O ato de contar: esmiuçando o engenho narrativo de Machado de Assis

June 9, 2017 | Autor: Augusto Sarmento | Categoria: Short story (Literature), Machado de Assis
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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas

Augusto Sarmento de Oliveira

O ato de contar: esmiuçando o engenho narrativo de Machado de Assis

São Paulo 2015

Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas

Augusto Sarmento de Oliveira

O ato de contar: esmiuçando o engenho narrativo de Machado de Assis

Análise do Conto “Noite de Almirante” Trabalho de Graduação – Ciclo Básico Professor: Edu Teruki

São Paulo 2015

“Rindo de satisfação, a anciã subiu até o alto aposento, para dizer à rainha que o marido estava em casa. Os joelhos mexiam-se bem, embora os pés tropeçassem. Postou-se junto à cabeceira e assim falou à senhora: ‘Acorda, Penélope, querida filha, para veres com teus próprios olhos aquilo que esperaste todos os dias! Ulisses chegou, está em casa, depois de tanto tempo! Matou os arrogantes pretendentes, que lhe prejudicavam a casa, dizimavam os haveres e desconsideravam o filho!’ A ela deu resposta a sensata Penélope: ‘Querida ama, enlouqueceram-te os deuses – eles que podem transtornar o juízo a quem tem excelente entendimento, e pôr no caminho da compreensão o afrouxado de espírito. Agora deram contigo em louca. E tu que antes eras tão ajuizada! Por que me atormentas, quando tenho o coração cheio de dor, dizendo coisas desvairadas e acordando-me do sono suave que me prendera, cobrindo-me as pálpebras? Pois nunca eu dormi tão bem, desde que Ulisses partiu para ver Ílio-a-Malévola, cidade inominável. Vai agora para baixo e volta para a sala de banquetes. Se tivesse sido outra das servas que me pertencem a vir aqui, para me acordar e anunciar coisa semelhante, rapidamente a teria mandado embora com grande rispidez. Mas a tua idade traz-te o benefício de não receberes esse trato.’” (Odisseia, Canto XXIII – v.1-24 – trad. Frederico Lourenço)

RESUMO

Neste trabalho, de cunho interpretativo-analítico, procuro examinar, de maneira concisa, a técnica literária da qual dispõe o renomado romancista e contista brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) ao compor narrativas, com total ênfase na curta, e, mais especificamente, o conto Noite de Almirante. Trata-se de uma dissertação breve, que assimila conhecimentos linguísticos com a concepção crítica-analítica, através do próprio texto, e evidenciando elementos regidos estritamente pelo campo das letras. Há, também, curtos comentários sobre a natureza do cômico e do sarcástico na obra machadiana, assim como opiniões pessoais, alicerçadas, na medida do possível, na lógica e nos critérios de análise literária.

Noite de Almirante começa de maneira semelhante a outros contos de Machado de Assis, submetidos todos a uma mesma inserção espacial-temporal quase sempre intermitente com a vontade do narrador, e nunca com a narração em si mesma. Em O Homem Célebre, por exemplo, o autor começa o conto por um diálogo, para, só depois, explanar a situação dos personagens, do cenário e do tempo. N’A Missa do Galo, o narrador machadiano está sob a perspectiva de uma primeira pessoa que não só vivencia os fatos à sua maneira, mas os conta de modo tal, longínquo da narrativa no tempo e no espaço. Esta maneira de contar característica do autor fluminense é uma amálgama de personagem e narrador, a qual nutre camadas complexas e diversas de interpretação, refletindo nelas valores não só dos personagens, mas dos narradores, estes agentes que parecem estar contando uma história verossímil. Pois, ainda que não busque a verdade, e isto é comum a quase todos os autores literários, Machado apela a um questionamento ainda mais profundo, o do verossímil – pois, afinal, o que é verossímil? O que caracteriza uma história real ou irreal? O que é natural? O que é social? Através dessa busca, cujo éthos irônico é único – e por isso pode ser traiçoeiro, porque ambíguo –, o autor constrói uma obra inovadora e magnânima em todos os gêneros que toca. Quanto a Noite de Almirante (publicado em 1884), esta ideia de inovação no contar se intensifica ainda mais, pois se encontra no nascimento da segunda fase machadiana, a fase em que ele se desprende do romantismo anterior; é a fase crítica, moral, social e política. No entanto, o que parece curioso a respeito deste conto é que, ainda que esteja inserido em uma maneira nova de se contar, a sua matéria é, senão outro termo, milenar. Basta lembrar da Odisseia de Homero, da Eneida de Virgílio, d’Os Lusíadas de Camões; são todos poemas permeados e impregnados por relações de amor (e desamor) e o nostos, o retorno, as saudades. Pouco distantes, já no ramo da prosa, as referências de Machado para a temática contista podem vir a ser, lato sensu, o renome das obras aventurescas de Jules Verne, Daniel Defoe e Jonathan Swift, clássicos de suas respectivas literaturas, sempre aventurescas e cujo cenário é a viagem marítima, tal como os romances Les enfants du capitaine Grant, Robinson Crusoe, Captain Singleton e o satírico Gulliver’s Travels. O tema odissíaco é reforçado no conto por vários motivos: porque há um retorno; porque há uma amada o esperando; porque o viajante é, além de um marinheiro, um amante e sofredor; porque há intempéries e tentações a serem vencidas; enfim, há vários rastros desta história bastante emulada e, portanto, rotineira na história da literatura ocidental.

