O artigo 12º do Codigo Penal e a respons

June 5, 2017 | Autor: P. S. Matta | Categoria: Criminal Law, Direito Penal, Portuguese Law, Direito Penal Econômico, Economic Crime
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O artigo 12º do Código Penal e a responsabilidade dos “Quadros” das “Instituições” (Ou a história de um “filho enjeitado” pela Doutrina penal portuguesa)

I - Introdução No artigo 12º do Código penal (CP) encontra-se a sede legal primeira do que consideramos ser um dos mais interessantes e pragmaticamente mais relevantes institutos penais. Referimo-nos às chamadas actuações em nome de outrem1. Este preceito não tem qualquer antecedente no CP de 1886, sendo outrossim certo que na legislação avulsa vigente até 1982 não se encontrava uma regulamentação que lhe fosse equivalente2/3. Talvez por isso seja quase virgem o terreno da análise dogmática da respectiva regulamentação, inexistindo publicadas quaisquer monografias sobre o tema, ou sequer um modesto artigo de revista (que seja do nosso conhecimento), que do mesmo se ocupe prioritariamente. Volvidos que são dezoito anos sobre a entrada em vigor do actual CP, continua a inexistir publicado

1 É o seguinte o teor actual do art.º 12º CP: "1. É punível quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, mesmo quando o respectivo tipo de c rime exija: a) determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; ou b) que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado. 2. A ineficácia do acto que serve de fundamento à representação não impede a aplicação do disposto no número anterior". 2 Desde 1982 surgem vários diplomas legais a consagrar cláusulas de actuações em nome de outrem, todas elas mantendo uma notória aproximação com a fórmula do art.º 12º CP. Temos assim, considerando apenas alguns exemplos colhidos no Direito vigente: D.-l. nº 28/84, de 20 de Janeiro, art.º 2º: "1. Quem agir voluntariamente, como órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituídas, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime ou de contra-ordenação exijam: a) determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado. 2. O disposto no número anterior para os casos de representação vale ainda que seja ineficaz o act o jurídico fonte dos respectivos poderes. 3. As sociedades civis e comerciais e qualquer das outras entidades referidas no nº 1 respondem solidariamente, nos termos da lei civil, pelo pagamento das multas, coimas, indemnizações e outras prestações em qu e forem condenados os agentes das infracções previstas no presente diploma, nos termos do número anterior"; D.-l. nº 376-A/89, de 25 de Outubro, art.º 6º: "1. É punível quem age voluntariamente como titular dos órgãos de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, mesmo quando o respectivo tipo de crime exija: a) determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) que o agente pratique o facto no seu p róprio interesse e o representante actue no interesse do representado. 2. A ineficácia do acto que serve de fundamento à representação não impede a aplicação do disposto no número anterior"; D.-l. nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, art.º 6º: "1. Quem agir voluntariamente, como órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime ou de contra ordenação exijam: a) determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado. 2. O disposto no número anterior vale ai nda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes. 3. As sociedades civis e comerciais e qualquer das outras entidades referidas no nº 1 respondem solidariamente, nos termos da lei civil, pelo pagamento das multas ou coimas em que forem condena dos os agentes das infracções previstas no presente Regime Jurídico nos termos do número anterior". 3 Refira-se contudo, a titulo de exemplo, que os art.ºs 2º e 3º do D.-l. nº 31.280, de 22 de Maio de 1941, estabeleciam uma figura que aparentemente se poderia confundir com uma actuação em nome de outrem. Aqueles preceitos, no que agora importa rezavam assim: art.º 2º - "Os gerentes, directores ou administradores responsáveis pelo acto da emprêsa partonal que despedir, suspender ou castigar qualquer empregado (...) serão punidos com prisão correccional até um ano"; art.º 3º "A emprêsa patronal que se opuser à propaganda (...) será punida com a pena de multa não inferior a 1.000$00 nem superior a 20.000$00, e os seus gerentes, direct ores ou administradores serão punidos, quando a êles pertença a responsabilidade de tais factos, com a multa de 500$00 a 10.000$00" Nenhuma destas disposições, porém, configura caso de verdadeira actuação em nome de outrem. Como resulta das disposições citadas, a cominação legal (o dever imposto em virtude de cujo incumprimento surgia a pena), dirigia-se directamente aos Quadros das ditas Instituições. Não eram pois situações em que fosse necessária a intervenção de qualquer norma de adscrição para justificar o dever dos referidos “dirigentes”. Apreciação esta, todavia, que resultará preceptível apenas a final do presente escrito.

qualquer estudo cujo objecto analítico específico integre as normas constantes do identificado art.º 12º CP. Obviamente poderá pensar-se que tal desinteresse doutrinal resulta da clareza, irrelevância ou mesmo estatuto diminuido da regulamentação legal em causa… assim não é, todavia, como se espera virá a resultar das linhas seguintes. Propomo-nos, pois -na sequência de um estudo de dimensões e propósito distintos que anteriormente efectuámos 4

-, a uma empresa difícil, e talvez mesmo pretensiosa:

trazer para o palco da discussão científica o regime das chamadas actuações penais em nome de outrem 5! Para atingir tal resultado, iniciaremos por uma breve apresentação dos antecedentes doutrinais da figura, passaremos em revista os trabalhos preparatórios do Código Penal, e terminaremos com uma análise sumária do âmbito, função e legitimidade do instituto, mas não sem antes esclarecer o sentido da terminologia utilizada para identificar a figura em análise.

4 Paulo Saragoça da Matta, “A responsabilidade penal dos ‘Quadros’ das ‘Instituições no domínio da Criminalidade Económica – uma reflexão à luz do artigo 12º do Código Penal português”, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 30/06/1997 e objecto de provas públicas em 30/06/1998. Dado não se encontrar publicada, poderá consultar-se junto da Biblioteca da FDUL. 5A bibliografia estrangeira sobre este tema é, naturalmente, abundantíssima. Sem preocupação de exaustividade, enunciam-se, os seguintes: K. Binz, Nochmals: Vertreterhaftung bei Bankrotthandlungen einer GmbH, in NJW, 1978, pp. 802 e ss; Blauth, "Handeln für einen anderen" nach geltendem und Kommendem Strafrecht, Carl Winter Universitätsverlag, Heidelberg, 1968; H.P. Bochmann, Teilnahme und Handeln für einen anderen, Diss. Bonn, 1963; P. Bockelmann, Die moderne Entwicklung der Begriffe Täterschaft un d Teilnahme im Strafrecht, in Deutsche Beiträge zum VII. Internationalen Strafrechtskongress in Athen vom 26. September bis 2. Oktober 1957, Sonderheft der ZStW, Walter de Gruyter, Berlin, 1957, pp. 46 e ss; H.-J. Bruns, Können Organe juristischer Personen, die im Interesse ihrer Körperschaften Rechtsgüter Dritter verletzten, bestraft werden? Zugleich ein Beitrag zur Methodik der Rechtsanwendung im Strafrecht und zur strafrechtlichen Beurteilung der Einmanngesellschaft, in Strafrechtliche Abhandlungen, Heft 295, reimp. ed. Breslau/1931, coord. Keip/Yushodo, Frankfurt/Tokio, 1977; H.-J. Bruns, Die Organeigenschaft des Täters als Strafhinderungsgrund beim Handelnzungungsten der Körperschaft, in DJ, 1934, pp. 1589 e ss; H.-J. Bruns, Über die Organ- und Vertreterhaftung im Strafrecht. Ein Beitrag zur Strafrechtsreform, in JZ, 1954, pp. 13 e ss; H.-J. Bruns, Faktische Betrachtungsweise und Organhaftung. Zur Regelung des "Handelns für einen anderen" im Entwurf des Grossen Strafrechtkommission, in JZ, 1958, p. 461; H.-J. Bruns, Grundprobleme der strafrechtlichen Organ- und Vertreterhaftung (§14 StGB, §9 OWiG). Zum gegenwärtigen Stand von Lehre und Rechtsprechung, in GA, 1982, pp. 1 e ss; H.-J. Bruns, Die sog. "tatsächliche Betrachtungsweise im Strafrecht, in JR, 1984, p. 133; F. Muñoz Conde, Recensión a la obra de P. Blauth, "Handeln für einen anderen" nach geltendem und Kommendem Strafrecht, Carl Winter Universitätsverlag, Heidelberg, 1968, in ADPCP, 1970, pp. 183 e ss; F. Muñoz Conde, La responsabilidad penal de los órganos de las personas jurídicas en el ámbito de las insolvencias punibles, in CPC, 1977, nº 3, pp. 151 e ss; B. Fernández, Derecho penal económico aplicado a la actividad empresarial, Civitas, Madrid, 1978; W. Fleischer, Vertreterhaftung bei Bankrotthandlungen einer GmbH, in NJW, 1978, pp. 96 e s; Gallas, Der dogmatische Teil des Alternativenentwurfs, in ZStW, 80 (1968), p. 1; T. Lenckner, (comentário ao) § 14 StGB, in Strafgesetzbuch Kommentar - Schönke/Schröder/Lenckner/ Cramer/Eser/Stree, 24ª Ed., C.H.Beck'sche Verlagsbuchhandlung, München, 1991; G. Martín, El actuar en lugar de otro en derecho penal, I - Teoria General, Prensas Universitarias de Zaragoza, Zaragoça, 1985; G. Martín, Responsabilidad de directivos, órgano y representante de una persona jurídica por delitos especiales, Ed. Bosch, Barcelona, 1985; Grau, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit des für einen anderen handelnden Täters. Ein gesetzgeberisches Problem, in DJ, 1935, pp. 740 e ss; Marxen, Die strafrechtliche Organ- und Vertreterhaftung, in JZ, 1988, p. 286; E. Octavio de Toledo y Ubieto, Las actuaciones en nombre de otro, in ADPCP, 1984, pp. 23 e ss; Ribka, Strafbares Handeln als Organ einer Körperschaft, Diss., München, 1950; B. Rimmelspacher, Strafrechtliche Organ-, Vertreter- und Verwalterhaftung, erörtet am Beispiel der Vollstreckungsvereitelung, in JZ, 1967, pp. 472 e ss e 700 e ss; C. Roxin, (comentário ao) § 14 StGB, in Strafgesetzbuch - Leipziger Kommentar - Jänke/Laufhütte/Odersky , 11ª Ed., Walter de Gruyter, Berlin - New York; K. Schäffer, Referat zum Thema "Handeln für einen anderen"- Organhaftung, in Niederschriften über die Sitzungen der Grossen Strafrechtskommission, tomo IV, Allg. T., Bonn, 1958, pp. 545 e ss; R. Schmitt, Die strafrechtliche Organ- und Vertreterhaftung. Ein Stellungnahme zu dem Aufsatz von Rimmelspacher, in JZ, 1967, pp. 698 e ss; R. Schmitt, Nochmals: Die strafrechtliche Organ- und Vertreterhaftung, in JZ, 1968, pp. 123 e ss; B. Schünemann, Unternehmenskriminalität und Strafrecht. Ein Untersuchung der Verantwortlichkeit der Unternehmen und iht er Führungskräfte nach geltendem und geplantem Straf- und Ordnungswidrigkeitenrecht, Carl Heymanns Verlag, Köln-Berlin-BonnMünchen, 1979; Schünemann, Strafrechtsdogmatische und kriminalpolitische Grundfragen der Unternehmens-kriminalität, in Wistra, 1982, p. 41; G. Stratenwerth, Qualifizierte Veruntreuung und Organhaftung, in SchZStr., 1979, pp. 90 e ss; K. Tiedemann, Literaturbericht Nebenstrafrecht, in ZStW, 83 (1971), p. 792; A. Wiesener, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit von Stellvertretern und Organen, Athenäum Verlag, Frankfurt, 1971.

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II – A questão terminológica No que às actuações em nome de outrem concerne, a chamada “questão terminológica” apresenta uma profunda relevância substantiva, e não de mero "perfeccionismo linguístico ou literário"6, termos em que se impõe sumária referência à mesma. A primeira denominação historicamente utilizada para identificar o fenómeno falava em strafrechtliche Organhaftung ou strafrechtliche Vertreterhaftung7. Com tal denominação cingia-se o âmbito problemático do instituto em análise às actuações susceptíveis de gerar responsabilidade penal levadas a cabo por órgãos ou representantes de Instituições8. Mas, como afirma Muñoz Conde, "a responsabilidade penal dos órgãos que actuam em nome ou no interesse das pessoas jurídicas não é mais que uma parte de um problema mais geral e igualmente importante: a responsabilidade de todos aqueles representantes legais ou voluntários de pessoas naturais ou jurídicas"9. Ora, por aceitar tal observação, a doutrina tentou encontrar uma expressão que abarcasse todos os fenómenos subsumíveis a tal categoria 10, com o que nasceram outras denominações. Grau deu início à utilização da expressão Das Handeln für einen anderen11, a qual veio a obter primeira consagração legal no § 50.a do StGB alemão, e consta ainda hoje do § 14 StGB 12. Ou seja, não apenas a responsabilidade penal dos órgãos e dos representantes, mas todas as actuações para outrem deveriam ser compreendidas. Mas a doutrina continuou a usar de modo mais ou menos combinado ambas as denominações vistas13.

6 G. Martín, El actuar en lugar de otro ..., I, cit., p. 165. 7 Usando estas expressões surgem: Bruns, Können die Organe juristischer Personen…, cit.; Bruns, Die Organeigenschaft des Täters… cit. ; Bruns, Über die Organ- und Vertreterhaftung im Strafrecht, cit.; Ribka, Strafbares Handeln…, cit.; Rimmelspacher, Strafrechtliche Organ- Vertreter- und Verwalterhaftung, cit.; Schmitt, Die strafrechtliche Organ- und Vertreterhaftung, cit.; Wiesener, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit…, cit.; Muñoz Conde, La responsabilidad penal de los órganos…, cit.; Binz, Nochmals: Vertreterhaftung…, cit.. Gracia Martín, El actuar en lugar de otro ..., I, cit., p. 166, n. 4, indica outros autores que utilizam esta expressão ainda actualmente. Como bem salienta este autor, alguma doutrina mantém esta designação por trabalhar sobre textos legais que apenas tratam deste aspecto do problema das actuações em nome de outrem (G.Martín, idem, ibidem e n. 5). 8 Instituição significa aqui coisa instituida, realidade que resulta de um determinado acto fundacional, disciplinador, organizador. Ou seja, pretende com o termo Instituição referir-se o conjunto de entidades que tradicionalmente têm sido designadas por entes ou pessoas colectivas, pessoas morais, pessoas jurídicas, corporações, etc... Com a utilização deste substantivo feminino pretende pois abranger-se um grupo heterogéneo de estruturas organizacionais, de entes disciplinados e estabelecidos que representam, no nosso sistema jurídico e nos demais sistemas jurídicos que nos são próximos, os conglomerados pessoais e patrimoniais que juridicamente actuam, personificados ou não. Maior desenvolvimento e fundamentação pode encontrar-se no nosso “A responsabilidade penal dos ‘Quadros’ das ‘Instituições’…”, cit., pp. 39 a 51. 9 Muñoz Conde, La responsabilidad penal de los órganos…, cit., p. 171. 10 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., cit., p. 169. 11 Grau, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit…, in DJ, 1935, pp 740 e ss. 12 De sublinhar é que tal modificação de denominação surge motivada pela tomada de consciência de que o problema não respeita apenas à actuação desenvolvida pelos órgãos das Instituições, abrangendo também outros representantes, e, bem assim, os fenómenos da representação legal e voluntária de pessoas físicas e os casos em que tal representação não se encontra juridicamente formalizada. 13 Assim Schäffer, Referat..., cit., que utiliza a combinação "Handeln für einen anderen" – “Organhaftung”. Já Bochmann, Teilnahme..., cit., e Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., utilizam expressamente a denominação empregue pela legislação alemã.

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Na doutrina espanhola a expressão utilizada normalmente é a de actuaciones en nombre de otro14, encontrando-se também a expressão actuación en nombre, interés o representación de otro. Recentemente surge a expressão actuaciones en lugar de otro, dogmaticamente preferível15. Com efeito, merece crítica a utilização da expressão actuação em nome de outrem, desde logo porque é irrelevante para o Direito Penal o conceito civilista de representação (outrotanto o sendo a distinção entre produção de efeitos na esfera do agente ou do representado),

por outro lado porque tudo nesta sede se centra

em torno do valor ou desvalor das acções. Ademais, é comum surgirem actuações em nome próprio mas no interesse de outrem, e que devem ser abrangidas por este instituto, termos em que a representação que aqui interessa só pode ser outra que não a utilizada pelos civilistas, nos termos e para os fins próprios de tal área do direito. Acresce ainda o argumento ad absurdum convocado por autores que lembram que não é admissível sustentar a prática de crimes em nome de outrem16. E o mesmo vale para as expressões actuação em representação de outrem e actuações no interesse de outrem. É que para a estrutura típica deste fenómeno é totalmente desnecessário apurar o interesse visado pelo agente ou por terceiro. Não merece, pois, acolhimento a posição defendida por alguma jurisprudência alemã que em alguns dos seus arestos exigiu em concreto a presença de um interesse do representado. É que o actuar no interesse de outrem não é elemento essencial típico do instituto, o qual, funcional e teleologicamente, deve compreender os factos que o agente realize com vista a prosseguir um interesse próprio, do representado ou até de um terceiro alheio à relação17.

Segundo informa G. Martín, El actuar en lugar de otro ..., I, cit., p. 167, n. 7, Sainz Cantero utiliza a expressão alemã traduzida literalmente, actuar por otro, na obra En torno a los delitos contra la libertad y seguridad en el trabajo, Publicaciones de la Escuela Social, Murcia, 1972, pp. 27 e s. 14 Assim: Bajo Fernández, Derecho penal económico, cit., passim; Octávio de Toledo, Las actuaciones en nombre de otro..., cit.; Quintero Olivares, Derecho penal - parte general, Reed. 2ª ed., Marcial Pons, Madrid, 1992, utiliza a expressão "actuar en nombre de otro" no título que consta da p. 569, vindo a usar, a pp. 574 e ss, a expressão "actuar por otro"; Mir Puig, Derecho penal - parte general, 4ª ed./1ª reimp., s/editor, Barcelona, 1996, pp. 172 e ss, usa a expressão "actuar por otro", mas não deixa de referir a "actuación en nombre de otro", aqui remetendo para G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit.; Rodrigues Devesa e Serrano Gomes, Derecho penal español - parte general, 18ª ed., Dykinson, Madrid, 1995, p. 394; Quintero Olivares, Curso de Derecho penal - parte general, 1ª ed., Cedecs derecho penal, Barcelona, 1996, p. 503 e s, utiliza a expressão "actuar en nombre de otro"; Cobo del Rosal e Vives Antón, Derecho penal - parte general, 3ª ed., Tirant lo blanch, Valencia, 1991, p. 278 e s, usam também a expressão "actuaciones en nombre de otro". 15 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., p. 194; pelos motivos acolhidos e acompanhados no nosso “A responsabilidade penal dos quadros das instituições…”, cit.. 16G. Martín, idem, pp. 183 a 191, afirma: "o Direito penal não acolhe nas suas estruturas típicas o instituto técnico-jurídico da representação (...) não é possível afirmar que possam cometer-se crimes em representação de outrem”. Diz ainda que se é certo que na maioria dos casos se tratará em concreto de actuações de um representante, em nome ou no interesse de outrem, não menos verdadeiro é que "la actuación representativa, la ajenidad del interés y el agere nomine alieno, cuando efectivamente concurran, son circunstan cias que, en todo caso y sin excepción, quedan fuera de la estrutura de los tipos del Derecho penal. Estas cuestiones podrá n tener trascendencia para la responsabilidad civil derivada del delito pero son por completo irrelevantes para fundamentar y estruct urar la responsabilidad penal" (idem, p. 194). 17 Transcreve-se, dada a relevância desta crítica, a passagem em causa de Gracia Martín: "A realização de uma acção, cuja tipicidade depende da concorrência no autor de um elemento especial da autoria, por um sujeito que actua em lugar de outro mas no intere sse próprio deve ficar compreendida pelo conceito e pela cláusula das actuações em lugar de outrem. A tendência subjectiva de realizar a acção típica em benefício ou interesse do sujeito em cujo lugar se actua -mas só no interesse deste e não no de qualquer outro- é essencial unicamente no âmbito dos chamados crimes delimitados por uma tendência interior egoista, por definição. Aqui a actuação em benefício de um terceiro seria totalmente atípica. Pelo contrário, a actuação em benefício próprio (egoísta) seria já dire ctamente típica sem mediação da cláusula das actuações em lugar de outrem. Nos demais crimes em que cabe uma actuação em lugar de outrem no sentido do direito penal, a tendência do sujeito que actua é por completo irrelevante. Se assim não fosse, a cláusula das actuações

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Daí a mudança de denominação surgida já na década de oitenta do século XX, com a qual se tentou adequar a designação da figura à estrutura do próprio instituto em causa, estrutura esta que corresponde à ideia de An eines anderen Stelle stehens, i.e., a estar em lugar de outrem18. Por tudo isto se pode desde já apresentar uma primeira crítica ao legislador de 1982, o que todavia se deixa apenas apontado, com a advertência de que a utilização corrente da expressão consagrada no art.º 12º CP –actuações em nome de outrem–, não implica qualquer aceitação do seu acerto ou bondade, mas mera tentativa de adequar este texto às palavras da Lei. III – O nascimento do instituto das actuações em lugar de outrem No já longíquo ano de 1874, foi o preussisches Obertribunal chamado a ajuizar do acerto de uma decisão penal de primeira instância pela qual fora condenado um membro do Conselho de Administração de uma sociedade pela prática de um crime de falência, previsto e punido no § 283 Abs. 2 RstGB19 então em vigor. O Tribunal a quo fundamentara o aresto condenatório num entendimento lato que fez do conceito de devedor, a ele subsumindo o referido Administrador da sociedade, argumentando, sensivelmente, nos moldes seguintes: sendo a sociedade “devedora” e sendo o arguido representante legal da mesma, então também ele era devedor. Ora, deparando o Tribunal ad quem com a exigência típica de que a conduta descrita fosse levada a cabo pelo devedor e constatando que o arguido, sendo membro de um órgão da sociedade devedora, não era ele próprio devedor -apesar de actuar em representação desta-, inverteu a condenação anteriormente pronunciada, absolvendo o arguido20. Dito de outro modo: o crime em causa, de falência, só podia ser cometido por quem fosse devedor, e esta qualidade respeitava à Sociedade, não aos seus órgãos nem aos respectivos titulares; que o mesmo é dizer que estes não integravam o círculo de autores que pelo tipo era delimitado. Todavia, nem o inquestionável acerto dogmático do decidido pelo preussisches Obertribunal impediu o

em lugar de outrem provocaria uma modificação inaceitável dos tipos. Estenderia o tipo subjectivo de muitos crimes no sentido de introduzir, com carácter geral, um elemento subjectivo da ilicitude consistente no 'actuar no interesse de outrem'. Isto é dogmaticamente insustentável, pois (...), os tipos dos crimes especiais não exigem que o autor idóneo actue para si mesmo. Que importa que o devedor sonegue os seus bens em benefício próprio ou alheio, por exemplo de um seu herdeiro? A cláusula das actuações em lugar de outrem supõe uma extensão da autoria no crimes especiais, e por isso, mais concretamente, uma extensão do tipo objectivo. Da extensão de um elemento da autoria não se pode inferir, por consequência, uma tendência subjectiva delimit ada por um determinado interesse. (...) a exigência de uma tendência de actuar no interesse do representado geraria uma lacuna de punibilidade ao deixar impunes os actos ultra vires do sujeito que actua em lugar de outrem" (G. Martín, idem, pp. 192-193). 18 Ou seja, alude-se a uma substituição ou recolocação de sujeitos, uma Ersetzung, não a uma representação em sentido técnico, com o que se adequaria o nomen iuris da figura aos fundamentos do instituto e seria neutra. 19 Este § 283.2 RStGB viria a ser substituído pelo § 240.3 da Konkursordnung , que estatuia o seguinte: "Os devedores que tenham suspendido o cumprimento das suas obrigações ou sobre cujo património se tenha aberto um procedimento concursal, serão punido s, pela falência simples, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa, se: (3): não mantinham regularmente os livros comerciais a que estavam obrigados ou se os mantinham em estado de tal modo desordenado que não proporcionam uma informação da sua situação patrimonial". 20Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., p. 17, e Bochmann, Teilnahme..., cit., p. 12, dão nota deste aresto. Igual apresentação é feita por G. Martín, El actuar en lugar de otro ..., I, cit., pp. 3 e 4, que fornece a seguinte identificação do aludido aresto: Acórdão do Supremo Tribunal prussiano de 9 de Novembro de 1874, in GA, tomo 23, pp. 31 e ss.

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surgimento de uma onda de reacções negativas, posto que se mostrava tal decisão como totalmente insatisfatória do ponto de vista da justiça material e das necessidades políticocriminais"21. À função preventiva do sistema penal e à consciência social repugnava deixar impune o agente do comportamento que materialmente conduziu à falência, assim conseguindo atingir o resultado normativamente desvalorado22 pelo facto de o mesmo não integrar o círculo de autores considerados pelo tipo como idóneos para o seu preenchimento. Em resposta, logo o legislador se apressou a “corrigir o lapso” através de uma nova tipificação do crime de falência, a Konkursordnung de 1877, a qual passou a prever, no respectivo § 214, que os tipos falimentares eram aplicáveis aos membros dos Conselhos de Administração e aos sócios liquidadores de diversas sociedades, bastando, para tanto, que tivessem praticado os actos tipicamente descritos nessa referida qualidade. Outra decisão jurisprudencial commumente referida pela doutrina como constituindo um marco na história das actuações em nome de outrem, é o aresto do Reichsgericht de 3 de Maio de 190023. Na base de tal decisão encontrava-se o § 151 da Gewerbeordnung então vigente24, mercê do qual foi condenado o representante de uma Instituição com o argumento de que o mesmo, em nome desta, tem a obrigação de cumprir os deveres que sobre ela recaiam, tudo por razões de interesse público. Nessa conformidade, se a violação de certos deveres era sancionada penalmente e se a Instituição era insusceptível de suportar uma condenação, deveria o representante, enquanto tal, responder nos termos gerais, pois entendia-se ser ele o destinatário dos deveres impostos. Estas as duas decisões jurisprudenciais habitualmente referidas pela doutrina como marcos do nascimento do problema em análise25. Ora, entre 1874 e 1900, e desde então até hoje, avultada foi a produção jurisprudencial e doutrinal sobre a questão, o que levou ao apuro técnico que hoje é –lá fora–

timbre do instituto26.

Mas a apresentação feita permite-nos ainda compreender as razões que levaram ao surgimento do instituto. Tudo se resumiu à necessidade prática de resolver um problema equacionável nas três seguintes premissas: as Instituições serem insusceptíveis de responsabilidade criminal; haver tipos

21Gracia Martín, El actuar en lugar de otro ..., I, cit., p. 4 22 Blauth, "Handeln für einen anderen" ..., cit., pp. 9 e s. 23 Bochmann, Teilnahme..., cit., pp. 14 e ss. 24 Transcreve-se aqui, para melhor compreensão, o teor desta norma na tradução castelhana apresentada por G. Martín, idem, p. 5, n. 8 :"Si en el ejercicio de la industria se infringen normas de policía por personas que han sido encargadas por el industrial de l a dirección de la empresa o de una parte de la misma, o de la inspección, la pena alcanzará a aquéllas personas". Sobre esta norma cfr. Wiesener, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., pp. 151 e ss. 25 Karl Schäffer, Referat..., cit., p. 547 assim o afirma, outro tanto o fazendo G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., pp. 3 e ss. 26 Apuraram-se questões como a da correcta terminologia a utilizar para identificar a figura, a da necessidade técnica de os Códigos penais a preverem, a questão da opção entre uma cláusula geral sobre actuações em nome de outrem e cláusulas inseridas casuisticamente nos tipos que dela carecessem, etc.

