O arsenal terapêutico da botica da misericórdia de Penafiel, na segunda metade do século XVIII: da influência arábio-galénica aos compostos químicos. I SEMINÁRIO:PENAFIEL E PENAFIDELENSES NA HISTÓRIA. - Atas. Penafiel: Amigos do Arquivo de Penafiel, 2016.

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O arsenal terapêutico da botica da misericórdia de Penafiel, na segunda metade do século XVIII: da influência arábio-galénica aos compostos químicos. Paula Sofia Fernandes

PALAVRAS-CHAVE Botica; Misericórdia; Medicamentos

RESUMO A misericórdia de Penafiel desde a sua fundação curou os doentes pobres, quer da localidade, quer os peregrinos e “passageiros” que passavam por estas terras. Esta tarefa levou-os a adquirir medicamentos a vários boticários, mas a necessidade de reduzir as despesas com os medicamentos e, se possível, obter algum lucro com a venda de mezinhas, fez com que, em 1769, fundassem botica própria e contratassem um boticário para a gerir. A análise e estudo dos seus inventários permitiram-nos conhecer melhor esta valência da Santa Casa e averiguar, até que ponto, os avanços científicos e farmacêuticos que se sentiam na Europa iluminista, protagonizados na terapêutica por uma passagem progressiva de uma farmácia de cariz arábiogalénica para um arsenal terapêutico químico, se processou em Penafiel.

COMUNICAÇÃO

1 Sofia Fernandes

O arsenal terapêutico da botica da misericórdia de Penafiel, na segunda metade do século XVIII: da influência arábio-galénica aos compostos químicos.

A necessidade de prover os doentes do hospital e do rol levou a misericórdia de Penafiel a adquirir medicamentos a vários boticários da localidade1. Contudo, o relacionamento da santa casa com as boticas que forneciam mezinhas à mesma, até meados do século XVIII, não é de fácil perceção, uma vez que os documentos existentes não espelham informação sobre este aspeto2. Por sua vez, a referência ao boticário que fornecia a confraria só aparece em 1722, sendo impossível determinar se este boticário detinha o monopólio do fornecimento3. Este homem manteve-se por muitos anos como fornecedor dos remédios, alternando a partir de 1740 com outros fornecedores, muitos deles irmãos da misericórdia, ou indivíduos ligados à gestão autárquica, havendo, assim, uma preferência por aqueles que faziam parte da confraria ou do poder municipal4. Na segunda metade do século XVIII, iniciou-se uma nova fase de relacionamento da irmandade com as boticas. Desta forma, em maio de 1769, o provedor propôs a instalação e criação de botica própria5. A precisão de conseguir maiores benefícios e diminuir as despesas com os mesmos, ansiando por alcançar algum lucro com os remédios, levou-a a avançar para este empreendimento, pois poderia beneficiar dos medicamentos ao preço de custo e ao mesmo tempo vende-los para o exterior alcançando algum lucro6. No entanto, esta medida viria a revelar-se, a curto prazo, pouco lucrativa para a irmandade.

1

Uma das funções da misericórdia desde o seu início, era acudir aos doentes pobres. O compromisso de 1653 no seu capítulo XI, estipulou mesmo que se

devia acudir aos pobres com as mezinhas necessárias à sua cura. Cf. AMPNF, Fundo da Santa Casa da Misericórdia de Penafiel, PT/AMPNF/SCMP/A/A/002/LV01, Compromisso da misericórdia de Penafiel, 1653. 2

Apesar de terem chegado até aos dias de hoje, livros de termos e acórdãos, desde finais de 1641, com registo de atas da mesa, estes são muitas vezes

omissos em vários assuntos que faziam parte da administração da casa. Sabemos pelos livros de receita e despesa, que durante todo o século XVII, vários pobres foram providos e se despenderam várias somas em dinheiro, quer com os pobres do rol, quer com os doentes pobres e passageiros, tratados no hospital. Contudo, nestas parcelas, o valor gasto com os remédios, até ao ano de 1656, nunca surge especificado nos livros de receita e despesa. No ano de 1656 surge pela primeira vez o valor despendido num total de 900 réis. A partir desta data, começa a ser mais notório os gastos efetuados com os medicamentos, mas só para alguns anos, oscilando os valores entre os 900 e os 1 100 réis. No entanto, muitas vezes este valor correspondia não só aos remédios mas, também, à despesa com o barbeiro e alimentação dos enfermos. A partir de 1700, o valor gasto com o boticário aumentou e esta subida acentua-se ao longo de todo o século XVIII. Cf. AMPNF, Fundo da Santa Casa da Misericórdia de Penafiel, PT/AMPNF/SCMP/C/B/009/01/LV02, Livro de receita e despesa, fls. 86-95. 3

Cf. AMPNF…, SCMP/C/B/009/01/LV37, Livro de receita e despesa, fls. 56v.-66v.

4

Cf. FERNANDES, Paula Sofia Costa, O Hospital da Misericórdia de Penafiel (1600-1850). Braga: Universidade do Minho, 2015, Tese de doutoramento

policopiada, p. 501-511. 5

A botica da santa casa foi fundada com o dinheiro do legado de José Moreira Leal. Este benemérito havia deixado à confraria 500 mil réis para “curativo

dos pobres” e igual montante para distribuir por órfãs e viúvas pobres. Cf. AMPNF…, PT/AMPNF/SCMP/C/D/007/LV02, Livro da Lembrança de toda a despesa que se fez com o dinheiro que a esta Casa veio por morte de José Moreira Leal, fls. 11v.-13. 6

Muitas outras instituições, já tinham ensaiado o estabelecimento de boticas, umas com mais êxito do que outras. Foi o caso do hospital militar de Miranda

do Douro, da misericórdia de Macau, a de Montemor-o-Novo, a do Porto, a de Vila Viçosa, a de Viana da Foz do Lima, entre muitas outras confrarias e hospitais. Cf. SEABRA, Isabel Leonor da Silva Diaz de – A Misericórdia de Macau: (Séculos XVI e XIX) Irmandade, Poder e Caridade na Idade do Comércio. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. Tese de Doutoramento policopiada, p. 240; MOURINHO, António Rodrigues – O Hospital Real de S. João de Deus de Miranda do Douro. XVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR: O Serviço de Saúde militar: Na Comemoração do IV Centenário dos Irmãos Hospitaleiros de S. João de Deus em Portugal- Atas. Lisboa: Palácio da Intendência, volume I, 2006, p. 309; CRISTOVÃO,

2 Sofia Fernandes

Esta nova valência instalou-se junto à igreja da misericórdia e para a administrar foi contratado um boticário “prático”, Manuel José de Santana e Silva. Menos de três anos após a decisão de ter botica própria, a forma como esta foi implementada já criou admiração e suspeitas dentro da própria confraria, levando a que, numa reunião de mesa, se referisse que o boticário, para além de surtir de remédios o hospital e pobres do rol a mando da misericórdia, vendia medicamentos para fora, fiava e recebia os pagamentos e, mesmo assim, a santa casa despendia neste estabelecimento, um valor em dinheiro mais elevado, que o ordenado anual do boticário. Segundo o provedor, a santa casa estaria a gastar com esta valência, um valor superior a 180 mil réis 7. Despesa muito significativa, se pensarmos que a ideia primordial subjacente à criação da botica foi a obtenção de lucro, através dos medicamentos que seriam vendidos e que pagariam as despesas das mezinhas cedidas gratuitamente. Para além deste facto levantou-se dentro da misericórdia sérias suspeitas sobre a forma como a botica havia sido criada e gerida, não se entendo, já na altura, muito bem, como tinham sido aplicados os 500 mil réis do legado de José Moreira Leal8. Não existia por parte dos corpos gerentes da irmandade qualquer noção do valor da receita da botica, do valor dos artigos fiados, do montante do débito à mesma por parte de alguns utentes, do volume de remédios aviados aos pobres da casa, nem mesmo, qual o valor da despesa efetuada com os fornecedores e produtos. Não existia qualquer espécie de controlo por parte dos mesários sobre a administração levada a cabo pelo boticário. O provedor queixava-se, assim, de não conseguir, tão pouco, comparar a despesa de um ano com o outro, ou mesmo confrontar as despesas que tinham com os remédios, na época em que estes eram adquiridos a fornecedores externos à santa casa. A solução para este problema foi o afastamento do boticário, não porque houvesse queixa dos clínicos sobre o mesmo por desconhecimento da sua arte, por incúria na elaboração dos medicamentos, mas porque como gestor defraudou as expetativas da misericórdia. A própria análise do inventário da botica, após as tomadas de contas em 1772, demonstrou-nos que estava bem provida e sortida9. A botica da misericórdia no tempo da gestão deste boticário era de matriz, fundamentalmente, arábiogalénica, apresentando algumas influências paracélsianas10, com várias tinturas e essências, bem como extratos

