O bispo e o patrimônio eclesiástico no reino visigodo: análise comparada entre as atas conciliares toledanas e provinciais (séculos VI-VII)

June 15, 2017 | Autor: Guilherme Nunes | Categoria: Visigodos, Patrimonio Eclesiástico, Instituição eclesiástica, Bispos
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

Autor: Guilherme Marinho Nunes Orientadora: Profª Drª Leila Rodrigues da Silva

O bispo e o patrimônio eclesiástico no reino visigodo: análise comparada entre as atas conciliares toledanas e provinciais (séculos VI-VII)

Rio de Janeiro 2015

2 Guilherme Marinho Nunes

O bispo e o patrimônio eclesiástico no reino visigodo: análise comparada entre as atas conciliares toledanas e provinciais (séculos VI-VII)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História Comparada.

Orientadora: Leila Rodrigues da Silva

Rio de Janeiro 2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

O BISPO E O PATRIMÔNIO ECLESIÁSTICO NO REINO VISIGODO: Análise comparada entre as atas conciliares toledanas e provinciais (século VI-VII).

UFRJ / PPGHC: dissertação de mestrado 2015. Autor: Guilherme Marinho Nunes – Orientação: Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva Rio de Janeiro, RJ; 2015

Palavras-chave: Patrimônio episcopal; Instituição eclesiástica; Concílios; Normatividade legislativa; Poder senhorial; Dependência política; Reino visigodo.

1.Introdução; 2. Discussão Bibliográfica: O poder episcopal, o senhorio e o patrimônio eclesiático; 3. As questões patrimoniais nas atas conciliares; 4. Conclusão; 5. Bibliografia

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Guilherme Marinho Nunes

O bispo e o patrimônio eclesiástico no reino visigodo: análise comparada entre as atas conciliares toledanas e provinciais (séculos VI-VII)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História Comparada.

Membros da banca:

___________________________________________________________ Profᵃ Drᵃ Leila Rodrigues da Silva (Orientadora)

___________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Duarte Silva

__________________________________________________________ Prof. Dr. Bruno Gonçalves Álvaro

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A Júlia Rónai Nunes, por todo o carinho, apoio, compreensão...

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AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, às instituições que viabilizaram a realização desta pesquisa acadêmica de forma autônoma: a CAPEs, a UFRJ e o PPGHC, que pautam um processo de democratização do ensino superior, ainda que estejam longe de alcançar este objetivo em sua forma ideal. Agradeço à minha orientadora, Leila Rodrigues da Silva, por todo seu apoio neste processo. Você continua sendo um exemplo (de professora, historiadora, pessoa...) para minha formação acadêmica. Agradeço à Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Paulo Duarte Silva, Bruno Gonçalves Álvaro e Rodrigo dos Santos Rainha, por estarem presentes neste momento decisivo de minha vida. Agradeço a todos os amigos e colegas do PEM, por todas as críticas, conversas e experiências trocadas. Este trabalho tem um caráter quase coletivo e cada um de vocês tem uma porção de responsabilidade sobre ele. Agradeço aos PIBEX’s, atuais e vindouros. O trabalho de vocês é um dos principais sustentáculos de nosso Programa. Agradeço à Márcia Ramos, pela eficiência e a solicitude com que atende nossos momentos de desespero. Agradeço ao professor Luís Affonso Albuquerque que ainda exerce grande influência sobre meus ideais enquanto historiador e professor. Agradeço aos amigos da Escola Parque que ainda são uma presença constante em minha vida, especialmente nas comemorações! Agradeço a todos os meus companheiros de graduação na UFRJ. Agradeço às soteropolitanas, Nina e Lila. Agradeço aos meus alunos do CEDERJ de Nova Friburgo, pelo seu interesse, pela confiança que depositam em mim e sua participação recente em minha vida. Agradeço às Rónai por me receberem de braços abertos na família Agradeço meus tios, primos e todos os familiares, pelos quais tenho imenso carinho. Agradeço ao meu irmão Miguel e sua esposa Bruna. Agradeço aos meus pais Luiz Fernando e Maria, por todo o suporte que me dão e me deram.