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penais que só podem considerar-se preenchidos pelas Instituições e não por quem as “conduz”; os indivíduos que formam e expressam a vontade das Instituições, e que por elas actuam, materialmente desenvolverem comportamentos que se subsumem aos tipos penais de que são destinatárias –prima facie– as próprias Instituições. E foi tal circunstancialismo que impôs fosse criado um mecanismo técnico-jurídico que autorizasse imputar a responsabilidade pela prática de tais infracções aos representantes das Instituições, não obstante eles ao agirem o fazerem em representação destas e as qualidades exigidas pelo tipo para o autor da conduta punível não se verificarem no agente do comportamento mas nas Instituições representadas. IV – A evolução dogmática do instituto das actuações em lugar de outrem Do atrás exposto resulta que, inicialmente, a problemática em análise foi tratada na perspectiva de que consubstanciava um caso de dispersão ou dissociação pessoal dos elementos típicos na execução do facto criminoso. Ou seja, a totalidade dos elementos típicos verificava-se em mais do que um indivíduo, repartindo-se e não se comunicando mutuamente27. Com tal enquadramento abrangia-se com clareza o caso da actuação dos Quadros28 em nome das Instituições. Todavia, como ficou dito, as actuações em nome de outrem têm um âmbito mais lato do que o da actuação dos Quadros das Instituições. Antes, porém, cumpre apresentar um panorama de alguns dos enquadramentos dogmáticos que procuraram compreender, fundamentar e explicar esta figura. IV.1 – A Tese da Dissociação Dada a forma como a questão surgiu, de início as actuações em nome de outrem eram vistas como resultado directo da incapacidade delitual de alguns sujeitos, maxime das Instituições: um determinado sujeito, que materialmente actuava, realizando com a sua conduta a descrição típica do crime, não possuia os elementos usados pelo tipo para circunscrever o círculo dos respectivos autores. Em face disto, e mercê do princípio da legalidade -maxime na vertente da tipicidade-, tal sujeito não poderia ser condenado pela prática do crime. Por outro lado, o sujeito que possuia tais elementos típicos da autoria, porque incapaz, não se podia considerar como tendo actuado. Aqui faltavam pressupostos da responsabilização criminal, quer se tratasse de pessoas incapazes quer se tratasse de Instituições29. Ou seja, os casos subsumíveis à categoria das actuações em nome de outrem apresentavam-se como situação lacunar, resultante da verificação, na prática do crime, de uma dispersão dos

27 Assim Bruns, Über die Organ- und Vertreterhaftung..., cit., pp. 12 e ss. 28 Quadros são, para os nossos propósitos, os membros das ditas estruturas organizacionais, o conjunto dos titulares dos órgãos desses entes, os seus funcionários e agentes, bem assim como os seus representantes, mesmo que não inseridos formalmente na respectiva orgânica. Em suma, são Quadros os seres humanos que vitalizam e tornam patente, jurídica e materialmente, tais entidades que atrás crismámos de Instituições. 29 Quanto às instituições aduzia-se ainda como argumento a impossibilidade de punição.

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elementos do tipo por mais do que um sujeito30, dispersão essa insusceptível de ser evitada, pois os elementos verificados em cada um dos sujeitos não se comunicavam reciprocamente. A questão jus-penal que se punha assentava, pois, na falta de um determinado elemento típico no agente31. I.e., mercê do condicionamento histórico, a doutrina tradicional via, e ainda vê 32, o problema como sendo uma consequência da irresponsabilidade penal ou da não actuação daquele em nome de quem se actua, maxime da irresponsabilidade penal das Instituições33. Por isso é correcto, ainda hoje, afirmar que a doutrina maioritária encontra como núcleo essencial da problemática das actuações em nome de outrem a dissociação formal de certos elementos do tipo entre duas pessoas34, um representante e um representado. Ademais, os textos legislativos em que se consagram as cláusulas respectivas também assentam, mais ou menos fielmente, na fórmula da dissociação35. Assim, para a doutrina da fórmula da dissociação, surge uma actuação em nome de outrem penalmente relevante36 quando se dá uma "dispersão pessoal de 'determinados' elementos típicos"37: alguém age (realiza materialmente uma acção que lesa ou faz perigar um bem jurídico), produzindo o resultado que a norma penal visava evitar, mas esse agente carece de certos elementos exigidos pelo tipo para circunscrever o núcleo de autores possíveis de tal comportamento. Assim sendo, tal comportamento materialmente existente não poderá ser subsumido ao tipo, o que resulta chocante se se ponderar que do ponto de vista do ilícito material praticado tal acto é claramente merecedor de pena. Paralelamente, esses elementos típicos de que o agente carece verificam-se num outro sujeito, que com o agente mantém uma relação “de representação”.

30 Assim Bruns, Können Organe juristischer Personen..., cit., pp. 12 e 15; Blauth, "Handeln für einen anderen"…, cit., p. 12 (quanto à existência de lacuna); Grau, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., p. 740 (reduzindo o problema aos casos de individuos penalmente irresponsáveis); Schönke/Schröder/Lenckner, Strafgesetzbuch - Kommentar, cit., p. 206. 31 Ou seja, era campo de eleição o dos crimes específicos próprios, dada a eventualidade de ao agente faltarem elementos especiais da autoria. 32A tese da dissociação foi sobretudo defendida, e apoiada a sua consagração legal, por Bruns, Grundprobleme..., cit., p. 36; e por Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., p. 9 e 158 e ss. 33 E não deixe de se notar que mesmo a doutrina que assume posições críticas a este modo de conceber dogmaticamente as actuações em nome de outrem não deixa de continuar a afirmar que é no domínio das Instituições que se põem mais frequente e flagrantemente os problemas que desta figura emergem. 34 Defensores da teoria da delimitação das actuações em nome de outrem pelo critério da dispersão dos elementos típicos entre duas pessoas vinculadas por uma relação representativa são, entre outros, Grau, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., p. 740; Fleischer, Vertreterhaftung bei Bankrotthandlungen..., cit., p. 96; Rudolf Schmitt, Die strafrechtliche Organ- und Vertreterhaftung..., cit., p. 698; Schäffer, Referat..., cit., pp. 545-546. G. Martín, El actuar en lugar de otro ..., cit., p. 71, elenca também os seguintes autores: Göhler/BuddendieK/Lenzen, Lexikon des Nebenstrafrecht, voz “Handeln für einen anderen”, p.117; Rotberg, Gesetz über Ordnungswidrigkeiten, 4ª ed., p. 87; Rebmann/Roth/Herrmann, Gesetz über Ordnungswidrigkeiten, I, p. 3; Stogel, Das neue Strafrecht, I, Strafgesetzbuch, p. 120; Dreher/Tröndle, Strafgesetzbuch, 41ªed., p. 77; Lenkner, em Schönke/Schröder, 21ª ed., p. 175. Na doutrina Espanhola temos Bajo Fernández, El derecho penal económico. Un estudio de Derecho positivo español, in ADPCP, 1973, p. 129; e, do mesmo autor, Derecho penal económico..., cit., pp. 119-120. 35 Assim o § 14 StGB e o § 9 OWiG, que falam em elementos especiais pessoais entre dois individuos; e o art. 15-bis do Código penal espanhol revogado, quando falava em condições, qualidades, relações. 36 Penalmente relevante, antes de mais, porque dogmaticamente problemática; em segundo lugar porque gerava situações lacunosas que repugnavam ao espírito de justiça do sistema; por último porque consubstanciavam categoria autónoma merecedora de solução específica.

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Ao acentuar esta relação de representação em sentido lato, a doutrina tradicional alude à exigência do que considera ser um outro requisito desta figura: que o agente actue em nome, no interesse ou em representação do sujeito idóneo. Nestes casos, e à falta de uma previsão legal expressa que os conformasse, a conclusão era linear: não poderia ser punido nem o representante nem o representado, fosse qual fosse a estrutura de divisão de elementos do ilícito entre os referidos sujeitos de Direito38/39. Apreciação crítica40- o primeiro reparo que este modo de entender o problema levanta é, desde logo, o partir do pressuposto de que as actuações em nome de outrem assentam na nãoactuação41, senão mesmo na incapacidade penal, do sujeito em nome de quem a conduta é desenvolvida. Na verdade, mesmo quando o sujeito dotado dos especiais elementos exigidos pelo tipo (i.e., o representado), seja uma pessoa capaz de acção e de culpabilidade, se levantam situações de verdadeira e própria actuação em nome de outrem (obviamente que a questão se matiza se o representado também actuou ou se teve conhecimento da actuação do representante ).

Paralelamente, parece claro que a constatação da incapacidade delitual do "outrem" não traz qualquer esclarecimento sobre a responsabilidade penal daquele que, sendo “capaz”, em seu nome actuou42. Ou seja: a lacuna não deriva exclusivamente da irresponsabilidade penal de alguém. Acresce ainda que a fórmula da dissociação não abrange toda a extensão de actuações em nome de outrem penalmente relevantes, i.e., não permite captar a essência, nem a estrutura típica, das mesmas. Por fim, a fórmula da dissociação não cumpre o fim político criminal de descobrir o campo objectivo 37 Assim, G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., p. 69. 38 Para Blauth, Handeln für einen anderen..., cit., p. 9 e ss, o sujeito que actua não cumpre um ou vários dos elementos objectivospessoais do tipo e o sujeito que os cumpre em concreto não actuou. Assim, "resolvida" a questão fenoménica da figura, entendia este autor que a verdadeira questão a apreciar quanto às actuações em nome de outrem seria a da criação de uma tipologia das diversas classes de elementos típicos que se dissociam entre os ditos sujeitos, e bem assim a determinação da natureza desses mesmos elementos (Blauth, idem, pp. 92 e ss). 39 Alguma doutrina salienta ainda que a dispersão dos elementos típicos poderia ser simples ou múltipla, consoante apenas por um dos elementos do tipo fosse gerada ou surgisse quanto a vários desses mesmos elementos. 40 Como exemplos de doutrina crítica em relação à “fórmula da dissociação” podem elencar-se os seguintes: G. Martín, El actuar en lugar de otro ..., I, cit., passim, em especial nos capítulos II e III; Tiedemann, Wirtschaftsstrafrecht und Wirtschaftskriminalität, I-Allg. Teil, Verlag Rohwolt, Hamburg, 1976, p. 203 (referindo que o § 14 é pouco feliz literal e substancialmente); Schünemann, Unternehmenskriminalität..., cit., p. 140 e ss (reconhecendo que o § 14 e § 9 OWiG dão lugar a lacunas); e Roxin, Leipziger Kommentar, n. 5 ao § 14. 41 Grau, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., pp. 740 e s. 42 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., p. 21, escreve: "A actuação em lugar de outro adquire relevância prática no Direito penal também, como reconheceu um amplo sector da doutrina, quando o sujeito actua em lugar de uma pessoa capaz de acção no sentido do Direito penal e imputável, pois o caso apresenta-se em termos idênticos quando o que actua é o representante voluntário, (...) o órgão de uma pessoa jurídica ou o representante legal de um incapaz". Da doutrina que refere saliente-se: Grau, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., p. 741; Bruns, Über die Organ- und Vertreterhaftung..., cit., pp. 13 e s; Blauth, "Handeln für einen anderen"…, cit., pp. 162 e ss; Klaus Tiedemann, Nebenstrafrecht einschliesslich Ordnungswidrigkeitenrecht, in ZStW, 83 (1971), pp. 807 e s.

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em que emergem actuações em nome de outrem com relevância e necessidade de tratamento penal43. De alguma forma a existência da Tese da Dissociação acaba por ser paradoxal. É que as situações que originaram o aparecimento das actuações em nome de outrem tinham a sua causa na desadequação entre o formalismo conceptual dos tipos e a necessidade de pena evidenciada pelo casuismo da vida. Ora, com base no esquema que propõe, tal fórmula não resolve tais problemas. V.g., ao exigir-se que os elementos típicos se verifiquem rigidamente no representado, acaba por se ficar adstrito ao mesmo formalismo que inicialmente originou as lacunas que urgia ultrapassar. Com efeito, nos casos em que o elemento típico especialmente exigido não concorra naquele em cujo nome alguém actua, não poderá, segundo a fórmula da dissociação, aplicar-se a previsão das actuações em nome de outrem, permanecendo assim uma parte da lacuna de punibilidade que se visava preencher44. Em suma, penalmente relevante é a acção concretamente verificada, a do representante. A responsabilidade penal pela actuação em nome de outrem não é mero "remédio para a impunidade de determinados factos dignos de pena", não tem natureza nem função secundária; ao invés "a figura do actuar em lugar de outro tem um conteúdo próprio e independente"45. Será assim irrelevante para a autonomia desta figura o sustentar ou não a responsabilidade penal das Instituições... "independentemente de se admitir ou não a capacidade delitual das pessoas jurídicas, ou de que o representado seja ou não penalmente responsável, coloca-se (a questão da actuação em nome de outrem)...

como um problema de responsabilidade de pessoas individuais, sem

mais"46. IV.2 – Recolocação da questão: a distinção entre realizar o tipo e cometer o crime Para alguns autores, como por exemplo Bruns, que admitiram que as actuações em nome de outrem também seriam penalmente relevantes quando o representado fosse uma pessoa capaz de acção e até imputável, as situações de actuação em nome de outrem deviam ser entendidas do seguinte modo: o representado, não sendo susceptível de responsabilização penal, não age materialmente, mas de todo o modo realiza o tipo legal externo47; mas sendo irresponsável não poderia ser punido; paralelamente, o representante não poderia ser responsabilizado na medida em que não preenchia certos elementos exigidos pelo tipo. Verificava-se pois uma diferença em

43 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., pp. 20 e ss, 74 e ss, 159 e ss (entre outras). 44 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., pp. 159 e s; Schünemann, Unternehmenskriminalität..., cit., pp. 140 e ss. 45 G. Martín, idem, p. 25. 46 Muñoz Conde, La responsabilidad penal de los órganos…, cit., p. 154. 47 Bruns, Über die Organ- und Vertreterhaftung..., cit., p. 12. Bruns afirma mesmo que o representado realiza a acção típica. De todo o modo, a referência a Bruns é meramente exemplificativa, dado que alguma outra doutrina defendeu posições idênticas. Aliás, G. Martín refere mesmo que Bruns, tendo defendido a posição expressa no texto, veio num certo escrito a fazer afirmações incompatíveis com a postura enunciada (Bruns, Zur neuesten BGH-Rechtsprechung über die Hehlerei der "Gewerbegehilfen", in NJW, 1954, p. 1067, apud G. Martín, p. 22 e n. 76).

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relação à colocação tradicional do problema, chegando-se todavia à mesma situação de impunidade48. Apreciação crítica – aqui a crítica a formular é ainda mais óbvia: não é possível distinguir através da linguística algo que consiste na mesma e única realidade. É que é totalmente impossível distinguir a realização do tipo49 do cometimento do crime50. Com efeito, a realização do tipo tem como pressuposto inafastável a capacidade de actuar penalmente51, pelo que não cabe distinguir entre realizar o tipo e cometer o crime52. Ademais, afirmar que a Instituição realiza o tipo legal externo constitui mera confusão entre a capacidade de acção civil e capacidade de acção penal dos “representados”. Admitir semelhante construção seria considerar legítima a responsabilidade por facto alheio53, admitindo uma responsabilidade penal respaldada na simples titularidade de uma função ou qualidade, objectivando totalmente a responsabilidade penal. Ora, tal titularidade, ou qualquer outra especialidade, é pela lei penal utizada para demarcar o círculo de autores que podem praticar o ilícito54, mas não afasta a necessidade de que uma acção tenha que existir. A realização do tipo é a execução da acção tipicamente descrita, directa ou mediatamente. IV.3 – O Contributo de Wiesener Wiesener55 fez assentar a sua crítica à fórmula da dissociação no facto de no Direito penal não ter qualquer relevância o instituto civilístico da representação, entendido como instrumento técnicojurídico de imputação de efeitos jurídicos a um sujeito distinto do da acção. Com base nisso negava validade à fórmula da dissociação pessoal dos elementos típicos. Segundo este autor, actuando alguém em nome de outrem, não poderia nunca afirmar-se que estes ou aqueles elementos típicos concorrem na pessoa do representado. Isto é, não se admitindo no Direito penal a imputação dos efeitos de uma acção a sujeito diverso do agente, não poderá consequentemente afirmar-se que o simples facto de surgir uma actuação “do representante” implicava a verificação “no representado” dos elementos tipicamente exigidos para circunscrever a autoria. Se é o representante quem actua, nada fazendo o representado, para este não há qualquer

48 Também aqui pressupondo a falta de uma cláusula que o permitisse. 49 Que os defensores desta diferenciação diziam caber à Instituição, usando a terminologia perfilhada. 50 A prática do crime, nesta concepção, cabia portanto ao indivíduo que em nome da Instituição actuava, o Quadro, diríamos nós. 51 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., p. 22. 52 Cfr. Rodriguez Mourullo, Presente y futuro del delito fiscal, Civitas, Madrid, 1977. 53 Que é totalmente ilegítima, no nosso sentir; cfr., a propósito, Paulo Saragoça da Matta, “A responsabilidade penal dos ‘Quadros’ das ‘Instituições’…”, cit., pp. 97 a 114. 54 Dizendo de outro modo, e usando uma expressão que G. Martín refere a p. 197 da obra que se tem vindo a citar, os elementos objectivos da autoria servem para descrever a esfera de protecção da norma. Também Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, cit., p. 158, mas referindo-se em concreto aos crimes específicos (que denomina de próprios ), escreveu que "A falta da qualidade do sujeito agente exigida para a incriminação é uma forma de delimitação do próprio objecto jurídico do crime e significa também que o dever sancionado pela norma penal só incumbe, em princípio, às pessoas providas das qualidades que a norma incriminadora refe re".

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tipo a analisar, pelo que não poderá dizer-se que nele se verificam os elementos do tipo que também descreve a actuação material do agente. E tal conclusão resultava coerente com as premissas de que partia Wiesener: afirmar o que afirma a tese da dissociação importaria admitir a imputação ao representado da conduta desenvolvida pelo representante56. Em face desta análise afirmava o autor que a tese da dissociação não servia como fundamento nem como explicação das actuações em nome de outrem. Apreciação crítica – a oposição de Wiesener à fórmula da dissociação parece-nos, s.d.r., banal e incorrecta. Banal porque visa demonstrar algo que é patente -que no Direito penal não cabe a imputação de condutas alheias;

incorrecta, porque a fórmula da dissociação não autoriza, ao invés do que afirma

este autor, a imputação penal de uma infracção a um sujeito “que a não realizou”. Na verdade, o que afirmava a Tese da Dissociação era que os elementos especiais exigidos em certos casos pelos tipos concorrem previamente na pessoa do representado, i.e. são-lhe inerentes, com anterioridade a (e independentemente de), qualquer actuação do representante. Diriamos mesmo mais: tais elementos verificam-se no respectivo titular com ou sem qualquer representante57. Por outras palavras, a fórmula da dissociação não implica uma imputação a um sujeito (o representado),

de qualquer elemento ou qualidade pela tão-simples razão de que ele já a possuia.

Teria razão Wiesener se a Tese da Dissociação pretendesse, através das actuações em nome de outrem, imputar ao representado (que não actua) quaisquer elementos típicos realizados pelo representante ou decorrentes da sua actividade, isto com o propósito de responsabilizar penalmente o representado... o que, crê-se, nunca sucedeu! IV.4 – Actuações em nome de outrem como resultado de um princípio geral de Direito Esta compreensão das actuações em nome de outrem foi tentada por alguma doutrina mas essencialmente desenvolvida pela Jurisprudência alemã. Constatando-se que sempre que as condutas típicas eram realizadas “em nome de outrem” se geravam situações de impunidade insustentável, pretendeu solucionar-se o problema recorrendo ao Direito existente, mas indo para além dele. Assim, afirmou-se a existência de um princípio geral de direito que impunha se declarassem penalmente responsáveis por certos tipos penais não só os sujeitos que o tipo penal descrevesse como autores, mas também os seus representantes caso aqueles não pudessem responder penalmente. Esta doutrina assentava perfeitamente aos casos em que a actividade

55 Wiesener, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., p. 25 e ss e 30 e ss. 56 Wiesener, idem, p. 31 afirma, expressivamente, que, banindo a utilização da representação, os elementos não podem considerar-se verificados no representado, pelo que também não poderão dar-se por verificados naquele que actua, o representante. 57 A base em que assentava a Tese da Dissociação era a de que aqueles elementos do tipo que não se verificam no agente concorriam previamente (dir-se-á: “por definição”), no representado, não afirmando a existência de uma imputação normativa que ocorresse após, e mercê, do desenvolvimento da conduta "típica", pelo agente-representante. Esta afirmação deve entender-se, quanto às Instituições, cum

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material fosse desenvolvida em nome, no interesse ou em representação de incapazes, mas também aos casos de Instituições. Apreciação crítica – a única e fulcral objecção a este entendimento é de tal modo radical que se sintetiza numa única proposição: viola flagrantemente o princípio da legalidade a imputação da prática de um crime com base num princípio geral de direito, termos em que não merece acolhimento. IV.5 – O entendimento de Ribka O entendimento deste autor58 é completamente distinto dos anteriormente analisados, desde logo porque parte de um pressuposto diverso daquele que sustentava a Tese de Dissociação, a saber, a afirmação da capacidade de acção penal das Instituições. Todavia, a compreensão do seu pensamento pressupõe se inicie pela análise das críticas que lançou à concepção acabada de expor. Em face dela Ribka afirma claramente que as acções em nome de outrem são imputação de facto alheio, inadmissível em Direito penal. E a inadmissibilidade surgia pelo seguinte: para que alguém possa ser punido tem que preencher todos os elementos típicos da acção que um certo tipo descreva. Um Quadro só poderá ser punido quando a Lei desenhar um tipo que o vise e ele desenvolva a actividade descrita nesse mesmo tipo. Ora, se para tal concepção se considerava responsável o Quadro da Instituição pela violação de preceitos penais que se dirigiam a esta, estava sem dúvida a imputar-se-lhe uma responsabilidade “por acções que eram alheias”. Precisando mais a posição de Ribka, encontramos a sua preocupação sobre os casos em que o Quadro actua produzindo com a sua actividade o resultado típico no interesse ou em representação da Instituição. Nessas situações, como para Ribka a Instituição tem capacidade de acção penal, a actividade dos seus Quadros será o corpo ou substância do tipo penal cujos elementos especiais naquela se verificam. Ora, punindo-se o representante que actuou em nome da Instituição, é porque aos Quadros se estarão a imputar elementos típicos especiais que se verificam na Instituição mas que no Quadro não concorrem. Concluia Ribka que assim se estaria a tornar o Quadro responsável penalmente por um facto que é em rigor alheio… seria da Instituição (pois só nela se verificavam os tais elementos),

o que violava gritantemente os princípios fundamentais do Direito

penal. Em face de tal cenário, Ribka procurou resolver, “admissivelmente”, o problema da responsabilização penal no caso de surgirem no horizonte Instituições e respectivos Quadros, assentando na afirmação da capacidade de acção penal das Instituições. Admitida a possibilidade de surgirem acções de Instituições, acções essas típicas e ilícitas, encontrava Ribka a solução para grano salis. 58 Ribka, Strafbares Handeln..., cit., pp. 40, 57 e ss.

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o problema da lacuna de punibilidade que se tinha apresentado inicialmente à Tese da Dissociação, defendendo a punição daqueles que em seu nome actuassem enquanto cúmplices (na medida em que estava ultrapassada a inexistência de uma acção principal levada a cabo pelas Instituições ).

Do mesmo passo

encontrava Ribka um novo enquadramento dogmático para as actuações em nome de outrem: seriam casos de cumplicidade. O principal argumento de Ribka a favor da coerência da solução era o seguinte: por um lado os órgãos e representantes não responderiam enquanto autores pois que tal não só seria materialmente injusto como implicaria proceder a uma analogia, que é claramente proibida em Direito penal - assim, aquele que actuasse em nome de outrem deveria responder, consoante se tratasse de um crime comum ou de um crime específico, respectivamente como cúmplice do facto ilícito da Instituição, ou segundo as regras gerais da comparticipação de um extraneus. Apreciação crítica – a posição de Ribka merece críticas de vária ordem. Desde logo, é totalmente inadmissível para aqueles que entendem que as Instituições não são capazes de acção ou omissão penalmente relevante59/60. Mas não só: é que mesmo para os defensores da capacidade de acção penal das Instituições é indubitável que elas só podem realizar o tipo ou a acção através da concreta e física actividade dos seus Quadros... aqui, como também aceitava Ribka, existia uma imputação (em sentido técnico) dos factos realizados pelos Quadros à Instituição. Mas a imputação só tem valia para aqueles ramos do ordenamento jurídico em que tal seja estrutural, dogmática e racionalmente aceitável. Ora, no Direito penal "interessa unicamente a acção real e o seu sujeito, mas não, em regra, a quem alcançam os efeitos jurídicos ( vg. os contratuais económicos) derivados da actuação de alguém"61. Assim, assentando Ribka toda a sua construção nesta imputação, sofre o seu pensamento de todas as fragilidades da importação para o domínio penal de um conceito insusceptível de aceitação nesta sede, o que gera a improcedência da tese em apreço. É que se é certo que a Instituição actua através dos seus Quadros no Direito civil, não menos certo é que não o poderá fazer em sede penal, pois aqui não pode produzir-se o fenómeno da imputação de efeitos jurídicos da actuação dos Quadros na esfera da Instituição. Em suma, a Instituição não pode praticar acções penais típicas, nem por si nem por força de qualquer ficção de imputação… só os seus Quadros o poderão62. Criticável é também o entendimento de Ribka quando afirma que a actuação em nome de outrem envolve responsabilidade por conduta alheia. Compreende-se que o dissesse em face do quadro

59 Não havendo acção das Instituições, falta a conduta principal, a actuação do autor, razão pela qual não pode haver participação, que por natureza é acessória. Não actuando a Instituição, o Quadro não pode participar do inexistente facto daquela. 60 Paulo Saragoça da Matta, “A responsabilidade penal dos Quadros das Instituições”, cit., pp. 88 a 95. 61 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., p. 45. 62 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., p. 46, escreve:"Em direito penal, como disse Hardwig, a imputação de um facto ilícito faz-se unicamente ao 'sujeito do facto' (Subjekt des Geschenhens)". É o que sucede com a figura da actuação em nome de outrem.

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jurisprudencial e doutrinal que enfrentava, e na falta de um preceito especial que permitisse responsabilizar os Quadros pela realização de tipos penais dirigidos a Instituições, mas nem por isso a crítica lançada era procedente. Na verdade, o desacerto da crítica feita decorre do próprio nomen iuris desta figura. É que se se afirma que a actuação geradora de responsabilidade é levada a cabo em nome de outrem, significa que tem que existir uma actuação, i.e., o Quadro será declarado responsável apenas, e só, por ter realizado, ele próprio, uma actuação típica. Logo, a responsabilidade penal daquele que actuou em nome de outrem não surge por lhe serem imputados quaisquer elementos da acção típica que se verifiquem noutra pessoa. A responsabilização advém da sua própria acção. Por outro lado, as qualidades ou relações especiais inerentes ao autor nos crimes específicos (elementos de que carece, por definição, aquele que actua em nome de outrem), também não são, em rigor, imputadas a este. Como era sustentado pela própria tese da dissociação, tais qualidades são antecedentes à realização da acção típica. E a própria previsão das actuações em nome de outrem não tem por objectivo transferir a titularidade desse status para o representante, serve sim para "proceder ao nivelamento valorativo entre a conduta típica da norma e a conduta das pessoas que actuam em nome de outrem"63. Por último, a tese de Ribka padece do vício de não quadrar a todas as situações em que é possível surgirem actuações em nome de outrem. Na verdade, esquece o enquadramento e regime dos representantes legais de pessoas incapazes e dos representantes voluntários de pessoas capazes. Apenas se refere, portanto, aos Quadros das Instituições 64, o que constitui restrição dogmaticamente incorrecta do âmbito do instituto em apreço. Em conclusão, e ponderando o enquadramento em que pensou Ribka, admite-se-lhe apenas a censura que faz à imputação de responsabilidade por actuação em nome de outrem na falta de uma previsão legal que o permita. Tal construção criticada por Ribka violaria necessariamente o princípio da legalidade; mas existindo tal previsão, o instituto em si não implica qualquer violação do princípio da personalidade da responsabilidade penal. IV.6 – A construção de Gracia Martín Para este autor, e apesar das múltiplas fórmulas que utiliza para transmitir o seu pensamento, as actuações em nome de outrem penalmente relevantes são genericamente identificáveis com

63 G. Martín, El actuar em lugar de otro..., I, cit., p. 45. 64 Como é notado em várias apreciações feitas sobre a posição de Ribka, não se pode esquecer o dado da experiência que demonstra que na maioria dos casos de actuações em nome de outrem o representado não actua, muitas vezes nem sequer sabendo da actuação do seu representante. Ao partir Ribka da questão concreta da necessidade de punir os Quadros das Instituições, partiu da capacidade de acção destas e procurou solucionar o problema com base nos instrumentos legais existentes. Mas ao fazê-lo quebrou a unidade da categoria das actuações em nome de outrem.