Fernando; Amorim, Maria Adelina – A Botica da Misericórdia de Montemor-o-Novo: A longa História das mezinhas curativas e a sua fundação em 1781. In FONSECA, Jorge (coord.) – A Misericórdia de Montemor-o-Novo: História e Património. Montemor-o-Novo: Santa Casa da Misericórdia de Montemor-oNovo, 2008, p. 109-111; BARREIRA; Aníbal José de Barros – A Assistência hospitalar no Porto, 1750-1850. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002. Tese de Doutoramento em História Moderna e Contemporânea policopiada, p. 277-279; ARAÚJO, Maria Marta Lobo de - Dar aos pobres e emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e de Ponte de Lima (séculos XVI-XVIII). Barcelos: Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa e de Ponte de Lima, 2000, p. 328; MAGALHÃES, António – Práticas de caridade na Misericórdia de Viana da Foz do Lima (séculos XVI-XVIII). Viana do Castelo: Santa Casa da Misericórdia de Viana do Castelo, 2013, p. 684. 7

Seria 90 mil réis para pagamento de ordenado a Manuel José de Santana e Silva e uma verba superior a 90 mil réis para provimento desta valência.

8

Cf. AMPNF…, PT/AMPNF/SCMP/A/B/A/001/01/LV03, Atas, termos, acórdãos e resoluções, fls. 265v.-266.

9

Cf. AMPNF…, PT/AMPNF/SCMP/H/A/LV01, Inventário da Botica, 1770-1809, fls. 2-20v.

10

Aos poucos a patologia humoral galénica vai sendo rejeitada. A doença começa, lentamente, a ser encarada como uma anomalia e não um desequilíbrio

de humores, por isso, sendo uma manifestação natural e química devia ser tratada quimicamente. Desta maneira, tinturas, essências e extratos ocupam cada vez maior espaço nas boticas. Estes produtos eram considerados químicos na medida que eram substâncias que tinham sido transformadas, frequentemente, com ajuda do fogo. Cf. BASSO, Paula – A farmácia e o medicamento: uma história concisa. [S.L.]: Ed. dos CTT, 2004, p. 84. Ainda sobre

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a ocuparem já um certo espaço no arsenal terapêutico da mesma. Desta feita, não se distanciava muita das boticas portuguesas da altura, onde os remédios de origem vegetal dominavam11, mas onde os produtos químicos, provenientes da escola iatroquímica12, começavam aos poucos a ser introduzidos, bem como as várias drogas de origem americana. Desta forma, no inventário de 1772 surgem-nos as drogas já referidas pelos autores clássicos, os designados medicamentos químicos, introduzidos na terapêutica por Paracelso13 e as drogas que os padres da Companhia de Jesus haviam trazido para Portugal e restante Europa, provenientes da América e dos nossos domínios na Ásia. Os jesuítas foram aprendendo muito na América Portuguesa no que respeita à aplicação de plantas medicinais com os índios, compilando essa informação em vários tratados dos quais salientamos a “Materia Médica Misionera”, o que levou a que durante os séculos XVII e XVIII chegassem à Europa várias plantas, vindas da América e que vão sendo introduzidas na terapêutica paulatinamente, algumas vezes gerando alguma controvérsia, como foi o caso da quina14. O surgimento das plantas americanas nas boticas portuguesas e mesmo europeias não se deu logo após o descobrimento do Brasil. A difusão e o enaltecer das virtudes de alguns destes produtos surge mais tarde, já em plenos séculos XVII e XVIII, o que muito se deveu ao interesse de muitos médicos europeus pela flora brasileira, influenciados, também, pelo desenvolvimento da botânica no período iluminista e pelo gosto pelas plantas exóticas que favoreceram o reconhecimento das propriedades medicinais de algumas espécies vegetais15. O inventário da botica elaborado no final da gerência de Santana e Silva dividia-se, no que respeita ao arsenal terapêutico, em mais de 12 itens16.

Paracelso leia-se SILVA, Carmen – Paracelso, un revolucionário de la medicina. In BENÍTEZ GROBET, Laura; TOLEDO MARÍN, Leonol; VELÁZQUEZ, Alejandra (coord.) – Episodios filosóficos del platonismo: Ecos y Tensions. México: UNAM, FES – Acatlán, DGAPA, 2016. 11

A partir de Galeno, no século II d. C. a importância dos conhecimentos ervanários dominou e influenciou toda a medicina e botânica, desde a Idade

Média à Idade Moderna. Ao longo dos tempos, a farmácia galénica foi-se mostrando insuficiente e adequada face à emergência de novas doutrinas médicas. Sobre o papel das plantas na cura das enfermidades veja-se LE GOFF, Jacques – As plantas que curam. In LE GOFF, Jacques (apres.) – As Doenças têm História. Lisboa: Terramar, 1997, p. 343-357. 12

Sobre a escola iatroquímica leia-se PITA, João Rui – Farmácia, Medicina e Saúde Pública em Portugal (1772-1836). Coimbra: Minerva, 1996, p. 16-25.

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Os medicamentos químicos foram introduzidos em resultado das teorias de Paracelso e dos iatroquímicos. Estes procuravam obter princípios ativos

puros, em oposição às misturas complexas conseguidas nos preparados galénicos. Vários foram os seguidores de Paracelso, em Portugal, na primeira metade do século XVII. Entre eles destaca-se Zacuto Lusitano, Madeira Arrais, frei Manuel de Azevedo e João Curvo Semedo. Sobres estes cf. DIAS, José Pedro Sousa – Droguistas, boticários e segredistas. Ciência e Sociedade na Produção de Medicamentos na Lisboa de Setecentos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2007, p. 19. No entanto, foi durante o século XVIII, que as relações entre a química e a farmácia vão evoluir, graças em grande parte à revolução química imposta por Lavoisier. Cf. SIMON, Jonathan – La Chimie et la Pharmacie en 1800. Revue d’Histoire de la Pharmacie. Vol. 89, n.º 330. (année 2001), p. 175. 14

Cf. FLECK, Eliane Cristina Deckmann – “Esta es lo que yo buscaba (…) el conocimiento de las yerbas, y su aplicación”: sistematização e difusão dos

conhecimentos sobre virtudes de plantas medicinais (América meridional, séculos XVII e XVIII). In https://www.academia.edu/13842521/...., consultado em 12 de outubro de 2016. António de Almeida, médico do partido da misericórdia e da câmara vai nalgumas das suas publicações discutir a aplicação da quina. 15

Sobre este tema veja-se FAUSTO, Christian – Mezinhas, triagas e garrafadas, pequena reflexão histórica acerca da saúde e do cuidar no Brasil. In

Revista Ciências da Saúde, Maringá, vol. 1, n.º 2, 2001, p. 43-51. 16

Estava dividido em águas simples; águas compostas; xaropes, purgantes e simplex, espíritos; bálsamos; óleos químicos; óleos comuns; percozimentos,

unguentos; emplastros; confecções e theriagas; conservas; sais; trociscos, pirolas, metais e minerais; gomas, resinas e sucos; sementes; raízes e lenhas; frutos; fungos e flores.