7 RESUMO

Este trabalho diz respeito ao processo de institucionalização do clero cristão niceno e seu patrimônio no reino visigodo na Península Ibérica. Percebemos em finais do século VI a ascensão do Cristinismo niceno ao posto de principal produtor ideológico do período. Simultaneamente, a afirmação da autoridade episcopal adota contornos senhoriais, com o processo de incrementação de suas propriedades e poder político em âmbito local. Isto leva a uma constante tensão entre o crescimento do domínio pessoal dos bispos e a perda do caráter administrativo de seu cargo. No entanto, devemos compreender que esta complexa relação entre poder pessoal e poder institucional não significa um desvio à norma legislativa ou alguma forma de corruptela do cargo diocesano, muito pelo contrário, é inerente a esta posição.

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ABSTRACT

This work regards the process of institutionalization of the Nicene Cristian and its patrimony in the Visigothic reign in the Iberian Peninsula. One notices in the late VI ͭ ͪ century the rise of Nicene Christianity as main ideology producer of this period. Simultaneously, the episcopal authority asserts itself and takes on seigniorial features, abetted by the growth process of its properties and of its local political power. This leads to a constant tension between the increase of the bishop’s personal domain and the administrative character of his seat. Nevertheless, one must understand that this complex relation between personal power and institutional power does not indicate a deviation from the legislative regime or some sort of slight corruption of the diocesan rank, much to the contrary; it is inherent to its position.

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Sumário APRESENTAÇÃO ......................................................................................... 10 CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO .................................................................... 12 Fundamentação Teórica .............................................................................. 17 Corpus Documental e Questões Metodológicas ......................................... 19 Problematização e Hipótese ........................................................................ 25 CAPÍTULO II – DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA: O poder episcopal, o senhorio e o patrimônio eclesiático ............................................................................ 28 Senhorio ...................................................................................................... 29 Patrimônio eclesiástico ............................................................................... 42 CAPÍTULO

III



AS

QUESTÕES

PATRIMONIAIS

NAS

ATAS

CONCILIARES .......................................................................................................... 52 Inalienabilidade patrimonial ....................................................................... 57 Fundadores de igrejas ................................................................................. 71 Familia ecclesiae ........................................................................................ 78 CAPÍTULO IV – CONCLUSÃO ................................................................... 87 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................ 92 Documentos: ............................................................................................... 92 Bibliografia: ................................................................................................ 92

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APRESENTAÇÃO

Os séculos que se seguem ao processo de recrudescimento da administração imperial no Ocidente, são marcados pelo estabelecimento de reinos romano-bárbaros e o crescimento de lideranças locais afastadas de um poder centralizado. Percebemos a formação dos elementos nobiliárquicos que gradativamente se tornam hegemônicos no período em princípios da Idade Média. Neste cenário vemos a monarquia visigoda se fixar e consolidar sua posição política, por meio de relações intrassenhoriais, na Península Ibérica. Esta ascensão é marcada pelo desenvolvimento simultâneo e interdependente do episcopado. Cabe ressaltar que o processo de reafirmação do poder real se relaciona aos aspectos religiosos e na estrutura hierárquica da instituição eclesiástica. Este processo fortalece, por sua vez, a posição dos bispos nas áreas de atuação de sua diocese e nas relações inerentes à camada nobiliárquica. Aliado a isto, notamos o incremento do patrimônio das igrejas no período, como um dos desdobramentos do crescimento político do episcopado. Isto porque a participação destes homens nos vínculos das altas camadas lhes garante concessões de terras por seus pares. Além disto, o avanço do cristianismo niceno como um referencial simbólico das altas camadas aumenta o número de doações feitas para templos religiosos. Notamos aí o surgimento de uma tensão entre o florescimento da autoridade local dos prelados e o desenvolvimento dos aspectos institucionais do episcopado. Queremos afirmar com isto que o reconhecimento do poder administrativo sobre as posses enquadradas em sua diocese é baseado na posição dos bispos como membros do clero, que por sua vez tende a limitar os direitos destes homens sobre os bens de suas igrejas, impondo restrições à subtração e alienação das propriedades eclesiásticas. Reside aí a principal questão que pretendemos abordar em nosso trabalho: por um lado os epíscopos retiram parte sua força política do usufruto das terras clericais, ou seja, de sua condição de partícipes do setor religioso. Por outro lado, sua inserção em meio ao bispado significa o enquadramento aos preceitos canônicos, o que limita seu poder, pois o impede de diminuir ou depredar este patrimônio. Neste sentido, optamos por trabalhar com os concílios toledanos, considerados uma construção normativa que abrange todo o reino visigodo, e os concílios provinciais,

