O basilisco e a doninha nas Capelas Imperfeitas – Mosteiro da Batalha

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Cadernos de Estudos Leirienses – 8 * Maio 2016

8 LEIRIA MAIO DE 2016

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Cadernos de Estudos Leirienses – 8 * Maio 2016

O basilisco e a doninha nas Capelas Imperfeitas – Mosteiro da Batalha Orlindo Jorge*

Introdução É usual que os motivos transpostos pela arte para os seus diversos suportes sofram alterações significativas quer pelas formas de representar, como é o caso das estilizações ou abstracções, quer pelas diversificadas leituras e suas reinterpretações, dificultando muitas vezes a leitura ou percepção daquilo em que consiste, sobretudo quando não existem fontes directas da intencionalidade. A dificuldade aumenta sempre que a representação do motivo é parcial. Induz esta problemática a que, quando se descrevem os motivos, se utilizem generalizações como, por exemplo, motivos vegetalistas ou zoomórficos ou antropomórficos, em vez do nome específico, a exemplo, alcachofra, leão, sereia. Muitas vezes porque o são de facto generalizações, outras por não se conseguir, com maior ou menor certeza, desvendar o motivo particular. É dentro desta complexidade que avanço com este artigo propondo uma leitura específica para os elementos que decoram um dos frisos que corre a toda a volta da base do interior da lanterna inconclusa das Capelas Imperfeitas (fig. 1 e 4). Genericamente são constituídos por dois seres zoomórficos afrontados num padrão que se repete sucessivamente separado por um elemento fitomórfico. Estes elementos do início do século XVI, associados ao período manuelino, como justificarei, obrigam-nos entrar no mundo dos bestiários medievais que expõem seres mitológicos e fantásticos. De entre * Voluntário do Mosteiro de Santa Maria da Vitória (área de investigação)

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Fig. 1 – Imagem do interior das Capelas Imperfeitas com friso objecto deste artigo, ao centro e avivado.

todos, dois em particular, são extremamente relevantes para a circunstância: O basilisco e a doninha. O basilisco e a doninha1 O basilisco é um animal mitológico, género de áspide, que sofreu significativa metamorfose na sua representação, durante a Idade Média, convertendose numa tipologia de dragão com cabeça e corpo de galo e cauda de serpente. Mencionado no Antigo Testamento é também referido pelos clássicos como Plínio, o Velho, na sua obra “Naturalis Historia” (século I) que o descre1 A exposição sobre o basilisco e a doninha, neste capítulo, foi baseada essencialmente nas seguintes obras: Ignacio Malaxecheverría, Bestiário Medieval, Madrid, edições Siruela, consultado na página da web http://steel-cr.com/PDF/Lit-13.pdf (acedido pela última vez em 20-02-2016); Gustavo Bueno Sánchez, “Ontogenia y filogenia del basilisco”, in El Basilisco, Oviedo, número 1, (Março-Abril 1978), p. 64 a 79.

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ve como uma serpente possuindo uma mancha branca sobre a cabeça em forma de um diadema2, gozando de poderes como o de matar com o olhar, espantar todas as serpentes através do seu sibilar, destruir a vegetação e quebrar as pedras através do seu bafo ou contacto. Era tido como um animal extremamente difícil de aniquilar sendo que, ao fazê-lo através de uma lança, o veneno deste retornava por ela matando o lanceiro. Contudo, este monstro não resiste ao veneno da doninha, seu predador natural: “Assim termina o combate da natureza consigo mesma”(Plínio, o Velho, “Naturalis Historia”). “Nada deixou o Pai de todas as coisas sem remédio” (Isidoro de Sevilha, “Etymologiae”).

Fig. 2 – Esquerda3: O basilisco, “o biscione” do brasão da Casa de Visconti que derivou para o brasão da cidade de Milão, na figuração de uma cobra coroada, aqui na estação férrea central de Milão. Direita4: Na forma hibrida de ave e serpente, claustro do mosteiro de San Juan de los Reyes, Toledo.