No plano das personagens, Machado indica que sua natureza risível de autor não é eclipsada por tema tão sublime; começa o conto por escancarar o nome do viajante sofredor, Deolindo Venta-Grande, uma alcunha para uma venta (nariz) avantajada que tem. O narrador se explica, logo depois, entre parênteses, como sustentando essa perspectiva bem-humorada de um caractere que, nota-se, ainda não conhecemos verdadeiramente, mas que já nos é menos séria, menos digna de consideração – assim como o frio e calculista Lobo Neves, de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Descreve-se Genoveva como “caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido”, e, depois, como ela e Deolindo se encontraram “em casa de terceiro”, logo “morrendo um pelo outro”. Neste ponto do conto, há uma narrativa relativamente imparcial e equilibrada, ainda que com instâncias indicando pouca distância, assemelhando-a a um simulacro de causo, de conversa. O narrador machadiano tem, para além da ideia de pessoas textuais, um quê de personagem com vida própria, alguém que se encontra no meio termo entre a realidade narrada (com relativa relação à primeira pessoa) e a onisciência (com relativa relação à terceira). No entanto, a onisciência machadiana nunca é divina, pelo contrário; trata-se de uma puramente humana. Exemplos de tal se encontram em “(...)uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra(...)”, isto é, com a inserção de uma “comparação” cujo pronome pessoal é indeterminado, e de um pronome demonstrativo, que, conceitualmente, quer demonstrar algo, algo que, semanticamente falando, é sempre relativo ao “eu” da sentença: este, aquilo que está perto do eu; aquele, aquilo que está longe do eu; esse, aquilo que está em um meio termo de distância do eu. Assim, há uma aproximação do narrador com as limitações ficcionais que o rodeiam, à medida que ele próprio conta a história. A velha Inácia, personagem coadjuvantíssima, parece dispor de um pretexto usado por Machado para emitir uma terceira opinião sobre o casal. Trata-se de uma personagem idosa, caseira, vivida, alguém que certamente teve seus relacionamentos. Por isso, a postura dela é, talvez, a mais factual do conto; quando ela os dissuade, primeiramente, poderíamos entender – tendo em vista que este conto fora feito para um público ainda romântico – que a velha é apenas uma intrometida, uma personagem que faz com que tudo ande conforme os trilhos, enfim, alguém burocrático, geralmente uma antagonista, em uma narrativa tendendo a maniqueísmos. Após o parágrafo que descreve a ida melancólica de Deolindo e o choro de Genoveva, o narrador retorna ao ponto de partida cronológico, e se mostra, aí, muito próximo do personagem. Ele esmiúça o pensamento recheado de expectativa, na tentativa de convencer o leitor de algo, algo que não está certo do que é, mas que se nota. O uso de sentenças como

“prepara uma palavra”, “lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo” denota que o narrador está, portanto, acumulando um inevitável acontecimento ao descrever da maneira mais saudosa e parcial possível, como só um homem como Deolindo poderia fazê-lo. Também se nota que este parágrafo está acontecendo no exato momento da história, visto que alguns verbos usados estão explícitos ao tempo presente, e os que não estão se encontram em um pretérito perfeito bastante próximo (e relacionado) ao momento da lembrança, fazendo uso de subordinações – conforme exemplificado no excerto anterior – ou clivagens – “foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos”. Deolindo traz o narrador consigo, e, portanto, a sua insegurança é a nossa insegurança; as suas expectativas são as nossas. Há uma sentença que, sob a ótica semântica, mostra-se tanto quanto interessante, a qual demonstra de que maneira Machado de Assis pôde reter expectativas através da escrita. Na Semântica formal, chamaríamos a sentença de pressuposição a uma segunda, oculta. Eis o contexto: "Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria?” O que ela lhe guardaria? logo, logicamente, ela lhe guardaria algo. Dessa maneira, através do subconsciente da palavra, Machado comina em nossas mentes o vislumbre no qual Genoveva está, apesar e depois de tanto tempo, esperando-o; expectativa essa que, após a primeira leitura do conto, torna-se incondizente. É através de uma habilidade linguística e narrativa que o autor nos impele ao previsível, àquilo que, no fundo, já sabíamos. Então, Deolindo se encontra com velha Inácia, que esclarece: Genoveva está com o mascate José Diogo. Ela lhe dá avisos de prudência, arrependida, mas o almirante não a ouve. Está demasiado envolvido na sua própria tempestade psicológica, um desentendimento no qual o narrador não faz questão de se alongar, mas explicita uma comparação da ira do personagem com o alto-mar – relacionável a outro tópoi importante na Antiguidade. Chegando ao clímax do conto, encontramos Genoveva na janela, cosendo, imagem que remete, inevitavelmente, à figura de Penélope, a mulher virtuosa de Ulisses, que enganava seus pretendentes tecendo um trabalho de dia e o desmanchando à noite. Com efeito, na ironia machadiana, a Penélope brasileira cose porque domesticada, e não o contrário. A personagem, no seu interior, não sente a necessidade de destecer nada, longe disso; não sente, em absoluto,