11 específicos de uma região, no intuito de analisar as questões institucionais que permeiam as disposições canônicas em ambos os níveis. Pretendemos, desta forma, observar dois elementos: primeiramente, dada a realidade senhorial presente nas relações políticas e sociais do período, reconhecemos que questões fundamentais desta estrutura podem ser notadas no âmbito local. Em segundo lugar, a análise destas duas esferas de poder do episcopado demonstram os aspectos da interação institucional que são uma marca do processo de estruturação do clero visigótico, usualmente, mas nem sempre, norteado pelos Concílios de Toledo. Analisamos, portanto, três eixos de comparação que, segundo nossa visão, demarcam a relação estabelecida entre os bispos e as posses pertencentes a igrejas: a normativa que reafirma a inalienabilidade patrimonial dos bens eclesiásticos; a questão das “igrejas próprias” com ênfase na figura dos fundadores de igrejas, tanto laicos quanto eclesiásticos, e a estrutura senhorial que está representada na hierarquia clerical da familia ecclesiae. Destarte, esperamos deixar claro em nossa conclusão que, as questões que envolvem a relação do epíscopo com a propriedade eclesiástica são problematizadas buscando compreendermos um pouco melhor a noção de domínio desta sociedade, bem mais complexa do que pode parecer em um primeiro momento.

CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como principal objetivo analisar o discurso acerca da relação patrimonial de membros do clero com os bens da instituição eclesiástica no reino visigodo, particularmente entre finais do século VI e o primeiro terço do VII. Para tal, elencamos como corpus documental as atas conciliares toledanas e provinciais entre os anos de 589 e 633. Após a ascensão do cristianismo à condição de religião oficial do Império Romano, percebemos o desenrolar de um processo de institucionalização do clero em diversas instâncias, entre elas, a organização do patrimônio eclesiástico.1 Antes de Constantino I podemos encontrar relatos de comunidades de fiéis que têm posses, porém é por meio das atas do Concílio de Antioquia de 341 que se reconhece a possibilidade de igrejas possuírem terras.2 Tem início, neste momento um longo debate acerca de diretrizes que deveriam nortear a relação entre clérigos, em particular o episcopado, e as propriedades eclesiásticas em toda a extensão da cristandade.3 Invariavelmente, notamos que um dos principais aspectos desta institucionalização é a separação entre os bens da igreja e os do bispo. Na Península Ibérica, desde o século IV já é possível observarmos o desenvolvimento de alguns aspectos da organização eclesiástica, apesar de estarem em estágio demasiadamente incipiente para afirmarmos a existência concreta de uma

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Sobre isto poderíamos citar uma grande quantidade de trabalhos. Faço referência a alguns que possuem destaque particular para o nosso trabalho: BUENACASA PÉREZ, Carles. La legislación conciliar concerniente a la administración del patrimônio eclesiástico: el bajo imperio (siglos IV-V). Studia ephemerides Augustinianum. Roma, n. 78, p. 49-72, 2002; PÉREZ MARTÍNEZ, Meritxell. La burocracia episcopal em la Hispania tardorromana y visigótica (siglos IV-VII). Studia Historica. Historia Medieval. Salamanca, n. 18-19, p. 17-40, 2000-2001; PÉREZ SÁNCHEZ, Dionisio. Las transformaciones de la antiguedad tardia em la Península Ibérica: Iglesia y fiscalidad em la sociedad visigoda. Studia Historica. Historia Antigua. Salamanca, n. 17, p. 299-318, 1999; TERESA DE JUAN, María. La gestión de lós bienes em la iglesia hispana tardoantigua: confusión patrimonial y sus consecuencias. POLIS. Madrid, n. 10, p. 167-180, 1998. 2 BUENACASA PÉREZ, Carles. Op. Cit., p. 51 3 Idem. Ibidem. p. 49

