O artista, um estatuto construído
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O artista, um estatuto construído Emília Ferreira Durante séculos, a herança platónica na civilização ocidental confinou o artesão a uma posição social pouco invejável. A sua fraca importância na escala hierárquica devia-‐se ao facto de o seu trabalho ser visto como meramente manual. Na nova educação que Platão propunha para a cidade, o artesão não tinha lugar. As objecções que Platão levantava ao mérito social e político destas profissões prendiam-‐se com a possibilidade de acesso ao conhecimento verdadeiro. Com efeito, se o poeta, por exemplo, já se afastava da verdade mistificando-‐a, que dizer então do maior mistificador de todos, o pintor (ou o escultor) — aquele que copiava a cópia da ideia, que reproduzia a natureza física do mundo, pálida sombra da sua natureza ideal, verdadeira? Essa obscura imagem do pintor ou escultor como simples produtor de objectos é suficiente para que ainda hoje se discuta a existência ou inexistência de um estatuto diferente para artesão e artista, na Grécia Antiga. Na verdade, esta dúvida atravessa toda a nossa compreensão da Antiguidade Clássica. Mesmo tendo-‐se já estabelecido a importância da indústria na sociedade romana, permanece difícil definir o papel social do artesão romano. Para ilustrar esse embaraço bastará que nos lembremos que o termo ars e todos os seus derivados se aplicavam então a situações hoje conhecidas sob diversos nomes, como artesanato, técnica e arte. Então, para os Romanos, "a principal linha de demarcação não se situa entre as actividades manuais, mas entre ocupações que visam fins práticos (anima libera oblectatio/utilitas), portanto, entre artes «liberais», ou seja dignas de um homem livre, como a matemática, a retórica ou a
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Texto publicado no catálogo da exposição O Desenho Dito, Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, 2008. ISBN-‐ 978-‐972-‐8794-‐48-‐4. P. P. 44-‐46.
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filosofia, e todas as outras, dos ofícios manuais até à medicina ou à arquitectura." 2
A situação social destes indivíduos é, pois, de tal modo indiferenciada (confundindo-‐se os actuais conceitos de artesãos e artistas) que nos podemos mesmo interrogar sobre a sua condição de liberdade e o seu sucesso ou insucesso económico, factores que variaram segundo os diversos momentos da história do Império e mesmo de acordo com as distintas geografias. Se alguns deles — pintores e escultores — conseguiam um estatuto mais elevado, a verdade é que a diferença entre eles e os artesãos não era suficiente para tornar aqueles, enquanto classe, elementos bem vistos e inteiramente aceites pelos demais membros da cidade. Um aspecto interessante e que dá uma ideia da importância social (ou ausência da mesma) que estes cidadãos tinham é o anonimato que, em geral, marca as produções, não tendo permanecido, na maior parte dos casos, uma clara identificação de quem fez a obra — sinal de uma realização individual. Apesar de, mais uma vez, esta situação depender das épocas, tendo mesmo existido alguns momentos na história do Império em alguns nomes vingaram, a verdade é que, em geral, não eram bem vistos, não sendo acolhidos de bom grado no forum. Ou seja, embora fossem cidadãos eminentemente úteis eram ainda assim mal vistos socialmente. Nasce dessa inaceitação a necessidade temporã de organização profissional, como meio de defesa dos seus interesses. De facto, apenas como grupo poderiam garantir um mínimo de dignidade. Uniam-‐ se por ofícios. Assim se formaram os collegia, assegurando a defesa dos interesses profissionais e o ensino, já que cada collegium tinha a sua schola. Mas, para além do papel formativo, os collegia tiveram também decisiva importância política. Caucionavam a respeitabilidade e o mérito dos seus membros, promovendo o convívio entre pares e o reconhecimento do valor profissional. Era, portanto, o único lugar no qual o artífice era tratado com alguma eminência. Apesar de as conquistas dos collegia não garantirem ainda um amplo reconhecimento social, havia aspectos que assim ficavam assegurados com maior zelo: a assistência na morte, nomeadamente providenciando funerais decentes. Além disso, também 2
In MOREL, Jean-‐Paul — "O Artesão", O Homem Romano. Direcção de Andrea Giardina. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 182.
