiga as origens próximas e remotas das palavras e a sua evolução histórica” (CUNHA, 1982, s.v. etimologia). 2 Aplicado ao estudo das palavras, a análise diacrônica se aplica ao estudo da evolução do uso e sentido das palavras na literatura clássica e bíblica (cf. WALTKE; O´CONNOR, 1990, p.38-40).
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palavra e depois importa toda aquela informação para o texto em questão. Isso, muitas vezes, é visto como um estudo exegético aprofundado, porém, é uma aplicação equivocada do estudo do significado das palavras. Uma análise semântica, entretanto, busca entender o uso da palavra em relação a outras palavras do seu contexto. Para ilustrar o problema, basta observar como tem sido frequentemente aplicado o significado da palavra suportar no Novo Testamento. A palavra grega usada por Paulo em Colossenses 3.13, traduzida por suportai-vos, é de . Esta expressão é composta de dois termos gregos (prep.: no meio de, junto à) e (verbo: ter, possuir, segurar). O sentido primário dessa composição tem sido apresentada como sustentar, dar apoio, segurar para cima (ARNDT; GINGRICH, 1979). Baseado nesta constatação, muitos explicam o texto como uma exortação de Paulo para que cada um sirva de apoio e suporte para com o próximo. Entretanto, a investigação da ocorrência desse termo no NT sugere que o sentido aplicado pelo escritor bíblico é o de aguentar, ter paciência e tolerar. A raiz verbal de ocorre no NT em pelos cinco sentidos: a) lamento, muito parecido com os lamentos do 3
Uma introdução a esta análise é bem apresentada por W. Egger (1994, p.
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AT (Mt 17.17 e paralelos Mc 9.19, Lc .41) b) atender a causa (At 18.14), c) suportar perseguição, tribulação e sofrimento (1 Co 4.12; 2 Co 11.20; 2 Ts 1.4), d) tolerar, ter paciência para ouvir (2 Co 11.1, 4, 19; 2 Tm 4.3; Hb 13.22), e) paciência e amor (Ef 4.2; Cl 3.13). Nenhuma vez a palavra é usada no sentido de apoiar e segurar para cima. O mesmo pode ser dito do uso das palavras da língua portuguesa. A origem da palavra judiar é do latim judaeu, que significa tratar alguém como um judeu (cf. FERREIRA, s/d, s.v. judiar). Mas ao se usar a palavra hoje, não se tem em mente essa conotação. Do mesmo modo, na exegese bíblica é preciso que se dê atenção à análise semântica de palavras e frases para que se possa fazer uma correta interpretação do texto. A palavra (= arrepender-se), particularmente, nos casos em que Deus é o sujeito do verbo, é um caso típico de como a falta da análise semântica provoca confusão na interpretação dos textos. O problema é que, no meio cristão, quando se fala de arrependimento evoca-se e se ressalta o sentido etimológico grego de mudar de mente, aplicado, naturalmente, ao arrependimento humano. E quando se encontra textos que 91-98).
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falam do arrependimento de Deus, o sentido do termo grego é que
é
lembrado
e,
consequentemente,
se
considera
incompatível com a idéia de um Deus imutável. Neste caso, explica-se a ocorrência da expressão como um antropomorfismo (ou antropopatismo) que é uma figura de linguagem que expressa em linguagem humana formas e atitudes ou sentimentos divinos. Este é o caso também do uso das expressões braço forte de Deus, olhos de Deus, ira de Deus e etc. Ao identificar a ocorrência do termo como um antropomorfismo, explica-se o uso da linguagem, porém, não se explora o sentido do arrependimento divino. Para isso, é preciso recorrer a análise semântica, verificando as ocorrências do termo arrepender-se quando aplicado à Deus e buscar entender seu significado nos textos encontrados. O propósito deste artigo é mostrar através do estudo do termo a importância da análise semântica das palavras. Também pretende-se mostrar através dessa análise que a linguagem do arrependimento de Deus não é incompatível com o caráter de Deus nas Escrituras. Pelo contrário, entender o arrependimento de Deus é conhecer um aspecto da misericórdia e compaixão de Deus freqüentemente ignorada na análise do antropomorfismo.