nenhuma incompletude, o que nos revolta, enquanto leitores sob a perspectiva intensa e emocional de Deolindo. Ao mesmo tempo, essa distância com que trata Deolindo nos faz pensar não apenas na frieza de Genoveva, mas na fraqueza de Deolindo; isto é, a indiferença de um personagem para com um outro pode caracterizar uma relação de mútua caracterização, definindo a si mesmo como frio, ou simplesmente ao outro como efusivo, como alguém veemente nas próprias expectativas. Talvez aí se explique a ambiguidade nos diálogos ao início do conto, quando um deles diz: “Juro por Deus que está no céu...” e o outro, displicentemente, apenas diz: “eu também”. Semanticamente, a justificativa está no fato desta última fala não acrescentar nada ao texto; a palavra “também” apenas retoma o que foi dito; não parte do “eu”; o que claramente denota a falta de importância do juramento para o falante – antes Deolindo, depois, com o andar da história, Genoveva. Noite de Almirante, portanto, contrasta a Odisseia com relação ao amor erótico: no poema, a mulher, de paixão sabida e infinda, espera o herói. No conto, ainda que valorizando traços instantes da paixão amorosa, a narrativa nos encaminha para uma visão pessimista, até cínica, da realidade; pois nos parece sincera ao priorizar necessidades sobre sentimentos. - Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo. Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...

Trecho mais extraordinário do conto, é onde Machado coloca todo o seu arsenal de estilo à prova. Aqui, o narrador se coloca como escritor; como aquele que colhe as palavras, aquele que conta o causo. Reiterando a si mesmo, ele tenta definir a verdade do personagem como alguém que busca na memória qual a palavra, e qual a emoção cabível naquela palavra; ambas se mantém misteriosas. Mas, ao fazer isso, ele também escancara a limitação que tem como narrador, o que, de certa forma, faz com que nós entendamos a narração um pouco melhor. É como se, para explicar algum conceito, um professor decidisse não explicar o que ele é, mas o que ele não é. Chega ao ponto de perguntar ao leitor, como que desistindo: que vos parece? Pois para mim, diz nas entrelinhas o narrador, não parece mais nada; ou, se parecia, já não é o

mesmo o modo como se parece agora. Esse recurso alimenta o cinismo narrativo com que Machado constrói Noite de Almirante, sob a perspectiva da confissão, do desabafo, da incredulidade, sempre parciais. De um lado, Deolindo, com sua ingenuidade infantil e tempestuoso humor – do outro, Genoveva, mulher de interesses, cândida, incapaz de sentir a culpa. Genoveva assemelha-se, através desta ótica, à personagem d’A Missa do Galo D. Conceição, na medida em que se balanceiam as antíteses da sua personalidade. Através de uma dica ou outra que solta no caminho, o narrador machadiano parece, a ambas, sempre se postar imparcial na sua parcialidade: mostra um podre, depois focaliza a santa; diz que tem candura, mas confessa que pecou; seu corpo se prostra sempre à figura de um decote. Depois, Deolindo mostra os brincos, prova de que foi casto. E Genoveva, com algo que não a proximidade de uma amante, agradece, veste-os e os elogia, na medida do possível, “tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento”. A situação é claramente embaraçosa e de distância, de não saber o que dizer; para um, porque não quer acreditar que o “amor” findou, e para a outra, porque não sabe explicar de que maneira esse “amor” findou, e, de modo tão rápido, migrou para outra pessoa. A maneira como se conheceram soa, afinal, suspeita: em casa de terceiro, como apontado no começo do conto. Podemos entender, certamente, que o “terceiro” pode ser um amante precedido de Deolindo, alguém com quem Genoveva se entediou com a ação do tempo. E talvez, nesta ocasião, bastasse apenas a distância temporal, não a espacial, como a que foi sujeito o protagonista, para que ela procurasse outro homem. Ao final, depois de diversas juras de matar e morrer, o narrador quebra a expectativa, mais uma vez, ao tornar-se onisciente ao invés de personagem, distante no lugar de próximo. Depois de todo o progresso psicológico que conquista, somada às peripécias da própria história, ele frustra o leitor com a simples frase, na qual não há somente um distanciamento espacial, mas temporal: “A verdade é que o marinheiro não se matou”. Machado prefere um final cotidiano, insosso, muito semelhante ao personagem no qual centraliza-se o conto. Pois Deolindo não seria capaz de tal morte com um quê dostoiévskiano; era algo demasiado imoral para alguém como ele. Preferiu mentir, preferiu dissimular, na medida em que sua amada possa ter feito o mesmo.

BIBLIOGRAFIA

BOSI, Alfredo. A Máscara e a Fenda. Disponível em http://www.revistabrasil.org/conto/textos/A%20mascara%20e%20a%20fenda.pdf

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