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situações em que um sujeito realiza actos objectivos materiais numa esfera de actividade social, económica ou jurídica que originariamente lhe não era acessível, mas à qual acedeu facticamente entrando assim em contacto com os bens jurídicos inscritos nessa esfera65. Também este autor começa por criticar a dissociação preconizada pela doutrina maioritária para justificar este fenómeno66. Critica ainda o formalismo de tal concepção quando ela exige que os elementos típicos especiais concorram no representado67; critica, por fim, o pressuposto base da construção maioritária de que o representado terá que ser insusceptível de responsabilidade criminal ou de que terá que se ter abstido de actuar68. Uma outra particularidade do pensamento de G. Martín, porque se considera que é questão fulcral na análise do art.º 12º do CP, é o sublinhar das diferenças entre actuação em nome de outrem e responsabilidade penal por facto alheio69, o que é de suma importância para a decisão sobre a admissibilidade constitucional do próprio instituto. V – O enquadramento dogmático defendido V.1 - Generalidades Como já atrás ficou dito, a amplitude da problemática das actuações em nome de outrem é mais lata do que a da responsabilidade penal dos Quadros das Instituições. Também se abrangem as acções dos representantes de pessoas singulares, e, em ambos os casos, quer situações de representação voluntária quer casos de representação legal. Aliás, só tal entendimento é admissível se pretende dar-se às actuações em nome de outrem um tratamento geral, como Roxin dizia ser necessário e não sucedia no § 14 StGB, tratamento esse que impeça a subsistência das lacunas a que fazia alusão Schünemann70. Nesta conformidade se procura o enquadramento

65 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., passim. Não pode deixar de se transcrever a seguinte passagem, na medida em que mostra a proximidade entre esta questão e o tema sob análise: "Nos casos de actuações em lugar de outro em sentido jurídico-penal, o sujeito que actua e realiza os actos materiais objectivos constitutivos de um tipo penal é em regra um órgão de uma pessoa ju rídica ou o representante legal ou voluntário daquela ou de uma pessoa física" (idem, p. 77). 66 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., v.g. pp. 119 e ss. Nesta passagem salienta-se em especial a crítica que Martín faz ao resultado a que Bruns (Grundprobleme, p. 16) chega, em face do § 14 StGB, dizendo que este preceito não pode ser aplicado quando o representado seja uma Instituição. E não poderia sê-lo, afirma Bruns, porque esta não pode possuir, por natureza, qualidades pessoais. Como o Quadro que em concreto tiver agido também não possuirá essas qualidades, Bruns entende que se sai da esfera das actuações em nome de outrem, respondendo o Quadro pela afirmação na sua própria pessoa das qualidades exigidas pelo tipo. Em face disto, Martín (pp. 120 e ss) demonstra que só a debilidade e inidoneidade da Tese da Dissociação permitem chegar a tal solução, uma vez que este domínio é particularmente apto ao tratamento através da cláusula das actuações em nome de outrem. Nesse sentido convoca como exemplos o funcionamento das actuações em nome de outrem no campo dos grandes complexos societários e nos casos de subrepresentação (pp. 121 e ss e 125 e ss). 67 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., passim, e resumidamente, p. 160. 68 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., pp. 29 e s. 69 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., em especial pp. 36-66. 70 Schünemann, Unhternehmenskriminalität ..., cit., pp. 140 e ss.

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próprio para a figura em apreço71, para só depois se poder concluír, em face da doutrina, sobre o âmbito e função do art.º 12º CP. Quanto a nós, temos como certo que as actuações em nome de outrem surgem no Direito penal como um instrumento técnico dotado de plena autonomia, fundamentalidade e autonomia72. E nem se pretenda que tal fundamentalidade é inexistente recorrendo ao argumento de que milhares de anos foram vividos sem a sua previsão. Na verdade, a necessidade abstracta do instituto é decorrência dos princípios fundamentais do Direito penal moderno, sendo a sua consagração imperativo de concepções filosóficas, sociológias e até psicológicas que hoje impendem sobre o Homem e a Sociedade. Começando por olhar para esta concepção do Homem e da Sociedade, constata-se, mais do que nunca, uma tensão persistente e um equilíbrio instável entre a afirmação da Individualidade e a necessidade da Socialidade inter-dependente. A Individualidade, ainda mais do que em quadros históricos Liberalistas, não é hoje só afirmada pelo Estado e pela Sociedade, sendo por todos os homens, e por cada um, exigida constantemente a sua tutela. E à garantia da Individualidade não fica alheio nenhum ordenamento jurídico legítimo, quanto menos os sistemas penais. Ora, a tutela da Individualidade passa necessariamente pela garantia de que a responsabilidade penal tem que assentar sempre num facto dependente do agente, mesmo que nem sempre tal resulte explícito. Paralelamente, de modo quase paradoxal, a caminhada em direcção à Individualidade acompanhou a crescente dependência do indivíduo em relação aos grupos em que se integra. Assim, a Individualidade exacerbada descamba sem dificuldade no individualismo anti-social, e a dependência protectora da Sociedade com regularidade dá lugar à alienação do indivíduo no colectivo. Este o panorama instável que projecta as suas influências no Direito penal. Este, angustiosamente, tenta traçar as raias entre a manutenção da protecção da Individualidade e a tutela da perservação da Sociedade, num permanente conflito que subjaz, v.g., à dúvida sobre a admissibilidade da responsabilidade por factos alheios, que determina a discussão sobre a responsabilidade das Instituições e que impõe que sejam estritamente regulamentados os pressupostos, limites e funcionamento da responsabilidade penal pela actuação em nome de outrem. Por outro lado, é para nós decorrência dos princípios fundamentais do Direito penal que a responsabilidade criada seja indiscutivelmente pessoal. Ora, nas dúvidas que se levantam à

71G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., p. 160, escreve: "Há pois que descobrir qual o substrato material das actuações em lugar de outro e criar um fundamento comum capaz de aglutinar essa diversidade heterogénea de elementos" (Esta diversidade heterogénea de elementos é uma das razões que leva G.Martín a criticar a tese da dissociação, por estar pensada essencialmente para os elementos típicos "pessoais especiais da autoria" como o próprio afirma). E segue: "Esse elemento comum deve ser um conceito de força expansiva dos tipos. E há-de ser, também, um conceito limitativo do campo de actuações em lugar de outrem relevantes para o Direito penal. Creio que um tal elemento deve ser buscado na esfera objectiva das relações entre os sujeitos em questão, mas não nas relações formais, antes nas relações de tais sujeitos e suas condutas com as estruturas objectivas do tráfego jurídico e social".

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responsabilidade pela actuação em nome de outrem não raro se apela aos princípios da legalidade, da tipicidade e da culpabilidade para aferir da legitimidade do instituto. Daí que se imponha assegurar regulamentação positiva do mesmo, e simultaneamente se tenha de garantir uma estrita pessoalidade da responsabilidade cominada. Tudo com a urgência que é imposta pela experiência da crescente organização das sociedades humanas e pela cada vez maior repartição funcional em que estas assentam. Aqui ponderam-se essencialmente valores como a confiança e a segurança da vivência em comunidade, factores determinantes de uma ultrapassagem das dificuldades geradas pela falta de rosto dos mais importantes intervenientes na vida social. Também para regular tais problemas o instituto é apto. Demonstrada a necessidade do instituto, e do art.º 12º em especial, cumpre afirmar que o mesmo não envolve responsabilidade penal por factos alheios. Na verdade, foi apenas a confusão dogmática sobre as actuações em nome de outrem73 e a falta de uma concepção global sobre as mesmas74 que gerou a confusão com a responsabilité pénale du fait d'autrui. Mas a responsabilidade penal daquele que actua em nome de outrem não implica nunca responsabilidade por facto alheio, pela tão simples razão de que emerge, por definição, de um facto próprio75. Como já se disse -em crítica ao enquadramento dogmático proposto por Ribka-, com uma previsão que consagre a responsabilidade daquele que actua em nome de outrem nunca se desloca a responsabilidade penal para um sujeito que não tenha intervindo. Como também já ficou expresso, irreleva para o Direito penal o vínculo jurídico, ou até social, subjacente às relações, por exemplo, dos Quadros com as Instituições76. Lapidarmente: tal vínculo fica "extramuros do tipo penal correspondente da parte especial e das normas da parte geral que definem a autoria e a participação"77. A alusão a uma representação serve apenas para compreender e justificar a intervenção de alguém numa esfera alheia, esfera na qual não poderia em regra intervir mas à qual, por qualquer razão, acedeu. Sucedendo isto, este gentio não só fica em contacto com os bens jurídicos que nessa esfera existem, como passa a gozar das faculdades de nesses mesmos bens interferir. E interferindo, a Justiça material impõe que para igual desvalor da acção haja identidade de regime. Ou seja, nada disto implica responsabilidade por facto alheio.

72 i.e., não assenta a sua legitimidade noutros, e prévios, mecanismos existentes no Direito penal. 73 Bruns, Grundprobleme..., cit., p. 2. 74 Roxin, Strafgesetzbuch - Leipziger Kommentar, § 14, n. 5. 75 Aliás, caso as actuações em nome de outrem violassem o princípio da personalidade da responsabilidade penal, seríamos os primeiros a advogar a sua ilegitimidade mercê do princípio constitucional do Estado de Direito Democrático. 76 Como salienta G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., pp. 39 e ss, as actuações em nome de outrem não vêm do direito civil. Em direito penal as únicas culpas in eligendo ou in vigilando surgem em casos de inobservância do cuidado exigível, tipo de ilícito no crime negligente... O que pode surgir é responsabilidade in operando ou in omitendo. E estas exigem actividade própria... Nestes casos, a não adopção de medidas por certo indivíduo exige sempre conduta própria. A culpa in eligendo ou in vigilando em sentido verdadeiro e próprio implicaria uma responsabilidade por facto alheio (fait d'autrui). 77 G. Martín, El actuar en lugar de otro..., I, cit., p. 37.

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Naturalmente que a imputação de uma tal responsabilidade pressupõe uma previsão legal que o permita. Se assim não for será o princípio da legalidade a ser violado. Em resumo, as actuações em nome de outrem geram sempre e só responsabilidade penal por facto próprio. Aqui, como em todo o DP é sujeito da imputação o sujeito do facto típico e ilícito78. Como preliminar conclusão poderá dizer-se que o instituto em apreço tem em vista fundamentar e estabelecer a responsabilidade penal de um determinado sujeito que realizou o facto típico apesar de não reunir formalmente os elementos que o tipo utiliza: ou para delimitar o círculo dos autores possíveis ou para identificar uma particular motivação egoísta que tem que subjazer à acção. As actuações em nome de outrem apenas constituiriam manifestação de responsabilidade por facto alheio se através delas se buscasse, v.g., a responsabilização da Instituição pela actividade do Quadro. Por último, não são requisistos da actuação em nome de outrem nem a dissociação formal de elementos típicos; nem que os elementos típicos especiais concorram formalmente no representado; nem a incapacidade ou abstenção de acção por parte do representado. - Não é requisito essencial das actuações em nome de outrem uma dissociação formal dos elementos típicos nem o concurso formal desses elementos no representado, porque senão ficariam de fora as actuações em nome de outrem nos casos de grandes complexos societários79, como resulta do que Bruns afirma80. Dizia este autor que o § 14 StGB não poderia aplicar-se aos casos em que o representado fosse uma pessoa jurídica porque esta, por definição, não pode possuir qualidades pessoais. Ora, exigindo a dispersão formal, a tese da dissociação acaba por deixar de fora, talvez, a mais relevante forma de actuações em nome de outrem, precisamente aquela que deu origem à questão. Como sublinhava Tiedemann, inicialmente levantou esta questão81, nos Grupos e Uniões de 78 G. Martín, idem, p.47-n.147 afirma não ser convincente a posição de Wiesener (cit. pp. 30 e ss) seguindo Schönke e Schröder no sentido de que a autoria mediata e a coautoria suponham casos de imputação da conduta alheia reconhecidos pelo Direito penal. Segundo Wiesener, em ambos os casos, se imputam ao autor mediato ou ao coautor, respectivamente, como próprias, partes da acção de outro (do instrumento ou do outro coautor). G. Martín discorda de tal: "o autor mediato é autor porque tem o domínio do facto típico. O dolo do autor mediato abarca os elementos do tipo realizados de forma directa pelo instrumento. O dolo do autor mediato supõe , aliás, o limite dos elementos objectivos-causais realizados directamente pelo instrumento que objectivamente lhe podem ser imputados. Não poderão reconduzir-se à acção do autor mediato outros elementos de execução do facto pelo instrumento que não hajam sido abarcados pela vontade de realização daquele. Entre estes actos que poderão imputar-se ao autor mediato, desde logo estão aqueles que haja realizado o instrumento e que suponham um desvio do curso causal previsto pelo autor mediato sempre que o desvio não seja essencial, o que terá lugar se o resultado produzido aparece como realização da acção proibida. (...) No caso da coautoria não pode falar-se tão pouco em imputação de conduta alheia entre coautores. (...) Na coautoria todos os coautores têm o domínio do facto, ou , de acordo com a divisão de funções, todos realizaram pelo menos um elemento do tipo capaz de fundamentar a autoria...". 79 Integradas por um tão grande aparelho negocial e estrutural, e caracterizadas por uma tal dispersão funcional e pessoal, que os centros de decisão não mantêm qualquer relação nem qualidade típica em relação a todas as Instituições que se integram nesse grupo empresarial superior. 80 Bruns, Grundprobleme..., cit., p. 16. Daí que dissesse Bruns que então as "qualidades pessoais " se afirmariam directamente nas pessoas que integrassem os órgãos da pessoa jurídica. 81 K. Tiedemann, Kartellrechtsverstösse und Strafrecht, Carl Heymanns Verlag, Koln, 1976, apud G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 124 e

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Empresas, a execução material dos factos é desempenhada não pelo Grupo, mas pelos Quadros de cada uma das Instituições que integram o Grupo, fazendo-o em nome deste, e projectando-se os efeitos noutra Instituição do Grupo distinta e autónoma daquela que dirigem. Se o Grupo adoptar comportamentos ilícitos através de contratos, serão os Quadros das Instituições individualmente consideradas quem os executará, e aí resultará duvidoso se estes são autores idóneos, pois que nenhuma relação formal mantêm com o Grupo ou com a Instituição que sofreu os efeitos da acção. Aí interpõe-se a própria personalidade do Grupo, e as personalidades das Instituições, não permitindo considerar que há vínculos directos entre os Quadros de umas e de outras. Tal sucederá sempre que o sujeito que actua não o faz em representação de ninguém, também não tendo a qualificação legal típica. O mecanismo criado para enquadrar estas acções em nome de outrem deve, portanto, assentar em bases materiais, e não exclusivamente formais. - Por outro lado, não é requisito da actuação em nome de outrem a incapacidade por parte do representado, nem a abstenção de acção deste. Quanto à incapacidade penal do representado, resulta claro que uma actuação em nome de outrem surge exactamente com os mesmos contornos se, em vez de uma Instituição representada por Quadros, encararmos uma pessoa capaz de acção e culpabilidade representada por um seu procurador ou mandatário. Também este acede a uma esfera da qual estava originariamente arredado, também ele contacta com os bens jurídicos que estavam antes ao alcance apenas do titular da esfera, e também ele os pode lesionar. Ora, não passando a ser titular do status do representado, mas tendo apenas competências funcionais, ou materiais, não passa este procurador a ser devedor, proprietário, comerciante, etc., em lugar do representado. Assim, qualquer actividade deste que se subsuma a um tipo penal que utilize tais elementos como critério de demarcação da relevância da acção terá o mesmo desvalor que a que teria sido praticada pelo titular da esfera. Assim sendo, é de Justiça e político-criminalmente aconselhável que o Direito reaja de modo idêntico, equiparando valorativamente a sua conduta, enquanto agente não qualificado, à conduta em tudo idêntica que poderia ter sido desenvolvida pelo representado, agente qualificado. Também não é exigível a total inacção ou abstenção do representado. Igualmente neste caso será mais correcto puni-lo enquanto autor do que, como pareceria linear, como cúmplice. É que, segundo se crê, a linha de separação entre a autoria e a participação deve passar pela análise concreta das actividades desenvolvidas82. V.2 – A definição base das actuações em nome de outrem

n. 156. 82 G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 33. Diz quanto a isto Martín, o seguinte (não se trascrevem as suas palavras mas procura resumir-se o mais ao pé-da-letra possível o pensamento): o representante seria punido (havendo cláusula de actuações em nome de outrem como autor porque levou a cabo actos materiais de autoria. O representado, não obstante ter a qualidade especial da autoria do crime correspondente, seria apenas cúmplice, porque só praticou actos materiais de cumplicidade (ou como instigador se fossem actos de instigação). O caso reduz-se assim à aplicação das regras da autoria e da participação nos crimes especiais entre dois intranei... Isto porque a cláusula tem a virtualidade de efectuar o ingresso dests sujeitos no círculo de autoria em certos crimes, outorgar a estas pessoas o status de intranei,

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Gracia Martín define a actuação em nome de outrem do seguinte modo: "toda a realização de uma acção ou omissão típicas por um sujeito numa esfera funcional objectiva quando o dito sujeito é originariamente estranho à dita esfera e, não obstante, assumiu facticamente o exercício efectivo das funções que o põem em contacto com os bens jurídicos inscritos no dito âmbito, em relação aos quais assumiu uma posição de domínio"83. Sendo definição aceitável, cabe apresentar uma sumária análise de todos os elementos que a integram. A primeira delimitação do conceito é-nos dada pela referência a uma Acção ou Omissão típicas, i.e., uma conduta voluntária84, com isto se querendo significar, conduta “jurídico-penalmente relevante”. Logo daqui resulta, correctamente, que o instituto das actuações em nome de outrem consiste num processo de responsabilização penal por factos próprios, não por factos alheios. Assim, é irrelevante para a análise jus-penal da acção desenvolvida a modalidade de relacionamento entre o agente e o titular da esfera funcional85, sendo outrossim irrelevante, acrescentemos, o grau de formalização desse mesmo relacionamento. Para a valoração do comportamento ilícito verificado não cabe ponderar a natureza do vínculo entre aquele que actua em nome de outrem e aquele em cujo nome o primeiro actua (o outrem). Consequentemente, a verificação dos diversos requisitos do conceito de crime, a aplicação dos critérios da tipicidade, ilicitude e culpabilidade, terá por objecto autónomo o sujeito que actua e o seu facto. O segundo elemento definidor consiste no âmbito especial em que se realiza a acção relevante referida, o que constitui um elemento complexo. Esse âmbito é com rigor identificado com a expressão esfera funcional objectiva alheia86, concretizando-o por alusão aos domínios social, económico e jurídico. Ora, este momento da circunscrição do instituto merece algumas precisões, pois é o que verdadeiramente o autonomiza e especifica: a existência paralela e autónoma de esferas distintas e co-existentes de actuação. Por um lado temos uma esfera de actuação sócioeconómico-jurídica referente a alguém e determinada pela titularidade de um especial estatuto, situação ou posição; por outro lado surgem todas as outras esferas de actuação, autónomas e distintas da anterior pelo facto de os respectivos sujeitos não ostentarem igual estatuto. A titularidade daquela primeira esfera implica, por definição, a susceptibilidade de, quanto a ela, “actuar”. Ora, se a titularidade da esfera é condicionada -não é acessível a quem quer mas só a quem possui

com as consequências devidas. 83 G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 197. 84 Assim H.-H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ªEd., Trad. Manzanares Samaniego, Comares, Granada, 1993, pp. 197, 200 e s; Roxin, Strafrecht..., cit., pp. 178, (Rn. 1), 196 (Rn. 42), que fala em "exteriorizações da personalidade " dominadas ou domináveis pela vontade ("Persönlichkeitsäußerungen"), e p. 199 e ss; e mesmo Jakobs, Derecho Penal..., cit., pp. 174 e s ("A causação do resultado individualmente evitável é o supraconceito que engloba o actuar doloso e -individualmente- imprudente. O conhecimento da execução da acção e, se for o caso, das suas consequências -no dolo-, ou a cognoscibilidade individual -na imprudência-, como condições da evitabilidade pertencem à acção e portanto ao injusto"). 85 G. Martín, idem, p. 195. 86 A alienidade da esfera é posta em termos perifrásticos, com a expressão "toda realización (...) por un sujeto (...) en una esfera funcional objetiva cuando dicho sujeto es originariamente extraño a dicha esfera..." (G. Martin, idem, p. 197).

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o elemento especial descrito pelo status-,

condicionadas resultam também as possibilidades de

desempenho funcional no seu âmbito. Por conseguinte, qualquer intervenção dos titulares do segundo tipo de esfera no âmbito funcional da esfera do primeiro está vedada. Mas está vedada apenas originariamente. É que nada impede que o titular de tal esfera condicionada de actuação consinta a qualquer outro indivíduo a entrada na mesma, como também nada obsta a que por qualquer motivo, facticamente, esse terceiro acabe por aceder a ela. É o que terá que ter sucedido para que uma actuação seja em nome de outrem. Por outras palavras, a acção do sujeito que actua em nome de outro "tem lugar num âmbito social, económico ou jurídico no qual normal e originariamente actua outro sujeito: o titular do correspondente status descrito pelo elemento especial da autoria em questão"87. Assim o exercício da actividade em apreço surge -por definição-

num âmbito funcional alheio, balizado em função da verificação, quanto ao respectivo

titular, do especial status. Acresce ainda que o consentimento de intervenção de um terceiro nesta área funcional restrita, e a fáctica entrada na mesma, não acarreta a transferência para este terceiro do próprio status. Ao invés, este permanece exclusivo do titular originário88. O que sucede é que o sujeito que actua em nome de outrem assume apenas as funções ou faculdades inerentes ao status, funções e faculdades estas que lhe cabem mediata e derivadamente. A transmissão de funções pode derivar de múltiplas causas, jurídicas umas, sociais outras. Uma vez tendo acedido a esta esfera, o terceiro passa a desempenhar funcionalmente os poderes ou faculdades que lhe são inerentes, usando os meios de que dispuser em ordem à realização dos fins próprios de tal esfera. No exercício dessas funções o agente em nome de outrem fica em contacto com uma série de bens jurídicos, "que o Direito penal protege em relação a agressões daquelas pessoas que normalmente estão em contacto com os mesmos e que, por essa razão, podem salvaguardá-los mas também agredi-los"89. Ora, mesmo não tendo o estatuto especial, pode o agente em nome de outrem proceder em relação a tais bens jurídicos como o faria o próprio titular da esfera, pois está investido no exercício dos referidos poderes funcionais ou faculdades. Precisamente por assim ser é que, para efeitos penais, se deve considerar a actuação do sujeito neste exercício funcional em esfera alheia especial como própria e suficiente para gerar responsabilidade. Ou seja, o que o agente em nome de outrem faça nesse particular domínio é da sua responsabilidade. Para tanto serve, in casu, o art.º 12º CP e outras disposições análogas. Mas surgirá um problema quando o Direito penal, na protecção que dá aos referidos bens jurídicos, 87 G. Martín, idem, p. 195. 88 Justifica G. Martín (idem, ibidem), esta situação com o facto de o estatuto ter uma dimensão jurídico-formal, como tal intransmissível. 89G. Martín, idem, p. 196.

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não proceda com generalidade, antes determinando os sujeitos que considera serem os únicos que podem pôr em perigo ou lesionar os mesmos bens, sem permitir alargamentos deste círculo. Nesses casos, ao delimitar o círculo de sujeitos, o Direito penal utiliza como critério o elemento especial que concorre nos indivíduos que com os bens jurídicos em causa se relacionam 90, pelo que para abranger indivíduos despojados de tal elemento terá que surgir uma via legal: precisamente, a previsão das actuações em nome de outrem. Em resumo: temos situações em "que um sujeito entrou num círculo funcional e actua em substituição daquele que originariamente teria actuado se não tivesse delegado as suas funções"91. VI – A génese do artigo 12º do CP O Projecto de CP (PjCP) apresentado por Eduardo Correia continha, sob o art.º 9º, o preceito que veio a dar origem ao actual art.º 12º. Este preceito seguia-se àquele em que era afirmado o princípio da personalidade da responsabilidade penal, tendo inclusivamente a sua discussão em sede de Comissão Revisora sido, de certo modo, conjunta. O referido art.º 9º PjCP era do seguinte teor: "Quem age, todavia, voluntàriamente como órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, fundação, associação, de direito ou de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem -ainda que seja ineficaz o acto jurídico, fonte dos poderes de representação- será punível, mesmo quando o respectivo tipo legal de crime exija: 1º) Determinados elementos pessoais que só se verificam relativamente à pessoa do representado; 2º) Que se actue no próprio interesse e o representante actue no interesse do representado."

E foi ainda em sede de apreciação pela Comissão revisora que o art.º 9º PjCP sofreu algumas alterações, em virtude de várias observações postas pelos respectivos vogais, como se constata da Acta da 6ª sessão. A exposição então feita como introdução da discussão, por parte do autor do Projecto, é extraordinariamente relevante, na medida em que demonstra claramente que a questão das actuações em nome de outrem foi por si tratada como questão reflexa ou paralela à da responsabilidade penal das Instituições. Assim que afirmasse que apesar de ser de admitir excepcionalmente a "aplicação de certas reacções a sociedades ou outras pessoas colectivas", tal "não significa, porém, (...) que se não punam os indivíduos que, enquanto membros de uma pessoa colectiva, pratiquem um crime"92. Precisamente ao antever situações em que membros de uma 90 A este propósito G. Martín (idem, ibidem), escreve: "Na realidade, com tais elementos típicos da autoria o legislador descreve estruturas sociais, económicas ou jurídicas nas quais estão inscritos os bens jurídicos que quis proteger. Por isso o legisla dor dirige a cominação penal só às pessoas que normal e originariamente actuam no seio das ditas estruturas. Mas não se reparou que outras pessoas, ainda que derivadamente, entram efectivamente em tais estruturas (chama-lhes'estruturas objectivas do domínio social' ou 'estruturas objectivas de domínio sobre a vulnerabilidade do bem juridico', dizendo que são estruturas referidas ao 'âmbito de protecção da norma'), com o mesmo potencial de actividade e de produção de resultados que os sujeitos idóneos ab initio". 91 G. Martín, idem, ibidem. 92 Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal. Parte Geral - volume I, AAFDL, Lisboa, s.d., pp. 110 e ss (também publicadas no BMJ, nº 142, pp. 151 e ss e nº 150, pp. 80 e ss), pp. 110 e s.