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1 Levantamento lexicográfico A raiz ocorre 119 vezes no Antigo Testamento, sendo 108 na forma verbal e onze na forma substantiva.4 O sentido atribuído à forma verbal é consolar, (piel), ser consolado (pual), consolar-se (hitpael), encontrar consolo, entristecer-se, ter pena, ter compaixão, arrepender-se (nifal).5 Para finalidade desse artigo, os textos que nos interessam são aqueles em que Deus é o sujeito.6 São 47 ocorrências em que (ou ) é o sujeito, sendo 33 no nifal, 10 no piel e 4 no hitpael.7 Além dessas ocorrências deve se incluir textos cujo sujeito é uma figura atribuída ao Senhor, como a glória de Israel (1 Sm 15.29, no nifal), a tua vara e o teu cajado (Sl 23.4, no piel).
4
As concordâncias eletrônicas de Logos Library System 2.1g e Bible Works 4.0 apontam para 110 ocorrências em 102 versículos. Isso porque catalogam todas as 108 formas verbais e duas formas nominais, o substantivo de Os 13.14 e o nome próprio de 1 Cr 4.19. Os dicionários Theological Lexicon of the Old Testament e The Dictionary of Classical Hebrew identificam 108 ocorrências da forma verbal. 5 Cf. JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 734 s.v. . 6 Esse levantamento é baseado em CLINES (2001) das ocorrências em que (Iavé) é o sujeito ou pronomes que tenham Iavé como antecedente. Estão também inclusos entre estes textos em que (elohim) é o sujeito. 7 Como se observará, várias ocorrências são textos paralelos ou muito semelhantes a outros textos listados.
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Estes textos são listados à seguir8 e, para facilitar posterior análise, estão agrupados de acordo com um critério sintático formal. A construção sintática já aponta para um campo de sentido, embora este não esteja estritamente condicionado à forma sintática.9 Os textos são apresentados com a tradução da Nova Versão Internacional (NVI) com destaque em itálico dos termos em questão: 1.1 seguido da conjunção Ocorrências em que é seguido da conjunção na função de introduzir uma oração substantiva objetiva (Cf. KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 491; PINTO, 1998, p. 143). Em todos estes casos, o verbo se encontra no nifal:
Gn 6.6
Então o SENHOR arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra
Gn 6:7
Arrependo-me de havê-los feito”.
1 Sm 15:11
1 Sm 15:35
“Arrependo-me de ter posto Saul como rei, porque o SENHOR arrependeu-se de ter estabelecido Saul como rei de Israel.
1.2 seguido da preposição ou
8
A ordem das referências bíblicas segue a sequência apresentada no resultado de busca do programa Logos, que por sua vez, segue a sequência do cânon hebraico, isto é, pentateuco, profetas e escritos. Por isso, referências dos Salmos vêm depois dos profetas.
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Ocorrências em que é seguido10 da preposição ou no sentido de especificação (Cf. WALTKE; O’CONNOR,
1990,
p.
194;
PINTO, 1998, p. 115;
WILLIAMS, 1988, pp. 51, 53). Em desesete ocorrências o verbo está no nifal. Na maioria dos casos, a preposição é seguida do substantivo (= mal). A exceção são os textos de Is 57.6, Am 7.3, 6 cuja preposição é seguida de um pronome demonstrativo (ou ), Jr 18.10 cuja preposição é seguida do substantivo (=bem) e Sl 90.13 que é seguida do substantivo (=seus servos).
Há também duas
ocorrências do verbo no hitpael seguido da preposição e o substantivo (=seus servos). Os dois textos (Dt 32.36, Sl 135.14) são textos paralelos, portanto, idênticos: 1.2.1. (no nifal) + : Ex 32:12
Arrepende-te [= volta-te] do fogo da tua ira! Tem piedade, [=arrepende-te] e não tragas este mal sobre o teu povo!
Ex 32:14
E sucedeu que o SENHOR arrependeu-se do mal que ameaçara trazer sobre o povo.