13 coordenação entre as várias instâncias hierárquicas ou de uma definição política acerca do patrimônio.4 Neste período já é evidente a presença, física e política, de bispos nos principais meios urbanos onde se encontrava a administração imperial. Cabe ressaltar que muitos destes homens eram provenientes da aristocracia romana.5 No século V, na medida em que há uma retração do poder central de Roma nas regiões periféricas, vemos os epíscopos ascenderem como principais líderes regionais, representando um fator de coesão local e assumindo toda uma gama de responsabilidades civis e jurídicas.6 Devemos nos referir neste ponto às teorias de Claudia Rapp no que tange ao crescimento e especificidades da liderança bispal, correlacionados à manifestação tríplice de sua autoridade: pragmática, espiritual e ascética.7 Desta forma, compreendemos que a força política associada ao setor eclesiástico é uma conjunção de suas ações nestes níveis. O elemento pragmático refere-se às atitudes administrativas, bem como a influência destes homens nos entornos sociais de sua jurisdição, tendo como pressuposto um poderio econômico que lhe permite isto. O sentido espiritual, por outro lado, está ligado à construção ideológica do bispo como receptor da graça divina e vicário de Cristo, sendo portanto uma mediação direta entre o mundo terreno e o mundo celeste. A acepção ascética nos remete à conduta, esperada normalmente de todo o clero, de negação das coisas mundanas, elevando-os a um nível de perfeição e altruísmo superior a de qualquer outro homem. Há de se notar que a ascese, sob nossa ótica, representa duplamente a possibilidade de reconhecimento do aspecto espiritual, sendo um meio de reafirmar as características sacralizadas dos prelados, e também a liderança pragmática, associada entre outras coisas com o esforço caritativo, derivado de suas riquezas materiais, para com os pobres.

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É anacrônico nos referirmos a uma Igreja católica, neste momento devido à ausência de um caráter institucional multi-regional, isto porque vemos ainda uma ampla disputa pela definição de uma ortodoxia por parte dos membros do episcopado em vários dos reinos estabelecidos na Europa – ocidental e oriental. 5 FONTES, Luís. O Período Suévico e Visigótico e o Papel da Igreja na Organização do Território. In: PEREIRA, Paulo (Coord.). Minho – Traços de Identidade. Braga: Universidade do Minho, 2009. p. 272-295. p. 284-285. 6 MAYMÓ, Pere. El Obispo como autoridad ciudadana y las irrupciones germânicas em el Occidente latino durante el siglo V. Studia Ephemeridis Augustinianum. Barcelona, v. II, n. 58, p. 551-558, 1997. 7 A obra de Claudia Rapp trata, majoritariamente, da autoridade episcopal no Oriente. No entanto, diversos dos aspectos teóricos por ela apresentados, estão em consonância com nossas hipóteses. RAPP, Claudia. The nature of leadership in late antiquity. In:______. Holy bishops in late antiquity. Berkley: University of California, 2005. p. 3-22.

14 Sendo assim, o século V é marcado por profundas transformações que têm em seu cerne a gradual substituição do poder imperial romano por elites regionais – geralmente membros do episcopado. Nesse sentido, Chris Wickham afirma que “(...) a política local baseada na possessão de terras terminou por dominar, até ocupar o centro da cena política.”8 No caso particular da Península Ibérica vemos esta transição representada pela figura do dominus-patronus, o proprietário da terra (dominus) que é também a figura política de preeminência local (patronus).9 Estes senhores sustentam sua autoridade por meio dos laços de dependência que formam com seus servos (o patrocinium) e com outros membros da camada nobiliárquica (fidelitas). Neste sentido, o estabelecimento de vínculos de dependência de servos para com membros das camadas nobiliárquicas desempenha um papel central na afirmação do poder destes senhores em meio a seus pares. Dois elementos demonstram bem isto: primeiro, o reconhecimento da posição de um senhor como patronus por seus pares é condição sine qua non para o ingresso nas teias de fidelitas que permeiam a afirmação política destes nobres.10 Em segundo lugar, é preciso ter em mente o desafio que representa a demarcação física de uma propriedade fundiária neste período. Há, por conseguinte, uma estreita associação entre a posse imobiliária e a produção na terra, garantindo o domínio de uma localidade por meio da autoridade sobre os homens que lá trabalham.11 Neste ponto, devemos atentar que, para além das especificidades jurídicas na qual cada trabalhador se enquadra – servi, ancillae manicipia –, encontramos na relação desigual estabelecida entre estes e os aristocratas um aspecto de convergência.12 Ou seja, a subserviência, seja ela baseada na coerção ou não, é o que une – ao menos analiticamente – estes homens como grupo neste sistema senhorial.13 Destacamos,