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Instituição praticassem ilícitos nessa qualidade funcional, o autor do Projecto deparou-se com a dificuldade levantada pelos chamados crimes específicos próprios. É que nesses casos, quando os tipos exigissem a verificação de determinados elementos pessoais ou uma actuação no interesse próprio, dizia o autor do Projecto, havia que "ressalvar a possibilidade de tais condições se não darem na pessoa do representante (agente do crime) mas na do representado...". Com tal propósito, e por entender que apesar de tal falta se devia poder punir os ditos agentes, surgia o art.º 9º PjCP. Em resumo, a determinante razão que levou o autor do Projecto a consagrar um artigo deste teor foi o evitar futuras e eventuais lacunas de punibilidade no caso dos crimes específicos próprios e dos crimes delimitados por uma motivação individual egoísta. Dito de outro modo, a ratio legis encontrava-se no dever de evitar lacunas de punibilidade geradas por situações de dissociação dos elementos da autoria entre dois sujeitos ou de idêntica dispersão no que respeitava ao interesse na prática da infracção, por um lado, e da prática material da mesma infracção, por outro. Também quanto ao art.º 9º se repetiu o debate sobre a velha polémica àcerca da ( ir-) responsabilidade penal das Instituições93. Igualmente demonstrador do entrosamento radical estabelecido entre a questão das actuações em nome de outrem e a responsabilidade penal das Instituições é o facto de este artigo conter, logo no seu início, a adversativa todavia, o que sugeria tratar-se o art.º 9º de uma excepção ao art.º 8º. Justamente foi tal observado94, sugerindo-se a eliminação de tal conjunção, o que veio a ser aprovado por unanimidade. Uma outra observação foi apresentada quanto à abrangência do preceito, questionando-se se nos termos "órgão ou membro" se compreendiam os casos daqueles indivíduos que dotados de tais qualidades cometiam crimes em proveito próprio95. Neste particular o autor do projecto salientou a dificuldade de saber, mesmo em sede civilística, quais as situações em que "alguém actua como órgão membro ou representante de uma pessoa colectiva", o que aconselhava a que o artigo previsse todas as situações. Questionou-se ainda se o regime estipulado devia aplicar-se apenas às "hipóteses em que é ineficaz o acto jurídico, fonte dos poderes de representação, ou se deverá também aplicar-se a toda a representação de facto, mesmo quando não haja título"96. Aqui o autor do Projecto sublinhou a

93 Foi ainda ponderada a necessidade de uniformizar nestas matérias a terminologia usada pelo futuro Código penal com a que viesse a resultar do Código civil, então também em preparação. 94 Tal observação foi feita pelo vogal Dr. Guardado Lopes. 95 A remarque foi apresentada pelo Consº José Osório, que concretamente questinou da possibilidade de subsumir ao preceito o "caso do accionista de uma sociedade que, actuando como tal, comete um crime em seu proveito próprio ", caso que lhe parecia dever subtraírse o regime estipulado nele. 96 Observação também da autoria do Consº José Osório.

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necessidade da existência de um título de representação97, admitindo contudo que se previsse também o caso de o título existir mas ser insuficiente. A final a Comissão aprovou também por unanimidade a introdução desta segunda modalidade. Salientou-se, por último, que dos estatutos "de uma pessoa colectiva" não consta nunca qualquer actividade criminosa, pelo que "pode pretender afirmar-se que ninguém actua como seu representante quando comete um crime". Assim se sugeriu que fosse acrescentada à previsão "representante" a expressão "ou valendo-se dessa qualidade". Do mesmo passo se propôs a eliminação dos "qualificativos 'legal ou voluntária' referidos à representação"98. O autor do Projecto, alegando que tal poderia levar a supor que só se visava a representação voluntária, opôs-se à eliminação de tais qualificativos. Por maioria manteve a Comissão a redacção proposta. Em conclusão, da Comissão Revisora saíu um art.º 9º com o seguinte teor: "Quem age voluntàriamente como órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, fundação, associação, de direito ou de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem -ainda que seja ineficaz ou insuficiente o acto jurídico, fonte dos poderes de representação- será punível, mesmo quando o respectivo tipo legal de crime exija: 1º) Determinados elementos pessoais que só se verificam relativamente à pessoa do representado; 2º) Que se actue no próprio interesse e o representante actue no interesse do representado."

Um passo seguinte na história do art.º 12º CP surge pela mão de uma Comissão Revisora constituída no mandato do I Governo Constitucional. Dos trabalhos desta Comissão resultou a Proposta de Lei nº 117/I99, na qual o art.º 9º PjCP surgia sob o art.º 12º com o seguinte teor: "1. É punível quem age voluntariamente como titular dos órgãos de uma pessoa colectiva, fundação, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, mesmo quando o respectivo tipo de crime exija: a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado. 2. A ineficácia do acto que serve de fundamento à representação não impede a aplicação do disposto no número anterior. "

Além de pequenas diferenças de redacção e de nova distribuição interna das questões, cumpre salientar em especial: a eliminação da referência a "membro ou representante", afirmando-se apenas a circunstância de o agente ser "titular dos órgãos"; a substituição do elenco "pessoa colectiva, fundação, associação, de direito ou de facto" por "pessoa colectiva, fundação, sociedade ou mera associação de facto"; e a eliminação da referência aos casos de "insuficiência" do título de representação. Entre este texto e o que viria a ser aprovado como art.º 12º CP/82, uma única diferença é digna de nota: no que respeita ao elenco de Instituições de cujos órgãos o agente

97 Questão esta a que abaixo se voltará, por definição. 98 Ambas as sugestões se devem ao Dr. Maia Gonçalves.

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poderia ser titular, optou o legislador por referir "pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto". Também quanto à motivação do preceito não surgiram novidades. Que assim é resulta do Preâmbulo do Código Penal, no qual o legislador justifica a existência do preceito nos seguintes moldes: "No sentido de um maior alargamento da responsabilidade penal admite-se a punibilidade pela actuação em nome de outrem quando o agente actuou 'voluntariamente como titular dos órgãos de uma pessoa, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, mesmo quando o respectivo tipo de crime exija' (art. 12º, nº 1) certos elementos que a lei seguidamente descreve. Em termos de política criminal consegue-se, assim, uma infiltração consequente do direito penal em áreas extremamente sensíveis e cuja criminalidade cai normalmente na zona das 'cifras negras'. É claro que esta actuação não basta. Tem de ser acompanhada do conveniente incremento e aplicação do direito das contra-ordenações. De qualquer maneira, já grande parte da criminalidade -talvez a qualitativamente mais perigosa- que se alberga e se serve das pessoas colectivas, fica sob a alçada do direito penal"100/101. Encontram-se assim os motivos da introdução deste preceito no nosso Livro Negro: por um lado, o desejo de colocar uma grande parte da criminalidade que se esconde e se serve das Instituições sob a alçada do direito penal; por outro lado a insistência na manutenção, na medida do desejável, do princípio da personalidade ou individualidade da responsabilidade criminal, corolário do princípio da culpa. Claro resulta, também, que a razão de política-criminal da consagração legal das actuações em nome de outrem foi o salvaguardar a punibilidade dos Quadros das Instituições, e não tanto os casos de quem "age voluntariamente (...) em representação legal ou voluntária de outrem". Estes casos, se bem que dogmaticamente merecedores da mesma solução, e sendo de louvar a preocupação de abrangência do legislador, foram, julga-se haver razões para o dizer, apanhados de modo meramente lateral. VII –O campo de aplicação das actuações em nome de outrem Como se infere do que foi sendo dito, a doutrina maioritária vê o campo problemático das actuações em nome de outrem nos crimes específicos, aqueles em que o agente -que desenvolve formalmente a actividade tipicamente descrita-

não reúne em si os elementos usados pelo tipo para

99 Proposta de Lei nº 117/I, in Diário da Assembleia da República, suplemento ao nº 136, de 28 de Julho de 1977. 100 Preâmbulo do Código Penal, II, nº 15. 101 Sublinhe-se que com a revisão do CP/82, efectuada em 1995, houve uma grande preocupação em demonstrar que não se tratava de publicar um novo Código Penal, mas apenas o de rever o código existente. Tal preocupação terá levado a manter inalterado o preâmbulo, levando a que as citações feitas nele, referentes aos artigos do código, ficassem desajustadas com a alteração dos respectivos artigos. Assim que no nº 15 do Capítulo II do Preâmbulo do Código Penal se tenham mantido as citações do art.º 12º CP/82, apesar de o dito art.º 12º, após 1995, apresentar diferenças de redacção. Elencam-se assim as ditas alterações- em 1982 lia-se: no corpo do nº 1: "titular dos órgãos de uma pessoa colectiva"; "tipo de crime exija"; na alínea a): "verifiquem"; entre a alínea a) e a alínea b) a partícula de ligação era"e"; em 1995 lê-se: no corpo do nº 1: "titular de um órgão de uma pessoa colectiva"; "tipo de crime exigir"; na alínea a):

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circunscrever os autores possíveis102. Não é esse, contudo, o único campo em que o surgimento de actuações em nome de outrem gera problemática, razão pela qual cumpre indagar das situações em que pode surgir esta figura em termos relevantes. Começa-se assim, negativamente, por determinar quais os casos em que as actuações em nome de outrem não revestem interesse penal. VII.1) Crimes em que será irrelevante o facto de o agente actuar em nome de outrem É ocioso afirmar que um crime não pode, hoc sensu, ser praticado em nome de outrem ou em sua representação. Dogmaticamente nem sequer releva alegar que o crime foi praticado no interesse de outrem103. Irrelevando penalmente a imputação de efeitos jurídicos a sujeito distinto daquele que actua, não poderá falar-se na prática de um crime em nome, no interesse ou em representação de outrem. Mas os tipos penais usam conceitos cuja origem e significado provêm de outros sectores do ordenamento jurídico, e nesses casos pode ocorrer que a realidade subjacente aos conceitos utilizados compreenda situações de representação. Todavia, essas relações representativas que ocorrem na vida social trabalhada pelos vários sectores da ordem jurídica, não relevam para o Direito penal para efeitos de proceder a uma imputação desviada dos efeitos do acto praticado. Não importa, pois, que o titular da posição de “vendedor”, para efeitos de aplicação do art.º 25º do D.-Lei. nº 28/84 de 20 de Janeiro, não seja B mas A. Interessa-lhe, isso sim, que tenha sido B quem materialmente executou os actos descritos nesse tipo. Se por virtude de um contrato de mandato celebrado entre A e B os efeitos jurídicos da compra-venda materialmente realizada por B se projectam na esfera de A, o mesmo não sucede com os efeitos jurídico-penais da conduta daquele. Por outras palavras, se alguém vende alimentos para animais em nome e por conta de outrem, quem é parte na relação obrigacional (civil ou comercial), é questão irrelevante para o tipo penal e para a aplicação da competente reacção. Como disse Bruns 104, para o Direito Penal é relevante a conduta material daquele que actua facticamente e não o procurar em relação a quem tem efeito a acção daquele nos termos da lei civil. Assim, só quanto a determinadas espécies de crimes surgem questões complexas de actuações em nome de outrem. Não surgirão certamente quanto àqueles em que qualquer sujeito pode, tipicamente, executar os actos que lesem ou ponham em perigo o bem jurídico protegido. Excluem-

"verificarem"; entre a alínea a) e a alínea b) a particula de ligação é "ou". 102 Aquilo a que a doutrina alemã designa por besondere täterschaftliche Merkmale. 103 Poderá é suceder que o desenvolvimento de uma conduta seja determinado pela vontade de satisfazer ou tutelar um interesse alheio, ocorrendo que tal conduta constitua a prática de um crime. Porém, não ocorrendo quaisquer causas que excluam a ilicitude do facto ou que interfiram no juízo de culpabilidade, tal interesse de outrem é irrelevante. Aliás, o mesmo sucederá se o interesse a satisfazer ou tutelar não for alheio mas próprio. 104 Bruns, Faktische Betrachtungsweise..., p. 463, apud G. Martín, El actuar en lugar de otro..., cit., p. 76.

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se, assim, genericamente, deste âmbito problemático, os crimes cujos elementos típicos não circunscrevam especialmente o agente ou o seu procedimento. Tal sucederá, desde logo, nos crimes em que nenhuma delimitação de possíveis autores seja feita, bem como naqueles crimes cujos elementos típicos sejam só descritivos, como matar, utilizar, subtrair, intimidar 105. Estas são sempre actividades que qualquer indivíduo pode levar a cabo, e pelas quais será punido independentemente de o fazer no interesse ou por conta de outrem 106/107. Ou seja, não existirão actuações em nome de outrem enquanto problema penal autónomo quando o agente -que materialmente actua-,

possua os elementos usados pelo tipo. Assim que se tenham excluído todos os

tipos circunscritos exclusivamente com base em elementos descritivos, porque nesse caso os ditos elementos concorrerão directamente na pessoa do agente ou poderão ser-lhe objectivamente imputados caso utilize um instrumento para a respectiva prática. Terão, assim, razão aqueles que afirmam que só geram problemática própria desta área aquelas acções de sujeito a quem faltam elementos típicos de natureza normativa108. Claro está que nem todos os elementos normativos serão fonte de problemáticas actuações em nome de outrem. Por exemplo, a inobservância do cuidado objectivamente devido nos tipos negligentes é um dos elementos normativos que nunca faltará na própria pessoa daquele que actua materialmente. Nestes casos o cuidado devido é o cuidado necessário, objectivo... 109. Por outro lado, a inobservância desse cuidado devido é aferida pelo juízo de previsibilidade objectiva do agente em face da situação concreta110. Sendo assim, tal elemento nunca deixará de se verificar naquele que materialmente actua. A conclusão parece clara: em crimes negligentes, e quanto ao cuidado objectivo devido, o sujeito que realiza a acção não poderá alegar impunidade mercê de estar a actuar em nome de outrem e de faltar nesse ordenamento uma previsão deste tipo. É que nesse caso, quem deve ter o cuidado objectivo devido não é o "outrem" em nome de quem aquele actuava, mas o próprio enquanto agente111.

105 Cfr. H.-H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, cit., p. 243. 106 Será o caso do homicida a soldo. Claro está que o mandante não ficará, em regra, isento de responsabilidade criminal. 107 Diz G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 78, que também não são actuações em nome de outrem penalmente relevantes aquelas que constituam crimes que uma pessoa, o representante, executa contra o seu representado, assim lesando bens jurídicos do próprio representado (julga-se que o autor se referirá, por exemplo, a casos de infidelidade ou abuso de confiança). 108 G. Martín, idem, p. 79. 109 G. Martín, idem, p. 80. Em sentido idêntico, H.-H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, cit., p. 525, quando afirma:"Actua negligentemente segundo o § 276 I 2 BGB 'quem não observa o cuidado exigível no tráfego". Para ele, o decisivo é o que na comunidade resulte 'exigível' quanto à precaução e atençãopara evitar lesões de bens jurídicos (...). Esta fórmula do Direito civil, como norma fundamental do critério objectivo da negligência, deve empregar-se também para completar o tipo dos crimes negligentes". 110 H.-H. Jescheck, cit., p. 525, escreve: "O primeiro dever que resulta do mandado geral de cuidado é reconhecer o perigo para o bem jurídico protegido e valorá-lo correctamente, pois todas as precepções que visam evitar um dano dependem, no seu tipo e alcance, da percepção do perigo (...). " Mais adiante afirma: "A medida para a atenção exigível ao autor na detecção de perigos é o 'homem consciente e reflexivo da esfera do tráfego a que pertence o agente (...) e, certaemnte, na concreta posição na qual e ste se encontrava...". 111 G. Martín apresenta a mesma solução para os crimes negligentes em que o cuidado devido seja especial ou qualificado. Nesses casos, afirma, "se alguém realiza actividade em âmbito que exige tal cuidado especial para o qual não está capacitado, a

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Também se levantou a questão de saber se as actuações em nome de outrem se poderiam pôr quanto aos chamados crimes de mão própria. E se Schünemann afirmava que se deveriam ter por excluídos, com algumas ressalvas, já G. Martín contraria tal postura. Julga-se aqui ser procedente a crítica a Schünemann, pois só faria sentido excluir esta espécie de crimes do âmbito problemático se os tipos, quanto a eles, apenas utilizassem elementos descritivos 112. Mas tal não sucede, pois que nos crimes de mão própria podem surgir outros elementos para além destes. E estes outros elementos poderão já levantar alguma problematicidade… serão casos de crimes de mão própria que requeiram, em acréscimo, outros elementos típicos, normativos113. Em suma, não há que impedir o entrecruzamento entre estas duas categorias. Uma delas identifica os crimes que só são executáveis por mão própria, a outra, ao invés, apenas delimita uma forma da prática de alguns crimes, de acordo com as especificidades vistas. Os critérios que levam a autonomizar as duas realidades são diversos, por isso não há qualquer obstáculo racional à sua combinação. No dizer de G. Martín, "a exigência de mão própria refere-se à própria execução da acção típica, enquanto que os elementos especiais da autoria nos crimes especiais fixam os pressupostos em que determinadas acções, de mão própria ou não, podem ser típicas"114. VII.2) Crimes que admitem ser praticados “em nome de outrem” A doutrina tradicional e maioritária na Alemanha alinha pela classificação apresentada por Bruns 115, que encontrava acções em nome de outrem penalmente relevantes nos seguintes casos: nos crimes em que o tipo de ilícito exige a concorrência de uma qualidade especial e pessoal do autor (Sondereigenschaft des Täters) -v.g. o ser praticado pelo "devedor"; nos crimes em que o tipo de ilícito

inobservância do cuidado é o não se ter abstido de realizar a acção para a qual não estava capacitado" (idem, ibidem). Ou seja, não serão sequer actuações em nome de outrem relevantes as que se subsumam a tipos negligentes "que se configurem com base na exigência de um dever objectivo de cuidado especialmente qualificado, dirigido portanto ao círculo de actuantes desse âmbito social. Claro que haverá crimes negligentes específicos que exigem uma qualidade especial no autor" (idem, p. 81). Não haverá é especialidade quanto ao elemento normativo inobservância do cuidado objectivamente devido, pois sempre este recairá necessariamente no agente. A questão será diversa, surgindo especialidades motivadas pelo desenvolvimento da actividade em nome de outrem, quando o elemento normativo sirva para descrever a autoria do crime especial. 112 Como lembra G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 81, por definição "o sujeito que actua nestes crimes tem que ter na sua própria pessoa todos os elementos da acção típica". Ou seja, os elementos descritivos típicos é que têm, nestes crimes, que ser realizados pelo agente por mão própria. 113 Diz G. Martín, idem, p. 82: "A questão surge nos crimes que sendo de mão própria requerem ainda elementos típicos que podem faltar no sujeito que realiza por mão própria a acção e os demais elementos típicos em lugar do sujeito qualificado". E dá como exemplo o caso da divulgação de segredos empresariais por parte de um administrador da própria empresa. A prática de tal crime teria de ocorrer por mão própria. A natureza da acção típica implicaria que o autor pessoalmente realizasse os actos de divulgação (ou seja, seria caso de autoria mediata impossível). Assim, no caso de o administrador transmitir o segredo a alguém para que este o divulgue, não há qualquer autoria mediata. Há pura e simplesmente a prática, pelo administrador, do dito crime. Questão diversa surgirá nos casos em que justificadamente o administrador revelou o segredo, v.g. no exercício da actividade administrativa e por imperativo técnico (a um técnico financeiro, por exemplo). Se, após a consulta, este próprio técnico divulgar o segredo, gera-se a situação problemática. O técnico não é administrador, e não poderá ser punido se e na medida em que o tipo penal que tutele tal violação de segredo utilize a qualidade especial de administrador para balizar o tipo. Sendo crime de mão-própria, conclui G. Martín, gera problemática própria da figura das actuações em nome de outrem. 114 G. Martín, idem, ibidem. 115 Além de outros momentos, cfr. Bruns, Können die Organe..., cit., pp. 13-15; Bruns, Über die Organ- und Vertreterhaftung…, cit., p. 12; alinham na classificação proposta, Wiesener, Die strafrechtliche Veratwortlichkeit..., cit., p. 24; e Schäffer, Referat..., cit., p. 550.

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pressupõe uma actividade precisa e delimitada, tipicamente descrita (tatbestandmässig vorausgesetzen Tätigkeit ou spezifische Handlungsbeschreibung)

-por exemplo as referências do tipo a "vender", "outorgar",

etc.; nos crimes em que o tipo pressupõe a vinculação fáctica ou jurídica do respectivo autor a certos bens patrimoniais (rechtliche oder tatsächliche Zuordnung von Vermögensgütern) -estariam neste caso as referências à propriedade dos bens; e nos crimes em que o tipo requer que a acção típica surja mercê de uma tendência interior egoísta do sujeito (egoistisch beschränkte Innentendenz) -v.g., “aproveitar-se para si”. Já G. Martín considera existirem acções em nome de outrem com relevância penal nos casos dos crimes que exigem a verificação de determinada qualidade no autor, ou seja os crimes específicos, e naqueles em que a génese da acção é a tendência interior egoísta do autor. Quanto àqueles crimes em que o tipo de ilícito pressupõe uma actividade precisa tipicamente descrita e delimitada116, e quanto aos crimes em que o tipo pressupõe a vinculação fáctica ou jurídica do respectivo autor a certos bens117, absorver-se-iam no grupo dos crimes específicos, dogmática e regimentalmente. Quanto a nós, cremos merecer adesão a classificação apresentada por Martín. Na verdade, quer nos crimes em que a actividade (a que se reconduz a acção tipicamente descrita), é delimitada por referência a um sector do ordenamento jurídico que não o Direito penal, quer naqueles em que o tipo pressupõe uma relação jurídica ou fáctica do autor com determinados bens, o que o legislador faz é ainda delimitar o círculo de sujeitos activos que poderão praticar o crime. Enquanto que com o recurso às qualidades do agente se faz uma delimitação expressa ou positiva do círculo de autores, com a indicação das actividades que o autor deve desenvolver e com a referência às relações do sujeito com certos bens, temos uma delimitação implícita ou negativa. Analisemos, pois, as duas áreas identificadas.

116 Crimes em que o tipo pressupõe como acção típica uma actividade delimitada por outros sectores da ordem jurídica: nesta categoria se subsumiam os tipos que identificavam a acção com uma actividade que se encontrava delimitada por outros sectores do ordenamento jurídico. Para a doutrina tradicional, se nesse outro sector se admitisse o instituto e os efeitos da representação, gerar-se-iam fenómenos de dissociação, razão pela qual a categoria gerava problemas penalmente relevantes de actuações em nome de outrem. Para Bruns esta categoria demonstrava que as actuações em nome de outrem não se limitavam ao campo dos crimes específicos. Aqui o que falta ao agente não é uma especial qualidade pessoal mas elementos da própria acção típica, que, também estes, só se verificavam quanto ao representado. Criticando a argumentação de Bruns, G. Martín (idem, pp. 132-137), afirma que "os crimes que descrevem uma acção mediante uma actividade formal regulada por sectores jurídicos extrapenais são crimes em que a substantivação da acção típica dá como resultado 'uma caracterização específica do sujeito activo'. São crimes específicos! Nem mais nem menos" (idem, p. 136). E conclui: "os crimes que se estruturam com base na acção consistente na realização de uma actividade regulada por outro sector do ordenamento são... crimes específicos, que seguirão, para efeitos de actuação em nome de outrem, a mesma regra geral" (idem, p. 137). 117 Crimes em que está tipicamente pressuposta a vinculação do autor a objectos ou pessoas que se encontram no campo da acção. Bruns referia aqui os elementos do crime que referissem a agregação de bens, factica ou juridicamente, ao sujeito. G. Martín (idem, p. 131) afirma quanto a esta categoria que a "extensão da qualidade pessoal típica pela cláusula das actuações em lugar de outro aos elementos pessoais envolve simultânea e automaticamente a extensão também daqueles elementos relacionais". Isto seria assim porque as ditas relações e a qualidade especial da autoria implicam-se mutuamente, sendo pontos de vista distintos da mesma realidade: numa parte-se da perspectiva do sujeito, o dono dos bens, noutra parte-se da própria relação entre o sujeito e os bens, a relação de propriedade, por exemplo.

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a) Os crimes específicos - São crimes específicos118 aqueles em que o autor está identificado através da referência a determinadas qualidades ou relações 119. Na fórmula de Teresa Beleza120, são crimes "em relação aos quais os agentes são definidos fundamentalmente através da titularidade de uma certa situação jurídica". Ou seja, o tipo circunscreve-se delimitando o círculo de agentes que o podem perpetrar. Ora, foi precisamente a partir desta categoria de crimes que se concluiu pela relevância e necessidade de conformar juridicamente as actuações em nome de outrem, sendo neste ponto a doutrina mais ou menos unânime121. Nos crimes específicos a estrutura da actuação em nome de outrem esquematiza-se do seguinte modo: o sujeito que desenvolve a actividade material que integra o substrato da acção tipicamente descrita, não reúne em si um ou vários dos elementos que descrevem o círculo de autores delimitado pelo tipo. Paralelamente, cabe considerar que os crimes específicos beneficiam de uma especial regulamentação no que concerne à participação criminosa122. Como resulta patente, se autor de um crime específico só pode ser aquele sujeito que pelo tipo é indicado, na medida em que nele se verificam especiais elementos (que serão por isso elementos especiais da autoria), então gerará dificuldades o facto de surgir outro sujeito, não especialmente qualificado, a praticar, conjuntamente com o sujeito qualificado, actos materialmente subsumíveis ao tipo. Ora, iguais reticências surgirão se, em vez de a actividade ser levada a cabo pelo identificado sujeito dotado das especiais qualidades ou relações, for materialmente desenvolvida pelo representante daquele sujeito, dito idóneo. Por outras palavras, o sujeito que praticar materialmente os actos em vez daquele que pelo tipo é considerado como autor, não pode, verdadeiramente, ser autor de um tal crime 123. Para a maioria doutrinal124, quando o representado execute ele mesmo o facto principal e nele tenha intervindo o representante estranho, é caso de comparticipação do extraneus no crime específico, devendo por aí resolver-se a questão. i.e., desaparece qualquer lacuna. No caso inverso, se o representado não actua e o representante levou a cabo a actividade material conducente ao resultado típico que a norma visava evitar, surgirá a lacuna. E tal situação não

118 Cfr. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito penal, cit., p. 158, afirmando: "Em princípio, a perpetração de um crime não depende de qualidades pessoais que restrinjam o círculo de pessoas que o podem cometer. Mas há crimes que só podem ser cometidos por um círculo restrito de pessoas (intranei). Estes crimes são tradicionalmente designados por 'crimes próprios' (delicta propria)... ". Quanto à definição cfr. igualmente Langer, Das Sonderverbrechen, Duncker und Humblot, Berlin, 1972, maxime pp. 7 e 32 e ss. 119 Notam-se algumas oscilações nas denominações doutrinais e legais. Se há quem utilize a fórmula qualidades pessoais especiais, há quem refira só qualidades pessoais, usando-se também a expressão características, só por si ou acompanhada da referência a pessoais e a especiais. 120 Teresa Beleza, Direito Penal, 2º vol., Reimp., AAFDL, Lisboa, 1994, pp. 117 e s. 121 De modo meramente exemplificativo, cfr. Muñoz Conde, La responsabilidad penal de los órganos…, cit., pp. 154 e ss; Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., p. 52 - 142 e passim; Bajo Fernández, Derecho penal económico..., p. 120. 122 Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, cit., p. 158, quando escreve: "Tem a categoria dos crimes próprios especial importância no regime da comparticipação (art. 28º)". 123 Assim também é posta a questão por Bruns, Können die Organe..., cit., pp. 10 e ss. 124 Que, lembre-se, vê as actuações em nome de outrem nos casos em que o representado não pode ser punido por ser insusceptível de responsabilização penal.

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decorre do facto de o representante não poder ser punido como partícipe, mas porque não se pode puni-lo como autor. Ao invés, partindo da concepção sustentada, consegue precisamente responsabilizar-se aquele que actua em nome de outrem a título de autor125. O representante -aquele que actua em nome de outrem126-,

é, dada a estrutura destes tipos, um extraneus. Mas é um extraneus que se deve

considerar qualificado127. E assim é quer mercê da necessidade político-criminal de que assim seja, quer porque a identidade substancial das situações impõe igual tratamento jurídico-penal128. Assim, aquela actuação do representado em acordo com o representante, não deve levar sistematicamente à dedução de uma responsabilidade do representante como partícipe. Tudo dependerá, casuisticamente, de o representante ter actuado como autor ou como partícipe129. Contudo, a opinião mais divulgada tende a considerar que o extraneus em crimes específicos só poderá intervir como participante em facto alheio, nunca, v.g., como co-autor. Ora, se no caso em que o representado não actua se deduz para o representante uma responsabilidade enquanto autor, "o mesmo há-de fazer-se para os casos em que aquele intervenha como autor em concreto. Aqui também deverá haver para o representante uma responsabilidade enquanto autor (co-autor) e não como partícipe estranho se o que em concreto fez integra a categoria de actos de autoria (coautoria)"130. Por outro lado, a participação de um intraneus no crime específico não impõe que o seja necessariamente enquanto autor, tudo dependerá dos concretos actos de participação que por si forem desenvolvidos. Mas se isso se verificar, o intraneus só por essa participação poderá ser responsabilizado, e nesses casos o representante -segundo a concepção criticada-, também não poderia ser punido, pois inexistiria autor. Ao invés, na tese preconizada o resultado seria justo e coerente: o representante seria punido como autor porque levou a cabo actos materiais de autoria, e o representado, mesmo tendo a qualidade especial requerida pelo tipo, assumiria posição subordinada131.