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A transposição desta morfologia para a representação produz o desenho de uma cobra coroada (fig.2, esquerda). Ao longo dos séculos foi utilizada quer na heráldica, quer em emblemas, sendo actualmente, um dos casos, mais visíveis, o símbolo da construtora automóvel Alfa-Romeu. 3 Créditos da imagem: Wikipédia, na página da web https://pt.wikipedia.org/wiki/Biscione . 4 Créditos da imagem: Viajar com el arte, na página da web http://viajarconelarte.blogspot.pt/2012/12/ san-juan-de-los-reyes-en-toledo.html .

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No século III, Aeliano relata o temor do basilisco pelo galo, sendo tal o provável princípio para a transfiguração operada na Idade Media sobre a fisionomia do monstro. É durante a Idade Média que a besta adquire a configuração híbrida de um galináceo com uma víbora sendo representado, em termos gerais, com cabeça e crista de galo, corpo coberto de penas e com asas, e cauda de serpente (fig. 2, direita, e fig. 3). No século VII Isidoro de Sevilha na sua obra “Etymologiae”, no capítulo dedicado às serpentes, refere que o nome basilisco é de origem grega [grego basilískos, latim regulus, “pequeno rei”], e define-o como o rei das serpentes e que estas lhe fogem com medo do seu mortífero sopro. Bartholomeus Anglicus no seu compêndio “De proprietatibus rerum”, de 1240, descreve a origem da besta. O conhecimento sobre ele é ampliado por outros bestiários com diversas variantes. Nasce de um ovo colocado por um galo velho e é chocado por um sapo. Logo nascido, escondia-se em uma gruta. Animal de pequeno porte mas temido até pelas feras como o leão, é mesmo definido como o demónio. Por outro lado a doninha (latim mustela, de musteus: “fresco”, “novo”), predador natural do basilisco, aniquila-o com o seu odor fétido. Este animal é descrito nos bestiários como concebendo pelo ouvido e parindo pela boca, dando à luz as crias mortas, que ressuscita ingerindo a arruda. Para o basilisco, além da doninha e do galo, também o reflexo do seu olhar lhe é letal. Só uma redoma de cristal serve de escudo, protegendo o homem do seu olhar mortífero. Os bestiários e a Idade Media De forma sucinta, e para um melhor enquadramento do objecto em análise, os bestiários são compêndios que tratam de bestas, ou, dito de outra forma, de seres fantásticos. Englobam os seres mitológicos, lendários, de fábulas e contos5. Com grande circulação na Idade Média, neles são representados e descritos geralmente criaturas estranhas e, ou, com poderes 5

Sobre estes 4 temas ver Marisa Costa Marques, “O Mundo do Fantástico na Arte Românica e Gótica em Portugal. O género diplomático ‘notícia’ na documentação medieval portuguesa (séculos X-XIII)”, tese de Mestrado em História da Arte, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em Julho de 2007. Medievalista, Nº8, (Julho de 2010), (consultado 20.02.2016), disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/ MEDIEVALISTA8\marques8013.html

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Fig. 3 – Imagens com o basilisco e a doninha. Na esquerda6: Helmingham herbal and bestiary, pormenor folio 18 v, cerca de 1500. Na direita7: Bestiario de Aberdeen, pormenor do folio 66, seculo XIII.

incomuns, numa linguagem simbólica/alegórica e num intuito religioso e moralizante. A dualidade entre o ser e o seu simbolismo, quer seja positivo ou negativo ou até ambivalente, associado às virtudes ou aos vícios, ou representando imagens crísticas ou demoníacas (por exemplo, o leão, rei dos animais, é conotado com Cristo, mas a dualidade simbólica também pode associar a sua fome voraz com o demo), influenciaram fortemente os artistas, que recorreram a esta fonte de forma sistemática nas suas artes, especialmente para as partes decorativas. Foram sendo um manancial rico em temas que exploraram. Essa influência é notória nas igrejas que desde o românico vivem povoadas destes seres, ganhando grande desenvolvimento no gótico, sobretudo no gótico final onde o espaço amplamente explorado pelos artistas permitiu maior número de representações. A exuberância decorativa do manuelino foi espaço privilegiado para a representação de muitas destas bestas. Nela proliferam dragões, grifos, leões, sereias, ouroboros, harpias, entre muitos outros seres, uns facilmente reconhecíveis, outros de difícil compreensão. O basilisco e a doninha nas Capelas Imperfeitas No interior das Capelas Imperfeitas, a toda a volta do octógono e imediatamente a seguir ao ápice dos arcos das capelas absidais corre o friso objecto 6

Créditos da imagem: Yale Center For British Art, na página da web http://collections.britishart.yale.edu/ vufind/Record/2038220 . 7 Créditos da imagem: University of Aberdeen, na página da web http://www.abdn.ac.uk/bestiary/ comment/66rbirdf.hti .