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WICKHAM, Chris. La transición en occidente. ESTEPA, Carlos et alli [coord.] Transiciones en la antiguedad y feudalismo. Madrid : Fundo de Investigaciones Marxistas, 1998, p. 88. 9 BARBERO DE AGUILERA, Abilio, e; VIGIL PASCUAL, Marcelo. La formación del feudalismo em la Península Ibérica. Barcelona: Crítica, 1978. p. 162. 10 Podemos fazer referência aqui ao texto de Jamie Kreiner, apesar dela focar seus estudos sobre o reino merovíngio na Gália, pois optamos por reconhecer que existem aspectos que perpassam a formação de uma grande maioria dos reinos europeus deste período, entre eles a construção do poder episcopal. KREINER, Jamie. About the Bishop: The Episcopal Entourage and the Economy of Government in PostRoman Gaul. Speculum. Chicago, 86, p. 321-360, 2011. 11 GARCÍA MORENO, Luis A. Composición y estructura de la fuerza del trabajo humana en la Península Ibérica durante la Antigüedad tardia. Memorias de historia antigua, Oviedo, v. 1, p. 247-256, 1977. p. 250. 12 BASTOS, Mario Jorge da Motta. Escravo, servo ou camponês? Relações de Produção e Luta de Classes no Contexto da Transição da Antiguidade à Idade Média(Hispânia – Séculos V-VIII). Politéia: História e Sociedade, v. 10, n. 1, p. 77-105, 2010. p. 88-89. 13 No entanto, não podemos deixar de ignorar a existência, ainda que diminuta, de produtores livres que proprietários de suas próprias terras. Idem, Ibidem

15 então, nossa opção teminológica por tratá-los como dependentes e não como servos ou escravos. Em 569 ascende ao trono Leovigildo, realizando uma série de vitórias e firmando a supremacia militar visigótica na Península Ibérica. No entanto, tão, ou mais importante que, suas conquistas bélicas, foi o êxito que teve em conferir à monarquia um relativo papel de domínio sobre a nobreza. Impondo-se como uma figura central na complexa teia social que se organizava, construindo uma estrutura política baseada nos laços de fidelitas, o monarca instituiu-se como ponto focal de negociações políticas nas camadas nobiliárquicas reforçando seu poder, enquanto se posicionava como representante destas. García Moreno apresenta este processo como uma substituição do poderio imperial.14 Queremos dizer com isto que, durante os séculos VI e VII, notamos novamente a presença de uma autoridade administrativa hegemônica no território peninsular, algo praticamente inexistente desde a desagregação do Império Romano. Porém, isto não significou o começo de um cenário de estabilidade, já que o poder real, ao longo de todo esse período, oscila entre momentos de preponderância e de subjugação aos interesses das altas camadas fundiárias. O motivo disto fica claro ao lembrarmos que a relação entre o rei e outros senhores de terra possui um caráter de reciprocidade entre as duas partes, o que significa o fortalecimento de ambas em seus respectivos níveis de atuação – central/local. Na medida em que estes membros da aristocracia são a principal forma de afirmação da autoridade real, no âmbito local, o fortalecimento de seu domínio sobre tais áreas também pode representar um obstáculo para a afirmação do poder régio.15 Podemos afirmar que a centralização política no reino visigodo é largamente baseada na interdependência da camada nobiliárquica. Ou seja, a preponderância do monarca tem como alicerce as alianças com os setores senhoriais que apóiam sua atuação. Esta relação possui um caráter mútuo, significando que não podemos discerni-lo como um processo de concentração do poder, outrossim como uma dispersão da autoridade. Isto pode ser percebido na medida em que vemos a ascensão de membros das altas camadas a cargos civis, levando a um crescimento de seu domínio local.16