125 E esta consequência é tanto mais necessária quanto serve para demonstrar que não é imprescindível a abstenção do sujeito idóneo, do titular da esfera, para ocorrer uma actuação em nome de outrem relevante e digna de conformação jurídico-penal. No dizer de Martín, "Esta não é a base dogmática da figura". Quanto a exposições sobre a questão na doutrina portuguesa cfr. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, cit., pp. 471 e s; e Figueiredo Dias, Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa, in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983, pp. 47 e s. 126 Sendo este o indivíduo eleito pela norma como sujeito qualificado para poder ser autor do crime específico respectivo. 127Aliás, tal é demonstrado pela própria doutrina alemã que tende a extender os tipos específicos a tais pessoas em termos de extensão da autoria (Täterschaftausdehnung). Assim Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., p. 156; e Grau, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., p. 740. 128 G. Martín, El actuar..., I, cit., pp. 32 e s. 129 G. Martín, idem, p. 33. 130 G. Martín, idem, ibidem. 131 As soluções encontrar-se-ão pois pela aplicação das regras da autoria e da participação no crimes especiais entre dois intranei... O que demonstra que uma cláusula que preveja a actuação em nome de outrem "tem a virtualidade de efectuar o ingresso destes sujeitos no círculo de autoria em certos crimes" (G. Martín, idem, ibidem), ou seja, outorga-se a estas pessoas o status de intranei. Como

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b) Os crimes cuja acção típica é delimitada por motivação egoísta do autor - A doutrina define estes crimes como aqueles em que o tipo descreve uma acção típica que se reporta a uma actividade que tende para o proveito próprio do respectivo autor (eigennütziges Handeln), ou crimes em que se encontra subjacente uma tendência egoísta interior do autor (egoistische Innentendenz). Quanto a nós referimos apenas a delimitação através de uma motivação egoísta do autor, por duas ordens de razões: porque a acção, nestes tipos, é descrita por visar o proveito próprio, e não por haver no autor uma qualquer tendência para o próprio proveito132; porque as motivações egoístas são sempre internas ao autor133. Ou seja, ficam pefeitamente compreendidas com a expressão motivação egoísta do autor as realidades a que nos queremos referir (todos os tipos em que são seleccionadas como relevantes as actuações egoístas 134),

ganhando-se ainda com a simplicidade da

construção. Schünemann135, ao tratar estes crimes na perspectiva das actuações em nome de outrem, concluia que os problemas se punham mercê da estrutura da moderna vida sócio-económica baseada na divisão de tarefas, que impunha uma separação entre interesses e acções. A questão era por si analisada também no campo das actuações dos Quadros em nome das Instituições. Partindo a sua construção da base da dissociação dos elementos típicos, a fórmula ajustava-se perfeitamente a estas situações: nestes crimes gerar-se-ia uma lacuna de punibilidade se o representante agisse com a intenção de obter vantagens ou realizar interesses do representado, pois este não tinha actuado, e aquele não tinha visado realizar um interesse egoísta. Atente-se que a impunidade136 não resulta aqui da falta de qualquer motivação subjectiva típica da acção mercê da dispersão entre representante e representado. O que sucede é que o agente não realiza a acção com a motivação “típica”. Ao invés, a motivação do agente é oposta àquela que o tipo selecciona como relevante. Em vez de uma motivação egoísta do agente, ele demonstra, com a realização da conduta descrita, uma motivação altruísta, na medida em que não é em seu

conclui o mesmo autor, isto prova que a figura da actuação em nome de outrem independe da não-actuação do representado. O ter ou não actuado é "questão independente e eventual" (G. Martín, idem, ibidem). 132 Aliás, é da própria natureza humana, pelo menos na normalidade da vida, que toda a actividade de cada homem tenda para o seu proveito, nem que seja mediatamente, ou pelo menos que não lhe seja uma actividade prejudicial. 133 Como o são todos os momentos da vida psicológica, sentimental e intelectual do Homem. 134 A doutrina alemã cristaliza o núcleo desta espécie nos crimes em que se verifique uma apropriação ou subtracção. Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., p. 103, indica como gerador deste carácter egoísta a "profissionalidade" com que é desenvolvida a actividade criminosa. 135 Schünemann, Unternehmenskriminalität..., cit., p. 33. 136 Impunidade que, como diz a doutrina alemã, a jurisprudência se encarregou de evitar, através de uma interpretação ampla de "tendência egoísta", abrangendo inclusivamente casos de mera vantagem mediata ou mesmo para terceiro, como se se dissesse que por detrás da aparente conduta altruísta existia um espírito egoísta de primeira linha: o egoísmo latente é que possibilitava o altruismo patente. Schünemann, idem, ibidem, critica este procedimento, quer com razões de justiça quer por motivos dogmáticos (quebrar-se-ia a distinção entre crimes de apropriação e de enriquecimento). A doutrina, contudo, atendendo à regulamentação legal do § 28 StGB, sobre a comunicabilidade dos "elementos" do crime, entende que a componente egoísta é um elemento pessoal especial que deve atenuar a pena do participante que careça de tal tendência. Será o que deve suceder quando um Quadro actua no interesse da Instituição e não no seu próprio interesse? Ou neste caso gera-se só impunidade? Face à lei alemã a resposta dependerá de saber se a motivação egoísta é um verdadeiro elemento pessoal especial, tal como as qualidades do autor e como defende a doutrina, ou algo diverso.

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proveito ("precisamente a tendência subjectiva especial do que actua em lugar de outro é a contrária de 'actuar para outro'"137).

Ou seja, em tais casos gera-se igualmente uma situação resolúvel através de uma

previsão de actuações em nome de outrem, pois do que se trata é da falta de um elemento exigido pelo tipo no agente: a motivação egoísta da acção138. Ora, tal como nos crimes específicos a extensão se produz não desaparecendo a "especificidade" do tipo, também aqui a extensão dos crimes com motivação egoísta não altera a sua essência, posto que não há um desbragamento do tipo, mas um alargamento controlado, que apenas abrange aqueles indivíduos que "entraram na posição do autor se tais pessoas têm faculdades reconhecidas de facto ou de direito para actuar como se fossem o próprio sujeito idóneo, de tal modo que a sua conduta, do ponto de vista do desvalor da acção, é equivalente à do autor idóneo"139. Ou seja, do ponto de vista do conteúdo da ilicitude, a actuação daquele que actua em nome de outrem é idêntica à do sujeito em nome de quem a conduta é praticada, pelo que, reprovando-se a conduta deste quando egoísta, também a daquele merece igual censura, tanto mais que, socialmente, aquele que actua em nome de outrem, neste sentido jus-penal, é visto como se fosse o próprio titular do interesse ou representado. Daí a fórmula da actuação em nome de outrem servir perfeitamente para solucionar as situações em que é praticado um crime de motivação egoísta do autor por alguém que não está seleccionado pelo tipo, desde que realize a actividade no interesse daquele que é considerado pela Lei como autor idóneo. VIII –Estrutura e Fundamento das actuações em nome de outrem A estrutura básica das actuações em nome de outrem pode resumir-se no seguinte: na pessoa do sujeito que materialmente actua não concorre algum(ns) elemento(s) típico(s). O segundo passo no seu entendimento é a constatação de que a acção do sujeito actuante e desqualificado perante o tipo é, apesar disso, equivalente, do ponto de vista do conteúdo da ilicitude do crime específico, à actuação que seja desenvolvida pelo sujeito que a norma caracteriza, sendo igualmente idênticos os resultados das acções que de um e de outro sujeito podem surgir.

137 G. Martín, El actuar..., cit., p. 139, fazendo alusão a Blauth, cit., p. 11. 138 G. Martín, El actuar..., cit., p. 141. Em sentido oposto se posiciona Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., pp. 146 e ss, entendendo que a solução não passa pela via das actuações em nome de outrem. Este último pondera contra a utilização das actuações em nome de outrem que tal cláusula implicaria uma mudança essencial na construção e fim desta espécie de crime (idem, p. 148). Tal delimitação típica foi ponderada pelo legislador, que quis expressamente manter as raias da punição dentro dos casos em que tal motivação existe no agente. Uma extensão seria justificada apenas com uma concepção de crime enquanto acto socialmente nocivo. Ora o crime é algo mais do ponto de vista do desvalor, é desvalor da acção, e nesta espécie de crimes, é precisamente a actuação motivada pelo egoísmo que determina a reprovabilidade social e que leva a deixar de fora situações em que o egoísmo da acção não existe. O § 14 StGB não permite compreender estas situações, segundo se crê e é afirmado pela maioria da doutrina alemã (Blauth, idem, p. 103; Wiesener, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., pp. 85 e s, entre outros). Como bem afirma G. Martín, idem, pp. 156 e ss. tal decorrerá da consagração nesse preceito da Tese da Dissociação. 139 G. Martín, El actuar..., cit., p. 144.

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A questão primeira será pois a da determinação dos elementos pessoais140 do crime que faltam no agente em nome de outrem. A primeira delimitação é feita pela selecção daqueles elementos que se referem “ao autor”. Mas não chega esta precisão. Cumpre também esclarecer que apenas relevam aqueles elementos que pertençam ao âmbito da ilicitude141. Por outro lado, o desvalor do resultado é o mesmo, quer seja produzido por um sujeito idóneo, quer seja advenha do agente não qualificado. Assim, as actuações em nome de outrem deverão analisar-se na perspectiva do desvalor da acção desenvolvida. Por isso afirma Martín que apenas se trata "de encontrar um critério de equivalência das acções"142. Procuramos assim elementos constitutivos do desvalor da acção que caracterizem o sujeito identificado pelo tipo143, ou seja, elementos que se refiram ao desvalor pessoal da acção. Mas como resulta patente, há vários elementos típicos determinantes de um desvalor pessoal da acção que não suscitam problemas para as actuações em nome de outrem, desde logo todos aqueles que não podem faltar no sujeito que actua144. Centramo-nos, pois, apenas nos elementos objectivos da autoria e nos elementos subjectivos da ilicitude145. Ora, as actuações em nome de outrem servem precisamente para conferir ao sujeito que carece desses elementos o mesmo tratamento que a lei dá ao sujeito que os possui… "trata-se de assimilar um extraneus a um intraneus!". Daí que possa dizer-se que os elementos do crime geradores de problemática nas actuações em nome de outrem são os elementos objectivos da

140 Constata-se a importância desta questão quando olhamos para o art.º 12º, nº 1, al. a) CP que nos fala em "determinados elementos pessoais", sem que se consiga só por isso determinar quais os elementos pessoais que o legislador aí quis considerar integrados. 141 Como diz G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 277, "Num Direito penal do facto, todos os elementos que fundamentem a censura da culpabilidade devem concorrer no agente e actualizar-se no facto. Esta é uma exigência insuperável...". E segue: "Segundo a fórmula tradicional da dissociação dos elementos do tipo, nas actuações em lugar de outro o elemento que falta no sujeito que actua t em que concorrer forçosamente no sujeito concreto em cujo lugar actua. Se os elementos que da censura da culpabilidade devem actuali zar-se no facto, tais elementos não poderão verificar-se no sujeito que não actua, o qual é óbvio se este é uma pessoa jurídica ou um sujeito incapaz de culpa". 142 G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 278. Logo em seguida o autor alerta para que nem todos os elementos constitutivos do desvalor da acção caracterizam o autor. Jescheck, Tratado de Derecho penal, cit., p. 216 afirma: "...a ilicitude do facto não se esgota na desaprovação do resultado do crime, mas também o modo e a forma de causação desse estado que o Direito desaprova devem inclui rse no juízo de desvalor. Daí se depreende que para a dogmática actual é relevante a distinção entre o desvalor do resultado e o desvalor da acção no ilícito". Seguidamente (idem, p. 217), falando dos componentes pessoais do desvalor da acção conclui: "Hoje a questão é apenas a de saber que elementos pessoais devem ser considerados como componentes do desvalor da acção e como se há-de determinar a relação preferencial entre o desvalor da acção e o desvalor do resultado dentro do tipo penal". 143 Exemplos de elementos constitutivos do desvalor da acção que não se referem ao autor são os que se reportam os modos de realização da acção típica. Por isso são realizados, mesmo nos casos de actuação em nome de outrem, pelo agente. 144 Assim precisamente G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 279 quando elege como critério na procura dos elementos do desvalor pessoal da acção que interessam para as actuações em nome de outrem, precisamente, "a sua aptidão para faltar no sujeito que actua". Assim que sejam de excluir elementos como o dolo, a inobservância do cuidado devido e a execução pessoal nos crimes de mão própria (G. Martín, idem, ibidem). 145 Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., pp. 54 e 57, exclui a relevância para efeitos de actuação em nome de outrem dos elementos subjectivos da ilicitude, o que é consequência da fórmula da dissociação, que exige que o elemento que falta no agente deve concorrer no sujeito representado. Quanto a isto, G. Martín, idem, p. 280, diz que nada há a objectar em face da lei alemã. Quanto a Portugal, contudo, atendendo à previsão do art.º 12º, nº 1 al. b) (crimes delimitados por motivação egoísta), que constitui modalidade de actuação em nome de outrem, a conclusão terá que ser a inversa. Os elementos com interesse para as actuações em nome de outrem abrangem os elementos subjectivos da ilicitude. Aliás, o regime português do art.º 12º, nº 1 al. b) consagra precisamente a posição defendida por G. Martín quanto a estes tipos delimitados por motivações egoístas. Em Espanha, Octávio de Toledo, Las actuaciones en

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autoria e as motivações egoístas146/147. Cabe, assim, ver quais os elementos problemáticos em relação ao sujeito qualificado nos tipos específicos e analisá-los da perspectiva daquele que age em seu nome. Não sem antes referir que várias foram as tentativas doutrinais no sentido de concretizar o núcleo de elementos susceptíveis de entrar na problemática das actuações em nome de outrem. Uma das vias de identificação desses elementos pessoais foi preconizada, entre outros, por Blauth, usando como critério negativo -de exclusão de relevância para as actuações em nome de outrem -, a Höchstpersönlichkeit

dos

elementos.

Existiriam

elementos

de

natureza

pessoalíssima,

insusceptíveis de representação148, e elementos descritores de um contexto sócio-funcional (elementos pessoais-impróprios), e só estes últimos gerariam actuações em nome de outrem149. Outra das tentativas de concretizar os elementos pessoais geradores de actuações em nome de outrem usava como critérios a "referência ao autor" e a "referência ao facto"150. Esta via emergiu, além do mais, da estrutura da Lei penal alemã, em especial do confronto entre os §§ 14 e 28 StGB. A doutrina relacionava, mercê da remissão deste último preceito para aquele, os elementos das actuações em nome de outrem com os elementos relativos à acessoriedade da participação. E a conclusão, resultante do confronto legal, era a de que os elementos referidos no § 28 "não podem entrar em consideração para as actuações em lugar de outro", razão pela qual "devem ser estudados acessoriamente"151. Para os distinguir a doutrina seguia um esquema apresentado por Welzel, que contrapunha "elementos pessoais relativos ao facto e elementos pessoais relativos ao autor". Enquanto os primeiros se aplicariam a todos os partícipes que deles tivessem conhecimento, os segundos só teriam relevância nos sujeitos em que se verificassem 152. i.e., para nombre de otro, cit., p. 64, sustenta posição semelhante à de Blauth. 146 Note-se que G. Martín se empenha na sua obra, conseguidamente, a dar um tratamento unitário às actuações em nome de outrem apesar de estruturalmente os crimes específicos serem distintos dos crimes delimitados por motivações egoístas. Aliás, prova cabal de que não só o tratamento dogmático como o regime legal são coerentemente comuns, é o art.º 12º CP. 147 A doutrina que assenta na ideia clássica da actuação em nome de outrem enquanto relação representativa, defende que nem todos os crimes que exijam determinadas qualidades pessoais no autor permitem actuações em nome de outrem relevantes. E o exemplo que dão, relatado por G. Martín mas constante também na referência de Blauth a que se tem aludido, destes crimes específicos que não admitiriam actuação em nome de outrem são os chamados crimes de funcionários, afirmando que essa qualidade não é susceptível de representação. Não se concordará, obviamente, com esta limitação do alcance das actuações em nome de outrem. O problema de tal concepção surge porque põe o acento tónico no estudo da acção do sujeito qualificado, e não no aprofundamento da acção do que actua em nome daquele (G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 282). 148 Exactamente o atrás referido caso do elemento "funcionário". 149 Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., pp. 84 e ss. Apenas no Direito Civil se pode usar o conceito de pessoalíssimo. Não se reconhecendo o instituto da representação em Direito penal, só o facto próprio é susceptível de imputação. Acresce ainda que "a responsabilidade do agente em nome de outrem não deriva de uma suposta imputação de elementos alheios, mas como consequência de um juízo de equivalência cujo substrato são as condições pessoais próprias do sujeito que actua" (G. Martín, idem, p. 287). O argumento mais forte, contudo, é aquele que demonstra que mesmo estes elementos pessoalíssimos servem para descrever a esfera funcional social de um sujeito, de um juiz, de um funcionário, ironiza Martín! 150 Também aqui surge Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., pp. 109 e ss; 151 G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 288. 152 Esta a concepção exposta por H.-H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, cit., p. 598, precisamente demonstrando que os elementos do segundo grupo não se estendem, antes se aplicando apenas ao sujeito no qual se verificam.

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as actuações em nome de outrem só relevavam elementos "pessoais relativos ao facto". Porém, como já dissémos -escorados aliás em Jescheck-, a constante polémica quanto à qualificação dos diversos elementos leva à insegurança e à prática inoperatividade deste critério. Outros, por seu turno, lembram que não há elementos exclusivamente pessoais nem exclusivamente relativos ao facto, falando-se ainda em elementos mistos, com matizes pessoais e fácticos153. Posteriormente, a doutrina alemã sofreu evoluções várias, tentando concretizações do critério acabado de expor, quer por referência ao bem jurídico de um elemento da autoria, quer pelo apelo a valores ético-sociais e à danosidade social como critérios de identificação dos elementos da autoria relevantes154. A doutrina maioritária sobre actuações em nome de outrem, contudo, mantém a distinção entre elementos pessoalíssimos da autoria, os irrepresentáveis, e outros elementos, os representáveis, geradores de actuações em nome de outrem155. I.e., o acento tónico é posto na representação feita pelo extraneus em relação ao intraneus156. É pois uma teoria que fundamenta a responsabilidade pela actuação em nome de outrem na representação assumida no cumprimento de dever alheio. Neste sentido os crimes que geram situações de actuação em nome de outrem serão os crimes de violação de um dever157. Nestes crimes de violação de dever o critério para delimitar a autoria não é o domínio do agente sobre o facto, mas a infracção de um dever extrapenal, activa ou omissivamente, dado equipararem-se os deveres que sustentam a autoria nos crimes activos e omissivos158. Daí que a maioria doutrinal encontre o fundamento da responsabilização daquele que age em nome

153 G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 291. Diz este autor: "Por facto há que entender facto típico. Neste sentido, todos os elementos pessoais que caracterizam o desvalor da acção, mesmo que radiquem na pessoa do autor estarão referidos ao facto típico, pois a tipicidade de um facto depende de elementos pessoais. Assim, por exemplo, os elementos objectivos da autoria dos crimes espec íficos são elementos do facto típico, pois só sãojurídico-penalmente relevantes enquanto dão um sentido valorativo ao facto. Finalmente, o critério de distinção que refutamos não podia ter o sentido de que os elementos referidos ao autor sejam os subjectivos e que os referidos ao facto os objectivos, pois isso suporia um regresso a uma concepção puramente descritiva do tipo. Ao tipo pertencem todos os elementos que fundamentam a ilicitude específica de um tipo penal". 154 Sobre esta evolução, cfr. G. Martín, idem, pp. 292-312. Outro critério que foi proposto, por Herzberg, distinguia entre os elementos pessoais referidos a valor e os elementos pessoais valorativamente neutros. Estes últimos seriam os únicos a relevar para as actuações em nome de outrem. Também quanto a este critério, G. Martín, idem, pp. 312 e ss. 155 Precisamente porque entendem a problemática da actuação em nome de outrem como derivada de uma relação de representação entre o terceiro que executa a acção e o sujeito qualificado pelo crime específico respectivo. Tal representação será precisamente a representação Orgânica, no que concerne às Instituições. Mas casos há em que um terceiro acede à posição de autor de crimes que a doutrina maioritária exclui da problemática das actuações em nome de outrem, o que demonstra que estas têm um âmbito maior do que o que lhe é consignado por tal doutrina. 156 Afirma G. Martín, idem, p. 315: "Pressuposto desta concepção é a conhecida doutrina dos crimes consistentes na infracção de um dever (Pflichtdelikte) desenvolvida por Roxin". 157 C.Roxin, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, 2. Aufl., Walter de Gruyter Verlag, Berlin/New-York, 1973. Roxin distingue "crimes de domínio" (Herrschaftsdelikte) nos quais a autoria é dada pelo domínio do facto, e "crimes de violação de dever" (Pflichtdelikte), quanto aos quais "não interessa a qualidade externa da conduta do autor, porque o fundamento da sanção radica em que alguém infringe as exigência de conduta derivadas do papel social que desempenha". 158 A esta construção objecta G. Martín que "...en el sistema de Roxin, os crimes consistentes na infracção de um dever são, ao menos complementarmente acessórios de normas extrapenais: aquelas das quais emana o dever em questão, que também poderia ter a sua fonte, não obstante, o conteúdo de um contrato. Nestes crimes, os extranei não podem ser nunca autores, nem directos nem medi atos, porque a eles não os vincula o dever cuja infracção constitui o fundamento da tipicidade dos crimes que consideramos " (G. Martín,

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de outrem na representação do sujeito idóneo para o cumprimento de deveres que a estes incumbem159. Logo, estes deveres caracterizariam os elementos objectivos da autoria. No dizer de Blauth, o agente em nome de outrem seria um "representante no cumprimento do dever" (Pflichtenvertreter)160. Assim, a causa última para a incriminação do agente-não-qualificado é a transmissão que se opera do cumprimento de deveres, deveres do representado que revolvem sobre aquele (Pflichtenüberwälzung). Termos em que, através do instituto em apreço, se procedia a uma imputação ao representante dos tais elementos pessoais de que ele carece e que se verificam no representado161. O dever do agente em nome de outrem seria, pois, secundário (Sekundärpflicht), mas tinha por objecto os mesmos que cabiam ao representado. Sendo aquele dever um dever extra-penal também este o seria, e era ele que fornecia a tipicidade para a actuação em nome de outrem. Mas, como lembra Blauth, a ampliação da tipicidade a que se procedia com tal previsão das actuações em nome de outrem dependeria em absoluto do sentido e alcance da obrigação secundária a que ele estava vinculado, não se podendo aumentar por via penal os deveres do representante. Por último, a fonte dos deveres extra-penais daquele que age em nome de outrem variaria de acordo com o tipo de representação em que a sua actuação assentasse: os deveres dos representantes legais e dos Quadros das Instituições resultariam da Lei ou dos estatutos sociais; no caso dos representantes voluntários a fonte do dever secundário era o acto pelo qual se outorgavam os poderes. À teoria da representação no cumprimento do dever se opôs Martín, desde logo criticando a qualificação dos ditos deveres enquanto primários e secundários162. Além disso, a própria categoria dos crimes de violação de dever não se lhe apresentava sustentável163. Na sua posição, a

idem, pp. 318 e s). 159 Por todos veja-se Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., p. 79. 160 Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., pp. 79 e ss. 161 Sublinha G. Martín que esta terá sido a razão substancial que levou a delimitar consequentemente os elementos da autoria em irrepresentáveis , porque pessoalíssimos, e representáveis (G. Martín, idem, p. 320). 162 G. Martín, idem, pp. 321 e 322 e ss. Demonstra o autor, em especial, que o critério usado para distinguir os deveres dos Quadros das Instituições e dos representantes legais por um lado, e os dos representantes voluntários, por outro, é meramente inconsistente e incorrecto, pois para um dos termos da classificação é um critério formal (o primeiro grupo), para outro é material (o dos representantes voluntários). Por outro lado, tal teoria não permite equiparar os deveres do sujeito idóneo e do representante (Blauth, idem, p. 81 afirma mesmo que entre eles há uma diferença fundamental). Ora, a equiparação é fundamental, num correcto entendimento do instituto da actuação em nome de outrem. Compreende-se, diz o autor, que não seja o mesmo dar cumprimento a deveres próprios e a deveres alheios; certo é também que para esta concepção ambos os direitos têm o mesmo objectivo, produzir a situação jurídica desejada ou evitar a lesão do bem jurídico; mas nada diz a teoria em apreço sobre o que realmente motiva a incriminação das actuações em nome de outrem. E esse motivo, diz Martín, é o facto de a lesão do bem jurídico mediante o incumprimento do dever que incumbe ao outrem ser uma agressão tão insuportável para o bem jurídico como a que seria produzida pelo próprio, pelo representado. Tudo isto demonstra que quando se prevê a actuação em nome de outrem está subjacente uma ideia de equivalência valorativa, que a doutrina maioritária não consegue, com os seus pressupostos, justificar. O maior defeito da construção será, pois, entendemos nós, a sua inaptidão para justificar dogmática e substancialmente o instituto em análise. 163 G. Martín, idem, pp. 333 e ss. Quanto à concepção de Roxin já anteriormente (pp. 323 e ss) G. Martín havia observado, justamente, que o apelo ao papel social nada auxilia. Logicamente que o papel do devedor, comenta, será diverso do papel de representante daquele. "O status pessoal é incomunicável", conclui.

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infracção do dever não permite estabelecer um critério de equivalência entre a actuação do sujeito qualificado e a daquele que em seu nome actua. Ora, como essa equivalência é a única razão válida para a extensão da tipicidade, outro terá que ser o critério, outra terá que ser a estrutura e outro terá que ser o fundamento do instituto164. Daí que procure encontrar outra estrutura dogmática para as actuações em nome de outrem, de modo a conformar o juízo de equivalência imprescindível à justificação da essência das mesmas enquanto via de extensão da autoria e da tipicidade. Tal juízo de equivalência, como diz, só pode fazer-se na esfera normativa do tipo e com base em suportes materiais165, pelo que o desenvolve buscando o fundamento dos crimes com especiais elementos de autoria. Para tanto delimita a esfera de protecção das normas que tipificam os crimes com especiais elementos de autoria. Considerando que os bens jurídicos estão permanentemente sujeitos a ameaças, conclui que o Direito o tente evitar, o que sucederá com maior ou menor intensidade atendendo à importância social do bem em causa e à necessidade que tenha de protecção166. Mas, como afirma o mesmo autor, se é certo que o Homem é uma ameaça para os bens jurídicos, na medida em que as suas possibilidades de acção lhe permitem lesionálos, não menos certo é que todos os homens mantêm uma relação inseparável com um conjunto desses mesmos bens. A potencialidade lesiva dos bens jurídicos, em geral, é igual em todos homens. Daí, como dissémos, dirigirem-se os crimes, normalmente, a todos os homens sem limitações167. Mas outros bens jurídicos há não individualizados, assim se descobrindo a categoria dos crimes específicos, pertencentes a "outros contextos de protecção penal"168/169.

