O ATO DE ESPERA EM UMA POÉTICA DO DESENHO

June 3, 2017 | Autor: Glayson Arcanjo | Categoria: Poéticas Artísticas, Desenho, Processo De Criação
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O ATO DE ESPERA EM UMA POÉTICA DO DESENHO.

Resumo: Esse artigo apresenta o ato de Espera como estratégia para a realização de Desenho na Espera, trabalho produzido em 2007, na Galeria Ido Finotti em Uberlândia, Minas Gerais. O trabalho relaciona desenho, texto e fotografia e aborda questões referentes ao tempo e espaço presente nas etapas do processo de sua construção. Palavras-chave: Desenho, processo, fotografia, texto.

A ESPERA No presente artigo pretendemos abordar o ato de Espera como constituinte de uma poética em Desenho, tomando como ponto de partida os procedimentos que envolveram a construção de Desenho na Espera, trabalho desenvolvido durante a exposição Mala Flor Sacola de Retalho, coletiva realizada em conjunto com as artistas Cláudia França e Camila Moreira, entre os meses de novembro de 2007 e fevereiro de 2008 na galeria de Arte Ido Finotti em Uberlândia, MG. Participar de Mala Flor Sacola de Retalhos possibilitou abertura para uma série de discussões para se pensar aspectos referentes aos espaços de exposição, questões do espaço público e espaço privado, propostas de ocupação, freqüência e permanência de outras pessoas no próprio local expositivo, e por fim, o compartilhamento de uma experiência individual tornada coletiva. A proposta da exposição, de um modo geral, permitiu que os 03 artistas ocupassem durante 20 dias as dependências da galeria, transformando-a em um atelier coletivo. Os artistas se propuseram a conviver no interior da galeria com as portas fechadas num primeiro momento e a trabalhar em um espaço comum, depois convidaram artistas da cidade para conversas sobre processo de criação. Encerrado os 20 dias de permanência dos artistas, o espaço público que se confundira com um espaço privado, foi aberto à visitação e, os resultados dos processos desenvolvidos puderam ser vistos pelo público.

Desenho na Espera se deu a partir de uma permanência, com a vivência diária com os outros artistas e com a descoberta das particularidades do espaço físico da galeria. O primeiro

desafio foi o da escolha de um lugar especifico para a realização do processo, neste caso, um corredor de 6x3 metros (Comprimento x Largura). O período inicial do processo foi precedido por uma aparente não-ação. Cabe lembrar que nos processos de criação há instantes que são tempos para não-ações e tempos para agitamentos. Durante este período deparou-se com um tempo que parece escorrer lentamente pelas mãos. Nele trabalhamos para o nada, mas o nada pode conter o instante onde o salto aparece. Momento este onde, mais que rapidamente, é preciso agir, na ilusão de que nada fuja na medida em que o tempo parece escorrer. É como ficar à espera pelo instante certo de atacar. Tal atitude poderia se assemelhar a um caçador que espreita sua presa. Entendido assim é preciso não deixar que toda potência dos atos produtivos escape, mas só é dada a possibilidade de captura a quem se encontra em estado de abertura, tarefa que cabe àquele que está a tatear no fora da linguagem, como reforçado pelo pensamento de Flusser: Se pudesse captar o momento da explosão, esse momento fugaz no qual ainda não sou língua, mas já não sou inarticulado, se pudesse captar esse momento crítico entre o Outro caótico e o Eu ordenado por símbolos, teria captado a origem da língua (FLUSSER, 1996, p. 264).

Um paralelo entre o momento da explosão, citado por Flusser, com o momento da descoberta poderia ser tentado aqui, pois estes são anteriores à captura, à posse ou à apropriação e abrem situações que são antes, indizíveis e indefiníveis. Tem-se algo que não pode ser escrito, falado ou desenhado sem que haja a sensação de perda, justamente na passagem das idéias para o campo material. Estes ao serem trabalhados em um processo se aproximam de um não sei o quê, que, por um instante, parecem vir à tona. Seria este período, onde aparentemente não se vê nenhuma criação acontecer (mas que por outro lado se cria internamente) o lugar necessário para que outra língua se origine? A este período, que é o da expectativa pela explosão da imagem, “no êxtase da novidade da imagem” (BACHELARD, 1974, p. 341), poderíamos também chamá-lo Desenho? A etapa seguinte do processo ocorreu com a inserção de um conjunto de palavras confeccionadas em papel e que se lidas por quem ali passasse formariam diferentes variações. Estas palavras foram coladas pelo lado de fora da porta da galeria e diariamente cada uma das letras era reposicionada nos vidros das portas, apresentando por dias seguidos soluções composicionais, disposições e alinhamentos diferentes.