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GARCÍA MORENO, Luís A. Historia de España Visigoda. Madrid: Catedra, 1989, p. 111. Cf. FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade e a limitação do poder régio na Hispania visigoda: o reinado de Ervígio (680-687). Gerión, Madrid, v. 22, n. 1, p. 421-435, 2004. 16 Outrossim, isto não significa que podemos observar a soberania monárquica como tendo uma índole “fraca”, pois seria uma análise absolutamente anacrônica não reconhecer as especificidades da forma de governo medieval. Muito mais baseada no contínuo processo de composição de alianças que precisam 15

16 Dando continuidade a este projeto de unificação, buscou-se o estreitamento das relações entre a monarquia, as elites hispanoromanas e os setores eclesiásticos. A esse processo está diretamente vinculada a conversão do rei Recaredo, filho de Leovigildo, ao cristianismo niceno17 e a relização, em 589, do III Concílio de Toledo,18 Isto acarretou diretamente no crescimento político e patrimonial da instituição clerical, pois ao mesmo tempo em que legitimava a religião cristã como principal referencial simbólico no reino visigótico, o rei sancionava a inalienabilidade das posses das igrejas e a transferência das antigas propriedades arianas ao episcopado. Podemos perceber neste processo dois aspectos indissociáveis que reforçam a posição de bispos e outros membros das elites religiosas como únicos detentores das formas politicamente aceitas de compreensão e representação do mundo: a promoção de uma integração social em torno da fé, e; a exclusão de formas heterodoxas que fogem à normatização das relações sociais. Percebemos então que na Península Ibérica, o processo de institucionalização do patrimônio eclesiástico assume configurações mais delineadas somente entre os séculos VI e VII, associado ao processo de centralização política que ocorre no reino visigodo.19 Como pudemos perceber, uma das transformações ocorridas na desagregação do Baixo Império, foi o crescimento da atuação política de epíscopos, tanto no âmbito local quanto multiregional. Este fato se dá por diversas razões, no entanto, a propriedade e a participação destes homens na camada superior da sociedade desempenham um papel fundamental.20 Além disto, a estrutura hierárquica da instituição eclesiástica reconhecia o bispo como referência para as igrejas, urbanas ou rurais, inseridas em seu campo de atuação. Em consonância com sua posição de liderança, sua atuação era voltada para a gestão diocesana. Neste sentido, notamos as deliberações sinodais como um momento de

constantemente reafirmadas e reconstituídas, por meio da promessa de fidelitas. SOLEDAD ORLOWSKI, Sabrina. Fideles Regis en el reino visigodo de Toledo: aproximaciones para su estudio desde las prácticas reciprocitarias. Miscelánea Medieval Murciana, Murcia, v. XXXIV, p. 83-91, 2010. p. 90. 17 ORTIZ DE GUINEA, Lina Fernandez. Participación episcopal de la articulación de la vida politica Hispano-Visigoda. Studia Histórica. Historia Antigua, Salamanca, v. XII, p. 159-167, 1994. 18 O Concílio III de Toledo tem uma importância fundamental na história do reino visigodo, especialmente pois foi neste sínodo que ocorreu a conversão da monarquia visigoda para o cristianismo niceno, elevando esta fé a um papel de religião oficial. Cf. ORLANDIS, José. In:_, RAMOS-LISSÓN, Domingos. Historia de los Concílios de la España romana y visigoda. Pamplona: Universidad de Navarra, 1986. 19 PÉREZ MARTÍNEZ, Meritxell. Op. Cit., p. 37. 20 KREINER, Jamie. Op. Cit.