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Uma das alíneas do rol de remédios e de ingredientes para os mesmos presentes no inventário de 1772 eram as águas. Estas constituíam medicamentos resultantes da destilação da água sobre variadíssimas plantas, podendo ser simples ou compostas, consoante utilizassem um só produto vegetal na sua composição ou vários. A botica possuía, nesta altura, uma gama de 19 águas simples17, mas no que respeita às águas compostas, mais difíceis e trabalhosas de obter, era mais pobre só possuindo 2 tipologias18. Nesta instituição a variedade de xaropes era menor que as águas, só existindo no rol 5 tipologias.19 Por sua vez, o número aumenta quando chegamos aos espíritos, hoje, vulgarmente, designados por tinturas20. Estes medicamentos eram muito comuns na farmacopeia barroca21, sendo soluções de substâncias voláteis, obtidas através da destilação. Os espíritos incluíam álcool e substâncias que podiam ser do reino animal, vegetal ou químicas22. Muitos destes medicamentos eram preparados com enxofre, vitríolo, antimónio, ou mesmo substâncias do reino animal, hoje consideradas estranhas e repugnantes, como por exemplo a bosta de boi. Quanto aos bálsamos, tratava-se de preparações, que geralmente eram tinturas alcoólicas, muito carregadas de

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Desde a água de funcho ou erva-doce, com propriedades diuréticas, reduzindo os gases intestinais, servindo, também, para aumentar o leite às

mulheres, passando pela água de cevada, de cerejas pretas, de língua de vaca, esta muito utilizada para doenças de pele, a água de melancia, de azedas, também, com efeitos diuréticos e antiescorbútica, a água de artemisia, com efeito analgésico e antiespasmótico, anticonvulsivo, tónico, calmante, digestivo e vermífugo, até à água de cardo santo, oriundo do México e de algumas regiões do Brasil, usada como sedativo, pois continha berberina e protopina, recomendada nas febres intermitentes, não esquecendo a conhecida água de pétalas de rosas, introduzida na farmacopeia pelos árabes. O cardo santo também se denominava de centauro benedita, surgindo por vezes, com esta designação nos inventários. Os diuréticos atuavam nos rins, aumentando o volume e o fluxo urinário, sendo usados para tratamento da hipertensão arterial, insuficiência renal, cardíaca ou cirrose hepática. Cf. COELHO, Manoel Rodrigues – Pharmacopea Tubalense chimico-galénica. Roma: oficina de Ballo Geredini, 1760, p. 244, 267; EDLER, Flávio Coelho – Boticas & Pharmácias: uma história ilustrada da farmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006, p. 26; PINTO, António José de Sousa – Matéria médica distribuída por classes e ordens segundo os seus efeitos, em que plenamente se apportão suas virtudes, doses e moléstias, a que se fazem aplicáveis, addiccionado com as taboas da matéria médica. Lisboa: na impressão régia, 1813, p. 78. 18

Uma delas era a água de canela, muito utilizada para constipações e gripes e para regular a pressão sanguínea.

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Os xaropes preparados por meio da dissolução de açúcar na água tinham, na maior parte das vezes, funções purgativas, por isso, muito comuns numa

medicina que privilegiava na terapêutica as purgas. Durante a Idade Média e até ao século XIX, inclusive, as purgas andavam a par das sangrias. A idade e sexo não contavam, podendo qualquer indivíduo ser purgado. Em Penafiel, o médico António de Almeida, nos finais do século XVIII, inícios do seguinte, apesar de já olhar com receio para as sangrias, vai continuando a purgar os seus pacientes, sobretudo em caso de febres. Os 5 xaropes existentes no rol de 1772 eram de papoilas, muito usadas contra as bexigas, o xarope áureo, muito comum na farmacopeia europeia neste período, o de dromedárias brancas, de rei e de gólfãos. As dromedárias era uma espécie de inseto da família das formigas. Cf. HENRIQUES, Francisco da Fonseca – Medicina Lusitana e Soccorro Delphico aos clamores da Natureza humana, para total profligação de seus males. Amsterdam: Em casa de Miguel Diaz, 2.ª edição, 1731, p. 723. 20

O inventário de 1772 apresenta-nos 11 tipos de tinturas diferentes.

21

Salienta-se no que concerne a farmacopeia barroca a importância da contribuição de João Curvo Semedo, que ocupou o lugar mais destacado do

barroco médico português, essencialmente, pela defesa dos medicamentos químicos. A farmacopeia barroca recorria, frequentemente, a medicamentos preparados com enxofre, vitríolo e antimónio, bem como a remédios considerados hoje repugnantes, como por exemplo a “água destilada de bosta de boi” que se usava para curar a asma. A utilização de animais ou parte destes para curar foi comum na Idade Média, acentuou-se na Idade Moderna, vindo depois lentamente a desaparecer à medida que se entrava no século XIX, com os higienistas a levarem a cabo campanhas contra estes medicamentos. Cf. DIAS, José Pedro Sousa - Droguistas, boticários e segredistas…, p. 45-53; ABREU, Jean Luiz Neves – O corpo, a doença e a saúde: o saber médico lusobrasileiro no século XVIII. Belo Horizonte: Universidade de Minas Gerais, 2006. Tese de doutoramento policopiada, p. 146. 22

Na botica administrada por Santana e Silva tínhamos o espírito de vitríolo (ácido sulfúrico) que fortalecia o estômago, curava febres ardentes e

hemorragias, o espírito de ponta de cervo, de erva-doce, de alfazema, de nitro doce, entre outros.

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resinas e substâncias aromáticas e óleos medicinais que possuíam na sua composição gálbano, mirra, entre outros produtos, detendo Santana e Silva 6 tipos no seu arsenal, na altura da inventariação23. No que respeita aos óleos químicos a botica possuía, nesta altura, 12 tipologias, figurando no inventário com o nome de químicos, devido à forma como eram manuseados e compostos. Grande parte destes, feitos a partir de substâncias vegetais, como o óleo de canela, de noz-moscada, de nozes, embora também existissem os óleos de ouro, petróleo, entre outros. Estes medicamentos eram dos mais dispendiosos da botica, devido aos óleos de canela e de ouro, substâncias muito onerosas na época. Por sua vez, Santana e Silva não possuía uma grande variedade de cozimentos. Estes eram obtidos através da fervura de certas plantas ou partes de animais e a botica só contava com 4 tipologias24. Contudo, não podemos deixar de ressalvar a presença de um cozimento muito caro e relativamente raro, o percozimento de lacraus25. Havia 3 tipos de cozimentos, o ligeiro, medíocre e o forte, podendo também ser simples ou compostos. Quanto aos unguentos26, a botica possuía 10 variedades, pois a farmacopeia desta época era muito variada no que respeita estas panaceias, sendo a maior parte destes untos de origem animal ou mesmo humana, nomeadamente a enxundia de pato, galinha, unto de elefante e unguento humano. Estes medicamentos foram muito divulgados por Curvo Semedo e a botica da misericórdia estava a par das tendências médicas do século XVIII. Vários compêndios de medicina e farmácia desde o Renascimento ao Século das Luzes e, nomeadamente, a Pharmacopea Universalis, editada em Londres em 1747, atestavam a eficácia terapêutica dos cadáveres, excrementos e partes do corpo humano, pois apoiavam-se no princípio da homologia27, que concebia o corpo como um reservatório de medicamentos28. Desta forma, o unto humano, de urso, de leão e de cobras eram vistos como bom remédio nas paralisias e estupores29.

23

Salientamos no inventário o bálsamo de São Tomé, de ponta de cervo, o católico, entre outros.