164 Outros argumentos demonstrativos da insuficiência da teoria da representação no cumprimento do dever são por G. Martín apresentados na obra referida. 165 G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 349. 166 G. Martín, idem, p. 350. 167 A estes crimes chama G. Martín de “Crimes de domínio”, "no sentido de que o critério da imputação penal que rege para eles é o do 'domínio do facto' e, correlativamente, a proibição da norma que aos mesmos subjaz tem por objecto evitar que qualquer indivíd uo ponha em prática o seu poder de realizar tais acções que lhe são possíveis". (G. Martín, idem, p. 351). 168 Dada a relevância para efeitos de compreensão do pensamento de G. Martín apresenta-se a seguinte transcrição: "Por um lado há bens jurídicos dos quais não é portador qualquer pessoa pelo mero facto de existir, existindo também bens jurídicos supra -individuais. Serão bens jurídicos cujo substrato material até será produto da organização socio política de uma comunidade (...). Outros bens jurídicos existem só no seio de determinadas estruturas sociais mas que cumprem uma determinada função social (...). Mas há a lgo mais importante. Se vistoriarmos as acções mediante as quais podem ser agredidos estes bens jurídicos, observaremos que não contam no âmbito de possibilidades de qualquer homem, mas só no de alguns, que por isso estão especialmente caracterizados. Estas ac ções não poderão ser realizadas por todos os indivíduos, mas só por aqueles que praticam as funções próprias de um papel social que emerge da realização de uma actividade à qual é inerente a possibilidade de realizar tais acções. Outros sujeitos poderão les ar esses bens, mas só por outras acções praticadas noutras circunstâncias. Que estas outras acções não sejam ameaçadas de pena dependerá de uma escolha político-criminal. Não se estranha pois que os crimes que se formem sobre o substrato empírico exposto não protejam o bem jurídico contra todos os indivíduos, mas apenas admitem como autores alguns indivíduos, capazes de realizar a acção adequada a criar o perigo ou a lesar o bem" (G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 351). 169 G. Martín encerra a apresentação do quadro que desenha falando dos "crimes específicos impróprios, que se caracterizam por limitar também a autoria a uma classe de sujeitos, e por entrar em concurso de normas de especialidade com um tipo comum para lelo. O bem jurídico protegido por estes tipos precisa de protecção face a todos, e as acções adequadas a lesionar ou perigar pertencem também às possibilidades de todos. Daí o tipo comum. Mas num determinado campo o legislador constata ou pressente uma especia l vulnerabilidade, a qual surge numa determinada esfera, em relação às possibilidades de acção de determinados sujeitos. Como a carga de lesão ou perigo é maior nestas acções destes indivíduos, então para eles a mesma acção merece uma maior gravidade de reacção penal" (G. Martín, idem, p. 352).

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Analisando o substrato de "um grande grupo de elementos da autoria"170, conclui Martín que nos crimes com especiais elementos de autoria não é possível a um extraneus actuar com um verdadeiro "domínio do facto". Ou seja, só tem domínio do facto nos crimes com especiais elementos de autoria quem seja intraneus, ou então pressupondo "alguma exigência normativa como contéudo do tipo de ilícito"171. Desenha assim o conceito de "crimes de domínio social" - tipos penais em que há um domínio social do bem jurídico. Neste entendimento uma grande maioria dos crimes com elementos especiais da autoria explicam-se por este domínio, pelo que serão crimes de domínio172. Assim também se conclui que grande parte dos elementos especiais da autoria descrevem sujeitos ou classes de sujeitos caracterizados por exercer uma função que implica o domínio do âmbito protegido pela norma. Também a este domínio se poderá chamar de domínio social173, o qual funciona como princípio político-criminal e como critério interpretativo dos tipos em causa. Daí a necessidade da sua análise, pois só assim se compreenderá a ratio da previsão legal do instituto em apreço. Cabe aceitar, pois, esta concepção, pois permite compreender que existem tipos penais dos quais pode ser autor quem normalmente não tem competências para actuar nesse âmbito social definido pelo tipo174/175. A explicação surge, precisamente, através da relação de domínio social, a qual se 170 G. Martín, idem, p. 354. 171 G. Martín, idem, ibidem. 172 Afirma G. Martín: "O domínio social, aliás, é fonte material da posição de garante, pelo que tais crimes são também 'crimes especiais de garante'." (idem, p. 355). E logo segue: "...nos crimes específicos a restrição da autoria é, ao mesmo tempo, uma restrição do facto, e uma restrição da relevância jurídico penal do facto a um âmbito social. E, com efeito, ao contrário do que sucede com os crimes comuns, nos quais o âmbito de protecção da norma se descreve imediatamente através da acção típica, nos crimes de que falamos descreve-se em regra, por forma mediata, através da característica especial pessoal de autor, ainda que, como veremos, também as próprias características da acção típica -implícitas também no elemento da autoria- têm grande importância para descobrir o âmbito de protecção da norma destes crimes". 173 Neste sentido Wiesener, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., p. 133. Julga-se que um entendimento próximo de domínio social é usado por Fernanda Palma quando comentando os art.ºs 227º nº 1 e 228º do CP escreve: "...a autoria não está condicionada por qualidades formais (nem a de comerciante, nem a de devedor), mas é antes determinada pela relação funcional entre o agente e os direitos patrimoniais dos credores. Devedor será, assim, não só quem é sujeito passivo de uma relação de crédito, mas também qualquer responsável pela satisfação dos direitos de crédito (...). À autoria bastará esta relação funcional com os direitos do credor, se a isso vier acrescer a prática (em autoria singular ou comparticipação) das actividades tipicamente descritas" (Fernanda Palma, Aspectos penais da insolvência e da falência: reformulação dos tipos incriminadores e reforma penal, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa , vol. XXXVI, Lex, 1995). 174 Esclarece G. Martín: "Nalguns crimes o autor é um sujeito caracterizado por uma qualidade pessoal que descreve o âmbito social em que existe o bem jurídico e em que aquele exerce a sua função social. Como em princípio só esses sujeitos qualificados dominam o âmbito social, a Lei tipificou como autoria só as acções desses sujeitos, ficando todos os demais apenas sujeitos às regras d a comparticipação. Mas em certas circunstâncias algumas classes de extranei entram também a participar do domínio social desse âmbito, e nesses casos a Lei procede a uma ampliação dos tipos incluindo tais extranei no círculo de possíveis autores " (idem, pp. 357 e s). 175 Julgamos encontrar exemplos da situação no CP português, mais precisamente no Capítulo dos crimes cometidos no exercício de funções públicas (art.ºs 372º e ss). Aí vemos que quem detém originariamente domínio sobre a administração pública são os funcionários. Por isso os crimes previstos nos preceitos indicados são crimes de funcionários. Mas o nosso legislador precaveu-se face aos casos em que um não-funcionário pode deter a administração de um serviço público, daí que tenha previsto uma ampliação da autoria, por via indirecta, alargando em disposição geral o conceito de funcionário para fins penais: art.º 386º CP. Aqui esta ampliação substantiva da autoria baseia-se precisamente no facto de alguns estranhos poderem "aceder ao domínio social". Ou seja: a ratio essendi deste comportamento do legislador é a ponderação do domínio social. E repare-se que a tipificação é precedida pela epígrafe do Cap. IV, em que se salienta que os crimes são autonomizados por serem "cometidos 'no exercício' de funções públicas". Com isto se demonstra

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estabelece entre os sujeitos qualificados pelo tipo específico com os bens jurídicos por este protegidos. É nessa relação peculiar que se há-de procurar o fundamento dos crimes com especiais elementos de autoria, e é nela que se encontrará o fundamento para o art.º 12º do CP. Em suma, o domínio social é "a 'acessibilidade' ao bem jurídico protegido, 'limitada para a valoração jurídico-penal a algumas classes de sujeitos"176; por outro lado, na perspectiva do exercício de uma função, "o domínio social significa a situação de dependência de um bem jurídico encastrado essencial ou ocasionalmente numa função cujo exercício é monopólio de uma classe de sujeitos"177. Ora, estas características do domínio social projectam-se consequentemente na acção típica que nesse âmbito é desenvolvida, pelo que não só o autor mas também a acção típica apresenta uma qualidade especial, na qual se concretiza e especifica o domínio social relevante para efeitos do tipo. Deste modo, a acção é ela própria uma parte do exercício funcional entregue ao sujeito em exclusivo. De uma classe de sujeitos passa-se para uma classe de acções, funcionalizadas178. Que o mesmo é dizer que "na perspectiva das características da acção típica, os crimes de domínio social se caracterizam porque a acção típica apresenta uma qualidade específica consistente em que é realizada no exercício de uma função que é monopólio de uma certa classe de sujeitos. No sentido explicado o domínio social mostra-se como um critério normativo que se concretiza nas condições de possibilidade de exercício do domínio do facto ou se se prefere da realização da acção típica"179. Esta construção estrutural permite concluir que os crimes de domínio social podem também configurar-se como crimes especiais de garante (Garantensonderdelikte): o facto de o sujeito ostentar uma posição de domínio social importa que se assuma como garante do bem jurídico

que o status de funcionário e os deveres de tal posição funcional "são apenas pressuposto e indício da tipicidade dos crimes dos funcionários. O 'decisivo' para a tipicidade, todavia, é a realização da acção típica por um funcionário 'no exercício das su as funções'." (G. Martín, idem, p. 358). 176 "Isto é rigoroso para os crimes com especiais elementos de autoria que sejam próprios. Nos impróprios o bem jurídico protegido é acessível a todos, mas para os intranei é, por um lado, mais acessível, e uma vez estando o bem jurídico na sua órbita fica em especial vulnerabilidade" (G. Martín, idem, p. 365). 177 G. Martín, idem, p. 368. Contudo, esclarecera anteriormente que "se pode dizer que o autor dos crimes específicos com especiais elementos de autoria se caracteriza formalmente pelo status que define a sua posição, social, económica ou jurídica, ou seja por uma qualidade objectiva que descreve mediatamente o âmbito de protecção da norma; mas materialmente a caracterização do autor dos ditos crimes está configurada pelo exercício de uma função"(p. 365). Ou seja, nos crimes com especiais elementos de autoria existe já uma relação imediata do sujeito com o bem jurídico que se determina de modo positivo, ao invés do que sucede com os crimes comuns; nos crimes com especiais elementos de autoria "...a relação do sujeito com o bem jurídico plasma-se na norma de modo positivo, através da função que exerce o sujeito caracterizado por um determinado status institucional e é normal que o conteúdo do ilí cito se determine pela 'não realização de uma acção determinada. (...) O monopólio desta classe de sujeitos para o exercício da função em que se encontra encastrado o bem jurídico determina a exclusão do resto dos membros da comunidade social do campo das possibilidades de acção de lesão jurídico-penalmente relevante do bem jurídico" (idem, pp. 366 e s). 178 A "acção típica de muitos crimes de domínio social é impensável se ao mesmo tempo não se põe em prática o exercício da função do sujeito qualificado. Nesses casos a qualidade específica da acção típica é essencial ao exercício da função" (G. Martín, idem, p. 369). 179 G. Martín, idem, p. 371, acrescentando ainda que "o domínio do facto tem que ser entendido como domínio da realização do tipo, o que não tem por que coincidir com o o domínio sobre a causa fundamental do resultado. Ora, nos crimes de domínio social, (...) a prática do domínio da realização do tipo só é possível se o agente exercita o domínio social, ou seja a função que lhe compet e no regime de monopólio e que supõe domínio da estrutura social na que se encontra o bem jurídico ou, dizendo-o de outro modo, domínio do âmbito de protecção da norma" (idem, ibidem, n. 229).

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protegido. Tal posição não importa necessariamente um dever de realizar uma acção, podendo traduzir-se, quando no exercício da função, num dever de abstenção180. Neste entendimento os elementos de autoria dos crimes específicos implicam a posição de garante dos sujeitos indicados pela norma com as especiais características. Expostas as bases estruturais do instituto, resta concretizar o critério que legitima e justifica o alargamento da tipicidade que ocorre quando o legislador dá relevância penal às actuações em nome de outrem. Esse critério -que permite equiparar o sujeito idóneo perante a norma composta de especiais elementos de autoria ao terceiro que em nome dele actua-

é o dever de actuar, o qual se impõe, a um tempo,

ao sujeito formalmente qualificado e ao terceiro, não qualificado, que acede ao domínio social. Quanto ao dever de actuar do sujeito idóneo, é ele claramente compreensível. Este sujeito qualificado pelos especiais elementos de autoria detem originariamente o domínio social. Por isso, além de se encontrar na posição de garante dos bens jurídicos que subjazem ao seu domínio social, suporta, quanto a eles, um dever de acção181. Quanto ao dever de actuar do terceiro que acede ao domínio social, a sua concretização é também simples. É que os juízos de valor normativos subjacentes à cominação dos deveres para o titulares das esferas em que se inscrevem os bens jurídicos a proteger, são expressões de um must, de um ter-que-ser-realizado em conformidade com o ordenado. Ora, se a norma impõe deveres de acção a quem tem o domínio sobre tais esferas, igualmente o quererá fazer em relação a quem, por qualquer razão, passe a deter tal domínio. Assim, identificando a Lei penal os sujeitos, e descrevendo-os por alusão ao seu status, está a demarcar o âmbito social sobre o qual os mesmos dominam. Assim, quando alguém que não o referido sujeito -ou seja, alguém desprovido de tal status-, acede a tal esfera, mantendo domínio social sobre ela, para que a norma atinja o seu objectivo -a garantia de que se realizará em conformidade com o previsto-,

terá o terceiro que ficar vinculado aos mesmos deveres182.

E a doutrina utiliza precisamente as Instituições para figurar os deveres dos seus Quadros, afirmando: "sucede com frequência que o sujeito que formalmente ocupe o status, ao qual vai em princípio ligado o domínio social sobre a produção da situação jurídica desejada, não pode cumprir o dever de acção, porque é por exemplo uma Instituição, ou porque é um sujeito que tendo

180 O conteúdo da posição de garante do autor já dependerá da estrutura típica concreta. 181 E suporta-o, crê-se, porque o substrato social da maioria dos tipos com especiais elementos de autoria é constituído por um comando positivo, e não por uma proibição. 182 A este propósito G. Martín recorre à figura das "proposições distributivas" de Armin Kaufmann, dizendo que o fim das proposições distributivas é a adjudicação de um bem a um sujeito (direito de propriedade, direito de crédito, direito a prestações públicas, etc), entendendo aqui por sujeito qualquer destinatário do efeito. A estas relações de adjudicação subjazem juizos de valor positivos (é positivo que se paguem dívidas, impostos, que se contratem legalmente os trabalhadores). Esses juízos de valor serão para Martín proposições distributivas. "Com as proposições distributivas fundamenta-se um dever de acção de produzir a situação juridicamente desejada", diz, citando Kaufmann. Estas procedem à distribuição e circulação dos bens, asseguram a satisfação das necessidades individuais e colectivas. Como salienta, o objecto desses juízos de valor "tem que ser realizado". E para assegurar a realização as normas impõem deveres de acção aos sujeitos que mantêm o domínio sobre a esfera social em que os objectos "têm que ser realizados", pois a dita realização está na mão de tais sujeitos (G. Martín, idem, p. 414).

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capacidade de acção delegou o exercício das funções de que é titular, e com isso deu acesso ao domínio social a outros sujeitos alheios a tal status"183. É mesmo possível "que algum estranho assuma realmente de forma espontânea e unilateral o exercício de tais funções. Nestes casos (...) há normas que se encarregam de que estes sujeitos alheios ao status, mas que acederam ao domínio social, realizem a situação juridicamente desejada. Na maioria destes casos surge pois para estas pessoas um dever de acção de produção em lugar do sujeito idóneo formal da situação juridicamente desejada". Com estas breves linhas compreende-se que é diversa, e segundo se julga mais consistente, a estrutura apresentada para explicar e fundar o instituto em apreço. Com ela se dá resposta substancial, e não meramente formal, à questão posta: qual a razão de ser de se equiparar um terceiro não qualificado a um sujeito perfeitamente descrito pela Lei penal. E diz-se ser resposta substancial porque assenta num critério de equivalência, de paridade, e não só emergente de uma repercussão de deveres em sucessivas esferas jurídicas. Com efeito, o que actua em nome de outrem viola a mesma norma que o autor idóneo184. Nesta construção a posição assumida pelo terceiro não qualificado não é uma posição “de segundo plano”. A sua obrigação para com a tutela legal do bem jurídico não é subsidiária. Em vez de cumprir um dever alheio, cumpre norma que a si próprio é dirigida, cominando o dever. Não quer com isto dizer-se, no entanto, que a norma fonte do dever de acção seja, ou tenha de ser, a mesma. Com efeito, o dever de acção do sujeito qualificado pelo tipo emerge da norma que regula a sua posição pessoal enquanto detentor do referido estatuto, enquanto que o dever de acção do agente em nome de outrem emerge de outra norma, a norma a que G. Martín chama de "norma de adscrição". Esta norma de adscrição desempenha a particular função de "conectar um sujeito distinto do sujeito idóneo com o juízo de valor (ter-que) da proposição distributiva. Neste sentido, podem caracterizarse como 'normas de adscrição' as que regulam a representação legal ou o mandato, mas também o negócio jurídico no qual se funda a assunção pelo agente em lugar de outro da função de realização da situação juridicamente desejada: mas também pode considerar-se norma de adscrição a que regula a assunção unilateral do exercício de funções do domínio social, que se canaliza através da chamada gestão de negócios alheios"185. E compreende-se que assim seja, na medida em que, como fundamento das actuações em nome de outrem, interessa apenas a relação externa do agente, não a relação interna com o originário titular do âmbito de domínio.

183 G. Martín, idem, p. 415. 184 G. Martín, idem, ibidem. 185G. Martín, idem, ibidem.

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O critério de equivalência proposto por Martín, e que se julga preferível, assume pois duas vertentes: por um lado o "domínio social" constitui o aspecto material, aquilo que permite afirmar que a acção do sujeito que actua em lugar de outrem é equivalente à do sujeito idóneo (porque a norma que impõe o dever é idêntica para ambos, sendo que ambos exercem um verdadeiro domínio sobre a produção da situação que a norma impõe);

por outro lado, o aspecto formal é constituído pela referida "norma de

adscrição", a qual explica que o dever de acção do terceiro interveniente (emanado da conexão normativa),

é equivalente ao dever de acção do titular originário da esfera de domínio. E assim será

necessariamente, uma vez que a norma se dirige sempre ao mesmo fim: assegurar a produção da situação desejada, seja quem for que detenha o domínio social. Ademais, é de louvar este critério por permitir ainda justificar a equiparação entre o sujeito descrito pelas normas como actuando motivado por interesses egoístas e aquele outro que em nome dele actua em certas circunstâncias. É que esta unidade é altamente relevante para explicar a opção do legislador português no art.º 12º CP. Naturalmente que a categoria dos crimes delimitados por motivações egoístas não é a mesma dos crimes específicos. As diferenças são várias, bastando-nos sublinhar que nos crimes específicos há um tendencial perenidade do estatuto que é descrito pelos elementos da autoria186, o que choca com a óbvia intermitência ou ocasionalidade com que podem surgir comportamentos egoístas. Daí excluirem-se, tradicionalmente, os comportamentos subsumíveis a tipos de crimes delimitados por motivações egoístas dos casos de actuações em nome de outrem187. No entanto, a questão pode por-se em termos semelhantes à dos crimes específicos. Uma actuação em nome de outrem num crime delimitado por motivações egoístas surgirá porque a actuação no interesse próprio é essencial para o tipo, e concretamente se verifica que o agente que actuou não teve uma motivação egoísta (para si) mas altruísta (para outrem). Ora, configurando este caso sob a perspectiva vista, conclui-se que o problema se resolve se se exigir uma actuação no interesse, precisamente, daquele sujeito em lugar de quem o terceiro age. Implicando a actuação no lugar de outrem um problema de ilicitude, também aqui há que proceder a um juízo de equivalência. Nestes crimes

186 Blauth, "Handeln für einen anderen" ..., cit., pp. 52 e s, afirmava expressamente que os elementos pessoais se caracterizavam pela permanência, perdendo tal qualificação se fossem transitórios. Quanto a isto diz Martín que os elementos da autoria nos crimes específicos são "qualidades que ou preexistem absolutamente à realização da acção típica ou, quando simultâneas à execução, é possível pré-ordená-las temporalmente à acção ainda que por um mínimo instante de razão". Pelo contrário, diz o mesmo autor, as motivações egoístas, tal como os elementos subjectivos da ilicitude são absolutamente dependentes da execução da acção típica. 187 Afirmava-se em concreto que a situação característica em que um elemento que falta no agente se verifica no representante não era configurável quando o elemento típico distintivo fosse uma tendência subjectiva egoísta, pois que nesses casos esta tendência só pode verificar-se no sujeito que realize a acção típica, nunca no representante. Não se verificando no representante tal elemento, a sua motivação seria altruísta, e portanto não-típica. Também esta situação é particularmente figurável quando se trate de Instituições e seus Quadros. A impossibilidade surgia, antes de mais, para a doutrina tradicional porque constatava a falta de um substrato psíquicoanímico que permitisse a existência de motivações. Como diz G. Martín (idem, p. 418), é precisamente mercê desta compreensão que no StGB verdadeiros casos de actuações em nome de outrem são tratados, de modo dogmaticamente incorrecto, na parte especial do Código, acrescentando-se a previsão "para si ou para outrem". Quanto a esta problemática, cfr. Tiedemann, Wirtschaftsstrafrecht und Wirtschaftskriminalität, I, Allg. Teil, Verlag Rowolt, Hamburg, 1976, p. 203; Wiesener, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit..., cit., pp. 85 e s; Jakobs, Derecho penal..., cit., pp. 182 e ss (com matizes de posição); Jescheck, Tratado de Derecho Penal, cit., 204 e ss; Lenckner, Strafgesetzbuch Kommentar - Schönke/Schröder/Lenckner, cit., pp. 209 e ss; Dreher/Tröndle, Strafgesetzbuch und

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delimitados por motivações egoístas, porém, os termos da comparação serão outros, a saber: a motivação exigida tipicamente e a concreta motivação subjectiva com que actua o agente. Como diz Martín, "há que encontrar um critério de equivalência que permita 'transformar valorativamente esta última na primeira', que as torne 'intersubstituíveis'"188. Ora, o critério do domínio social é também adequado para "lançar a ponte valorativa de equivalência entre o actuar egoísta e a actuação no lugar de outro"189, operando nos mesmos termos. Como visto, nestes crimes o tipo exige que o sujeito realize a conduta no seu próprio interesse ou proveito. Mas essa mesma conduta não surge abstractamente, desligada dos espaços sociais, económicos e jurídicos que referimos. Surge também "em esferas" dominadas por certos sujeitos, que quando realizam tais acções o fazem em benefício próprio. É esta a motivação que se diz egoísta. E também aqui surge a possibilidade de outros sujeitos entrarem a dominar essa esfera. Temos pois que a solução da questão será a seguinte: quando esses terceiros actuem aparentemente com motivo altruísta mas estejam a beneficiar aquela esfera que, não sendo sua, está sob o seu domínio, temos uma situação que em termos desvalorativos é tão egoísta como as condutas egoístas tipificadas. Ou seja, quando a norma penal circunscreveu o egoísmo não o fez somente por via positiva. Fê-lo também negativamente, explicitando qual o altruísmo verdadeiro e próprio190. Assim se conseguem equiparar valorativamente ambas as acções. Mantém-se pois, aqui também, o domínio social como critério aferidor do surgimento de actuações no lugar de outrem191. Com a estrutura e fundamentação apresentadas não só se consegue ter uma compreensão sistemática de todas as actuações no lugar de outrem relevantes, como se alinham as razões que legitimam o seu tratamento legal conjunto. Esta a grande inovação de Martín, que perfilhamos e julgamos poder fundar a interpretação, pelo menos parcial, do art.º 12º CP. Conclui-se, pois, que a função do instituto das actuações em nome de outrem já não é apenas a de colmatar lacunas de punibilidade, servindo antes para produzir um "efeito de ajuste ou rectificação da qualificação do facto nos casos em que, pese embora o poder subsumir-se a conduta do sujeito a um tipo distinto, o juízo de desvalor pessoal deve deslocar materialmente a qualificação para

Nebengeseteze, 47. Aufl., C.H.Beck'sche Verlagsbuchhandlung, München, 1995, pp. 92 e ss 188 G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 420 (traduzimos intercambiables por intersubstituíveis, porque se julga ser este o sentido que o autor queria dar àquele termo). 189 G. Martín, idem, ibidem. 190 No dizer de G. Martín, "Só será típica, pela via das actuações em nome de outrem, a conduta altruísta realizada em benefício da pessoa concreta em cujo lugar se actua como se fosse esta mesma a que tivesse actuado nas mesmas circunstâncias" (idem, p. 423). 191 Como dizia Blauth, "unicamente a relação de domínio objectivo sobre a esfera alheia na qual se realiza a acção no interesse dessa mesma esfera, permite apreciar uma diferença entre a actuação altruísta para outrem e o actuar altruísta geral" (Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., p. 149).

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outro tipo"192. É o que passamos a analisar em relação ao art.º 12º CP. IX – Análise cristalizada e sintética do artigo 12º CP IX.1) A abrangência do artigo 12º do CP: actuação de Quadros das Instituições O art.º 12º, nº 1 CP prevê duas situações distintas: a) a actuação no lugar de outrem em relação aos titulares de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto; b) a actuação no lugar de outrem dos representantes legais ou voluntários de qualquer outra entidade, Pessoas ou Instituições. I.e., casos de representação de Instituições, pelos seus Quadros, e de representação, legal ou voluntária, de Pessoas193. E dizemos casos de representação de Instituições, além do mais, com base no argumento seguinte: o legislador quis prever situações de actuações no lugar de outrem quer quando fossem levadas a cabo pelos titulares dos órgãos, quer quando ocorressem através de representação voluntária. Ou seja: não só considera a Lei existir uma actuação no lugar de outrem nos casos em que a Instituição é representada por um Dirigente, mas em todos os casos em que ela Instituição se patenteia, seja quem for que a represente194. Aqui cumpre deixar de lado os casos de actuação no lugar de Pessoas, cingindo a nossa análise à outra situação prevista neste preceito: os casos de actuação no lugar de Instituições, uma vez que só estas poderão importar responsabilidade penal dos Quadros. Contudo, não pode deixar de se fazer uma sumária apreciação do art.º 12º enquanto previsão geral de actuações em lugar de outrem, e quanto a isto soe dizer que a opção do legislador português foi, geralmente, acertada. Na verdade, com a sua abrangência, ultrapassaram-se as visões redutoras que turvavam o entendimento da figura, que a viam como um mecanismo exclusivamente destinado a evitar lacunas de punibilidade emergentes da irresponsabilidade penal das Instituições. I.e., o legislador não partiu do princípio de que este fenómeno surge apenas no campo das Instituições, antes 192 G. Martín, idem, p. 276. 193Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, cit., p. 469, afirma o seguinte: "A representação figura-se em três casos: representação fundada na qualidade de órgão ou membro de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto; representação legal ou voluntária de outrem, quer uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto". Afirma seguidamente que "o preceito, nos casos de representação legal ou voluntária, não levanta grandes dificuldades; importa por isso referir especialmente a delimitação do preceito legal quanto à representação de pessoas colectivas, sociedades e associações de facto". Ora, nenhuma das duas afirmações merece, ressalvado o devido respeito, concordância, apesar de se crer que na primeira delas ocorreu um lapsus calami, pois que se referem três casos e depois se elencam apenas dois. Quanto à primeira das afirmações, porque a referência do preceito a "representação legal ou voluntária de outrem" não se restringe à representação legal ou voluntária das Instituições elencadas. Que assim não poderia ser decorre tão-simplesmente do facto de um órgão, e respectivo titular, serem o modo normal e legal de representação dessas Instituições. A interpretação de Cavaleiro de Ferreira, a ser essa, levaria a crer que a referência do preceito a "representação legal" era uma repetição da parte inicial do mesmo, quando fala em "órgão membro ou representante"... Também a segunda afirmação não colhe. É que os casos de representação legal ou voluntária, mesmo para quem entenda que só se aplicam também a formas de representação de Instituições, como é o caso de Cavaleiro de Ferreira, geram tanta problemática como os casos de representação da primeira parte do preceito. Não se compreende pois qual o sentido retirado pelo ilustre Professor da letra da lei. 194 Daí considerarmos abrangida toda a categoria dos Quadros.