2 Sm 24:16
Quando o anjo estendeu a mão para destruir Jerusalém, o SENHOR arrependeu-se de trazer essa catástrofe
1 Cr 21:15
o SENHOR olhou e arrependeu-se de trazer a catástrofe
9
Egger fala de relações sintagmáticas e paradigmáticas. A primeira se refere “a relação linear de lexemas” e a segunda à associação com outras palavras da mesma classe paradigmática (1994, p. 108). 10 Entende-se por ‘seguido’ a dependência da preposição ao verbo. Não se trata aqui de uma sequência na ordem das palavras na frase, mas uma sequência da lógica sintática.
63 Jr 18:8
então eu me arrependerei e não trarei sobre ela a desgraça que eu tinha planejado.
Jr 26:3
Então eu me arrependerei e não trarei sobre eles a desgraça que estou planejando
Jr 26:13
Então o Senhor se arrependerá da desgraça que pronunciou contra vocês.
Jr 26:19
E o Senhor não se arrependeu da desgraça que pronunciara contra eles?
Jr 42:10
pois muito me pesa a desgraça que eu trouxe sobre vocês.
Jl 2:13
Voltem-se para o Senhor, o seu Deus, pois ele é misericordioso e compassivo, muito paciente e cheio de amor; arrepende-se, e não envia a desgraça.
Jn 3:10
Deus se arrependeu e não os destruiu como tinha ameaçado.
Jn 4:2
Eu sabia que tu és Deus misericordioso e compassivo, muito paciente, cheio de amor e que prometes castigar mas depois te arrependes.
1.2.2. (no nifal) + ou : Is 57:6
Am 7:3
Poderei eu contentar-me com isso?
Então o SENHOR arrependeu-se e declarou: “Isso não acontecerá”.
Am 7:6
Então o SENHOR arrependeu-se e declarou: “Isso também não acontecerá”.
1.2.3. (no nifal) + : Jr 18:10
então me arrependerei do bem que eu pretendia fazer em favor dele.
1.2.4. (no nifal e hitpael) + : Dt 32.36
O SENHOR julgará o seu povo e terá compaixão dos seus servos,
Sl 90:13
Volta-te, Senhor! Até quando será assim? Tem compaixão dos teus servos!
Sl 135.14
Senhor defenderá o seu povo e terá compaixão dos seus servos.
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1.3 no nifal ou hitpael intransitivos Ocorrências em que o verbo no nifal ou hitpael são intransitivos. Destas, sete são sentenças negativas, cujo verbo está precedido pelo advérbio de negação ou dependente deste e quatro são sentenças afirmativas: 1.3.1. Negação com o verbo no nifal ou hitpael: Nm 23.19
Deus não é homem para que minta, nem filho de homem para que se arrependa.
1 Sm 15.29a
Aquele que é a Glória de Israel não mente nem se arrepende, pois não é homem para se arrepender”.
Jr 4:28
porque eu falei, e não me arrependi, decidi, e não voltarei atrás”.
Jr 20:16
como as cidades que o Senhor destruiu sem piedade [= e não se arrependeu].
Ez 24:14
“Eu, o SENHOR, falei. Chegou a hora de eu agir. Não me conterei; não terei piedade [= não me arrependerei], nem voltarei atrás.
Zc 8:14
...
Assim como eu havia decidido castigar vocês... sem compaixão [= e não me arrependi]
Sl 110:4
O Senhor jurou e não se arrependerá:
1.3.2. Afirmação com verbo no nifal e hitpael: Ez 5.13
“Então a minha ira cessará, diminuirá a minha indignação contra eles, e serei vingado.
Jl 2:14
Talvez ele volte atrás, arrependa-se, e ao passar deixe uma bênção.
Jn 3:9
Talvez Deus se arrependa e abandone a sua ira, e não sejamos destruídos”.
Sl 106:45
Lembrou-se da sua aliança com eles, e arrependeu-se, por causa do seu imenso amor leal.
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1.4 no infinitivo construto Há dois casos em que o verbo está no infinitivo construto. No primeiro caso, o verbo é precedido pela preposição
no
sentido
de
propósito
(WALTKE;
O’CONNOR, 1990, p.194). O segundo caso, o verbo tem a função nominal de complemento do verbo principal: 1 Sm 15.29b11
Aquele que é a Glória de Israel não mente nem se arrepende, pois não é homem para se arrepender”.
