O ato de matar: personagens obscenos

June 14, 2017 | Autor: Ivonete Pinto | Categoria: Documentary (Film Studies), Cinema Studies
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O Ato de Matar: personagens obscenos Em documentário chocante sobre massacre na Indonésia, o método do diretor Joshua Oppenheimer chama a atenção Ivonete Pinto* Há filmes que provocam engulhos. O Ato de Matar (The Act of Killing, 2012) é desses que, finesse à parte, nos dão vontade de vomitar. A reencenação de torturas e assassinatos e o orgulho dos criminosos são o tema do filme. O método utilizado pelo diretor Joshua Oppenheimer para contar a história é o tema central deste artigo.

Na primeira sequência, vemos que um filme está sendo rodado com dançarinas numa cachoeira. O diretor dá ordens como: “Alegria, mostrem os dentes! Que a câmera não mostre caras feias! Quero beleza natural, isto não é uma farsa. Paz! Paz! Paz!” Corte. Um plano aberto e estático mostra uma rua com casebres. Corte. Um plano aberto e estático em frente a um prédio do MacDonald’s é a imagem de fundo para o letreiro que informa sobre o golpe militar de 1965 na Indonésia, quando qualquer opositor à ditadura poderia ser acusado de comunista. “Com o apoio de governos ocidentais, mais de um milhão de ‘comunistas’ foram assassinados. O exército usou paramilitares e um grupo de gânsgsteres para a matança. Esses homens estão no poder até hoje e perseguem seus opositores”. Todas essas informações, vamos repetir, têm ao fundo um MacDonald’s. Joshua Oppenheimer, americano, deixa clara sua interpretação dos fatos. Nessa produção com a Dinamarca, ele tem como co-diretores Christine Cynn e um “Anonymous”. Durante as filmagens, sofreu ameaças e os anônimos dos créditos, que são muitos, desde carpinteiros, assistentes de produção, figuristas e motoristas, foi a alternativa encontrada para proteger quem trabalhou no filme. Afinal, ricos empresários, donos de jornal e gente do alto escalão do governo aparecem de maneira pouco lisonjeira, como o vice-presidente da Indonésia, Jusuf Kalla, e o governador de Sumatra, Sayamsul Anfin. Nos provoca

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curiosidade o envolvimento desses governantes com os crimes, assim como querermos saber como a população, hoje, encara esses criminosos, pois são pessoas que têm vida normal. As respostas vão surgindo ao longo dos 160 minutos do filme, cujo cerne está na opção de trazer o ponto de vista não das vítimas, mas dessas pessoas “comuns”, os algozes. No presente, são avós amorosos, ainda muito ativos, falantes, exibidos e orgulhosos do que fizeram. Anwar Congo e Herman Koto eram os líderes executores. Eles nos são apresentados no início do documentário procurando por atores nas ruas, quem pudesse interpretar os comunistas dos anos 60 para a reencenação dos episódios, num filme que eles, os torturadores, iriam dirigir a pedido de Oppenheimer. A maneira grotesca como se aproximam da população já revela quem são. A aparência deles, especialmente de Anwar Congo, o protagonista e executor mais famoso da gangue, reforça pela lente de Oppenheimer a relação que o espectador passa a ter com os personagens. Congo tem olhos que expressam parvoíce, pele oleosa, mandíbulas proeminentes, dentadura postiça colocada insistentemente em primeiros-planos, cabelos pintados de negro, roupas espalhafatosas. Um conjunto desagradável de se olhar, sendo que qualquer gesto seu torna-se obsceno. O coadjuvante Herman Koto, mais jovem e muito obeso, é filmado inúmeras vezes sem camisa e em uma delas num longo plano em que escova a língua (sic).