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admitindo que também em casos de actuações no lugar de Pessoas se pode verificar a necessidade de equiparar a conduta do titular originário da esfera à conduta daquele que nela intervém com poderes e faculdades de actuar sobre os bens jurídicos inscritos no respectivo âmbito. Ainda outra nota positiva cumpre sublinhar nesta solução legislativa. Admitindo-se que podem constituir casos de actuações em lugar de outrem jurídico-penalmente relevantes as situações de representação voluntária, está a afirmar-se que o instituto em apreço não pressupõe nem a incapacidade de responsabilização penal daquele em lugar de quem a actividade jurídico-material é desenvolvida, nem que este representado se tenha concretamente abstido de actuar. Ou seja, surgirão situações de aplicação do art.º 12º CP sempre que alguém actue em lugar de outrem, independentemente de o representado ser ou não susceptível de responsabilização criminal e de ter ou não em concreto actuado, simultaneamente, com o representante. Igualmente correcta, e ao que se julga imprescindível para que de verdadeira actuação em lugar de outrem se trate, é a exigência feita por este preceito de uma actuação voluntária por parte do agente. Como ficou dito, a exigência de uma actuação, mesmo sem a qualificar, não podia ter senão o sentido de aludir a uma acção jus-penal. Não obstante, sendo o art.º 12º expresso quanto à voluntaridade, afasta-se qualquer tentativa de nele se ver uma responsabilidade funcionalobjectiva, decorrente da mera titularidade da posição de representante. Assim se abrangem os comportamentos activos e os comportamentos omissivos, desde que voluntários, daquele que interfere numa esfera funcional objectiva alheia. A posição de representante é pois insuficiente para gerar responsabilização penal, na medida em que sempre será necessário que o mesmo actue voluntariamente. E mercê de tal alusão, inequívoca, o legislador declara que as actuações em lugar de outrem não consistem em responsabilidade por facto alheio. Exigindo-se acção voluntária, exige-se sempre a base objectiva, que é o facto. Aquele que actua em lugar de outrem responde pelo “seu facto”, razão pela qual se trata de um título de imputação de responsabilidade por factos próprios. Donde se indicia a admissibilidade constitucional e dogmática da aplicação do art.º 12º195. Quanto à utilização da palavra representado e representação pelo art.º 12º196, julgamos que sendo em tese geral criticável197, não deixa de ser susceptível de correcta interpretação: intervenção de alguém numa esfera funcional objectiva alheia198. Como é sabido, o Direito penal não está vinculado aos significados que os termos por si utilizados têm nos outros sectores do ordenamento jurídico. E, assim, a representação jus-civil, enquanto via de imputação de efeitos jurídicos numa 195 Cfr. Cap. II, Sec. A, § § 4 e 7 do nosso “A responsabilidade penal dos Quadros das Instituições…”, cit.. 196 Respectivamente nas alíneas a) e b) do nº 1 (representado) e no corpo dos nºs 1 e 2 (representação). 197Cfr. Cap. III, Sec. B, § 2 do nosso “A responsabilidade penal dos Quadros das Instituições…”, cit.. 198 Claro que este entendimento dependerá também do significado que se retire do nº 2 do Art.º 12º CP, pelo que abaixo se terá de tomar posição sobre a questão.

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esfera jurídica distinta da do agente, não colhe em Direito penal. Não se cometem crimes em representação, em nome ou no interesse de outrem199. Pode é cometer-se um crime em posição equivalente à de outrem, e é esse o sentido que se julga ter a utilização de tais referências no art.º 12º CP. Por último, e ainda como nota geral, cumpre ver se a previsão das actuações em lugar de outrem consagrada no art.º 12º CP exige uma dissociação formal dos elementos típicos entre representante e representado e um concurso formal desses elementos no representado. Esta questão, todavia, prende-se com a interpretação dos nºs 1 e 2 do artº 12º CP, tarefa a que se passa. IX.2) A alínea a) do artigo 12º nº 1 do CP Aproveitando o trajecto percorrido, e restringindo a análise do art.º 12º CP à busca da responsabilização penal dos Quadros das Instituições, cabe proceder ao estudo da norma resultante do art. 12º, nº 1 al. a)200. A primeira das questões substanciais que se põe respeita a saber o que significa o "tipo de crime exigir determinados elementos pessoais". Quanto a isto a doutrina identifica ordinariamente este preceito como referindo os chamados crimes específicos201. Cabe indagar se assim será e em que termos. Como é pacífico, os tipos utilizam diversos elementos para circunscrever o seu significado e âmbito, assim encerrando em si o conteúdo da ilicitude visado202. Deste modo, um facto só é penalmente ilícito se corresponder, pontualmente, aos elementos exigidos pelo tipo. Por seu turno, o tipo é composto por diversos elementos, ou grupos de elementos. E se é certo inexistir unanimidade quanto ao significado de cada grupo e quanto à subsunção das diversas realidades nas classificações propostas, é aceite com generalidade que a estrutura externa dos tipos é composta por elementos objectivos e subjectivos. Jescheck, afirma que nos elementos objectivos do tipo se inclui "tudo o que está situado fora da esfera anímica do autor"203. E concretizando, considera objectivos os elementos que "descrevem a acção, o objecto da acção, o resultado, se for o caso, as circunstâncias externas do facto e a pessoa do autor". A nós interessa-nos, por agora e 199 Cfr. Cap. III, Sec. B, § 6, II, do nosso “A responsabilidade penal dos Quadros das Instituições…”, cit.. 200 Para os propósitos da análise, a norma em análise será doravante a seguinte: "É punível quem age voluntariamente como Quadro de uma Instituição, mesmo quando o respectivo tipo de crime exigir determinados elementos pessoais e estes só se verificarem na pessoa do representado". 201 Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito penal, cit., p. 158; Teresa Beleza, Ilicitamente comparticipando - o âmbito de aplicação do art.º 28º do Código Penal, in Bol. FDUC, Número Especial, Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Eduardo Correia, Tomo III, Coimbra, 1984, p. 593 202 H.-H. Jescheck, Tratado de Derecho penal, cit., p. 246. 203 H.-H. Jescheck, idem, ibidem. No entanto, na página seguinte, afirma que "a distinção formal do tipo em componentes objectivos e

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particularmente, a consideração dos elementos utilizados pelo tipo para descrever a pessoa do autor. Como já avançado, por regra a Lei penal não tipifica crimes em atenção a categorias de pessoas. Pelo contrário, qualquer pessoa os pode, normalmente, cometer. Sucede, porém, que em certos casos o legislador determina que o desenvolvimento de certas actividades, ou a criação de certas situações, só gera ilicitude penal quando proveniente de determinados indivíduos204. Nesses casos, o legislador restinge o círculo das pessoas que pode cometer o crime. E ao fazê-lo utiliza precisamente elementos típicos, daqueles que atrás considerámos serem objectivos e com a função de restringirem o âmbito da autoria205. Em face da consagração das actuações em nome de outrem feita no art.º 12º CP -enquanto situações em que o sujeito que actua não reúne algum elemento pessoal exigido pelo tipo de crime 206-,

há que concluir que os

elementos referidos na alínea a) do nº 1 do art.º 12º serão elementos relativos ao autor e ao tipo de ilícito207. Serão só elementos deste tipo que, não se verificando naquele que actua no lugar de outrem e existindo "só"208 na pessoa do representado, interessam para efeitos de tornar punível o primeiro. Há pois que ver quais sejam estes determinados elementos pessoais, e qual o enquadramento geral desta questão. Quanto a isto há mais dúvidas do que certezas. Face ao StGB alemão a polémica é total, na medida em que quer o § 14209, relativo às actuações em nome de outrem, quer o § 28, sobre a verificação de elementos pessoais em situações de

subjectivos parece totalmente impossível". 204 Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito penal, cit., p. 158; Roxin, Strafrecht..., cit., p. 243 (rn. 54 e 128 e ss, preferin do falar em "Pflichtdelikten" em vez de "Sonderdelikten"). 205 Cavaleiro de Ferreira, idem, ibidem; Teresa Beleza, Ilicitamente comparticipando - o âmbito de aplicação do art.º 28º do Código Penal, in Boletim da Fac. de Direito da Univ. de Coimbra, Número Especial, Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Eduardo Correia, Tomo III, Coimbra, 1984, p. 593; G. Martín, El actuar..., I, cit., pp. 30 e ss; Blauth, "Handeln für einen anderen"..., cit., pp. 9 e ss. 206 Figueiredo Dias, Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa, in Jornadas de Direito Criminal , CEJ, 1983, p. 51. 207 G. Martín, idem, passim. 208 Abaixo se comentará o significado normativo deste "só". 209 Com a advertência de que se trata de uma tradução feita pessoalmente, e portanto não oficializada, apresenta-se a versão em língua portuguesa do § 14 do StGB alemão: "I-Se alguém actua: 1. como órgão legal representante de uma pessoa jurídica ou como membro de um tal órgão; 2. como sócio legal representante de uma sociedade comercial de base pessoal; 3. como representante legal de outrem, a lei segundo a qual particulares qualidades, relações ou circunstâncias pessoais (especiais qualidades pessoais) fundam a punibilidade é aplicada tambéma ao representante, mesmo se tais qualidades se não verifiquem nele mas no representado. II-Se alguém, pelo proprietário de uma 'Betrieb' (empresa como unidade técnico-organizatória) ou por outro sujeito legitimado para tal: 1. for encarregado para dirigir a 'Betrieb' total ou parcialmente, ou 2. for expressamente encarregado de assumir sob a sua própria responsabilidade, obrigações que, de outro modo, cabem ao proprietário da 'Betrieb', e se actuar com base em tal encargo, a l ei segundo a qual particulares qualidades pessoais fundam a punibilidade deve ser aplicada também ao encarregado, apesar de tais qualidades se não verificarem nele, mas no proprietário da 'Betrieb'. À 'Betrieb', no sentido do nº 1, é equiparada a 'Untern ehmen' (empresa como unidade jurídico-económica). Aplica-se igualmente o nº 1 se alguém agir com base num encargo correspondente por ofício que desenvolva tarefas de administração pública. III-Os nºs 1 e 2 aplicam-se também quando o acto jurídico que legitima a representação ou o encargo é ineficaz". Sublinhe-se que mesmo no espectro da literatura alemã não é unânime a distinção, e necessidade de distinção, entre Betrieb e Unternehmen. Quanto a esta questão, T. Lenckner, (comentário ao) § 14 StGB, in Strafgesetzbuch Kommentar - Schönke/Schröder/Lenckner/Cramer/Eser/Stree, 24ª Ed., C.H.Beck'sche Verlagsbuchhandlung, München, 1991, Rn. 28, quando afirma "Die -begrifflich umstrittene- Unterscheidung zwischen Betrieb und Unternehmen hat deshalb für § 14 keine Bedeutung".

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comparticipação, utilizam a mesma fórmula -“besondere persönliche Merkmale”- sucedendo mesmo que este último parágrafo, ao referi-los, remete para aquele primeiro. Em face disto, gerouse a dúvida de saber se o significado da expressão é idêntico em ambas as previsões (se são elementos que permitem afastar a acessoriedade),

ou se será distinto, como prefere a maioria doutrinal210.

Dada a considerável influência que a doutrina alemã e o respectivo StGB tiveram na génese do CP, também em Portugal surgiu semelhante questão após o confronto da al. a) do nº 1 do art.º 12º com o art.º 28º do CP. E a questão pôs-se porque aquele primeiro preceito faz referência a "determinados elementos pessoais", enquanto o segundo refere as "qualidades ou relações especiais do agente", o que poderia ser indício de diferente significado211. I.e., o entendimento do art.º 12º CP ficou dependente, para alguns autores, da decisão sobre o significado da expressão usada pelo legislador penal no art.º 28º. Que assim foi passa a vistoriar-se. Um dos exemplos mais patentes do que fica exposto é dado por Cavaleiro de Ferreira, que analisa o art.º 12º precisamente a propósito da comparticipação212. E para que se compreendam as conclusões

que retira é imprescindível anotar

topicamente o seu pensamento sobre

comparticipação. Inicia, quanto a isto, o autor por apresentar a distinção entre crimes próprios e crimes qualificados213, a qual radicava no facto de neles as qualidades ou relações especiais do agente serem, respectivamente, elementos essenciais do facto ilícito e circunstâncias modificativas da pena, que o mesmo é dizer: nos primeiros põe-se questão de ilicitude; nos segundos o problema é de culpabilidade. Depois desta consideração afirma que a "doutrina em geral só considera a comunicabilidade das qualidades e relações especiais que fundamentam a ilicitude do facto e não aquelas que alteram a sua gravidade, dando origem a um crime qualificado. A comunicabilidade de circunstâncias do crime que têm a natureza de circunstâncias inerentes ao agente ( na terminologia do anterior Código),

não tem razão de ser, pois não fundamenta nem sequer aumenta o grau de ilicitude

(a gravidade do facto ilícito) e antes se reporta à culpabilidade do agente em que concorrem"214. Contudo, constata que o regime do art.º 28º prevê a comunicabilidade de ambas, o que lhe merece censura. E é neste âmbito que Cavaleiro de Ferreira explica o surgimento do art.º 12º, afirmando que ele "alarga a noção de 'agentes do crime' de modo a abranger os que agem em nome de outrem, isto é, os que agem como representantes de outrem", logo completando com a afirmação de que "o art. 210 Blauth, idem, pp. 92 e ss. 211 Quanto à fórmula usada pelo art. 28º, escreve Mª Margarida Silva Pereira que "Eduardo Correia desmembrou pontualmente as circunstâncias em 'qualidades' e 'relações sustentando no anteprojecto a circunscrição do âmbito da sua comunicabilidade àque las que incidissem sobre a ilicitude" (Mª Margarida Silva Pereira, Nexo de acessoriedade entre autoria e participação?, Lisboa, 1993, p. 114). As circunstâncias a que faz referência eram as que eram referidas pelo velho Código penal de 1886. 212 Cavaleiro de Ferreira, idem, pp. 459 e ss e 468 e ss. 213 Cavaleiro de Ferreira, idem, p. 462, a que aqui chamamos, respectivamente, de crimes específicos próprios e impróprios. 214 Cavaleiro de Ferreira, idem, p. 463.

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12º alarga o âmbito das normas incriminadoras, porquanto alarga a definição de agentes do crime"215. E aqui chegado, Cavaleiro de Ferreira considera que na alínea a) do nº 1 do art.º 12º só cabem os crimes "próprios" (específicos próprios), excluindo os "qualificados " (específicos impróprios), pois que nestes não se entrecruzam questões de ilicitude, mas apenas de culpabilidade. Ou seja, apresenta raciocínio paralelo ao que dera como argumento contra a previsão do art.º 28º CP216. Põe depois expressamente a questão de saber se a dita alínea a) abrange todos os crimes "próprios" ou só os crimes específicos em que se verifiquem determinados elementos pessoais217. Aqui, ponderando as “posições relativas” do art.º 12º CP e do § 14 StGB em face dos respectivos sistemas legais, conclui que há diferenças nas funções que cada um desses preceitos desempenha. Por isso, a expressão do art.º 12º, concernente aos elementos pessoais, terá "maior alcance"218. Este maior alcance, porém, é por Cavaleiro de Ferreira encontrado no facto de o art.º 12º compreender uma realidade (alínea b) do nº 1 art.º 12º), que não está prevista no art.º 28º 219/220. Não se encontra pois, e infelizmente, uma afirmação peremptória que resolva a dúvida radical: os elementos pessoais do art.º 12º são ou não os mesmos que estão referidos no art.º 28º sob a designação de qualidades ou relações especiais do agente? Não obstante, crê-se poder arriscar o que seria o pensamento do autor: os "elementos especiais" do art.º 12º são conceptualmente equivalentes às "qualidades ou relações especiais do agente", o que sucede é que nem todas as qualidades/elementos imperativamente utilizáveis no campo da comparticipação, por força da letra do art.º 28º, têm relevância para as actuações em nome de outrem. Em suma, para este autor, o art.º 12º só preveria actuações em nome de outrem quanto a crimes específicos próprios (delicta propria), quer porque seria a solução dogmaticamente correcta; quer

215 Cavaleiro de Ferreira, idem, pp. 469 e s. 216 Cavaleiro de Ferreira, idem, p. 471 217 Cavaleiro de Ferreira, idem, ibidem. Como expusémos atrás como afirmação geral, para este autor alguma diferença parece resultar dos "determinados elementos pessoais" do art. 12º quando confrontados com as "certas qualidades ou relações especiais do agente" do art. 28º. 218Cavaleiro de Ferreira, idem, ibidem. 219 Extrai-se esta conclusão da seguinte afirmação de Cavaleiro de Ferreira:"Mas o art. 12º tem um campo de aplicação mais vasto quanto aos casos referidos na alínea b), que não são casos de crimes próprios-, e mais restrito -porque só abrange na alínea a) os crimes próprios (especiais próprios), com exclusão dos crimes especiais impróprios ou qualificados. Na verdade, as qualidades ou relações especiais do agente (determinados elementos pessoais) são só os exigidos no 'tipo de crime' como elementos essenciais do facto ilícito, e não os que fundamentam tão-somente a gravidade do crime e respeitam à sua qualificação" (Cavaleiro de Ferreira, idem, p. 472). 220 Independentemente da razão que possa assistir a Cavaleiro de Ferreira, e que abaixo se sindicará, não pode deixar de se sublinhar a debilidade do argumento por si usado quando afirma: "Mas o art. 12º do Código Penal português tem um âmbito maior do que o § 14 do Código Penal alemão, que se não coaduna com o qualificativo excepcional. Parece mais conforme com o espírito da lei atribuir maior alcance à expressão legal no art. 12º porque, diversamente do que sucede no direito alemão, o art. 12º estende a qualif icação de agente do crime àquele que age em nome de outrem, não apenas em crimes próprios, mas também em crimes com dolo específico, nos termos da sua al. b)"(Cavaleiro de Ferreira, idem, ibidem). Ora, segundo se crê, para efeitos de descoberta do significado do inciso da al. a) do nº 1 do art. 12º em face do art. 28º, não há que apelar para o facto de na al. b) existirem outras situações a que se aplica também o art. 12º mas que nada têm que ver com os "determinados elementos pessoais" da al. a). Aliás, por alguma razão essa realidade está na al. b) e não na al. a). Haverá por certo significados diferentes entre as duas expressões, mas a sua diferença terá que ser escorada em outras bases.

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porque o preceito contém a expressão "o tipo de crime exigir"221. Quanto à diferença de redacção entre o art.º 28º e o art.º 12º (qualidades e relações especiais vs. elementos pessoais ), seria, julga-se, meramente de fórmula. Por outro lado surge Teresa Beleza, que ao analisar o art.º 28º CP afirma que esta é uma norma "relativa à ilicitude de factos, ou seja, a uma característica de factos, embora gerada, aumentada ou diminuida por qualidades ou relações pessoais. E só, aqui, por estas; isto é, só estão aqui abrangidas 'circunstâncias' que possam ser reconduzidas a qualidades ou relações de uma pessoa e que uma disposição penal exija para que um acto seja ilícito ou a sua ilicitude varie". E é a este propósito, distinguindo crimes específicos próprios e impróprios, que afirma que a especial caracterização do sujeito tem de ser feita pela exigência de qualidades ou relações especiais, concluindo laconicamente: "note-se que o art. 12º tem uma expressão próxima de esta"222. Porém, seguindo na sua análise, encontramos nova referência lateral ao art.º 12º, quando afirma que "As qualidades ou relações especiais fundamentadoras ou modificativas do grau da ilicitude são 'elementos pessoais' (art. 12º, 1, a), que ao serem exigidos pelo tipo incriminador significam que o círculo de potenciais autores deixa de ser indeterminado, como é na generalidade dos casos em que a lei usa expressões como 'quem' ou 'aquele que'. São elementos ou requisitos de 'idoneidade típica', cuja ausência determina o carácter atípico do comportamento. Tais qualidades ou relações integram tipos de crimes que serão crimes específicos próprios (...) ou crimes específicos impróprios..."223. Em face disto, dois poderão ser os entendimentos subjacentes ao pensamento da autora: ou as "qualidades ou relações especiais fundamentadoras ou modificativas do grau de ilicitude" são para si o mesmo que "elementos pessoais (art. 12º, 1, a)", por isso faz a remissão (com o que concordaria com o que acima se disse parecer ser o pensamento de Cavaleiro de Ferreira );

ou entende que a categoria

"elementos pessoais" é de âmbito superior, abrangendo, como sub-espécie, as "qualidades ou relações especiais fundamentadoras ou modificativas do grau de ilicitude"224.

221 Supostamente com tal afirmação o legislador estaria apenas a admitir actuações em nome de outrem no domínio dos crimes específicos próprios, já que nos crimes específicos impróprios o "tipo não exigiria" os elementos pessoais, estes relevavam só para efeitos de culpabilidade. 222 Teresa Beleza, Ilicitamente comparticipando, cit., p. 592. 223 Teresa Beleza, idem, p. 593 (sublinhados nossos). 224 Teresa Beleza, idem, p. 594-595 elenca uma série de exemplos de tais qualidades ou relações especiais compreendidas no art. 28º, que dada a sua relevância para a sequência se enumeram, sem preocupação de exaustividade: qualidades profissionais (médico, funcionário, comerciante, advogado ou solicitador, médico analista, farmacêutico, indivíduo exercendo funções em prisão ou hospital, perito, técnico, tradutor); qualidades que resultam da prática esporátdica de actos que vinculam a deveres especiais (testemunha, declarante); "possivelmente" qualidades derivadas da prática de crimes (habitualidade ou profissionalidade); relações familiares; relações com certas pessoas que fundamente um "dever jurídico" de "pessoalmente" evitar resultados danosos contidos em tipos legais de crime "fontes de 'dever de garante' (algumas relações de guarda e protecção)". Do mesmo passo exclui do âmbito do art. 28º aqueles elementos que constituindo qualidades ou relações especiais não fazem parte do tipo de ilícito, antes fundamentando um juízo de culpa. Exemplos destas serão as qualidades ou relações que a lei faça relevar como condições negativas de punibilidade e qualidades que fundamentem a submissão a um ordenamento autónomo, como o estatuto militar.

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Outro contributo a referir é o apresentado por Fernanda Palma225 quando analisa a problemática da autoria em face dos art.s 227º e 228º CP. Aí conclui que a inovação, em face dos art.s 325º, nº 1 e 326º, nº 1 CP/82, se traduz em ter a autoria deixado de assentar na qualidade típica que constitui o estatuto profissional do autor. Ao invés, a autoria "é antes determinada pela relação funcional entre o agente e os direitos patrimoniais dos credores. Devedor será, assim, não só quem é sujeito passivo de uma relação de crédito, mas também qualquer responsável pela satisfaçãodos direitos de crédito"226. Em resumo, "à autoria bastará esta relação funcional com os direitos do credor, se a isso vier acrescer a prática (em autoria singular ou comparticipação) das actividades tipicamente descritas"227. Mais adiante, colocando a questão da impossibilidade de responsabilizar penalmente as pessoas colectivas228, põe o problema de saber como configurar a autoria em tais tipos legais quando se trate de sociedades comerciais de responsabilidade limitada229. É que nesses casos, afirma, "não poderão ser caracterizados como devedores –i.e. não serão penalmente responsáveis– os titulares dos respectivos orgãos ou os administradores, os quais não poderão ser considerados sujeitos passivos da própria declaração de falência"230. Aqui "a tipicidade dependerá dos critérios extraídos do artigo 12º do Código Penal"231. E é neste momento que, transcrevendo o art.º12º, nº 1, al. a), afirma: "é certo que os agentes em causa não possuem, em si mesmos, a qualidade típica de devedores..."232. Ou seja, parece poder concluir-se que para esta autora os elementos pessoais referidos no art.º 12º CP compreendem as qualidades típicas (quando refere a qualidade típica de devedor). Como momentos antes tinha referido que o estatuto de autor dos referidos crimes deixou de ser a dita qualidade típica e passou a ser uma "relação específica... uma objectiva relação de dever", parece resultar que na categoria dos elementos se inserem também as relações (relação funcional entre o agente e os direitos patrimoniais do credor)233/234.

225 Fernanda Palma, Aspectos penais da insolvência e da falência: reformulação dos tipos incriminadores e reforma penal, in Sep. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa , vol. XXXVI, Lex, 1995 226Fernanda Palma, idem, p. 410. 227 Fernanda Palma, idem, ibidem (sublinhado nosso). 228 Afirma quanto a isto Fernanda Palma: "...mesmo que se entenda que não falta às pessoas colectivas capacidade de acção, mas apenas de culpa, não é possível, em face do art. 11º do Código Penal, considerar que elas são responsáveis penalmente neste c aso. Deste modo, mesmo que se concluísse que a qualidade de autor e a realização da acção se reuniriam em tais entidades, elas não poderiam ser criminalmente responsabilizadas"(Fernanda Palma, idem, p. 411). 229 Afirma ainda que, se se tratasse de uma sociedade comercial de responsabilidade ilimitada, "são, obviamente, devedores todos os sócios responsáveis pelas dívidas da pessoa colectiva e realizarão o tipo os membros da pessoa colectiva que tiverem actuado no interesse desta ou mesmo no interesse próprio utilizando o património da pessoa colectiva" (Fernanda Palma, idem, ibidem). 230 Fernanda Palma, idem, ibidem. 231 Fernanda Palma, idem, ibidem. 232Fernanda Palma, idem, ibidem. 233 Posição esta que, em face do exposto, se considera correcta. Consegue aqui Fernanda Palma trazer à luz o conceito de domínio social que atrás defendemos. É que essa relação funcional entre o agente e os direitos dos credores não é mais que o exercício dos

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Noutro expectro afirma Figueiredo Dias que "o art. 12º regula, pois, e só, a questão de saber sob que pressupostos deve um agente ser tratado como se efectivamente se verificassem nele certas características especiais exigidas ou pressupostas pelo tipo e que, na realidade, nele se não dão: por isso se devendo afirmar que nele se prevê a extensão da punibilidade de certos tipos legais de crime. Isto há-de ser tido em conta na interpretação dos seus elementos constitutivos e, nomeadamente, dos 'elementos pessoais' que refere, por comparação com as 'qualidades ou relações especiais do agente' a que alude o art. 28º, relativo à ilicitude na comparticipação. Que aquele conceito deva ser interpretado mais restritamente do que este, é sugestão que logo me parece resultar do pensamento fundamental que acabei de mostrar presidir ao art. 12º"235. Ou seja, parece inferir-se que para Figueiredo Dias os elementos referidos no art.º 12º CP não abrangerão todas a gama de qualidades e relações especiais constantes do art.º 28º, pois só assim se compreende a interpretação restritiva daquele primeiro conceito. Em resumo, vê-se que existe alguma oscilação doutrinal sobre o significado da expressão "elementos" usada pelo art.º 12º CP. Quanto a isto convém lembrar G. Martín, quando a este propósito afirmou que, por via de regra,"as previsões legais referem-se precisamente a esta espécie de elementos (condições, qualidades ou relações requeridas para poder ser sujeito activo do crime )"236. I.e., nas diversas legislações em que surgem previsões de actuações em lugar de outrem sempre a linguagem do legislador anda em torno dos mesmos vocábulos. E se há alguma proximidade em termos de letras de lei, também podemos ver subjacentes às posições doutrinais atrás expostas algumas das polémicas enunciadas sobre esta mesma questão. Ora, temos para nós, antes de mais, que a previsão do art.º 12º CP não deve ser condicionada na sua interpretação pelo entendimento que se tenha do art.º 28º. Como dizia Figueiredo Dias, os objectivos de ambas as normas são diferentes. Porém, já se não compreende porque conclui Figueiredo Dias pela necessidade de interpretar mais restritamente o conceito elementos. Não obstante, recuperando o primeiro argumento, julga-se que mais do que tentar apurar se o significado de ambas as expressões em confronto é o mesmo, há é que determinar qual o sentido da expressão elementos em face do instituto da actuação em lugar de outrem. Se a nota distintiva das actuações em lugar de outrem, dada a equivalência do desvalor dos resultados da conduta do titular dos elementos pessoais e da daquele que em seu nome actua, é essencialmente o desvalor da acção desenvolvida, é precisamente com este critério que teremos que descobrir o sentido com que a norma há-de valer. E aqui considera-se que a referência do art.º

poderes e faculdades próprios do titular da esfera, o verdadeiro devedor, por alguém, o agente em nome de outrem, que à mesma era originariamente alheio: alguém que tendo o domínio social assume uma posição de garante. 234 Temos, pois, aqui a primeira analise do art.º 12º fora do contexto da comparticipação. 235 Figueiredo Dias, Pressupostos da punição..., cit., p. 52 (sublinhado no original).