24

Para além do cozimento de lacraus, temos o de flor de sabugueiro, muito utilizado contra enfermidades eruptivas e também como antidiarreico e

antifebrífugo uma vez que provocava os suores e portanto era muito utilizado nas constipações e gripes, tendo sido muito recomendado por Hipócrates e muito utilizado na medicina em toda a Idade Média estendendo-se a sua utilização até à Idade Moderna. Cf. COSTA, Jacinto – Pharmacopea Naval e Castrense. Tomo II. Vol. 2. Lisboa: Impressão Régia, 1819, p. 8, 185. 25 26

Lacrau era uma espécie de escorpião. Os unguentos eram medicamentos externos que possuíam uma substância gordurosa, que podia ser banha ou óleo e aderiam à pele sem se

derreterem. 27

A homologia era o estudo biológico das semelhanças entre estruturas de diferentes organismos que possuem a mesma origem ontogenética e

filogenética, podendo, no entanto não ter a mesma função. 28

Cf. ABREU, Jean Luiz Neves – O corpo, a doença e a saúde…, p. 141-142.

29

O ar de estupor é o nome que se dava a patologias que provocavam profundo torpor dos membros. Designava, assim, as paralisias, a apoplexia, a

embolia, trombose cerebral, perda de sentidos, entre outras. Referia-se, desta forma, a um conjunto muito vasto de doenças que provocavam entorpecimento patológico das faculdades intelectuais, acompanhado de alterações motoras e sensitivas. Cf. SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro – História geral da medicina Brasileira. S. Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo. Vol. I, 1991, p. 214.

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Os emplastros inventariados eram em maior quantidade que os unguentos e eram usados, essencialmente, para problemas de pele, como a tinha30, por exemplo. Os emplastros são hoje, vulgarmente, designados de compressas ou cataplasmas e eram confecionados à base de farinha, à qual se juntavam espécies vegetais ou animais31. No rol de 1772 surgem, ainda, as confecções e teriagas. Este último produto era um medicamento complexo, feito à base de mais de 60 componentes, com propriedades de antídoto contra venenos, muito utilizado na medicina galénica32. As conservas33, medicamentos muito comuns na altura, estavam pouco representadas na botica gerida por Santana e Silva, só possuindo a conserva “viulada”. Assinala-se, assim, desta forma, a ausência da conserva de cochelaria, a antiescorbútica, a de rosas rubras, a solutiva, que costumavam figurar noutras boticas e que neste período estiveram ausentes do inventário. Mas se nestes produtos elencados encontramos no máximo uma dúzia de tipologias, a situação altera-se quando chegamos aos sais, constituindo estes um dos principais róis do inventário, com 30 espécies presentes na botica de Santana e Silva. Os sais podiam ser utilizados na confeção de compostos, teriagas e outros remédios ou mesmo usados simples, acreditando-se que tornavam o sangue mais fluído34. No século XVIII, os bezoárticos trociscos e as pírulas eram frequentes nas boticas existindo uma variedade enorme, contudo, a botica em 1772, possuía uma fraca amostra deste tipo de drogas. No entanto, quando chegamos à alínea dos metais e minerais, que eram utilizados quer simples, quer em medicamentos compostos deparamos com um vasto leque de escolha, num total de 65 artigos diferentes. Estes pertenciam, essencialmente, ao reino mineral, mas também encontramos substâncias metálicas, produtos vulcânicos, produtos do reino animal e até mesmo vegetal, apesar de terem sido catalogados neste item, mas que eram utilizados triturados, até atingirem a consistência de pó, ou areias finas35. Também em grandes variedades e

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A tinha e a sarna foi um flagelo que se fez sentir por toda a Europa e também, no nosso País até ao século XIX, atingindo, particularmente, os militares e

os presos nas cadeias e principalmente jovens e crianças. Em Penafiel apesar de verificarmos alguns doentes a darem entrada no hospital, ainda nos inícios da centúria de oitocentos com esta doença, esta não teve, todavia, grande expressão entre os internados. 31

No inventário de 1772 surgiu-nos, assim, o emplastro de rãs, de almecega, de cera, de aquil maior, entre muitos outros. Salienta-se os emplastros de

cicuta utilizados nas mastites. 32

A teriaga era muito utilizada, também, em doenças infeciosas e ulcerações febris, bem como para acalmar dores de dentes. A teriaga magna, por

exemplo, era tomada com vinho quente sendo eficaz para as cólicas e a botica em 1772 possuía este remédio para venda, assim, como a teriaga de esmeraldas, usada nas crianças de tenra idade para prevenir doenças de gota. Como antídoto do azougue era utilizada a teriaga magna junto com uma confeção de jacintos. Cf. HENRIQUES, Francisco da Fonseca – Medicina Lusitana e Soccorro Delphico…, p. 128, 801-805; PEREIRA, Maria Helena da Rocha – Obras médicas de Pedro Hispano. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1973, p. 346. 33

As conservas eram um medicamento considerado brando, composto de várias substâncias vegetais, ao qual se juntava açúcar que para além de

conservar os ingredientes da mesma, lhe forneciam uma consistência pastosa. Cf. COSTA, Jacinto – Pharmacopea Naval e Castrense…, p. 84, 124-200. 34

Só para citar alguns, a botica possuía o sal saturno, recomendado para uso interno, nas febres intermitentes, gonorreia, vómitos negros, para uso

externo nas inflamações bocais, queimadelas e erisipelas. O sal tártaro, catártico, gema, estanho, amoníaco, de salva, de centáurea. Nesta alínea surgia, igualmente, o tártaro vitriolado próprio para problemas de fígado, a pedra-ume (sulfato de alúmen), própria para hemorragias, o cremor tártaro, considerado um excelente laxante, antifebril, diurético, muito utilizado como purgante. 35

Entre estes encontramos os corais, muito utilizados para pós dentífricos, os olhos de caranguejo, utilizados para as chagas de estômago, bem como nas

hemorragias, podendo ser administrado em pó, ou na composição de bebidas cordiais. Tínhamos, ainda, o lixo de lagarto, crânio humano, bastante

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constituindo dos produtos mais dispendiosos da botica, num total de 23 820 réis, estavam as gomas, resinas e sucos, muitos deles provenientes da África, Brasil e Oriente, sendo na sua maior parte raros, muito caros e portanto valorizando este estabelecimento36. Desta forma, podemos concluir que se Santana e Silva era um mau gestor, não era seguramente um mau profissional, pois demonstrava ter um conhecimento alargado dos variados medicamentos existentes na época, provendo a botica das mais recentes mezinhas e drogas. Desta maneira abundavam no estabelecimento produtos de origem animal e vegetal, quer sólidos, quer calcinados e reduzidos a pó, quer de origem galénica, quer aristotélica ou introduzidos por Paracelso, autóctones ou oriundos de alémmar, sendo de salientar a influência paracelsiana na conceção da terapêutica ao dispor na botica. As sementes37 também se encontravam em larga escala no inventário. A grande variedade deste produto, tal como dos metais e minerais prendia-se, com o facto de serem artigos que podiam ser armazenados por latos períodos temporais, não sendo facilmente perecíveis, como por exemplo os frutos e flores. As drogas que mantinham a qualidade por muito tempo, desde que corretamente armazenadas, permitiam que o boticário tivesse uma grande variedade das mesmas, sem sofrer perdas. Ao passo, que os fungos, frutas e flores 38 se encontravam em menor escala nesta valência da misericórdia. Os frutos, flores e fungos39 utilizados na confeção de remédios na época eram variadíssimos, mas estavam pouco representados no inventário de 1772, pois sendo manuseados frescos, na sua maior parte, na composição das mezinhas não permitia que se guardassem em “stock”, preferindo-se colhe-los ou adquiri-los antes da preparação do composto40. Por último, no que concerne às lenhas, é relevante referir a existência da quina, produto muito oneroso, mas considerado como panaceia universal para as febres intermitentes, medicamento muito popular em toda a Europa, fundamentalmente, no tratamento da malária. O arsenal terapêutico era, portanto, vasto e completo, não ficando atrás do observado para algumas das suas congéneres, já tratadas por variados autores. Seria importante verificarmos, como estariam providas as boticas existentes em Penafiel, da mesma altura da botica da santa casa, pois existiram várias, que inclusive já haviam abastecido a misericórdia, antes de esta deter botica própria. Tal permitiria um estudo comparativo, no entanto, não conseguimos ter conhecimentos da existência desses arquivos e a maior parte dos estudos sobre este tema versam as boticas monásticas ou as laicas de grandes cidades. dispendioso, considerado um antiepilético e variadas pedras preciosas e semipreciosas. O coral, as pérolas, o ouro e prata, sândalos e almíscar eram entendidos como excelentes medicamentos para o coração. 36