Esses e outros procedimentos da direção certamente são questionáveis porque nos induzem a rejeitar os personagens não só pelo que fizeram e pelo que dizem, mas também pela sua aparência. Outro questionamento está voltado à estratégia de oferecer um filme ficcional. Oppenheimer engana os protagonistas – e com isso engana a população que acaba participando como inocente figurante – , oferecendo um filme que jamais seria finalizado e lançado da maneira que os personagens o conceberam. O filme dentro do filme foi apenas o pretexto para se aproximar dos gângsteres e arrancar deles o que, provavelmente, não conseguiria num documentário tradicional baseado em entrevistas. A questão ética, desde sempre colocada pelo documentário, nessa produção é complexa de encarar porque, ao mesmo tempo que fica evidente a importância de se denunciar os fatos ocorridos nos anos 60 e que não tiveram julgamento, partimos de um estado de ânimo que rejeita os personagens – o que, em princípio, autorizaria as eventuais imposturas de um realizador para obter seus intentos. Acaba sendo paradoxal a estratégia maquiavélica do diretor que, para trazer à tona fatos históricos relevantes, preocupa-se apenas com os fins, não com os meios. Tirando partido do exibicionismo dos personagens, o diretor constrói o filme em três camadas: na primeira, os letreiros de caráter jornalístico que situam e orientam o espectador; na segunda, quando os homens conversam Herman Koto atuando para a câmera de Oppenheimer

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com Oppenheimer revelando suas proezas; na terceira, a reencenação proposta pelo diretor das sessões de torturas e assassinatos, com direito à sequência de livre fantasia. O dispositivo não nos permite saber o quanto os personagens tinham consciência de que as conversas “informais” estariam ou não no documentário, mas fica claro que eles estavam entregues a um projeto de filme em que seriam atores e autores. Esse filme, que recupera os fatos do ponto de vista deles, é rodado através de uma ficção destrambelhada, que reencena torturas e estupros e projeta seus ideais artísticos com as tais dançarinas em trajes sensuais na beira de uma cachoeira, ao som de Born Free. Música que, por sinal, ganhou o Oscar em 1966 no filme do mesmo nome, e ilustra o imaginário de Anwar Congo1. Nas referências cinematográficas de Congo, está o cinema americano através de faroestes, de filmes de James Dean e de musicais (Elvis Presley no Havaí, sobretudo). Nas nossas referências podemos enxergar também musicais egípcios e turcos e até imagens de Leni Riefenstahl, naqueles filmes de montanhismo para evocar as belezas da raça ariana e da natureza. Sem aquela fotografia impecável, mas com o mesmo espírito eugênico abominável. Interessante que em O Ato de Matar as distorçõesperturbações nascem no cinema e acabam no cinema. O cinema media os modelos, a criatividade, o sonho e os desejos dos personagens.2 Mesmo em uma entrevista

jornalística, o cinema é o propulsor. Na sequência do programa de TV, Oppenheimer insere uma situação que tem como objetivo, ao que parece, informar ao espectador sobre como os cidadãos, hoje, se relacionam com a história desse grupo de torturadores, e responder desse modo àquela curiosidade já mencionada. Como astros, os gângsteres dão entrevista numa emissora para comemorar o aniversário do extermínio de comunistas e divulgar o próprio filme que Oppenheimer roda com eles. Enquanto o grupo discorre sobre suas façanhas, uma câmera está na parte de cima do estúdio, onde técnicos colocam o programa no ar. Uma mulher comenta na mesa de corte: “Mataram tantos que ficaram loucos”, “Ficaram ricos de tanto roubar”. Através desses comentários somos levados a concluir que, ao mesmo tempo em que as autoridades toleram e algumas fazem parte da Juventude Pancasila, um estrato da população condena o que aconteceu. Porém, frente às câmeras, o tom é festivo e a sensação é a de que os entrevistados são celebridades que no passado participaram de um filme famoso, não de um dos piores assassinatos em massa da história. Conexão Indonésia-Cambodja Antes de continuar, como um texto que preza o contexto dos fatos, cabe lembrar que a Indonésia é o maior arquipélago do mundo, tem 237 milhões de habitantes e está Dois líderes dos gângsteres preparando-se para entrar em cena