Jr 15:6
Por isso, porei as mãos em você e a destruirei; cansei-me de mostrar compaixão.
1.5 no nifal seguido da preposição . Há duas ocorrências do verbo no nifal seguido da preposição . No primeiro caso a preposição tem um sentido causativo (por causa...) (Cf. TDCH, p. 343, 663) e no segundo o sentido partitivo.12 Jz 2:18
pois o SENHOR tinha misericórdia por causa dos gemidos deles diante daqueles que os oprimiam e os afligiam.
Is 1:24
“Ah! Derramarei minha ira sobre os meus adversários e me vingarei dos meus inimigos.
11
A primeira parte desse versículo também contém o verbo , já observado em 3.1 acima. O caso em questão é a última parte do versículo. 12 O sentido mais provável da preposição neste texto é o partitivo como objeto do verbo. Este texto não é listado explicitamente em CLINES (2001, s.v. ), mas pode ser definido por analogia.
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1.6 no piel como verbo transitivo Finalmente, há onze ocorrências do verbo no piel como verbo transitivo direto ou indireto:13 1.6.1. Ocorrências em que o objeto do verbo é um substantivo (ou): Is 49:13
Pois o Senhor consola o seu povo e terá compaixão de seus afligidos.
Is 51.3
Com certeza o Senhor consolará Sião e olhará com compaixão para todas as ruínas dela;
Is 52.9
pois o Senhor consolou o seu povo; ele resgatou Jerusalém.
Zc 1.17
e o SENHOR tornará a consolar Sião e a escolher Jerusalém’
1.6.2. Ocorrências em que o objeto do verbo é um sufixo pronominal: Is 12:1
“Eu te louvarei, Senhor! Pois estavas irado contra mim, mas a tua ira desviou-se, e tu me consolaste.
Is 66.13
também eu os consolarei (piel); em Jerusalém vocês serão consolados”. (pual)
Jr 31.13
Transformarei o lamento deles em júbilo; eu lhes darei consolo e alegria em vez de tristeza.
Sl 71.21
Tu me farás mais honrado e mais uma vez me consolarás.
Sl 86.17
pois tu, Senhor, me ajudaste e me consolaste.
Sl 119.82
Os meus olhos fraquejam de tanto esperar pela tua promessa, e pergunto: Quando me consolarás?
Sl 23.4
13
O Piel tem sido reconhecido como uma forma que torna os verbos intransitivos de Qal em factitivo. O verbo embora não ocorra em Qal, tem nesse textos uso semelhante ao factitivo (cf. PINTO, 1998, p. 49; WALTKE; O’CONNOR, 1990, p. 135).
67 a tua vara e o teu cajado me protegem
Uma conclusão preliminar deste levantamento é que, naturalmente, o verbo é usado em construções sintáticas distintas e que estas já delimitam os vários sentidos da palavra. Deus se arrepende de ações realizadas (1), ou prometidas (2.1, 2.2, 2.3), Deus tem compaixão de seus servos (2.4) e de seu povo (6.1, 6.2). Deus não é homem para se arrepender (3.1), Deus desiste do castigo contra o povo (1, 4, 5). Há de se constatar também que de um lado há inúmeros textos que expressam o arrependimento de Deus e, por outro lado, há textos que declaram categoricamente que Deus não é homem para se arrepender. Esta aparente inconsistência é superada através de uma análise semântica dos textos apresentados. Interessa-nos agora voltar-nos para essa análise semântica para discernir o sentido do arrependimento de Deus. 2. Análise dos textos Para se resgatar o significado do arrependimento de Deus, baseado no uso da palavra , é preciso recorrermos também ao critério de análise da semântica da palavra. De acordo com esse critério, o significado próprio do termo é mais corretamente identificado a partir do texto em que se encontra
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e da análise de seu campo semântico, isto é, de palavras que ocorrem com regularidade junto com a palavra em estudo.14 Com isto em mente, podemos identificar na lista de ocorrências de , alguns campos distintos que passamos a analisar.15 2.1 Deus se entristece com a maldade humana: O primeiro campo de significado que observamos são casos em que o objeto do verbo descreve um ato bom de Iavé. Assim Gn 6.6, 7 Deus se arrepende de ter criado o homem na terra. No v. 6 diz também que isso pesou-lhe (de ) no coração. A justificativa desse ato se explica no v. 5 em que Deus vê a maldade do homem na terra. Em 1 Sm 15.11, 35 Deus se arrepende de ter constituído Saul rei em Israel pelo fato de que Saul havia abandonado o Senhor e deixado de seguir suas ordens. Nestes dois casos (Gn e 1 Sm), Deus realizou algo bom, mas devido a maldade humana, Deus se entristece. Em Gn 6.6 é dito que o coração de Deus também pesou. Em 1 Sm 15.11 é Samuel quem se ira e chora e clama a Deus.