17 reafirmação desta realidade social, o prelado é o gestor dos bens, móveis ou imóveis, que se encontram dentro de sua jurisdição. Por outro lado, os concílios, tanto gerais quanto provinciais, reuniam em torno de si um aparato legislativo que visava nortear os moldes aos quais esta governança deveria se ater. Podendo, inclusive, destituir os bispos do seu direito de usufruto das posses clericais, esvaziando a força de seu domínio. Desta forma, a estruturação normativa e as disposções jurídicas encontradas nas atas são instrumentos fundamentais para a construção das interrelações episcopais. Portanto, devemos levar em consideração os aspectos da estrutura social da alta camada visigótica na qual existe uma íntima relação entre a propriedade de terras, a dependência pessoal e o prestígio político. Sendo a divisão entre propriedades das igrejas e dos bispos um dos principais aspectos da organização institucional dos bens eclesiásticos, devemos nos questionar: como se estabelece a relação entre esses prelados e o patrimônio de sua diocese? Não seria esta em grande parte semelhante a de outros senhores com suas propriedades? Quais os limites que a estrutura conciliar pode impor sobre os membros deste alto clero e de que forma o faz?

Fundamentação Teórica Reconhecemos os bispos como principais detentores de um capital simbólico, que os coloca como (re)produtores ideológicos fundamentais, e que é ratificado por seu pertencimento à hierarquia clerical. Utilizaremos em nossas análises fundamentalmente dois conceitos que convergem com nossa visão do período: Poder Simbólico de Pierre Bourdieu21 e Instituição de Antonio Manuel Hespanha.22 O poder simbólico é essencialmente a capacidade que um grupo ou classe possui de impor seu discurso como principal meio pelo qual o mundo é compreendido e traduzido, sendo esta estrutura lógica arbitrária aceita e consumida pela sociedade em geral. Devemos notar, neste ponto, que o próprio fato de ignorarmos a nossa realidade social como uma construção artificial, reafirma a efetividade deste processo, pois torna-

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BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In:______. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 7-15. 22 HESPANHA, António Manuel. História das instituições: Épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982. p. 11-28.

18 se menos evidente sua qualidade de illusio dificultando uma abordagem crítica daquilo que nos é cotidiano.23 Além disto, é preciso ter em mente que é raro encontrarmos locais onde o capital simbólico está completamente descolado de outras formas de capital – em particular o econômico. No entanto, a ideologia é, usualmente, arquitetada dentro do campo específico de produção de um capital cultural e, em um segundo momento, legitimada pelas classes dominantes. Ou, como afirma o sociólogo francês: A classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos princípios de hierarquização: as frações dominantes, cujo poder assenta no capital econômico, têm em vista impor a legitimidade da sua dominação quer por meio da própria produção simbólica, quer por intermédio dos ideólogos conservadores os quais só verdadeiramente servem os interesses dos dominantes por acréscimo, ameaçando sempre desviar em seu proveito o poder de definição do mundo social que detêm por delegação24

Interessa-nos compreender isto, pois ao trabalharmos com a organização interna do episcopado, percebemos que ela influencia e é influenciada por uma dominação social em níveis mais amplos do que apenas o campo religioso. Isto porque, no período em que focamos nossas análises, aqueles que constroem o discurso de hierarquização social além de serem membros das camadas superiores, encontram respaldo para seus enunciados – e reafirmam sua posição nesta sociedade – ao legitimarem o status quo nobiliárquico. Considerando-se este ponto de partida, podemos relacionar a proposta de Hespanha aos pressupostos de Bourdieu, visando reiterar nossas opções teóricas. O processo de institucionalização pelo qual passa o episcopado visigodo tende a revalidar a estrutura social na qual está assentada a dominação. Ao nos referirmos ao conceito de instituição tratamos aqui de uma categoria que não está à parte das relações sociais que a rodeiam, muito pelo contrário, ela é permeada por estas e possui um papel atuante na configuração da realidade política. Portanto, as instituições são produtos da realidade social do mundo em seu entorno e são aspectos de reprodução desta. No tocante ao nosso período específico, podemos indicar de antemão que laços senhoriais perpassam a instituição eclesiástica. Porém, não devemos nos pautar pela noção de que isto signifique, especialmente na Idade Média, uma

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BOURDIEU. É possível um ato desinterassado? In:_____ Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1997. p. 137-156. 24 BOURDIEU. Op cit. Sobre o poder...., p. 12.