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Em S-21,Rithy Panh consegue mais com menos situado em dois continentes, Ásia e Oceania.Vários Google Earth de distância, aqui no Brasil, sabemos pouco daquele país, tirando uma que outra curiosidade como a existência de tribos nômades (os Korowai, fotografados por Sebastião Salgado no projeto Gênesis, como um grupo que dorme em cima das árvores) e de ser o maior país muçulmano do mundo, com 87% da população de seguidores de Maomé, a maioria sunita. Esse último fato traz em O Ato de Matar algumas alusões, umas construídas, outras não: quando aparecem mulheres da população usando véu (em oposição às esposas dos gângsteres e paramilitares, hiper produzidas e maquiadas); quando vaza o canto do muezim na mesquita e quando, num almoço do congresso da Juventude Pancasila, após contarem uma piada sobre sexo oral, na sequência seguinte os vemos rezando com as palmas das mãos para cima. São apenas indícios de fé, pois Oppenheimer não investe nas contradições de cunho religioso, até porque, pelo fato de a Indonésia estar na Ásia e não no Oriente Médio, o imaginário ocidental não a conecta com o Islã e torna invisíveis questões de fundo que seriam importantes levantar. Numa aproximação política, é inevitável pontuar com a onda de revoluções comunistas da segunda metade do século passado, em que o Vietnã se destacou. Ali perto, o Cambodja também deve ser mencionado, mas principalmente pelo viés do cinema de Rithy Panh. Apenas que, como diria Estamira, a personagem do filme homônimo de Marcos Prado (2004), na Indonésia são comunistas ao contrário. No Cambodja, Rithy Panh colocou no documentário S-21 – A Máquina de Morte do Khmer Vermelho (S-21, la Machine de Mort Khmère Rouge, 2003) frente a frente guardas e

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prisioneiros do regime de Pol Pot, que eram eliminados com a alegação de serem anti-comunistas3. A estes guardas é sugerido que encenem as torturas. Panh quer tentar entender como é possível que pessoas da mesma nacionalidade, do mesmo bairro inclusive, da mesma rua até, podiam torturar e matar os seus. Homens e mulheres cumprindo ordens, apenas. A banalidade do mal defendida em nome de uma ideologia. As diferenças entre Rithy Panh e Oppenheimer começam pelo “detalhe” identitário. Enquanto Panh tem sua filmografia centrada no período do Khmer Vermelho, Oppenheimer dirigiu antes somente um documentário chamado The Entire History of the Louisiana Purchase (1998) e um episódio do documentário The Globalisation Tapes (2003). Por conta desse episódio, em 2001 foi para a Indonésia, onde, ao entrevistar trabalhadores rurais, ouviu pela primeira vez sobre o genocídio dos anos 60. O olhar de cada diretor sobre seu objeto naturalmente é muito diferente. Panh, na verdade, é também objeto, considerando que teve sua família morta pelas mãos do Khmer e ele próprio precisou comer ratos para sobreviver. Talvez esta diferença fenomenológica de ponto de vista é que permita a Oppenheimer exceder-se em certas opções espetaculosas. Enquanto o cambodjano Panh precisa entender aquele cenário de loucura ao qual é umbilicalmente ligado, Oppenheimer, na forma como apresenta seus personagens, desde como capta os depoimentos até os momentos de encenação das torturas, tem uma espécie de obsessão em julgar e destruir seus personagens através da imagem. Um exemplo disto é o grau de intervenção na sequência de Anwar Congo com os netos, o que o teórico

Filho de Saddam Houssein, Uday, retratado na ficção O Dublê do Diabo Bill Nichols chamaria de performático. Em muitos momentos, quase obsessivamente, o diretor faz closes nos dentes postiços sendo colocados por Congo. Em outro instante, intercala imagens de Congo torturando com a de Congo na cama, de cuecas, brincando com um patinho de plástico. Outro líder dos gângsteres é mostrado fazendo compras num shopping com a esposa e a filha. Cobrindo a imagem, em voz off, o mesmo pai de família explica como matavam os comunistas e como faz para não se sentir culpado por isso. Mondo Cane Simbolicamente, as imagens fortalecem a desconstrução dos personagens, o desnudamento, mesmo que histriônico, que o filme consegue alcançar. Talvez o histrionismo e um bom grau de exotismo aproxime O Ato de Matar de Mondo Cane, de Cavara, Prosperi e Jacopetti (1962). Tudo o que estava sendo dito/encenado pelos gângsteres, o ambiente em que vivem, como se gabam das atrocidades, já seria suficiente para nossa estupefação e julgamento. A ênfase para promover a repugnância cai numa manipulação pouco sutil, apelativa mesmo. Embora mirando plateias mais bem formadas e vindo da academia (o documentário sobre a compra da Louisiana, por exemplo, nasceu de sua tese de doutorado em Harvard), Oppenheimer, como os italianos de Monde Cane, busca o choque pela justaposição de imagens contrastantes. Mesmo tentando emular um certo distanciamento em algumas sequências, no final ele não resiste e faz sua intervenção catártica, dizendo a Anwar Congo como as pessoas que ele