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Fig. 4 – Pormenor do friso sendo visivel o basilisco e a doninha separados, ou unidos, por uma folha.

deste artigo. Nele estão representados de forma parcial e em vista lateral, dois seres afrontados na disposição de duplo “S”, sendo um deles invertido, ambos com iguais bases. O friso corresponde a uma sucessão repetida deste padrão, sempre separado por um elemento vegetal correspondente a uma folha (fig. 4). Analisando em pormenor os animais, é visível que o primeiro, na posição de “S”, apresenta um focinho relativamente alongado em pregas, boca entreaberta deixando descortinar a língua entre dentes e com mandíbulas donde sobressai pelo tamanho o dente canino inferior. Também se lhe descortina uma orelha arredondada e pouco saliente e o olho esférico, pescoço prolongado e delgado. Todo o aspecto do animal é de confrontação. O outro animal, na disposição de “S” invertido, ostenta um bico de ave semiaberto sendo visível a narina. Apresenta uma crista semi-estilizada, olho protegido na parte posterior por uma penugem que desce até ao bico, em direcção ao início do pescoço. O pescoço é alongado e delgado. Também nele sobressai o aspecto agressivo com que está representado. Como expus no início do artigo, o tratamento artístico muitas vezes dado aos elementos representados cria dificuldades para a sua interpretação, como é este caso, dificuldade aumentada pela representação parcial dos animais e não integral. Contudo, considerando a época, em que os bestiários tiveram 36

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grande influência nas artes, e o estilo manuelino, com inúmeros exemplos de bestas aplicadas na sua decoração, não é possível avançar com uma leitura sem ter em conta estas obras. Dos vários animais que estes livros apresentam os que melhor se enquadram com as representações esculpidas são o basilisco e o seu predador, a doninha. As mandíbulas, o olho esférico, a orelha curta e redonda e o pescoço alongado e delgado do primeiro “S” são características análogas à doninha. O bico, a crista, e a penugem que segue até ao início do pescoço do segundo “S”, aponta para a cabeça de galo. O pescoço alongado e esguio na forma de “S” tanto sugere o pescoço do galináceo como insinua a configuração da cobra, ambos animais relacionados com a hibridez do basilisco. Os motivos do friso têm uma base ambígua, que sai da folha que separa os animais, com aparências de uma pata, não sendo claro se de ave ou mamífero (fig. 4). Essa ambiguidade, provavelmente propositada, dissipa-se ao olhar os vários segmentos do friso, em que as ligeiras diferenças do trabalho de cantaria, sobre este pormenor, revelam claramente que se trata de uma raiz. Assunto que desenvolverei mais à frente. Possíveis leituras Nos bestiários o basilisco é associado ao mal, a personificação do demónio. Já nos “Sermões” Santo António utiliza-o como uma imagem análoga ao poder corrompido8. A doninha por sua vez é metaforicamente relacionada com o bem, com o remédio que combate o mal, um simbolismo crístico. A sua concepção particular e singular9 vincula-a a Maria, mãe de Jesus. E o artista, que executou o friso, criou a duplicidade do valor mariano ao colocar a doninha numa posição que espelha o basilisco, alusão à redoma de cristal que protege o homem e que reflecte o olhar do basilisco levando à morte. É uma referência à Virgem Maria que traz no seu ventre o salvador que aniquilará o mal. 8