14
K. Berger define campos semânticos como “relações de palavras que ocorrem com regularidade” (in EGGER, 1994, p. 109). 15 Foge do escopo do presente artigo a exposição teórica da análise semântica que pode ser encontrada nos manuais de exegese (cf. EGGER, 1994, p. 89ss).
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Em Jr 18.10 Deus estabelece que se ele prometer prosperidade a uma nação e esta fizer o mal diante dele e não der ouvidos a sua voz, então Deus não trará o bem à nação. A diferença deste texto para os anteriores é que neste caso se refere não a um ato concreto, mas a uma possibilidade. De qualquer modo, porém, fica estabelecido que aquilo que Deus prometera não seria executado devido à desobediência do povo. Em todos estes textos, o arrependimento de Deus se refere a uma reação de Deus ao erro e maldade humana. Deus estabelece ou promete algo bom e se entristece com a reação do ser humano para com a bênção de Deus. 2.2 Deus desiste de executar juízo: Outro campo de significado são os casos em que Deus se arrepende do mal. A palavra mal pode ser entendida na maioria
desses
casos
como
castigo,
calamidade
ou
catástrofe.16 A idéia principal nestes casos é a de Deus não executar o juízo já determinado por ele mesmo contra o seu povo. Assim, Moisés pede para que Deus se arrependa e deixe sua ira (Ex 32.12). 16
A palavra merece uma análise semântica em si, mas para o propósito deste artigo basta constatar as possibilidades de outros significados que não somente mal, maldade, maligno (SCHÖKEL, 1998, s.v. ).
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Alguns desses textos expressam que Deus desistiu do castigo que havia determinado, anunciado ou executado: Ex 32.14; Jr 18.8; Jr 26.3, 13, 19; Jr 42.10; 2 Sm 24.16 (paralelo a 1 Cr 21.15), Jn 3.10; Am 7.3, 6. O sentido fundamental é de Deus não levar às últimas conseqüências a sua ira contra a humanidade, ou seja, deixar sua ira. 2.3 Deus se arrepende porque é misericordioso: Próximo a esse conceito é o reconhecimento de que uma das qualidades de Deus é o se arrepender do mal, pois Deus é misericordioso. Jl 2.13 e Jn 4.2 são muito semelhantes e descrevem o arrependimento de modo positivo. Paralelamente à expressão arrepende-se do mal há alguns outros conceitos positivos. Jonas diz pois eu sabia que tu és Deus gracioso, () compassivo, () tardio em irar-se, ( ) grande em misericórdia () e que se arrepende do mal. De modo semelhante, Sl 106.45 declara que Deus se arrependeu pois é grande em misericórdia (). Há também uma semelhança entre Jl 2.14 e Jn 3.9. Ambos refletem uma esperança de que Deus volte e se arrependa. Jonas acrescenta e se afaste de sua ira e não sejamos destruído. Joel acrescenta e deixe para trás uma bênção.