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12º CP a elementos pessoais significa precisamente uma alusão àqueles elementos que servem para demarcar o domínio social em que actua normalmente o titular da respectiva esfera. Ou seja, a referência a elementos pessoais será mais correcta e integralmente compreendida se nela virmos uma referência não só a uma qualidade especial do autor mas do mesmo passo a uma qualidade especial da acção típica: esta acção apresentará como nota distintiva o ser realizada num âmbito e num exercício de funções que é, em regra, monopólio de uma certa classe de sujeitos. Dito de outro modo: focalizando a Lei o seu campo de abrangência através da identificação dos sujeitos, que caracteriza com certos elementos, está a demarcar o âmbito social sobre o qual esses mesmos sujeitos dominam. E esta conclusão é particularmente aplicável ao ordenamento jurídico português, na medida em que o art.º 12º não repete nenhuma das expressões comummente usadas para identificar a categoria dos crimes específicos (a saber, as qualidades e relações)237. Assim sendo, como é, e ponderando que o fim prosseguido no art.º 12º CP é responsabilizar o agente em lugar de outrem a título autónomo, por factos pelos quais sem a sua existência não lhe seriam imputados, há que concluír que os determinados elementos pessoais serão todos aqueles que caracterizando o sujeito identificado se refiram ao desvalor pessoal da sua acção. Estes serão os elementos objectivos da autoria referentes ao desvalor da acção. Não têm pois que ser comparados com os conceitos do art.º 28. São uma referência normativa a uma realidade conceptual que desempenha funções distintas, prossegue fins diversos e que merece, por isso, ser interpretada por si mesma e teleologicamente. E com isto apela-se precisamente para a esfera de protecção das normas, único critério de demarcação do âmbito em que se inscrevem os bens jurídicos cuja protecção se deseja; paralelamente obtem-se esclarecimento para o que sejam os elementos pessoais referidos no art.º 12º, assim se fechando o círculo da interpretação. Por outras palavras, usando o art.º 12º a referência a “elementos pessoais”, está precisamente a convocar para a sua previsão a já referida relação de domínio social que em regra pertence ao sujeito que é titular da esfera em que os bens jurídicos a proteger estão inscritos, e que, excepcionalmente, se torna acessível a terceiros, a indivíduos que não sendo pela Lei qualificados podem entrar também nessa relação de domínio social com os referidos bens jurídicos. Dado o descomprometimento literal entre os art.ºs 12º e 28º, julga poder fazer-se esta afirmação ainda com maior à vontade do que o faz a doutrina em face de Leis estrangeiras. O nosso art.º 12º, portanto, valerá como se dissesse que os elementos pessoais têm um significado distinto (quanto aos fins visados),

das especiais qualidades, relações ou mesmo condições, tudo denominações já

236 G. Martín, El actuar..., cit., p. 281. 237 Lembre-se quanto a isto o que ficou escrito quando se referia que a doutrina maioritária alinhava na classificação apresentada por Bruns, e que encontrava acções em nome de outrem em quatro casos distintos: os crimes em que o tipo de ilícito exige a concorrência de uma qualidade especial e pessoal do autor; os crimes em que o tipo de ilícito pressupõe uma actividade precisa e delimitada, tipicamente descrita; os crimes em que o tipo pressupõe uma vinculação fáctica ou jurídica do respectivo autor a certos bens; e os crimes em que o tipo requer uma acção típica motivada por uma motivação egoísta.

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carregadas de conotações dogmáticas próprias. Concluindo-se que com "determinados elementos pessoais" o que o legislador faz é indicar directamente os sujeitos, mas implicitamente os domínios funcionais em que tais sujeitos operam normalmente, e em que excepcionalmente terceiros intervêm, não há qualquer obstáculo em afirmar que no art.º 12º o legislador quis utilizar a expressão no sentido lato de "âmbito social ou funcional", caracterizado logicamente pelos ditos elementos. Elementos pessoais serão pois, neste sentido, os qualificativos utilizados pelos tipos para circunscrever a esfera (social, económica ou jurídica), em que cada indivíduo tem o domínio ou o contrôle sobre os bens jurídicos que na área típica se encontram. É, outrossim, a área na qual existem os deveres que se impõem ao titular da esfera, enquanto garante, deveres esses que por força da norma do art.º 12º vincularão, directamente também, o terceiro que acede à esfera e que com ela mantém a identificada relação de domínio. Mas mesmo que se entenda que o sentido de ambas as expressões, no art.º12º e no art.º28º, é exactamente o mesmo, não se extrai daí nenhuma consequência de maior na perspectiva defendida. É que o tratamento dogmático desta categoria de crimes específicos se estende necessariamente às duas classes de comportamentos que a doutrina alemã identificava como crimes em que o tipo de ilícito pressupõe uma actividade precisa e delimitada, tipicamente descrita, e como crimes em que o tipo pressupõe uma vinculação fáctica ou jurídica do respectivo autor a certos bens. Também quanto a isto já ficou expressa a nossa posição: em todos os casos, com recurso às qualidades, às actividades e às relações do agente, estão os tipos a delimitar o círculo de sujeitos aptos a praticar o crime, sendo que pela primeira via a delimitação é positiva ou expressa, enquanto nas duas últimas há delimitação negativa ou implícita. Por isso se assumiu a posição de G. Martín segundo a qual as três primeiras categorias de Bruns se subsumiam ao grupo dos crimes específicos238. Em resumo, não só a interpretação do art.º 12º não está subordinada às conclusões que se retirem do art.º 28º, como mesmo para quem entenda que as expressões são equivalentes a solução será a mesma: interpretar teleologicamente o sentido de determinados elementos pessoais. Questão diversa é a de saber se no art.º 12º se englobam apenas os crimes específicos próprios, como era entendimento de Cavaleiro de Ferreira, ou se se referem em globo todos os crimes específicos. Na Alemanha, Grau239 e Bruns240 entenderam que a previsão das actuações em nome de outrem tanto abarcava os crimes específicos próprios como os impróprios. Ao invés, entendia

238 Cfr. Cap. III, Sec. B, § 6.IV, do nosso “A responsabilidade penal dos Quadros das Instituições…”, cit., em geral. Pondere-se ainda, em abono do que se diz, o rol de qualiades e relações especiais que a doutrina considera em regra como relevantes para efeitos do art.º 28º CP, e que atrás enumerámos sob autoridade de Teresa Beleza. 239 Grau, Die strafrechtlieche Verantwortlichkeit ..., cit., p. 742 240 Bruns, Faktische Betrachtungsweise ..., cit., p. 462.

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Blauth241 que não fazia sentido aplicar tal previsão aos crimes específicos impróprios, na medida em que não havia justificação para tal... nesses casos não havia lacuna de punibilidade porque o agente em nome de outrem sempre podia ser punido pelo crime comum correspondente242. A doutrina maioritária alinhava com Blauth, dada a referência do § 14 a elementos pessoais que fundamentam a punibilidade. Em face do art.º 15º-bis do Código penal espanhol revogado, também Bacigalupo –escorado no argumento de Blauth–

sustentava que apenas se dava uma extensão do círculo de autores nos crimes

específicos próprios243. G. Martín opinava precisamente no sentido oposto244. Ora, s.d.r., em tese geral não faz qualquer sentido o posicionamento de Bacigalupo, pois que actuações em nome de outrem, como visto, tanto podem suceder em crimes específicos próprios como impróprios. Acresce ainda que o facto de já existir uma outra via para punir o agente em nome de outrem, por assim dizer “a título independente” (sem recurso à norma de adscrição de que falámos), não procede. É que a função da previsão deste instituto não se esgota em colmatar lacunas, mas em proceder a um reajustamento ou requalificação dos factos. Se o que importa é o desvalor pessoal da acção e não o desvalor do resultado, ponderado o que atrás se disse sobre domínio social e sobre especial protecção dos bens jurídicos que na esfera em que se exerce tal domínio se encastram, há que concluír que é totalmente outra a solução correcta, dogmática e político-criminalmente. Caminho diverso seria mesmo injusto do ponto de vista do conteúdo da ilicitude dos tipos. Ora, em face da Lei portuguesa, e vistas as diferenças que mantém com o § 14 StGB alemão, não se encontra nenhuma limitação da abrangência do art.º 12º no sentido de apenas compreender os crimes específicos próprios. Na verdade, ao invés do que afirma Cavaleiro de Ferreira, a expressão "quando o tipo de crime exigir" não significa que só se estejam a abranger crimes específicos próprios. É que em todos os tipos de crime em que se tutelem especiais esferas de protecção da norma, determinados âmbitos sociais em que se exerce um domínio, o tipo de crime exije sempre “determinados elementos”. Em conclusão, para aplicação da previsão do art.º 12º CP irreleva que ao lado do tipo que exija esses determinados elementos pessoais um outro tipo exista em que tal exigência não é feita245. Há, pois, que aplicar a estatuição do art.º 12º quanto a actuações em lugar de outrem em crimes específicos próprios e em crimes específicos impróprios, o que sendo coerente com a letra da lei é dogmática e político-criminalmente preferível, pois ultrapassada está a visão deste instituto

241 Blauth, "Handeln für einen anderen" ..., cit., pp. 152 e s. 242 Isto porque para este autor a única função das actuações em nome de outrem era a de colmatar lacunas de punibilidade. 243 Bacigalupo, Responsabilidad penal de órganos, directivos y representantes, apud G. Martín, El actuar en lugar de otro en derecho penal, II-estudio específico del art. 15º-bis del Codigo Penal Español, PUZ, Zaragoça, 1986, p. 97 e n. 31. 244G. Martín, El actuar..., II, cit., p. 99. 245 Procederia o argumento de Cavaleiro de Ferreira se no art. 12º o legislador se tivesse socorrido de uma distinção como a que surge

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enquanto mera via de ultrapassagem de lacunas de punibilidade. Por último, e sinteticamente, cumpre concluír que os elementos em causa não compreendem aqueles outros elementos típicos que se refiram à execução da acção típica, ao modo, aos meios e formas de execução quando estejam tipicamente descritos. Isto porque, como é óbvio, tais elementos não preencherão o segundo requisito apresentado nesta alínea a) do nº 1, ou seja, não se verificarão “na pessoa do representado”. Também não compreenderá tal referência a “elementos”, e pelas razões já vistas, os chamados elementos subjectivos da ilicitude. Estes, tal como o dolo e a falta do cuidado devido nos tipos negligentes, têm de concorrer no agente, e por isso excluem-se da letra da al. a) do nº 1 do art.º 12º. Também se exclui desta problemática a execução pessoal do facto, requisito dos crimes de mão própria. Mas a norma que elegemos como objecto da nossa análise traz ainda uma outra expressão merecedora de comentário breve. Refere-se aqui o inciso "só se verificarem na pessoa do representado". Esta expressão não levantará, segundo se crê, grandes problemas. Mas para tanto terá que ser entendida no sentido de que o "só se verficarem na pessoa do representado” mais não quer dizer que "não se verificam na pessoa do agente que age em nome de outrem". E se assim for é manifesto o acerto do preceito. Porém, se se pretender neste inciso ver a afirmação de que os elementos têm necessaria e forçosamente que concorrer, “formalmente”, na pessoa do representado, então aí merecerá censura tal interpretação. Censura que ficou expressa atrás e que por brevidade se resume dizendo que muitas situações equivalentes àquelas que o preceito visava abranger ficarão de fora em face da complexidade e agigantamento crescentes das Instituições e dos Grupos de Instituições em que fenómenos idênticos mereceriam equivalente solução: a extensão dos tipos, ou da autoria, ou da punibilidade, como se preferir, nos termos do art.º12º, nº 1 al. a) do CP246. Em suma, tudo dependerá de apurar se das palavras da Lei resulta uma consagração da Tese da Dissociação. E diz-se das palavras da Lei porque atendendo à vontade do legislador e ao espírito legislativo, todas essas situações deveriam ser compreendidas. IX.3) A alínea b) do artigo 12º nº 1 do CP 247

no art.º 28º (ilicitude ou grau de ilicitude). 246 Cfr. Cap. III, Sec. B, §4, II do nosso “A responsabilidade penal dos Quadros das Instituições…”, cit., e em especial, do mesmo Capítulo e Secção, o § 4, II-3. 247 Também aqui, como atrás, limitamos a incidência da análise à busca da responsabilização penal dos Quadros das Instituições, e portanto a norma sob análise é a seguinte: "É punível quem age voluntariamente como Quadro de uma Instituição, mesmo quando o respectivo tipo de crime exigir que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado".

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Como atrás se referiu, Cavaleiro de Ferreira via nesta alínea a consagração da actuação em lugar de outrem nos crimes que exigissem dolo específico248. Ora, não se crê que se possa aludir à alínea b) do nº 1 do art.º 12º em termos tão imprecisos que resulte tão pouco concretizado o seu conteúdo. Como visto, esta alínea b) prevê precisamente as actuações em lugar de outrem nos crimes delimitados por motivações egoístas, aqueles em que o tipo descreve uma acção típica que se reporta a uma actividade dirigida pelo agente em vista da satisfação de um interesse próprio. Aqui, para existir uma actuação no lugar de outrem, mantém-se também o requisito da voluntariedade a que atrás aludimos. Contudo, nesta alínea, a importância da exigência feita pelo corpo do nº 1 do art.º 12º perde relevância, na medida em que é requisito essencial dos tipos visados por esta norma a prática pelo agente de um facto no seu próprio interesse. Ora, havendo o desenvolvimento de uma actividade com vista a beneficiar ou a satisfazer um interesse, próprio ou alheio, resultará da experiência que tal comportamento é, quase que por definição, voluntário. A doutrina sempre aceitou esta modalidade de crimes como integrando a zona problemática das actuações em lugar de outrem. E com efeito não é difícil imaginar situações desta natureza a surgirem na vida das Instituições. Basta hipotetizar casos em que um Quadro desenvolve condutas, no lugar da sua Instituição, que sendo ela a praticá-las envolveria o preenchimento de um desses tipos de crime motivado por um interesse ou proveito próprio. Como é comummente observado, a impunidade nestes casos não advém de qualquer partilha de motivações entre o representante e o representado. Sucede é que o tipo penal exige uma particular motivação para que se considere praticado o crime, e, em concreto, a conduta desempenhada pelo representante não é, nesse sentido, típica, uma vez que não pratica o crime no seu próprio interesse. Também aqui, a concepção perfilhada permite fundar a extensão da tipicidade a este terceiro que aparentemente actua de modo altruísta. É que do ponto de vista do conteúdo da ilicitude da conduta tão censurável é a acção do representante como a do representado. Assim sendo, apesar do aparente altruísmo, como dissemos atrás, há um verdadeiro egoísmo que coloca o representante na mesma posição, em termos de desvalor da acção, do representado. Por último, cumpre notar que esta alínea b) não gera o mesmo tipo de problemas teóricos que surgem com a alínea a). Ao invés, a surgirem questões sobre ela serão sempre questões práticas, dir-se-ia mesmo processuais ou probatórias. Como bem salienta Fernanda Palma, a "exigência de agir no interesse da pessoa colectiva pode ser problemática nos casos em que não tenha havido uma explícita tomada de posição dos respectivos órgãos deliberativos no sentido da prática dos actos, e em que, por isso, eles são dificilmente imputáveis à sua vontade". Nestes casos, contudo, a autora propõe a seguinte solução: "...deverá bastar que os comportamentos sejam praticados no

248 Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, cit., p. 299, define dolo específico do seguinte modo: "Se aos elementos essenciais, comuns a todos os crimes, acresce algum outro elemento essencial, exigível relativamente a algum crime em especial, o dolo denomina-se então dolo específico".

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exercício normal das funções dos agentes ou no âmbito dos seus poderes de representação e que eles não tenham agido no estrito interesse pessoal"249. Se bem que tentados a concordar com esta solução, não pode deixar desde já de se alertar para o perigo de facilmente se caír em situações de rigor jurisprudencial excessivo, em que a imputação da responsabilidade advém da simples titularidade de uma posição funcional. Se assim for claramente que a decisão será ilegal, por violar, antes de mais, o corpo do nº 1 do art.º12º. IX.4) O “título” da representação: determinação do sentido do nº 2 do artigo 12º CP O art.º 12º nº 2 CP estatui num sentido que logo na Comissão Revisora levantou algumas dúvidas. Contudo, em face da letra da Lei a questão encontra-se solucionada: o título de representação terá de existir, podendo, todavia, ser ineficaz. Ora, o que mais importa sublinhar aqui é a consagração, pelo menos parcial, da atrás criticada Tese da Dissociação. Com efeito, exigindo-se uma formalização do acto de representação, acaba por se deixar de fora o núcleo talvez mais perigoso, como salientava Tiedemann 250, da criminalidade surgida no seio das Instituições. Além disso, como resulta do próprio teor do nº 1 do art.º 12º, os representados podem ser meras associações de facto, em que o grau de formalismo (mesmo social), como é sabido, muito se reduz. Não raro se depara no comércio jurídico com associações deste tipo, quanto às quais, muito dificilmente se consegue encontrar qualquer título válido de representação. Que o mesmo é dizer que se torna inoperante o mecanismo estatuído no nº 1 por força das exigências formais do nº 2. Ademais, a forma rígida do título da representação decorre pura e simplesmente de uma concepção das actuações no lugar de outrem como fenómeno adstrito à responsabilidade penal dos órgãos, forma que historicamente a questão assumiu. Porém, muito evoluiu a vida económica e a respectiva criminalidade deste 1874, razão pela qual, não deveria a Lei portuguesa ter ficado atavicamente presa a concepções que poderão hoje em dia levar a uma quase total inoperatividade da previsão do art.º 12º. X – Função e legitimidade do artigo 12º CP X.1) A função da previsão legal das actuações em lugar de outrem Como já ficou expresso por mais do que uma vez, as actuações em lugar de outrem não têm por função única e exclusiva o colmatar de lacunas de punibilidade. Ao invés, constituem mecanismo geral de imputação de responsabilidade penal, não dependendo da defesa da irresponsabilidade

249 Fernanda Palma, idem, pp. 411 e s.

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penal das Instituições, nem quadrando apenas às situações de tal construção emergentes. Não obstante, como nesta sede é precisamente das actuações em lugar de outrem que surgem na vida das Instituições que se trata, cabe enfrentar o problema e ser inequívoco. E aqui, afirme-se peremptoriamente, a função da previsão das actuações em lugar de outrem desempenha função imprescindível, independendo da posição que se sustente quanto ao art.º 11º CP. Com efeito, esta questão é distinta da escolha que se faça entre punir ou não punir as Instituições. Por essa razão os ordenamentos jurídicos estão completamente libertos de quaisquer amarras para poderem optar por uma ou outra via de punição. Aliás, poderão até optar por prever a responsabilidade das Instituições e dos Quadros, como é legalmente possível em Portugal251. Contudo, e sabendo que se contraria doutrina firme e sedimentada em Portugal, não se crê que através da responsabilização penal das Instituições se consiga verdadeiramente controlar a criminalidade que por detrás delas se alberga. Nem se vislumbra qual a "alta conveniência ou mesmo imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em Direito penal secundário"252. É que, como ensina a Criminologia, a delinquência económica253 não é sensível as mais das vezes a penas de carácter pecuniário ou económico-financeiro, que são as que com mais facilidade se antevêem ser aplicáveis a Instituições. Tanto mais que, com regularidade, os proveitos colhidos da actividade ilícita superam em muito a perda sofrida no caso de ocorrer a aplicação da sanção. Acresce ainda que as cifras negras neste domínio são tão elevadas que as Instituições de bom grado correm os riscos necessários e inerentes à prática dos ilícitos, confiantes –por experiência generalizada–

na inoperatividade do sistema. Ora, atendendo a que uma política criminal não pode

ser desajustada da realidade socio-cultural sobre a qual terá que produzir os seus efeitos, não chocará afirmar que por regra, e em Portugal particularmente –dadas as idiossincrasias do nosso povo–, a sanção cominada na Lei contra o Quadro tem maior efeito preventivo do que a equivalente sanção que se pode(ria) aplicar à Instituição (sanção essa que –quando aplicada– será quase sempre suportável). Daí julgar-se que será político-criminalmente mais frutuoso estabelecer as possibilidades e meios de execução da responsabilidade penal dos Quadros das Instituições do que afirmar, quase sempre inocuamente, a responsabilidade destas últimas. Porém, e estranhamente, não parece ser este entendimento partilhado pela Doutrina nacional, sempre ufana em tratar a questão da responsabilidade penal das Instituições e em enjeitar o conhecimento e desenvolvimento do art.º

250 K. Tiedemann, Kartellrechtsverstösse, apud G. Martín, El actuar..., I, cit., p. 124. 251 Isto, claro está, se se estiver em face de uma norma que em concreto imponha uma reacção criminal a uma Instituição, pois o art. 11º do CP tem apenas uma função declarativa, ou mesmo legitimadora de eventuais opções que venham a ser tomadas pelo legislador. 252 Figueiredo Dias, Para uma dogmática ..., cit., p. 73. 253 E crê-se que será apenas nesta área que a questão se poderá, com legitimidade, pôr (usa-se aqui o mesmo conceito de criminalidade económica que tivémos oportunidade de circunscrever na nossa citada Dissertação de Mestrado).

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12º CP254. E esta constatação é tanto mais lamentável quanto se ponderar que a Responsabilidade penal prevista no art.º 12º CP está consagrada de modo até bastante aceitável, como se viu, apesar das críticas apontadas. Mas ainda um outro argumento há que convocar: é que, queira-se ou não, a legitimidade da intervenção penal não só pode ser vista hoje como deverá ser vista sempre como uma forma de agravação excepcional da situação dos Homens em sociedade255. E com isto não vai implicada nenhuma concepção limitada sobre os fins das penas. Acresce ainda que quando se põem reservas à responsabilização penal das Instituições não se está a apelar para "qualquer ordem transcendente e absoluta de valores -como derivada, hoc sensu, de exigências 'metafísicas'..."256. Está pura e simplesmente a demonstrar-se que não se pode criar uma dogmática penal “paralela”, que continue a ser penal quanto aos efeitos, mas que perca os atributos da Justiça penal clássica quanto aos pressupostos. A impossibilidade de uma realidade, simultaneamente, “ser e não-ser”, desde sempre foi salientada. Ademais, são bem conhecidos os perigos de todos os utilitarismos, quanto mais os utilitarismos penais. Todavia, o argumento que se considera mais valioso para justificar a função da previsão legal das actuações em lugar de outrem como via de imputação de responsabilidade criminal aos Quadros das Instituições, é o que resulta do seguinte imperativo: há que apanhar os verdadeiros delinquentes! E não será por dificuldades investigatórias, nem por falta de argúcia das instâncias formais de controlo que se hão-de derrubar as barreiras do admissível e do necessário. Não obstante, o que se diz não significa uma oposição radical e definitiva à possibilidade de responsabilizar criminalmente as Instituições. Significa apenas, e só, que o estudo e aprofundamento da responsabilidade penal daquele que actua no lugar de outrem, sendo Quadro de uma Instituição, não é uma tarefa de segundo plano, nem é tema que deva ser tratado lateralmente, como se servisse tão-só para suprir as insuficiências da “concretização” do filho predilecto. Destas linhas, espera-se, emergem claramente as razões e a função de uma cláusula de responsabilização daqueles que actuam no lugar de outrem. Mas mais, dele resulta também o

254 Aliás, não será por acaso que quase não se encontrem nas bases de dados de jurisprudência arestos em que o art.º 12º CP seja, sequer, objecto de aplicação, quanto mais de elaboração jurisprudencial, excepção feita a apenas dois acórdãos detectados, mas que, por pudor, nem sequer se identificam, tão incipiente, incorrecta e lamentável, senão mesmo miserabilista, era a aplicação feita de tal preceito (aliás, por dever de rigor académico, refira-se a existência da mais meia dúzia de acórdãos que nos respectivos sumários referem “art.º 12º CP”, mas que no respectivo teor se limitam a elencá-lo a meio de um chorrilho de normas –quase sempre por alegação dos cidadãos recorrentes ou do Ministério Público–, sendo mesmo duvidoso que o art.º 12º tenha sido pelo Tribunal aplicado às situações então sub judicio –isto admitindo que era, em abstracto, aplicável ao caso).

255 Figueiredo Dias, Sobre o estado actual da doutrina do crime, cit., p. 17 afirma o oposto: "A legitimação da intervenção penal não pode hoje ser vista como advinda de qualquer ordem transcendente e absoluta de valores -como derivada, hoc sensu, de exigências 'metafísicas'-, mas unicamente de critérios funcionais de necessidade (e de consequente utilidadade) social". 256 Figueiredo Dias, idem, ibidem.

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verdadeiro fundamento do art.º 12º: constitui verdadeira responsabilidade directa, e não subsidiária, pela actuação. Daí não ser necessário, quanto a este instituto, abrir excepções aos cânones gerais do Direito penal, o que outrossim aconselha à sua utilização. X.2) A legitimidade constitucional do instituto em apreço Cumpre por fim aferir da Legitimidade do recurso ao art.º 12º CP. Como noutra sede se escreveu257, a responsabilidade pela actuação em lugar de outrem, ao contrário da responsabilidade por facto alheio, não viola nenhum princípio básico da dogmática penal. Paralelamente, não violando o princípio da culpabilidade nem o da personalidade da responsabilidade penal também não será de qualquer modo beliscada a Constituição criminal portuguesa. Só estas duas razões, crê-se, seriam bastantes para esclarecer da legitimidade do regime previsto no art.º 12º CP (maxime para responsabilizar os Quadros das Instituições). Mas a sua legitimidade advém ainda de uma outra razão. Acredita-se aqui profundamente que cada vez mais é importante sublinhar o desvalor das acções dos Homens. Precisamente por isso não se acentua apenas o desvalor dos resultados. Ora, responsabilizar o agente em lugar de outrem nas condições e limites expostos constitui não só uma forma mais de defesa da sociedade, dos seus valores e bens jurídicos fundamentais -como aliás é atributo de todo o Direito penal-, como constitui um estímulo ao crescimento dos próprios intervenientes. É que a vida social em geral, e a vida económica em particular, vive cada vez mais tempos de desresponsabilização, de falta de solidariedade e de anonimato, pelo que responsabilizar apenas as Instituições é contribuir para tal status quo, deixando os factos sem rosto. Por isso, precisamente por isso, a legitimidade deste instituto, além de estar escorada dogmaticamente nos princípios referidos, encontra novo arrimo na sua potencialidade para corresponsabilizar todos os que conduzem as Instituições no mundo jurídico e fáctico, na actividade social que desempenham. Estas as razões jurídicas e sociais que julgamos legitimarem o art.º 12º CP, e esta a sua principal valência pragmática: corresponsabilizar os Quadros que vivificam as Instituições. E a legitimidade da responsabilização completa-se quando a mesma não é objectiva, não é ultra-punitiva e é consequentemente no plano prático. É que, como vimos, este mecanismo de imputação de responsabilidade permanece ligado ao facto e ao agente, tem base objectiva e subjectiva, por isso merece atenção e por isso não pode chocar!

Fim

257 Cfr. o nosso “A responsabilidade penal dos Quadros das Instituições…”, cit., quando da análise comparativa entre a responsabilidade por facto alheio e a responsabilidade pela actuação em nome de outrem.

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