Jefferson Eduardo dos Santos Machado, “Os bestiários Medievais: Sua História e Influência sobre a Intelectualidade Medieval”, disponível na página da web http://msb.academia.edu/JeffersonMachado (acedido em 20-02-2016). 9 Manuel João Ramos, «O pensamento sizígio: confronto, combinação e transformação nos bestiários medievais», Etnográfica, Vol. I, n.º 1 (1997), p. 108: “Mas se o processo generativo (do ouvido à boca) é metaforicamente equivalente ao da mãe de Cristo”(…)

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As ambivalências e as conotações antagónicas e de contraposição de ambos os animais permitem tirar partido para duplas leituras de ordem simbólica, moral, religiosa. Nessa decomposição temos o combate bem/mal, em que o bem é apresentado como o remédio para o mal. A alegoria de “Emanuel” como Salvador, que cura o mal. A associação de todo este enredo permite ao artista tirar leituras diversas a favor de uma direcção conotada com rei D. Manuel. Nesse sentido D. Manuel foi o pacificador da aristocracia, envolvida em intrigas com o rei antecedente, que inclusive levara à morte o seu irmão mais velho, restabelecendo justamente as suas regalias. Mas também cria um Estado com renovadas leis (concebe os Forais Novos, reforma os antigos com a Leitura Nova (1504-1522), cria um corpo legislativo com as Ordenações Manuelinas, estabelece cânones, a Ordenação e Regimento dos Pesos (1502), o Regimento dos Oficiais das Cidades, Vilas e Lugares destes Reinos (1504), os Artigos das Sisas (1512), o Regimento dos Contadores das Comarcas (1514), o Regimento das Ordenações da Fazenda (1516)10. Como a doninha, que é a única capaz de combater o basilisco, também ele é o único capaz de destruir o poder corrompido (basilisco) aniquilando-o com a criação de um poder recto e justo. O seu antecessor tinha como empresa o pelicano no ninho a alimentar com o seu próprio sangue as crias, animal assinalado nos bestiários como representando o sacrifício de Cristo na cruz, símbolo da eucaristia, qual rei que se oferece pelo seu povo (“Pela Lei e Pela Grei”). Acidente circunstancial ou intencional, curiosamente o friso corre imediatamente acima do escudo com esta empresa e que fecha um dos arcos das capelas absidais a que estaria destinada a D. João II11. Se o seu antecessor se “imolava” pelo povo, num sentido gradativo D. Manuel apresenta-se como a cura, a salvação de Portugal (Emanuel Primus Rex Portugaliae, inscrição em algumas chaves das Capelas Imperfeitas). Contudo, a leitura mais relevante está relacionada com a sua ligação messiânica, como escolhido por Deus para liderar a Cris10

“Manuel I de Portugal”, Wikipédia, página da web https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_I_de_Portugal (acedida em 20-02-2016). 11 Embora com outra intenção, também em Évora, nas arcadas das ditas “Casas Pintadas” (fig. 5), na parede de acesso à capela/oratório, encontram-se, neste caso pintados, um pelicano a alimentar as crias com o seu sangue (alusão à Eucaristia) e, num nível inferior o basilisco (personificação do demónio) provavelmente à espera que alguma cria (alma) caia do ninho de modo a encaminha-la para o inferno.

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tandade, numa dimensão imperial do mundo (“Deo in celo tibi autem in mundo”, filactério nas xilogravuras das “Ordenações Manuelinas”, da edição de 1514), com o império que se formava com os descobrimentos (doninha que entra na toca) contra um Islão temido pelos cristãos e que obstruía o caminho (basilisco). Esta perspectiva culminou com a gloriosa e magnífica embaixada enviada ao papa em 1514 com devido reconhecimento pelos seus pares europeus.

Fig. 5 – O basilisco (na parte inferior direita da imagem) e o pelicano a alimentar as crias com o próprio sangue (na parte superior esquerda da imagem). Évora, afresco do início do século XVI na arcada das ditas “Casas Pintadas”, na parede da porta de acesso à capela/oratório12.

Este sentido de predestinação é ampliado pelas circunstâncias particulares: singular subida ao trono (não era sucessor directo), o seu nome é o mesmo do Messias (Manuel = Emanuel), a sua empresa heráldica, a esfera armilar com a divisa “Spera Mundi” de duplo sentido como “esfera do mundo” e “esperança do mundo”, conferida por D. João II. 12

Créditos da imagem: Blog Creyssa Phyna, na web http://www.creyssaphyna.com/2013/07/portugalbonitezas.html .