torturou se sentiram. Emite julgamento, condena e, assim, manipula o personagem na tentativa de arrancar mais do que uma expressão, um arrependimento. É nesse prisma, do método, que buscamos refletir sobre o filme que ele ofereceu para que os torturadores fizessem. Certamente, a operação buscava seduzi-los para que aceitassem falar e reencenar sobre os fatos dos anos 60. Porém, é de se supor que buscasse também, através da ficção, revelar como são esses homensmonstros que matavam por prazer e por dinheiro, em nome de uma ideologia. Propondo a eles como gostariam de ser vistos, valorizando suas fantasias, faria emergir algo além das falas e da dramatização das torturas e assassinatos. Desse modo, Congo faz seu filme dentro do filme, posando de artista, de criador, de homem sensível até. Mas por que o filme de Rithy Panh, muito mais simples em sua proposta, consegue ter maior contundência? Em S-21, alguns segundos de olhar parado do torturador em direção ao chão valem mais do que toda encenação, confissão, orgulho, arrependimento do torturador da Indonésia.

Se a ideia é exibir para o espectador o quanto a raça humana pode ser repulsiva, Oppenheimer consegue. A questão é podermos responder o que o filme acrescenta ao repertório de personagens repulsivas da história. Se pinçarmos aleatoriamente títulos como Nero (J. Gordon Edwards, 1922), sobre as atrocidades do próprio na Roma Antiga, O Dublê do Diabo (The Devil’s Double, Lee Tamahori, 2011), sobre Uday, filho de Saddam Houssein, e vários filmes sobre o nazismo, como A Lista de Schindler (Schindler’s List, Steven Spielberg, 1993), que lugar ocupa O Ato de Matar? Na

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história do cinema, não sabemos ainda responder; na história do documentário, talvez seja mesmo parente do shockumentary italiano Mondo Cane, muito embora tenha ambição intelectual maior. Nesta linha de raciocínio, e só para não dizer que não falamos dele, lembremos Michael Moore. Em Tiros em Columbine (Bowling for Columbine, 2002), Moore ataca frontalmente o ancião Charlton Heston. Parte da crítica julgou um excesso, falta de ética não dar chance ao entrevistado, sendo senhor do filme através da edição visivelmente manipulatória. Será que podemos relativizar as situações só porque Heston está frágil enquanto Anwar Congo está jovial? Temos pena de Heston porque, afinal, ele não matou ninguém diretamente, apenas é a favor das armas, enquanto Congo é assassino confesso de centenas de pessoas? Podemos relativizar comportamentos éticos? Para efeito de distanciamento-aproximação, invocamos dois exemplos brasileiros, um documentário do projeto Caravana Farkas e um Globo Repórter. Em Memória do Cangaço (Paulo Gil Soares, 1964), o entrevistador pergunta: “Coronel José Rufino, quantos cangaceiros o senhor matou?”, “Perto de uns 20”, o entrevistado responde. E vai listando, nome a nome, com uma dose de orgulho por ser matador de cangaceiros. “O que o senhor sentia quando matava um cangaceiro?”. “Na hora sentia satisfação porque tinha encontrado o que procurava”, ele diz. E o que parece um procedimento jornalístico, aos poucos vai dando espaço a um narrador (o próprio Gil Soares), que corrige o entrevistado em off, acertando, com ênfase, datas e outras informações que ele, o diretor, julgava importantes e que o entrevistado alterou, ou que não reteve na memória. Performático. Musical para ilustrar o imaginário kitsch dos torturadores

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O Globo Repórter Documento assinado por Eduardo Coutinho em 1978, Theodorico, o Imperador do Sertão.4, mostrava um personagem sem o objetivo de fazê-lo confessar crimes, mas de tentar entender um Brasil que alimentava figura tão controversa e autoritária. O exibicionismo do homem que “aceita ser televisionado” é tão grande quanto o de Anwar Congo, mas Theodorico se apresenta como um homem do campo, simples, para em seguida afirmar que conhece boa parte do mundo, inclusive o Alasca, e mostrar seu hotel na cidade. Entre uma e outra pérola de sabedoria em que prega moralismo no modo de vida dos empregados, o “coronel” mostra sua coleção de fotos de mulheres nuas e desfia uma teoria que compara mulheres com galinhas e vacas. Coutinho não arrancou essa teoria científica do seu entrevistado em momento diferente daquele das fotos. Theodorico está ainda em frente ao seu mural-Playboy quando faz a comparação, ou seja, quem faz a relação é o próprio entrevistado, levado por uma pergunta oblíqua do entrevistador. Coutinho apresenta o conflito em relação ao que está sendo dito simplesmente oferecendo ao espectador os comentários do personagem, sem agredir o entrevistado nem o público. Evidentemente, não estamos falando de neutralidade, algo impossível, de qualquer maneira, de alcançar. Estamos falando de procedimentos que resultam em armações. Personagens com condutas que desaprovamos configuram-se em desafios para documentaristas. A pulsão por julgar às vezes é francamente liberada, às vezes escamoteada. E há episódios envolvendo os personagens de filmes que só pelo fato de haver interesse em se fazer um documento sobre eles já revela

