O autor como produtor

June 15, 2017 | Autor: Amir Cadôr | Categoria: Print Culture, Offset Printing, Artists’ Books
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O autor como produtor 1 Amir Brito Cadôr É duvidoso que um artista gráfico que não sabe também compor seja capaz de conceber um bom e útil projeto tipográfico. Planejamento e execução têm que andar de mãos dadas Jan Tschichold A Revolução Industrial “determinou a crise das técnicas artesanais, dos ofícios tradicionais, da economia baseada no trabalho individual” (Argan, 1995, p. 37). Com o avanço da indústria, surge a especialização e a divisão do trabalho, que contribuem para a alienação do trabalhador. Desde então, este não participa mais de todas as etapas do processo, nem possui os meios necessários para produzir os bens de consumo de que necessita. Como reação a esse estado de coisas, o artista inglês William Morris, pioneiro do movimento Arts & Crafts, proclama: “Não quero arte só para alguns, tal como não quero educação ou liberdade só para alguns”. E formula aquela pergunta fundamental que iria decidir o destino da arte no século XX: “Que interesse pode ter a arte se não puder ser acessível a todos?” (apud Pevsner, 2002, p. 5). Após a Segunda Guerra, os processos reprográficos de impressão, baseados na reprodução fotográfica, tiveram grande desenvolvimento e atingiram um refinamento na reprodução de tons contínuos; por outro lado, os custos de produção foram reduzidos, o que tornou a técnica atraente para os artistas. “O surgimento de novos meios técnicos (...) modifica não apenas as formas da arte, mas seu próprio conceito” (Paul Valéry apud Barthes, 1990, p. 182). A partir de meados da década de 1950, pioneiros como Eugene Feldman e Aloísio Magalhães, assim como Dieter Roth, utilizam os processos industriais para imprimir seus livros, diferentes dos processos

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Este texto foi publicado no jornal Noa Noa, editado por ocasião da II Feira de Arte Impressa do Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre, realizada nos dias 24 e 25 de outubro de 2015. É uma parte da introdução do capítulo “Tecnologias de Reprodução”, que faz parte de O livro de artista e a enciclopédia visual, publicado pela editora da UFMG com apoio da Fapemig (no prelo).

artesanais usados para imprimir as gravuras originais dos livros ilustrados por artistas no início do século XX. Esses artistas perceberam “o potencial do processo multifacetado para produzir imagens que não possuem um original, que não existem fora de sua produção através do processo de ofsete” (Drucker, 1993, p. 9). O uso artístico de um modo industrial de produção, nesse caso, é diferente do uso de tecnologias que se tornaram obsoletas e que por isso se tornaram artísticas. A técnica é apreciada por seus próprios méritos — não apenas por sua capacidade reprodutiva, mas por suas “qualidades específicas como um meio artístico” (Drucker, 1993, p. 5). A produção industrial de imagens não faz distinção entre imagens artísticas e imagens com finalidades comerciais, pois materialmente não existe diferença entre elas. Assim, a noção de aura torna-se necessária como critério para a “distinção entre original e cópia só porque a tecnologia de reprodução tornou todos os critérios materiais inúteis” (Groys, 2008, p. 62). Contudo, “a distinção pode ser feita em termos estéticos (iconografia associada à expressão pessoal, o desnudamento de recursos mecânicos, ou a limitação artificial das edições) ou em termos sociais (a impressão offset aspira ser elevada à condição de arte pelas exposições em museus, venda em galerias de arte, resenhas críticas de obras)” (Drucker, 1993, p. 7). A técnica podia ser vista como o tema ou o meio para um fim (Veneroso, 2009). O ofsete pode ser apenas uma forma econômica de produzir imagens em grande quantidade, um meio aparentemente neutro. Mas “é possível transformar o ofsete de um meio reprodutivo a um meio produtivo pela interferência em qualquer etapa do processo” (Drucker, 1993, p. 7), o que perturba a transparência do processo reprodutivo. A técnica é então escolhida pelas suas próprias características, pelas qualidades inerentes e únicas ao meio, e “a história de realização do livro se torna assunto do livro” (Moeglin-Delcroix, 1997, p. 294). O ofsete, que foi muito utilizado por artistas como Ed Ruscha na década de 1960, atingiu o ápice nos anos 1970 e 1980 (nos Estados Unidos e na Europa) com o estabelecimento de centros de arte sem fins lucrativos e programas universitários voltados para a produção de livros de artista, e entrou em declínio com a editoração eletrônica e as tecnologias de impressão sob demanda (White, 2008).