Figura 01. Fachada da Galeria Ido Finotti com palavras posicionadas no vidro. (Arquivo pessoal).

Variação 1 (Figura 01): DESENHON

AESPERA

Variação 2 (Figura 06): DESEN HONA ESPERA

Observar estas variações e um possível movimento criador aparentemente contido e expresso no corpo do texto através das letras e de seu reposicionamento diário leva-nos a formular às seguintes questões: - Como efetuar uma única leitura e extrair um único sentido para o texto deixado no vidro? E como querer definir um único sentido ao texto, se leio, releio e refaço este mesmo texto por meio das diversas entradas e possibilidades de leitura e sentido que o texto me propicia?

Pensando o lugar da arte como lugar para a descoberta, tomo de empréstimo algumas abordagens disseminadas por Barthes, para quem um trabalho de leitura é sempre um trabalho de olhar outra vez, olhar novamente e mais outra vez. Ler passa então a se conectar com o encontrar, de modo a abrir a leitura a outros textos.

Ler é encontrar sentidos, e encontrar sentido é nomeá-los; mas, esses sentidos nomeados são levados em direção a outros nomes, os nomes mutuamente se atraem, unem-se, e seu agrupamento quer também ser nomeado: nomeio, renomeio: assim passa o texto: é uma nomeação em devenir, uma aproximação incansável, um trabalho metonímico (BARTHES, 1992, p. 45).

Ler na pluralidade é também dar voltas e retornar, caminhar para “descaminhar” em trajetos aonde o ir nunca é o mesmo que o voltar. É um caminhar na areia da praia que depois volta pisando em suas próprias pegadas, mas na volta apaga-se a marca primeira, ou criam-se outras marcas, em pisadas nunca coincidentes com as do caminho da ida. Na leitura, ao ler novamente esquece-se ou atualiza-se o texto inicial para que surjam dela outros tantos modos de ler. Para Barthes a primeira leitura é amorosa; devemos nos dar e dar à leitura “liberdade de ler o texto como se já tivesse sido lido” (1992, p. 49). Mas a leitura deve avançar. É por isso que ouvimos duas ou mais vezes uma mesma música, revemos infinitas vezes um mesmo filme; relemos um poema, um livro, etc. Não olhar de novo para uma mesma pintura, fotografia ou desenho é não dar chance a textos não-lidos num primeiro momento. No interior da galeria de arte Ido Finotti o trabalho em processo, passou a se adaptar a este corredor de aproximadamente 3x6m. As portas aqui já descritas se situavam neste corredor e o texto, formado de palavras de papel, estava colocado na parte de fora sobre os vidros.

Figura 02. Letras de papel colocadas no vidro da porta da galeria e reflexo gerado. (Arquivo pessoal).

Do interior da galeria, olhar através do vidro possibilitava ver o reflexo das palavras e o que havia do lado de fora. Deste ponto de vista observava-se uma escadaria, a praça, o chão de paralelepípedos, algumas árvores, pedestres, monumentos e o céu. Mas as palavras confeccionadas em papel e lidas pelo lado de fora, só podiam ser vistas, no interior da galeria, por seu verso, ou seja, por seu contrário (Figura 02). Era somente quando o sol iniciava sua descida rumo ao horizonte e atravessa o vidro fazendo incidir seus raios de luz sobre a parede dentro da galeria, que novamente surgiria, não mais o texto invertido, mas as palavras lidas “pelo seu direito” e refletidas na superfície da parede. A leitura se dava, não pela materialidade de cada letra recortada no papel, mas por outra qualidade, a de espectros ou de sombras. É por esta relação entre a matéria e sua sombra que alcançaremos uma dupla visualização para o texto produzido: a primeira na materialização do papel colado na porta de vidro e a segunda dada por seu caráter virtual alcançado com o surgimento da sombra na parede da galeria.

Figura 03. Sombra das letras projetadas pela incidência da luz na parede da galeria. (Arquivo pessoal).

