O artista-espectador na performance coletiva

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O artista-espectador na performance coletiva Versão extendida do texto publicado na Revista Mesa n.4 1

O que sabe o artista que não conhece a aparência de sua obra? A performance coletiva , enquanto arte do devir, esconde a resposta no gesto de cada espírito cúmplice, esteja ele no posto de público ou artista. Ambos se tornam espectadores na medida em que a incerteza recíproca reinaugura futuros a cada instante do ato performático. Cada gesto, venha de quem vier, vira então uma conferência-espetáculo que acontece em um espaço-tempo múltiplo, onde é possível imaginar, olhar, escutar e sentir, sob a condição da intotalidade. Esta condição é própria de performances que conduzem suas ações em um espaço-tempo fragmentado – deslocalizado e simultâneo – e pode ser verificada quando artistas e público se embaralham, provocando travessias de incerteza. Eu, enquanto artista e espectador afetado por estas circunstâncias, não sei ao certo o que aconteceu dia 12 de dezembro de 2014 na Casa Daros, pois, embora tivesse um roteiro em mente, não pude estar presente em todas as ações ocorridas. O todo se apresentou em partes. Minha única certeza é que ninguém viu tudo. Parecia que eu estava num jogo de baralho, em que as cartas pretas são o público, as vermelhas são os artistas e o verso representa os espectadores. Ao embaralhar estas cartas, sou antes de tudo um espectador e, ao retirar uma delas, posso me transformar tanto em artista quanto em público; posso tanto agir quanto reagir, sem abandonar minha condição de espectador. Entretanto, este jogo de baralho tem cartas marcadas. Os artistas conhecem as pré-intenções flutuantes. Eles se fizeram presentes durante todo o planejamento da performance. Nos ensaios, paralisaram o tempo para repetir o jogo no espaço. Testaram e, às vezes, resolveram mudar as estratégias. Deixaram decisões de lado enquanto adotavam outras; sempre em equipe, mesmo sem consenso. Ou seja, imaginar previamente o jogo é estar legitimado como artista, mas, por outro lado, olhar, escutar e sentir o desenrolar das ações do coletivo (incluindo o público) só é possível através da curiosidade típica de um espectador – eis, como me sinto: um artista-espectador. Pois, se minha condição de intotalidade limita o desempenho do meu aparelho perceptivo a um determinado espaço físico, e, consequentemente, em certo nível, este fato me exclui de partes da performance coletiva à qual ajudei elaborar, e ainda, sabendo que minha curiosidade não me é suficiente para acessar espaços simultaneamente, dúvidas essenciais irrompem em mim: como posso falar com propriedade sobre a obra da qual faço parte se não a conheço inteiramente? Antes: eu pertenço a esta obra em sua totalidade? E mais: se ninguém viu toda a obra, quem está apto a lhe pertencer? Um trabalho individualmente coletivo como “Olha, imagina, escuta, sente”, cujos criadores estão condicionados à intotalidade, põe em questão a natureza indefinida do artista, e, nesta brecha, acredito operar o espírito do artista contemporâneo. Se a falta de exatidão não me permite falar convictamente da obra em questão, levando em consideração seu processo de criação e apresentação, gostaria de fazer outra analogia – A situação é semelhante àquela de quem vai se mudar com a família para um novo lar: Você tem seus móveis, mas não sabe bem onde vai colocá-los. Antes da mudança, sua mãe já imagina as panelas embaixo da pia e sua irmã o quadro sumi-e na sala, apesar do seu pai detestar arte japonesa. No seu quarto, você toma as decisões – a cama vai ficar de frente para a janela. Mas e o armário e a escrivaninha? – A mudança vai chegar. Os entregadores são como os produtores da performance. Eles vão carregar suas coisas para dentro de um espaço novo, perguntando “onde coloco isso?”. Você mal sabe. Conforme os móveis vão entrando pela porta (deixando arranhões por toda parte), você se dá conta de que a quinquilharia é grande. O espaço antes vazio agora está pleno de intenções. Primeiro vocês arrumam o lugar comum de certos objetos, como geladeira, fogão e aquela pintura maravilhosa da sua tia. Depois, mãe e pai discutem onde vai ficar o sofá da sala. Você observa eles deixarem a decisão para mais

tarde, enquanto sua irmã já vai pendurando o sumi-e num parafuso velho que estava na parede. O pai, ao invés de reclamar com a filha, prefere cuidar para que a mãe não mexa no sofá. Você dá uma opinião sobre a mesa, mas ninguém comenta, exceto seu vizinho que chegou para dar boas-vindas. – Melhor você ir cuidar do seu quarto. – Depois de colocar a cama e o armário nos lugares, você se dá conta de que tem coisas demais. A mesinha-decabeceira não cabe ao lado da cama. Você terá de se desfazer dela. Sua família também percebeu isso no resto da casa. Quanta tralha! Apesar de você ter um carinho pela mesinha, você a descarta e toma consciência de que sua utilidade é menos importante que o espaço livre. Sua vida não parou. Você continua sua rotina, assim como sua família. Passam dias e a casa ainda está uma bagunça. Apesar de muitas caixas se amontoarem no meio da passagem, você repara que cada vez mais coisas vão ganhando posto. Você nem sabe quem as colocou lá, mas está aliviado de ter uma caixa a menos no caminho. Você também arrumou uns cacarecos sem ninguém ver. Quando o seu novo lar está pronto, você chama os amigos para a open house. Eles adoram a nova casa, a disposição dos móveis e o tempo que passam ali. Sua mãe serve uns quitutes enquanto seu pai toca gaita para quem quiser ouvir. Sua irmã vai lavando a louça e você então se dá conta de que o esforço coletivo da sua família para organizar a casa e abri-la para os convidados foi um sucesso. E isto não seria possível sem a confiança em si, no outro, e no todo. Michel Schettert

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Performance coletiva é entendida aqui como obra artística performática criada e executada em grupo, na qual todos os artistas envolvidos assinam co-autoria. Neste caso, por exemplo, a obra “Olha, imagina, escuta, sente” é de autoria de 16 artistas.

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