Salientamos a existência na botica, em 1772, de ópio servindo de sonífero e analgésico, a goma-laca, a de pau-santo, a goma-arábica, as cantáridas,

coração de cervo, almíscar, sangue-de-drago para a menorragia, pós de múmia, utilizados na tísica e para evitar que o sangue coalhasse, o incenso, entre outros. 37

Estas podiam ser mucilaginosas, espirituosas, comuns, oleosas ou farináceas. Podiam durar largos anos desde que armazenadas corretamente em

frascos de vidro, bem tapados e em lugar seco. Assim, temos sementes de cevada francesa, a de noz-moscada, cardomomo, pimenta, linhaça galega, entre muitas outras. 38

Só encontramos 5 espécies de flores neste rol: gólfãos, flor de buxo, tília, flor de noz-moscada e o iptamo.

39

Dentro dos fungos e frutos salientava-se a presença das tâmaras da Índia, da galha, canábis, entre outros.

40

As flores deveriam ser colhidas de madrugada de preferência ainda orvalhadas. Nas despesas da botica, existentes para o século XIX, verificamos a

aquisição semanal de flores.

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Todos os simples e compostos aqui elencados importavam no valor de 87 847 réis. Quantia pouco elevada se tivermos em conta que, muitas vezes, pelo fornecimento de medicamentos aos pobres, num ano, a confraria chegava a despender 110 mil réis. No entanto, temos que ter em conta dois factores, por um lado muitos dos produtos apresentados não estavam ainda misturados e preparados, permitindo, assim, a confeção de variados remédios, por outro os produtos eram vendidos a preços que chegavam a ser 50 vezes superiores ao custo dos mesmos, tendo os boticários um ganho elevadíssimo41. Os utensílios, materiais de armazenamento, equipamentos e instrumentos para a elaboração dos medicamentos também se encontravam devidamente inventariados no rol de 1772, não diferindo estes, dos existentes noutras boticas. Pelo contrário, no que concerne o mobiliário da mesma, este era acentuadamente pobre42. Por fim, os manuais que suportavam a arte. Neste inventário foram descritos somente 5 livros43, número relativamente parco. No entanto, se verificarmos que mesmo na capital existiam boticários com bibliotecas muito reduzidas, não sendo por isso de estranhar que num estabelecimento recém-criado surjam 5 obras44. Todavia, não podemos deixar de salientar que ficaram de fora várias farmacopeias editadas nessa centúria, como por exemplo, a farmacopeia Ulissiponense e a Portuense. No século XVIII, a literatura farmacêutica portuguesa, especificamente no que concerne à edição de farmacopeias, atingiu valores nunca antes conseguidos, o que se encontrava em consonância do que já se vinha a verificar noutros países europeus. Manuel José de Santana e Silva já havia aderido às novas farmacopeias e, paulatinamente, à farmácia química, como demonstrou a presença do alambique na botica e de alguns produtos. Contudo, o grande passo nesta matéria só vai ser dado pelo seu sucessor.

41

Como refere Aníbal Barreira, as instituições queixavam-se de que os boticários auferiam elevados lucros que calculavam entre 50% a 400%. Cf.

BARREIRA, Aníbal José de Barros – A assistência hospitalar no Porto, 1750-1850. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002. Tese de Doutoramento em História Moderna e Contemporânea policopiada, p. 277. 42

Detinha um oratório com 4 imagens, um mostrador, dois bancos com gavetas e uma escada.

43

Existia, assim, a Pharmacopea Lusitana, de Dom Caetano de Santo Antonio, mas não foi possível determinar qual a edição existente na botica, sendo o

conteúdo desta obra, praticamente, todo de orientação galenista, reduzindo-se os medicamentos químicos a poucos casos; o 3.º volume da Pharmacopea Tubalense Chimico Galénica, publicada pelo boticário Manuel Rodrigues Coelho, em 1735, tendo sido esta farmacopeia muito difundida no nosso país; uma Pharmacopea Ilustrada, não tendo sido possível identificar a que se referia, uma vez que, não foi referido o autor nem o ano da sua publicação; uma Pharmacopea Baetanada, da autoria do médico Jorge Bateo e traduzida de latim para português por Caetano de Santo António, editada em 1713; e um Dioscórides velho, sendo o Índex Dioscórides publicado em Antuérpia, em 1536. 44

Como Sérgio Carvalho afirmou este era o número ideal existente nas boticas medievais. Contudo, mesmo em Lisboa, como referiu José Pedro de Sousa

Dias, existiam boticários com bibliotecas muito reduzidas, já na época moderna, como por exemplo o boticário Diogo Franco, que só possuía 9 volumes e Carlos Queirós com, apenas 3 obras farmacêuticas. Cf. DIAS, José Pedro de Sousa – Droguistas, boticários e segredistas…, p. 115; CARVALHO, Sérgio Luís de – Assistência e medicina no Portugal Medieval. [S.L.]: Ed. Grupo de trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, p. 106.

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Diogo Caetano Pereira de Magalhães45 sucedeu a Santana e Silva na gerência da botica da misericórdia. Detentor de botica própria, aos 32 anos de idade, abandonou, provavelmente, o seu estabelecimento e passou a administrar esta valência da irmandade. A segurança dada pela confraria, o ordenado fixo, independentemente do número de medicamentos vendidos, o facto de não ter que se preocupar com a concorrência existente na localidade, deveriam ter sido factores determinantes para esta escolha. Este homem ficou na botica da santa casa durante largos anos, servindo, inclusive, em vários postos, desde boticário, a procurador das demandas e cartorário, em acumulação sempre, com a gestão da botica. Neste período, a misericórdia passou por etapas mais complexas, em que o controlo das contas por parte do poder régio se intensificou, tendo a instituição sido alertada, por diversas vezes, para cortar nas despesas, sendo os pobres do rol e doentes, evidentemente, os mais afetados46. Havia que se controlar eficazmente os gastos. No entanto, a botica para além de prover de remédios o hospital e os pobres do rol passou, a partir de 1777 a fornecer os padres de Santo António dos Capuchos da cidade, para além de se viável, aumentar o mais possível a venda de panaceias para fora, tentando com esse comércio encaixar receitas, já que as despesas com as dádivas eram elevadas. A ausência de informações nas atas até 1800, sob a forma como a botica era gerida, cingindo-se a breves apontamentos sobre o provimento de mezinhas e pouco mais, o desaparecimento dos livros de receita e despesa da casa, para este período, deixou-nos um vazio informativo sobre a forma como Diogo Caetano geria o seu dia-a-dia e administrava este estabelecimento. Contudo, acreditamos que a ausência destas informações nos livros demonstra, se não contentamento por parte da mesa, pelo menos uma ausência de queixas ou problemas graves. Diogo Caetano era um homem da inteira confiança da misericórdia, sendo-lhe entregues vários cargos de enorme responsabilidade47, dessa forma, tudo nos leva a crer que haveria uma segurança tácita, que permitia que este gerisse a botica a seu belo prazer. A botica continuou a laborar, cada vez mais, no final da centúria de setecentos, devido, quer ao aumento da população48, na agora cidade de Penafiel, quer ao crescente número de doentes assistidos pela 45

Natural de Santa Cristina de Figueiró, Amarante, filho legítimo de Manuel Lopes de São Paio e de Jerónima Maria Pereira, nascido a 11 de dezembro de