O que podemos perceber é que existe na distância entre a matéria da letra e sua sombra, algo próximo a uma projeção, que só é possível pela incidência da luz do sol nas portas e na parede da galeria (Figura 03). A dispersão da luz torna-se ponto chave para desencadear outros procedimentos requeridos pela própria obra em processo. É por esta via, a da compreensão destes procedimentos, em proximidade com os princípios da câmara óptica, que vamos aqui, aproximar as linguagens do desenho e da fotografia. Falar do tempo, do aparelho fotográfico e do desenho nos remete aos estudos de David Hockney que pretende reencontrar por meio da analise de pinturas de grandes artistas o próprio modo de sua produção. Na pesquisa em questão Hockney trata de uma possível diferença existente no Traço feito por estes artistas em seus desenhos e pinturas e a hipótese de que estas diferenças são causadas por uso de aparatos de reflexão da luz, como as câmeras ópticas, espelhos e lentes. Para ele há uma grande diferença entre o traço realizado pela mão e o deixado pela luz: Todos os traços desenhados tem uma velocidade que em geral pode ser deduzida: tem um principio e um fim, e portanto representam o tempo bem como o espaço. Mas o decalque de uma fotografia contém mais “tempo” que a fotografia original (que representa somente uma fração de segundo), porque a mão leva mais tempo para fazê-lo. (HOCKNEY, 2001, p.26)

Desenhar também passa pela ação de traçar linhas que reorganizam as sombras nas paredes. A intenção de congelar o tempo através do ato de olhar, e posteriormente querer reter as letras em sombra por meio da ação de desenhar, faz com que a mão agarre o lápis e realize marcas com o grafite na mesma superfície que antes era tocada somente pelas sombras. Mas a passagem das sombras projetadas na parede é permeada por deslocamentos temporais muito rápidos e efêmeros, que dura o curto período de tempo que o sol leva para se pôr, ou dito de outro modo, à medida que ele desce em direção à linha do horizonte, mais rápidos são os movimentos que deslocam as letras na superfície da parede. (Figura 04)

Figura 04. Passagem do tempo pelos registros do pôr do sol. (Arquivo pessoal).

No processo de criação somos tanto caçador como aquele que será caçado. Na tentativa de reter as sombras das palavras em projeção e em movimento, podemos concluir que este deslocamento causado pela luz do sol em seu entardecer, é muito maior e mais rápido que a tentativa de decalcar com mão e lápis o movimento das mesmas letras, fazendo com que esta estratégia dentro do processo, seja tanto uma estratégia de caça quanto de ser caçado, nos aproximando de um procedimento de captura que trabalha na ordem do inalcançável. É somente por meio e pelo desejo de um traço, por querer decalcar uma sombra fugaz, que o trabalho de estreitar o intervalo do gesto, fazer o gesto de modo mais urgente, pois se é preciso um tempo para que o lápis contorne cada uma das letras de modo a desenhá-las por inteiro, como um modo de reter todas as sombras das letras na superfície torna-se, portanto, uma tarefa impossível, por mais ágeis que sejam os movimentos da mão do artista. Temos então, um desenho que se encontra constantemente num estado cíclico sempre por recomeçar. (Figura 05)

Figuras 05 e 06. À esquerda: processos de trabalho e tentativas de contorno das sombras na parede. À direita: sombras, letras e sobreposições de desenhos projetados e traçados . (Arquivo pessoal).

Aceitar os riscos de um processo de criação é estar mesmo em constante recomeço. Espantar-se e ao mesmo tempo fugir. Ser atraído e afastar-se. Envolver-se em uma fuga tanto quanto em uma impossível permanência. Se acreditarmos que o desejo que impulsiona o ato criador tende a esvaecer com o passar do tempo, torna-se improvável a fixação deste instante, pois ele será sempre outro. Não se vive uma obra em instância. Deste modo, quando será o momento de iniciar uma nova espera ou um novo desejo de um desenho sempre por vir? Referências BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1974. BARTHES, Roland. S/Z. Tradução: Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. FLUSSER, Vilém. Indagações Sobre a origem da Língua. In: SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do Mundo. Mira Schendel. São Paulo: Marca D’Água, 1996. HOCKNEY, David. O Conhecimento Secreto. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

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