o perfil de seus autores. Werner Herzog, figura das mais interessantes do cinema contemporâneo, autor de tantas proezas, é um dos produtores de O Ato de Matar, junto com Errol Morris (Sob a Névoa da Guerra/ Fog of War, 2003). Herzog associou-se ao projeto de Oppenheimer quando viu o potencial do material filmado e seu interesse acaba dizendo muito do filme, para o bem e para o mal. A visceralidade com a qual enfrenta seus temas, de vulcões a ursos assassinos, não nos permitiria pensar que O Ato de Matar é apenas um documento sobre velhinhos que lutaram contra o comunismo nos anos 60. O documentário quer mudar as relações políticas da Indonésia com o resto mundo, para que as democracias não compactuem com um regime que não pune criminosos; quer entrar na mente deles e em alguma medida colocar ali um espelho para que nos vejamos refletidos e para que não cessemos de perguntar: O que pode o ser humano? Eu poderia ter feito isso? No aspecto que interessa ao documentário, como escola, como gênero, como arte, cabe acrescentar à pergunta: Como mostrar isto sem comprometer princípios intercambiáveis? T *Doutora em Cinema pela ECA/USP, professora no Curso de Cinema da UFPel, vice-presidente da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema 1

“Born free” aparece como emblema também dos gângsteres, os que atuavam à margem do Estado, mas oficialmente dentro da chamada Juventude Pancasila (Pemuda Pancasila), o grupo paramilitar responsável pelo projeto de eliminação de comunistas. O grupo tem existência legal, como demonstra o congresso deles que aparece no filme. Mais de uma vez no documentário os

personagens defendem que o termo “gangster” vem do inglês e significa “homem livre”. Uma distorção morfológica relativa ao termo indonésio “preman”, utilizado para gangues de Jacarta que praticam extorsão aos comerciantes, estão ligados aos partidos nacionalistas e se declaram “homens livres”. O vice-presidente atual diz no filme: “Precisamos de gângsteres para realizar as coisas”. 2 Trata-se de um documentário tão cheio de múltiplos aspectos, em que para todos os lados há subtemáticas pródigas a serem examinadas. E há associações que fazemos a todo instante, como a que nos liga à história recente do Brasil, pois não podemos ignorar o legado da dimensão sádica da tortura no regime militar. O coronel Paulo Malhães, que em março deste ano prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade, nos faz pensar que, quem diria, temos personagens similares. Se o orgulho e a fanfarronice dos militares brasileiros não são explorados pela cinematografia brasileira, é só porque, além do pouco interesse pela nossa história, não temos um Oppenheimer a lhes arrancar confissões mediadas pelo espetáculo. Melhor. Nos une o fato de que aqui também torturadores confessos não vão para a cadeia. Na melhor das hipóteses, morrem de velhos ou em assaltos, como pessoas comuns. Assim como lá, a jactância de ter praticado crimes deve-se também à impunidade. 3 Os comunistas do Khmer Vermelho, se comparados aos gângsteres da Indonésia, numa escala de horrores, podem ser vistos como piores. Matavam qualquer sujeito que pudesse ter estudado, bastando para isso o indicativo de que usava óculos. E matavam crianças e bebês , filhos dos condenados, arremetendo-as contra uma árvore para não gastar munição com elas. Esse local, incluindo a árvore, hoje faz parte do Choeung Ek Genocidal Center, em Pnhom Penh, o campo de extermínio conhecido como Killing Fields. Rithy Panh, em seu mais recente longa, A Imagem que Falta (L’image Manquante, 2013), narra em primeira pessoa os métodos do Khmer. 4 O programa pode ser visto no endereço: https://www. youtube.com/watch?v=e9O0jn84Asw

$QZDU&RQJRDFKDQGRTXHHVWiQRFRmando do filme

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