1740. Casou com Dona Rufina Clara de Azevedo Neves. Cf. ADPRT, Fundo Paróquia de Santa Cristina de Figueiró, PT/ADPRT/PRQ/PAMT31/001/0005, Registo de baptismos, 1731-1761, fl. 37; ADPRT, Fundo Paróquia de Penafiel, PT/ADPRT/PRQ/PPNF24/002/0006, Registo de casamentos, 1755-1763, fls. 235-235v. 46

Em 1774 a mesa administrativa da misericórdia vai alertar o médico para que este verificasse se os doentes atendidos podiam ou não pagar as

despesas com os medicamentos. Se o físico não procedesse a essa averiguação seria, mesmo, expulso. Era importante diminuir as despesas com os remédios, pois a palavra de ordem era poupar. Dois anos volvidos expulsam os médicos da casa, alegando a existência do partido de médico da cidade, demonstrando que a assistência na saúde, nesta fase, não era uma prioridade da casa. 47

Em julho de 1781, Diogo Caetano foi nomeado procurador das demandas e negócios da casa. Cf. AMPNF…, SCMP/A/B/A/001/01/LV04…, fl. 11v. Mas,

já em 3 de março de 1775, tinha sido eleito para procurador dos negócios da casa, auferindo por este serviço vinte e quatro mil réis. Cf. AMPNF…, SCMP/A/B/A/001/01/LV03…, fl. 276. Em 10 de fevereiro de 1784, este assina a ata da reunião da mesa administrativa como cartorário. Cf. AMPNF…, SCMP/A/B/A/001/01/LV04…, fl. 25v. 48

Segundo Carlos Matias, nos inícios do século XVIII, existiam 600 vizinhos na freguesia de Arrifana de Sousa. Cf. MATIAS, Carlos Alberto Fonseca -

Pequenos Mundos em Penafiel: redes de sociabilidade e de parentesco espiritual. Coimbra: Facultade de Letras, 2006. Tese de Mestrado policopiada, p.

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irmandade, apesar da dádiva de remédios aos Capuchinhos ter sofrido avanços e recuos, na medida em que o binómio misericórdia/convento sentiu um agudizar de conflitos49. Ao longo deste período, por diversas vezes o boticário solicitou à irmandade o aumento de dinheiro para comprar lenha e carvão, argumentando que a botica laborava dia e noite para abastecer quer os pobres da casa, quer particulares. Em 1785, a casa pagava-lhe o quádruplo do que, anteriormente, dava a Santana e Silva pelo combustível. O crescimento da malha de utentes servidos pela botica só é possível ser avaliada por estes dados, uma vez que este boticário, tal como o seu antecessor, também, era avesso à escrita, não tendo elaborado nenhum inventário desse estabelecimento desde que tomou posse até 1788. Nessa data, acrescentou ao inventário anterior, os objetos que trouxe para a mesma, não aumentando ou fazendo nova listagem para os medicamentos. Obviamente que, 16 anos após ter tomado conta da administração da botica, a maior parte do material adquirido por Santana e Silva estaria gasto, partido, obsoleto e deveria ser renovado. O aumento considerável de lenhas e carvão gastos com os fornos, o crescimento de doentes e o acréscimo de trabalho justificavam o desgaste do material usado50. A biblioteca, também, não foi descurada e novos livros técnicos foram acrescentados51. Diogo Caetano não estagnou ao serviço da botica e continuou a atualizar-se e a sorver conhecimentos, apoiando-se em novos manuais. Manteve-se, igualmente, nas boas graças dos irmãos dirigentes da casa, pretendeu assegurar o futuro profissional de um dos seus filhos, numa transmissão hereditária de funções, colocando-o, assim, na botica e tudo fazendo para que este lhe sucedesse52. Em maio de 1800, a situação de Diogo Caetano inverteu-se. Sem que nada o fizesse prever, foi expulso de todos os ofícios que ocupava na misericórdia por ordem régia. O deplorável estado da confraria, que havia sofrido um desfalque de capital de mais de 80 mil cruzados, imensas dívidas por pagar, vários legados por satisfazer, capelães sem receberem os pagamentos devidos, foram causas que pesaram na decisão. A mesa da 23. António de Almeida menciona que, em 1771, a freguesia de Penafiel, tinha 2 311 almas, para 1790 aponta 2 488 almas, em 1800 2 395 almas. Cf. ALMEIDA, António de – Descripção Historica e Topografica da cidade de Penafiel. Edição fac-similada da separata publicada nas Memórias da Academia Real de Ciências de Lisboa, tomo X, 2-ª parte, 1830. Penafiel: Biblioteca Municipal de Penafiel, 2006, p. 84-88. 49

A misericórdia começou a distribuir os sermões por várias ordens, muitas vezes, concedendo os sermões das festas da casa aos beneditinos de Paço de

Sousa. Tal facto criou animosidades com o convento dos Capuchos da cidade que pretendia o monopólio dos sermões e recorreram ao desembargo do paço, culminando em sanções por parte da mesa, que considerando-se ofendida, suspendeu as esmolas e o fornecimento gratuito de medicamentos. No entanto, tal como se cancelava a ajuda aos frades, logo se voltava a atribuir as ajudas, mal mudava o provedor e mesários, ficando os Capuchinhos por pouco tempo sem fornecimento de remédios. Desta forma, não foram estes pequenos interregnos no fornecimento de esmolas ou medicamentos que influenciaram o montante de mezinhas concedidas e a despesa da botica. Cf. AMPNF…, SCMP/A/B/A/001/01/LV04…, fl. 30, 37v. 50

Desta forma, Diogo Caetano adquiriu coadores, candeeiros e candeias, facas e colheres, tachos, espátulas, açucareiros, balsameiros, tenazes,

espremedores, um alambique de folha-de-flandres, um de barro, potes de vidro, latas de folha, balança, chocolateiras, almofarizes, panelas, jarras de flores, funis, redomas, raladores, caixões e um frontispício. 51

Dos livros acrescentados ao inventário de Santana e Silva, constavam em 1788, a farmacopeia dogmática, publicada em 1772, pelo boticário beneditino

João de Jesus Maria; os 3 tombos da Farmácia de Baume; vários dicionários de medicina franceses; um dicionário de francês, várias farmacopeias e outros livros não especificados, bem como, livros de botânica. Cf. AMPNF…, /SCMP/H/A/LV01…, fls. 20v.-22. 52

João Custódio Pereira de Magalhães foi admitido em julho de 1796, ao serviço da botica, para ajudar o seu pai a administra-la, recebendo, anualmente,

pelo seu trabalho, 40 mil réis. Cf. AMPNF…, SCMP/A/B/A/001/LV04…, fl. 58.

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irmandade foi demitida em bloco e procedeu-se a novas eleições, bem como, a tomada de contas, com fim a averiguar como havia desaparecido o referido montante. O boticário foi expulso por provisão régia e advertido para não se aproximar da santa casa ou tentar exercer qualquer tipo de influência no governo da misericórdia, sob pena de cadeia53. A botica foi fechada, bem como o cartório da misericórdia e as chaves entregues ao novo provedor. Convém referir que a mesa expulsa contava nas suas hostes com o médico António de Almeida, do partido da casa e da câmara e com o filho mais velho do boticário, Francisco Diogo Pereira de Magalhães, formado em leis, o que demonstra a proximidade que Diogo Caetano tinha com os órgãos dirigentes da confraria54. As movimentações dos irmãos das fileiras da confraria, com despedimentos coletivos, readmissões, queixas enviadas por fações contrárias ao monarca levam a que se coloque algumas dúvidas. Teria, de facto, existido gestão danosa por parte desta administração ou estaríamos perante lutas de partidos rivais pela ascensão ao poder55? No entanto, para o tema que aqui abordamos, interessa-nos entender, essencialmente, que tipo de boticário era Diogo Caetano e conhecer a forma como administrou a botica. Para tal, o inventário realizado à mesma, após o seu afastamento, em 1800, pode ser valioso. Este foi efetuado por ordem da mesa administrativa da confraria tendo sido nomeados dois boticários para avaliadores. A misericórdia nomeou para proceder à dita avaliação Luís Correia de Mesquita, confrade da misericórdia e boticário da localidade que já por latos anos havia sido fornecedor da mesma. Por sua vez, Diogo Caetano nomeou Alexandre Carneiro de Matos56. A referida avaliação mostrou que em 28 anos o valor dos remédios e dos ingredientes para os confecionar existentes em “stock” quase quadruplicou. Assim, os medicamentos e matérias-primas para os confecionar, valiam, em junho de 1800, 307 905 réis, tendo em conta a qualidade e quantidade dos mesmos. Apesar de termos que considerar a evolução da inflação, num quarto de século, esta valência da irmandade aumentou e progrediu consideravelmente. Nesta mesma altura, os referidos avaliadores procederam à recolha de todas as receitas que encontraram, para na falta de uma contabilidade organizada, tentarem verificar as contas da mesma. A desorganização das contas imperava, mostrando, nesse aspeto, que Diogo Caetano não era um bom gestor. As compras eram feitas com o rendimento da botica e com o valor das dívidas, que ia