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O artista e impressor Brad Freeman lamenta que um conhecido centro de experimentação como o Visual Studies Workshop (Rochester, Nova Iorque), em atividade desde 1969, tenha sido obrigado a se desfazer de seu equipamento antigo, de alto custo de manutenção por ser considerado obsoleto para a indústria gráfica, sendo substituído por equipamentos de impressão digital, que permitem a produção de tiragens menores e até mesmo edições únicas (Freeman, 2010). Novas tecnologias que permitem as pequenas edições têm como desvantagem o preço de venda elevado de cada exemplar do livro, aumentando o valor de culto das obras. Quando a tiragem aumenta, o valor de culto é substituído pelo seu valor de exposição. Para o objeto de culto, a sua existência é mais importante do que o fato de ser visto, enquanto o que determina o valor de exposição é a circulação da imagem, que a torna conhecida por um número maior de pessoas. Com as tecnologias de impressão sob demanda, as tarefas são delegadas a outros profissionais, e o acesso a máquinas e equipamentos ficou restrito a edições caseiras, que utilizam a impressora jato de tinta. O processo de impressão permite pouca manipulação, de modo que “diminuem as oportunidades de experimentação e inovação que surgem ao trabalhar diretamente com os meios de produção” (Freeman, 2010, p. 4). A intervenção do artista só é possível com o acesso (e o conhecimento técnico) das máquinas, o que fica cada vez mais difícil. Para um artista, o conhecimento técnico, que abrange a parte de pré-impressão e impressão, permite pensar a obra de uma forma integral, abrangente, mesmo que o artista não execute todas as etapas do processo. Eugene Feldman se referia à prensa de ofsete como seu pincel, e o papel era a sua tela. Ele dizia estar “pintando com o prelo” para se referir às suas experimentações artísticas. A impressão manual do ofsete oferece muitas oportunidades para experimentar, com uma paleta quase ilimitada de tintas e a manipulação de técnicas e processos de pré-impressão (White, 2008). A criação do livro designa “um conjunto de aspectos mais ou menos constitutivos de um longo processo de trabalho sobre o livro, implicando a elaboração conceitual, a consideração de restrições materiais, tecnológicas e financeiras (...)” (Brogowski, 2007, p. 162). As condições materiais e econômicas de produção devem ser levadas em consideração: mesmo com a redução dos custos que o ofsete proporciona em 3

comparação com outras formas de impressão, a tiragem de um livro requer uma quantia considerável de investimento. Assim, “a forma do livro não é a expressão da ideia, mas o resultado de um compromisso negociado entre a ideia do artista e os diversos elementos aleatórios do contexto de sua inscrição e de sua realização” (p. 163). REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BROGOWSKI, Leszek. Voir le livre, voir le jour, comment j’ai fabriqué et lu certains de “mes” livres. In: Le Livre et l’artiste, Actes du Colloque. Marseille: Le Mot et Le Reste, 2007, p.153-188. DRUCKER, Johanna. Offset printing as a creative medium: the work of mechanical art in the age of electronic (re)production. In: Freeman, Brad; Drucker, Johanna. Offset. Artists’ books and prints. New York: Interplanetary Productions, 1993. p. 3-11. FREEMAN, Brad. Artistic control and the means of production. JAB (The Journal of Artists’ Books), Chicago, n. 27, p. 3-4, 2010. GROYS, Boris. Art power. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 2008. MOEGLIN-DELCROIX, Anne. Esthétique du livre d´artiste (1960/1980). Paris: JeanMichel Place / Bibiothéque Nationale de France, 1997. PEVSNER, Nikolaus. Os pioneiros do desenho moderno: de William Morris a Walter Gropius. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. A gravura no campo ampliado: relações entre palavra e imagem na gravura, gravura e fotografia e gravura tridimensional na contemporaneidade. In: VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas; MELENDI, Maria Angelica (org.). Diálogos entre linguagens. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. p. 27-44. WHITE, Tony. Production not reproduction: photo-offset printed artists’ books. The blue notebook, v. 2, n. 2, p. 15-27, April 2008.

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