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em vida, estas corporações conseguiram, como grupo, uma força que isoladamente os seus membros nunca atingiriam, levando-‐os (como força produtiva colectiva) a uma maior, mais eficaz e dinâmica participação na vida pública. Findo o Império Romano, a Idade Média manteve, até certo ponto, o mesmo estatuto social para o artesão/artista. "Se não temos certezas acerca da posição dos artistas no mundo clássico, menos certezas temos em relação ao mundo medieval. Em primeiro lugar porque, sob essa etiqueta comum, reúne-‐se todo um milénio muito diversificado, mas também porque, neste domínio, a investigação 3
foi menos profunda do que para a antiguidade clássica." De qualquer modo, continuou a dar-‐se primazia à actividade intelectual, em detrimento das manuais, como a pintura, por exemplo. Até uma arte tão considerada como a ourivesaria — prestígio extensível aos executantes, por lidarem com materiais nobres — não chegava a ser considerada suficientemente digna, do ponto de vista da criação, para que as obras fossem preservadas pelo valor artístico. Por isso mesmo, ao longo do tempo, muitas delas forma transformadas ou totalmente refundidas, reutilizando o material, esse sim muitíssimo valorizado. Se nos textos medievais o termo artista, no sentido mais lato que hoje lhe damos, persiste no pecado da omissão — existindo tão-‐só para nomear quem estuda ou se dedica ao cultivo das artes liberais —, insistindo-‐se no vocábulo artifices para designar artesãos e (os nossos actuais) artistas, há, contudo, hierarquias bastante fortes no campo das produções técnicas, sublinhando-‐se não apenas o já referido ourives, como o vidreiro, os peritos em fundição e, principalmente, o arquitecto – em cujo labor, apesar de tudo, se reconheciam aspectos eminentemente intelectuais. Pese embora a personalidade criativa não interessar muito durante todo este milénio, o tema do anonimato artístico tem algumas nuances. De acordo com o historiador italiano Enrico Castelnuovo, essa "forma de ver as coisas resulta de uma certa cultura romântica, mas essa imagem pouco corresponde à realidade. Embora muitas obras permaneçam anónimas, conservaram-‐se muitos nomes e 3
In CASTELNUOVO, Enrico — "O Artista". O Homem Medieval. Direcção de Jacques Le Goff. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1989. P. 146.
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muitas assinaturas de artistas medievais e há muitos testemunhos que nos falam deles e nos dão a entender que a situação era diferente daquela que, frequentemente, tem sido descrita e como o orgulho se opunha à humildade ou a 4
fama se opunha ao anonimato." Primeiras mudanças O século XII, em Itália e em França, testemunhou o aparecimento de um novo estatuto para os artistas. Por um lado, tornou-‐se frequente celebrá-‐los, nas suas realizações e nas suas pessoas. Por outro, e assumindo um papel social e culturalmente interventivo, muitos deles começaram a doar obras de arte, numa política de retorno à sociedade que neles investira. O dinheiro ganho com as vendas das suas criações permitia-‐lhes já esses gestos magnânimos. Em Itália, especialmente em Pisa e Modena, semelhante situação era exemplar. Na realidade, tratava-‐se de cidades onde os artistas eram celebrados. O aparecimento das assinaturas dos artistas está relacionado com as grandes iniciativas artísticas e edificantes das comunas: o facto de se ter conseguido os melhores artífices e de se ter realizado, graças a eles, as mais extraordinárias construções é um orgulho para a colectividade e aumenta o prestígio das cidades. O artista vê aumentar o seu prestígio social e melhorar o seu próprio papel, devido às suas relações 5
com esse novo comitente colectivo. A par da importância da figura do arquitecto, emergiu, na Itália do século XII, a do escultor. A centúria seguinte veria esse prestígio alargar-‐se à França e à Alemanha, sublinhando o papel do arquitecto, como coordenador dos trabalhos dos restantes artistas. Começa desde logo a preparar-‐se um terreno que iria dar importantes frutos principalmente em Itália daí a dois séculos, quando também os pintores passariam a gozar de um estatuto mais digno, herdeiro, por certo, da personagem aparecida por volta do século XIII: o artista de corte. A primeira ferida nessa velha tradição discriminatória seria dada pelo poeta florentino Dante Alighieri (1265-‐ 4 5
Ibid, p. 145. Ibid, p. 156.