53

Cf. AMPNF…, SCMP/A/B/B/004/LV02, Termos de posse e de eleição, 1792-1851, fls. 18v.-19; SCMP/A/A/003/LV01, Provisões, alvarás e regalias, 1614-

1852, fls. 77v.-79. 54

A mesa era composta pelo sargento José Urbano Pereira de Melo e Alvim, que ocupava o cargo de provedor, pelo escrivão, António de Mendonça de

Barbosa, dono da Quinta de Segade, em Bustelo. Os mesários de primeira condição eram Zeferino Teixeira Cabral, José de Araújo e Cunha, António de Azevedo, Francisco Diogo Pereira de Magalhães e Bernardo José de Azevedo e Melo. Os mesários de segunda condição eram António de Magalhães, Henrique Soares, Geraldo José Ribeiro, José Vieira, José Caetano Ferraz, Luís José Pinto. O médico António de Almeida ocupava o cargo de tesoureiro. Alguns destes indivíduos pertenciam à academia poética penafidelense e foram liberais convictos, tendo sido perseguidos em Penafiel no reinado de D. Miguel. 55

Sobre estas lutas veja-se FERNANDES, Paula Sofia Costa – O hospital da misericórdia de Penafiel…, p. 554-556.

56

Cf. AMPNF…, SCMP/A/B/A/001/LV04…, fl. 63v.

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cobrando quando conseguia57. Esta contabilidade não nos permitiu estudar a receita e despesa pois não foram detalhadas nenhuma das duas, não sendo possível averiguar quantos remédios foram vendidos, doados, fiados e cobrados. A contabilidade de Diogo Caetano Pereira de Magalhães era, ainda, mais confusa do que a contabilidade de Santana e Silva. Profissionais de saúde, ensaístas químicos engenhosos, conhecedores de ervas e químicos, contas e contabilidade não lhes diziam respeito. À medida que vendia os seus produtos, todo o dinheiro que entrava era gasto em mais matérias-primas e drogas para confecionar os remédios. Se num ano, a botica conseguia amealhar bastante dinheiro, mais este gastava nas compras das drogas. Nunca havia lucro, desvirtuando a ideia original que levou à criação de botica própria. A comparação do inventário da botica de 1772 ao de 180058 permitiu-nos observar a forma como estava organizada, a nível de materiais e bibliografia. Desta forma, foi notório o aumento considerável de xaropes, águas, químicos e pílulas que correspondiam à terapêutica mais utilizada na época. Não se verificou nenhuma inferioridade face às congéneres. O valor de todos os objetos, utensílios e mobiliário da botica, presentes na referida avaliação foi de 146 920 réis. Os livros passaram de 5 para 20 obras. A farmacopeia Lusitana, a Tubalense, a Baetanada e o Dioscórides desapareceram da biblioteca da botica para darem lugar a novas farmacopeias. Os finais da centúria de setecentos assistiram, a uma enorme proliferação de farmacopeia gerais e Diogo Caetano não ficou imune a tal facto, renovando os livros da casa59. A presença de novas farmacopeias e de algumas obras muito ligadas à farmácia química demonstram a abertura deste profissional aos avanços da ciência e, essencialmente, a adesão e procura em aumentar os seus conhecimentos, no que respeita à elaboração de medicamentos químicos. A biblioteca foi, assim, avaliada em 18 840 réis, valor muito significativo se comparado com outras boticas da altura. Este administrador era, assim, um homem letrado e culto, pelo menos na sua área, conhecedor da sua ciência e estudioso dos avanços farmacêuticos. Se a botica não se impunha economicamente, impunha-se efetivamente, pelo saber e conhecimentos das terapêuticas dos finais do século XVIII. O mobiliário deste estabelecimento e da outrora designada “cozinha” e que Diogo Caetano apelidava de “laboratório”, também sofreu alterações, tendo aumentado, embora continuasse um estabelecimento sem grandes luxos e ostentações. 57

Cf. AMPNF…, SCMP/H/A/LV01…, fl. 48-58.

58

AMPNF…, SCMP/H/A/LV01…, fls. 64-67.

59

As farmacopeias gerais de Londres, da Suécia, de Edimburgo estão, agora, presentes na botica da misericórdia, demonstrando a abertura deste

profissional aos avanços da ciência. Estas obras, apesar de não serem de cariz oficial em Portugal, ficaram muito famosas na Europa, a par de outras. A farmacopeia de Londres, segundo José Pedro de Sousa Dias foi das menos utilizadas no nosso país, apesar de se encontrar na botica da santa casa, neste período. Ainda de acordo com este autor, as obras mais comuns nas bibliotecas das boticas lisbonenses, para esta época, eram a farmacopeia Lusitana, a de D. Caetano e a Tubalense. Cf. DIAS, José Pedro de Sousa – Droguistas, boticários e segredistas…, p. 120-121. A primeira farmacopeia oficial portuguesa surge em 1794 e fazia, também, parte dos livros presentes na botica, tendo sido esta até 1835, a única farmacopeia oficial existente no nosso país. A par destas obras mais recentes encontramos, igualmente, neste inventário, a Pharmacopeia Ulyssiponense, a Portuense e a Dogmática. Os 3 tomos de Baume, 2 tomos de Galardo, a Chimica de Baume e Dom Fellix Palacios.

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No que respeita ao número de utensílios, estes sofreram um acrescento notável, possuindo uma gama muito completa de almofarizes de variados tamanhos e materiais. Os alambiques eram, agora, 4. Os açucareiros ascendem a 101, as panelas e tachos duplicaram, a louça de barro, potes, latas era significativa.

Gráfico 1 – Os utensílios da botica (1772, 1800)

101

120

84

N.º de utensílios

100 80

48

60

1772

40

1800

40 20

4

0

9

21

0

1

0 Alambiques

Açucareiros

Redomas

Chocolateiras

1800 1772

Panelas e tachos

Utensílios

Fonte: AMPNF…, SCMP/H/A/LV01…, fls. 19-22, 64-67.

Se na maior parte das boticas já estudadas por outros autores60, o mobiliário e a armação era luxuoso e representava uma elevada percentagem do valor total da farmácia, na botica da misericórdia era irrelevante e modesto, tendo sido orçamentado em 16 800 réis. Ou seja, um valor inferior aos livros existentes, o que denota a fraca importância dada ao aspeto do estabelecimento, em relação ao rigor científico e aos produtos. O valor da armação era de 3,7% do montante total da botica. No que diz respeito aos simples e compostos existentes na botica em 1800, o registo é muito rico, tendo sido avaliado o valor total dos mesmos em 307 905 réis. Importância alta se comparada com outras boticas, nomeadamente, as conventuais, no início da centúria de oitocentos e com o montante apresentado em 1772, de 87 847 réis.