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A completar o valor messiânico, a importância do nome da sua segunda esposa (de 1500 a 1517, com a qual teve o casamento mais duradouro). Possuía o mesmo nome da Virgem, Maria. Se a doninha simboliza a Virgem Maria pela concepção, como já foi referido, também o sentido da sua disposição no friso, em reflexo (espelho, sinónimo da redoma de cristal) em relação ao basilisco, reforça esse propósito. Deste modo o artista expõe a relação semântica “Jesus - rei (E)Manuel” e “Virgem Maria - rainha Maria”, reforçada pelas letras “M” coroado e “R” coroado (fig. 6) que bordeja as ombreiras interiores de alguns dos janelões incompletos da rotunda (provavelmente o primeiro ensaio desta representação, repetida nos claustros dos Jerónimos13 ampliando a glorificação e exaltação de toda a doutrina ligada a D. Manuel). Completa-se, assim, a imagem metafórica da doninha.

Fig. 6 – Imagem do “R” e do “M” que bordeja as ombreiras interiores, respectivamente lado esquerdo e lado direito, de um dos janelões incompletos da rotunda. Curiosa representação em reflexo, como acontece com a doninha e o basilisco.

Prosseguindo a decomposição do sentido metafórico do friso, é relevante observar a ambivalência das patas dos animais que numa leitura menos evidente sugerem as raízes de uma planta que, na realidade, partem exactamente do elemento vegetalista, ao qual está argolado e donde saem outras duas folhas que suportam, respectivamente, os pescoços/corpos dos dois animais. 13

Sobre a leitura do “M”, do claustro dos Jerónimos, e respectivo significado e enquadramento ver, Paulo Pereira, A Obra Silvestre e a Esfera do Rei. Iconologia da Arquitectura Manuelina na Grande Extremadura, Coimbra, Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990, p. 179.

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Neste sentido os dois seres revelam-se um só, com a mesma raiz, numa dialéctica (o basilisco também é o símbolo da dialéctica) entre o bem e o mal. Assim é exposta por um lado a natureza primitiva (bastante explorada artisticamente, no manuelino, pela figura do homem silvestre) com a dualidade da ingenuidade/brutalidade numa relação metafórica com a expulsão do jardim do paraíso (basilisco), e por outro o conteúdo teológico de regeneração/redenção através da salvação pela Palavra (“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” / concepção da doninha). O tema da árvore da vida em contraponto à árvore do conhecimento do génesis. E aqui pode-se abrir novo caminho interpretativo, também inscrito nos bestiários: A árvore da vida (fig. 7), neste Fig. 7 – O Peridéxion, representação da Árvore da Vida vigiada séc. XIII, pormenor do caso ladeada por um por dois dragões. Bestiário de Aberdeen, folio 6515. grifo (o basilisco) e um dragão (a doninha)14. Enquadramento temporal Considerando a data de 1509 inscrita no átrio das Capelas Imperfeitas, e associada à conclusão do grande portal de acesso à rotunda, leva a crer 14

A árvore da vida, em geral, é representada com duas bestas, vulgarmente dragões, a vigiar a árvore, ou seja, a olhar para a árvore. A disposição das bestas no friso das Capelas Imperfeitas apresenta os animais de costas para a árvore o que a afasta desta representação, pelo menos como intenção principal. 15 Créditos da imagem: Wikipédia, na página web https://en.wikipedia.org/wiki/Aberdeen_Bestiary .