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Jl 2.14
Jn 3:9
Dt 32.36 e o paralelo Sl 135.14 se referem a ação misericordiosa em juízo. Sl 90.13 é um apelo pela compaixão. Em todos estes casos, fica claro que o arrependimento de Deus é sinônimo de sua misericórdia e compaixão. O arrependimento é visto como uma qualidade do Deus gracioso. 2.4. Deus não é homem para se arrepender Em contraste com a expressão da misericórdia de Deus, há outros textos que enfatizam que Deus não é homem para se arrepender. Esses textos, aparentemente contraditórios aos anteriores, são um bom exemplo da importância da análise semântica, pois tem um sentido bastante distinto dos demais casos. Este sentido pode ser averiguado não pela etimologia, mas pelo uso da palavra em relação a outras palavras no seu contexto. As palavras que são paralelas a nestes textos se referem ao fato de que Deus não mente (Nm 23.19, 1 Sm 15.29), não volta atrás (Jr 4.28), jurou e vai cumprir (Sl 110.4; Jr 4.28; Ez 24.14; Zc 8.14). Podemos identificar os seguintes sentidos: a) Deus prometeu prosperidade e não voltará atrás (Nm 23.19); b)
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estabeleceu um sacerdote e não voltará atrás (Sl 110.4); c) determinou juízo e não voltará atrás (1 Sm 15.29; Jr 4.28; Ez 24.14; Zc 8.14); d) castiga sem piedade (Jr 20.16). O texto de 1 Sm 15.29 é particularmente curioso, pois em 15.11 Deus se arrepende de ter constituído Saul rei, mas o v. 29 diz que Deus não mente e não é homem para que se arrependa. Neste caso, fica mais evidente que embora a mesma palavra seja usada, os sentidos são distintos. Como já observado anteriormente, Deus se entristece com Saul pela sua desobediência (15.11) e determina executar juízo até o fim contra Saul (15.29). 2.5. Deus tem compaixão Um sentido bastante comum de é o de ter compaixão, consolar. Na maior parte desses casos o verbo está na forma piel e é seguido de um objeto. Esse consolo envolve solidariedade no sofrimento e, particularmente nos casos em que Iavé é o sujeito, uma disposição de Deus renovar o relacionamento com aqueles a quem ele manifestou sua ira (Cf. JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 736, s.v. ). Estão relacionadas ao sentido de compaixão as idéias de: a) se compadecer, tendo como paralelo (Is 49.13), b) transformar tristeza e lamento em alegria (Is 51.3; 66.13; Jr 31.13; Sl 71.21), c) resgatar, salvar e escolher o seu povo (Jz
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2.18; Is 52.9; Zc 1.17; Sl 86.17; 119.82, d) proteção de Deus (Sl 23.4), e) afastar-se da ira (Is 12.1). Este último é muito próximo em ao c) baseado em Is 12.2 que afirma que o “Senhor é a minha salvação” e também muito próximo em sentido, embora não na forma, aos campos da misericórdia de Deus e da retenção do juízo (cf. 2.2 e 2.3 acima), pois Deus se volta da sua ira. Há ainda dois textos que indicam negativamente que Deus se recusa a se compadecer (Is 57.6; Jr 15.6). O que se destaca nestes textos é a atitude de bondade e compaixão de Deus diante do castigo já executado contra o seu povo. 2.6 Deus se vinga dos inimigos Há também dois textos que trazem uma conotação de vingança. Is 1.24 está claramente associado com vingança através do paralelismo com . Em Ez 5.13 o verbo está no hitpael, portanto, em voz reflexiva. Deus é tanto o sujeito como o objeto do verbo. É traduzido por me consolarei (RA, RC) e também por me vingarei (NVI). 3 Conclusão O vocábulo é traduzido de várias maneiras nas versões bíblicas devido aos vários sentidos. Mesmo aqueles textos em que é traduzida por arrepender-se e descrevem
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uma ação de Deus, percebemos que o sentido do arrependimento de Deus tem conotações distintas. Se pensarmos em arrependimento como uma mudança de mente não somos capazes de entender o que significa essa ação divina
a
não
ser
como
uma
figura
de
linguagem
(antropomorfismo). A análise semântica do vocábulo nos permite entender que o tema do arrependimento de Deus não contradiz o que a Bíblia revela à respeito de Deus, mas, pelo contrário, está em plena sintonia com as afirmações bíblicas sobre o Deus compassivo e misericordioso. Deus se arrepende porque é misericordioso e compassivo. A sua ira não é a palavra final ao seu povo escolhido.
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