60

Como refere Ricardo Pessa Oliveira o mobiliário e armação das boticas, na maior parte dos casos estudados, era luxuoso e representava uma elevada

percentagem do valor total da farmácia. Cf. OLIVEIRA, Ricardo Pessa - Para o estudo da saúde conventual no início do século XIX: as boticas. Asclepio. Revista de História de La Medicina y de la ciência. Vol. LXIII, n.º1. (enero-junio, 2011), p. 130.

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Bem sortida e variada, o património total desta valência ascendia a 456 985 réis, o que demonstra o seu apogeu e a importância na cidade de Penafiel. Se muitas vezes, estes estabelecimentos se exibiam através da ornamentação do interior, com balcões e prateleiras de madeira trabalhada e ornada, ou pinturas parietais de grande beleza, sendo esta uma forma de mostrar poderio, ostentação e capacidade económica dos seus proprietários, a botica gerida por Diogo Caetano demonstrava sobriedade, modéstia, simplicidade no adorno, para depois se salientar na modernidade e avanço técnico-científico farmacêutico.

Gráfico 2 – O Património da Botica (1800)

18.840

3.400

Medicamentos

Armação da botica

108.480

Objetos e utensilios 16.800 Biblioteca

307.905

Objetos de culto

Fonte: AMPNF…, SCMP/H/A/LV01…, fls. 23v.-24v.

O aumento do valor dos simples e compostos deveu-se à crescente oferta que agora Diogo Caetano possuía por comparação ao anterior administrador. O número de águas simples era, em 1800, o dobro das existentes em 177261. Por sua vez, o número de xaropes mais que triplicou, agora no rol elencado juntamente

61

Temos agora 30 espécies, mantendo-se algumas das águas anteriores, aumentou, significativamente, as águas de plantas e frutos, como a água de

canela, de sabugueiro, de hortelã, de alfazema, de ginja, a par de outras águas de composições químicas mais elaboradas, como a água antiescorbútica de Full, de espírito sifálico, de Hungria, eleciteria composta, entre outras. A água da Hungria, também, denominada por espírito de alecrim, era muito usada em casos de reumatismo. Cf. Pharmacopea Geral para o Reino, e Domínios de Portugal, publicada por ordem da Rainha Fidelíssima D. Maria I. Tomo I. Lisboa: na Régia Oficina Typográfica. 1794, p. 125, 155.

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com as infusões, vinagres, vinhos e tinturas62. No que respeita aos óleos medicinais, a oferta aumentou exponencialmente63. Mas, mais do que observarmos a variedade dos produtos, importa verificar que se as composições utilizando vegetais, elementos animais e especiarias se mantiveram, as composições mais elaboradas, recorrendo a minerais e vários compostos químicos, aumentaram consideravelmente, o que aliás seria de esperar numa botica, na viragem para o século XIX64. O que importa reter é que, em 28 anos apenas, o arsenal mais que quadruplicou, estando em consonância com a farmacopeia oficial portuguesa, editada em 1794. Seis anos após a sua edição, já era conhecida e utilizada em Penafiel. A botica da misericórdia de Penafiel apresentava-se, assim, em 1800, bem sortida e apetrechada, possuindo um vasto arsenal terapêutico, capaz de valer às necessidades médicas da santa casa, bem como, abastecer a cidade. Grande parte dos medicamentos apresentados na farmacopeia geral estava patente na botica em 1800. No entanto, tal facto, não evitou o afastamento de Diogo Caetano. Muito embora, quando em 1809 a irmandade necessitou de fazer uma avaliação à mesma, para apurar os danos e estragos causados pela tomada da cidade pelas hostes napoleónicas, não hesitou em chamar este boticário, na altura, já com 68 anos para proceder à inventariação e avaliação. O facto de a misericórdia requisitar o seu serviço, quando necessitava de um homem de confiança, mesmo após o seu despedimento, demonstra quer a familiaridade que tinha com ele, bem como a sua credibilidade, que aliás nunca saiu beliscada. Desta forma, tudo nos leva a crer que a sua destituição do cargo se deverá atribuir, essencialmente, a conflitos de interesses e inimizades. O próprio Diogo Caetano não cortou os laços com a instituição e veio prontamente proceder ao inventário solicitado, demonstrando que não existiam ressentimentos, tendo 13 dias depois, sucumbido a uma síncope. A partir da centúria de oitocentos, as boticas começaram a sofrer grandes alterações. O comerciante/alquimista que no seu laboratório, atrás da loja, conjugava fórmulas farmacêuticas em fogões e alambiques, estava agora perto do fim, pois o começo da indústria farmacêutica estava prestes a iniciar-se. As condições de produção dos remédios, isolamento de substâncias, temperaturas e utensílios necessários, eram cada vez mais exigentes e difíceis de conciliar para um só homem, que a par do trabalho de laboratório, tinha 62

Com um total de 31 produtos. Os xaropes são agora 18, ao passo que com Santana e Silva tínhamos somente 5. Surgia, no rol de 1800, o xarope de

marmelo, o de casca de laranja, o de pé de limões, o de nêsperas, o de alteia, também, designado por xarope malvaísco, o rosado simples, o de losna, entre outros. Juntamente com os xaropes surgem os meles, que no fundo, mais não eram do que xaropes, aos quais foi adicionado mel, em vez de açúcar. Tinha, assim, o mel rosado (feito com água, pétalas secas de rosas vermelhas e mel puro), oximel simples e mel elíptico. No que concerne aos vinagres medicinais, que consistiam em vinagres puros, feitos de vinho não destilado, aos quais eram adicionadas as substâncias cujas virtudes lhes deviam comunicar, e aos vinhos medicinais constituídos por medicamentos adicionados a vinho de preferência generoso, tínhamos poucas quantidades, pois estes medicamentos deveriam ser confecionados na hora de serem vendidos. 63

Comparando os dois inventários, os óleos passaram de 6 para 24. Destacamos, assim, o óleo de morcela, de açucena, de andorinha, violado, de lírio

roxo, de alcaparras, de amêndoas doces. 64

Assim, a par dos óleos de salva, alecrim, alambre, gergelim, os sais de cardo santo, salva, sangue-de-drago, crânio humano, lixo de lagarto, topázios,

resinas, rasuras de ponta de veado, ganham terreno os espíritos à base de nitro, de vitríolo, volátil aromático, trociscos rubiais, pós de Dover, pós sudoríferos, pós de Joane, as várias composições de antimónio, inúmeras composições à base de quina, entre outros. Alguns produtos são, no fundo, iguais aos de 1772, mas os nomes agora, alteraram-se e atualizaram-se, correspondendo à nomenclatura utilizada na farmacopeia oficial.

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que comprar produtos, colher plantas, secá-las, ferver, macerar, vender e cobrar. Até às primeiras décadas do século XIX as matérias-primas, poções elaboradas, odores que delas emanavam, panelas e potes a ferver em fornos, que raramente viam extinguir seu fogo, alambiques que destilavam, davam a este local, como às suas congéneres, um aspeto de espaço sacrossanto. Nele, se aproveitavam as essências e qualidades de cada produto, fornecido por Deus para salvar vidas humanas.

Nota Biográfica Responsável pelo arquivo municipal de Penafiel desde 1999, licenciada em Ciências Históricas, pós-graduada em Ciências Documentais, ramo Arquivo e doutorada em História da Idade Moderna pela Universidade do Minho, desde janeiro de 2016. Membro do centro de investigação da Universidade do Minho, Lab2-Pt. Possui vários artigos científicos publicados sobre história da assistência e história da saúde.

Referência bibliográfica deste artigo nestas atas: FERNANDES, Paula Sofia Costa - O arsenal terapêutico da botica da misericórdia de Penafiel, na segunda metade do século XVIII: da influência arábio-galénica aos compostos químicos. I SEMINÁRIO: PENAFIEL E PENAFIDELENSES NA HISTÓRIA.- Atas. Penafiel: Amigos do Arquivo de Penafiel, ISBN: 978-989-207084, 2016.

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