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que as partes levantadas acima deste portal sejam posteriores, como é o caso deste friso. Acima do friso prossegue obra manuelina, excepto no lado poente onde foi “embutido” o balcão renascentista. Pela coerência construtiva, sabendo que João de Castilho foi nomeado como mestre-de-obras em 1528, inaugurando a entrada do classicismo no mosteiro, a sua feitura será de data significativamente anterior à entrada deste mestre. Importa referir que D. Manuel num primeiro momento pretendeu ficar sepultado neste panteão, reorganizando os espaços sepulcrais, obviamente reservando a zona central da rotunda para si16, e incutindo um novo programa decorativo. D. Manuel investe fortemente no panteão para, por um lado legitimar a sua sucessão na justificação dinástica com a exaltação do seu avô, o rei D. Duarte17, e por outro lado a glorificação messiânica a que estava predestinado. Como refere Catarina Barreira esta vontade de se fazer sepultar na Batalha terá sido abandonada por volta de 1514/5 e 1517, data do seu testamento, a favor da igreja do Mosteiro dos Jerónimos. O investimento feito neste espaço, durante pelo menos 15 anos, com vista a seu panteão teria cimentado um programa completo, construtivo e decorativo, e desse modo naturalmente prosseguido apesar da deslocalização da vontade de sepultamento, como certamente aconteceu com o balcão renascentista, delineado por Castilho e continuado por Miguel Arruda18. Por este sentido, mais facilmente é atribuível a autoria de todo o programa manuelino das Capelas Imperfeitas a Mateus Fernandes, mesmo o edificado depois da sua morte, sem negar a influência natural do seu genro Boytac e dos seus filhos, particularmente o homónimo Mateus Fernandes que o sucedeu como mestre em 1516. Estilisticamente todo o friso se enquadra dentro da gramática manuelina numa realização de talha vazada, forma recorrente e verificável nas colunas ocas do grande portal ou em alguns elementos dos gigantes como o “M” e o “R” (fig. 6). Também as formas túrgidas e o elemento anelar da base da folha, idêntico aos elementos anelares do exterior das aberturas das capelas absidais 16

Catarina Fernandes Barreira, “O Mosteiro de Santa Maria da Vitória e a vocação moralizante das gárgulas do Panteão Duartino”, in D. Duarte e a sua Época: Arte, Cultura, Poder e Espiritualidade, Lisboa, Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2014, p. 196, 197. 17 Catarina Fernandes Barreira, Op. cit., p.196. 18 Orlindo Jorge, Pedro Redol, “As Capelas Imperfeitas do Mosteiro da Batalha. Arqueologia e história da sua construção”, in Cadernos de Estudos Leirienses, nº 5, (Setembro 2015), p. 316.

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do panteão, completas na época manuelina19, reforçam este enquadramento. A decoração com o esquema de duplo “S” afrontado revela-se típica deste espaço pelo seu uso constante nas partes manuelinas como no grande portal (elementos vegetalistas de uma das colunas ocas) e nos gigantes (os delfins afrontados, ou as cornucópias também afrontadas, ambos nas ombreiras dos janelões). Curiosamente, o basilisco também é nome dado a uma das maiores peças de artilharia usadas nesta época20, fortalecendo, mesmo que de forma indirecta, a influência retórica da arquitectura militar no manuelino21. A possibilidade de o friso ser obra renascentista é desconsiderada porque não são visíveis modificações nos silhares em toda a extensão do friso que permitam a leitura de uma alteração a posteriori22, como as que são verificáveis no balcão, sobretudo na face poente, resultado do seu assentamento em obra já realizada. Também a decoração utilizada por Castilho/Arruda nas partes renascentistas são menos salientes, e mais refinadas. Igualmente a falta de contas e fechos no friso, decoração típica de Castilho e visível no exterior das partes superiores dos dois torreões de escada, ou de outros elementos característicos da renascença, como por exemplo o reticulado ou os motivos de ovos e dardos alternados, distancia-o ainda mais da obra renascentista.

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Orlindo Jorge, Pedro Redol, Op. cit., p. 311 e 314. Sobre a peça de artilharia ver Área Militar, página da web sobre temas militares em língua portuguesa: http://www.areamilitar.net/DIRECTORIO/CAN.aspx?nn=187 . 21 Orlindo Jorge, Pedro Redol, Op. cit., p. 315. 22 António Luís Ferreira, “O mosteiro de Santa Maria da Vitória no século XVI – As Capelas Imperfeitas e o Renascimento em Portugal”, edição: Câmara Municipal da Batalha, 2015, p. 65 e 66, refere o friso como obra renascentista atribuindo-o a João de Castilho. Pelas justificações que desenvolvo neste artigo aponto uma leitura contrária, classificando-o como obra manuelina. 20

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