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1321) na Divina Comédia, ao colocar, no mesmo contexto, nomes de literatos e pintores. Mas não nos iludamos: essa incisão poética não operou mudanças milagrosas no estatuto do artista. Durante muito tempo mais, ainda ligado à Guilda, condicionado pelos métodos e regras gerais de acção da sua própria classe profissional, continuamente mal visto como elemento social, acusado de arruaceiro, beberrão e boémio — num persistir de acusações que vinham desde o tempo em que a presença dos artífices romanos era pouco mais que mal tolerada no forum… —, o artífice permanecia marginalizado. Proliferavam as anedotas sobre esse grupo social no qual apenas algumas excepções logravam atingir um estatuto que, embora elevado e respeitado já, não deixava de sublinhar a regra. Mudanças de peso Ao tempo de Leonardo da Vinci (1452-‐1519) ainda existia esse espírito que olhava o artista como maltrapilho e socialmente indesejável. Embora já começasse a finalmente a esbater-‐se a hierarquização que marcava as diferenças entre trabalho manual e intelectual, outra começava a nascer: a que opunha os simples artesãos aos artistas — os que marcavam a excepção. E outra diferença permanecia entre esta última classe: a que separava os mal vestidos dos senhores. O preconceito seguia, portanto, de boa saúde e invadia a própria classe. Até Leonardo o reconhecia, colocando o pintor (impecavelmente vestido enquanto pintava) hierarquicamente acima do escultor, sempre envolto em poeiras. Florença, com o seu círculo de artistas sérios e bem trajados, era bem o símbolo de que algo mudara: esses criadores não confraternizavam com os bandos de libertinos infiltrados por vadios e outras personagens desprovidas de interesse cultural. De facto, o quadro alterara-‐se com a criação das Academias. E se, antes delas, Dante, Petrarca (1304-‐1374) e Boccaccio (1313-‐1375) não tinham conseguido um milagre instantâneo, haviam, sem dúvida, preparado o caminho que os humanistas viriam a alargar, como veremos, e que culminaria na fundação dessas instituições. Convertido em personalidade cultural, o artista, em pouco mais de século e meio, viu o seu estatuto alterado. Mas não em toda a Europa. Em Itália, o movimento humanista levou a vitórias que tardariam em chegar a outros 5
países. A título de exemplo, relembremos a constatação do célebre pintor e gravador Albrecht Dürer (1471-‐1528), que instalado em Veneza por uns meses durante o ano de 1506, ficou encantado com o tratamento recebido. Numa carta escrita ao seu amigo Pirckeimer, Dürer fez um desabafo que ficou célebre: "Hier 6
bin ich ein Herr, daheim ein Schmarotzen." (Aqui sou um senhor; aí um parasita) . O pintor "tinha, em suma, obtido a sua promoção, transformando-‐se naquela 7
espécie de «senhor» que, em Itália, era um artista reconhecido." A questão estava, contudo, longe de ser resolvida. Durante as primeiras décadas do século XVI ainda se discutiu o carácter ideal da arquitectura, mantendo-‐a como arte maior, de fundamento matemático e, por conseguinte, com a dignidade de arte liberal, conservando por isso uma certa distância e disputa com as restantes artes. Assim, se o arquitecto gozava de um inegável prestígio, os demais artistas ficavam ainda abaixo na escala hierárquica. No entanto, a sua situação estava, de facto, mudada. Altera-‐se o modo como se vê, como se mostra, como concebe o seu trabalho e os seus direitos e deveres que lhe assistem. Agora o artista reivindica, por vezes ostensivamente, uma liberdade de invenção que ultrapassa um tanto a noção originária do serviço. E fá-‐lo sobretudo porque o cliente, confraria, bispo ou grande senhor, sente orgulho em ter na sua capela ou no seu gabinete um Botticelli, um 8
Mantegna, um Ticiano." Estava a terminar o tempo da imagem negativa do artista como elemento menor da sociedade. A criação das Academias de Desenho, criadas um pouco por toda a Europa a partir do século XVI, garantia-‐lhe um estatuto até então impossível. O caminho fora longo e não se demonstrara igualitário (nem o poderia ser, com os antecedentes já observados) no evoluir das artes e das letras. E, fruto do tempo e dos contextos sociais e culturais, esse caminho conservaria algumas pedras, não sendo igualmente macio para todos.
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Citado por CHASTEL, André — "O Artista". O Homem Renascentista. Direcção de Eugenio Garin. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 180. 7 8
Ibid., p. 180. Ibid., p. 186.
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Porém, finalmente, os artistas enquanto classe tornavam-‐se profissionais respeitados ao ponto de as casas dos maiores e mais famosos serem mesmo 'obrigadas' a revelar aspectos suficientemente ilustrativos da grandiosidade (e importância social) do ocupante. Os sinais exteriores de riqueza e fama reflectem o investimento mecenático, o poder das grandes encomendas e o prestígio da cidade ou reino que nelas investe. Um artista próspero é, por isso, um inequívoco sinal do florescimento económico, cultural e social do meio que o acolhe. Começava, então, um novo episódio da história. Com as Academias, o estatuto do artista mudara. De ora em diante, veríamos colocarem-‐se problemas diferentes: quem era ou não digno de entrar nas academias, como se sancionava o poder dos seus membros, como se praticava o elogio ou a independência em relação ao poder de que elas dependiam, quais as principais instituições académicas que surgiram, onde e quando, que programas enformaram, que características e importância as revestiam em termos do gosto e que problemas se lhes puseram dentro da regra e da liberdade de criação.
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