19 anormalidade jurídica ou alguma forma de corruptela das normas, o que nos impediria de reconhecer seu caráter sistêmico. A instituição constrói-se tendo como base as alianças pessoais características desta época. Por outro lado, o processo de afirmação do poder do clero perpassa pela percepção da coesão inerente a este setor frente ao restante da sociedade, admitindo seu caráter diferenciado. Estar dentro da hierarquia da ecclesia significa estar acima, em um sentido moral ou ético, dos outros homens, segundo o pensamento estabelecido no período. Esta disparidade entre clérigos e laicos é reforçada por meio da afirmação do caráter sagrado da autoridade bispal, destacada, especialmente, por seu elemento ascético, nos termos propostos por Rapp.25 Neste sentido, podemos, por um lado, retomar Bourdieu no que tange a questão da distinção do episcopado sob o aspecto da denegação do econômico,26 pela qual o clero garante uma acumulação de um capital de tipo simbólico. Por outro, como veremos no desenvolver de nosso trabalho, a asserção do poder simbólico por uma via não econômica reflete diretamente no crescimento fundiário do patrimônio episcopal. Ou seja, por meio dos aspectos ascéticos e caritativos da sua autoridade, os religiosos afirmam parte de seu poder político e econômico. Portanto, um dos elementos fundamentais da legitimação dos domínios eclesiásticos é o cumprimento das normativas estabelecidas em concílios, respeitando sua soberania. As disposições canônicas por sua vez pautam sua construção discursiva nas atitudes voltadas à manutenção das estruturas que permitem as atividades religiosas e a ação assistencialista, enfatizando a figura bispal como generosa e sacralizada. Sendo assim, a instituição reforça o poder dos prelados, concedendo-lhes o uso dos bens da instituição, mas também reafirma o seu aspecto institucional, forçando-os a obedecerem as decisões sinodais. Corpus Documental e Questões Metodológicas Os principais documento de nosso trabalho são as atas conciliares produzidas entre os de 589 e 633.27 Podemos afirmar que compartilhamos da proposição de José

25

RAPP, Claudia. Op. Cit. BOURDIEU, Pierre. A Produção da Crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre: Zouk, 2006. p. 19-21. 27 Utilizamos em nossas análises, principalmente, a compilação editada por José Vives: VIVES, José (ed.) et alli. Concilios visigóticos e hispano-romanos. Barcelona: Instituto Enrique Flórez. 1963. No entanto, 26

20 Orlandis,28 que demarca a atividade conciliar deste momento em um único processo de estruturação política do reino visigodo, tendo como marcos a conversão pública de Recaredo (589) e a solidificação institucional do clero (633).29 As atas conciliares são o produto destes sínodos, os pontos debatidos são apresentados em cânones que possuem certos eixos temáticos. A confirmação do concílio se dava por meio da assinatura dos principais presentes, onde, usualmente, expunham também sua titulação e posição no clero ou poder secular. Mário Jorge da Motta Bastos defendeu, em sua tese doutoral, o aspecto abrangente dos concílios: “Dentre as fontes primárias elaboradas no âmbito da sociedade hispano-visigoda, e preservadas, nenhuma manifesta com mais vigor a articulação daqueles ‘vários níveis’ do que as atas conciliares.”30 De fato, nestas fontes percebemos um desdobramento de diversas das tensões sociais existentes neste período.31 Como já foi lembrado anteriormente, com a conversão de Recaredo o cristianismo niceno tornou-se a ideologia hegemônica da sociedade visigótica. Com isto, os concílios passam a desempenhar um papel central na vida política do reino. Estes sínodos são uma das formas de expressão de um sistema simbólico que possui fortes influências políticas neste período. Ou seja, as disposições canônicas são caracteristicamente normativas, não apenas no sentido religioso, mas também no contexto social do período. Desta forma, cabe atentarmos para algo que é levado a cabo por alguns reis: a confirmação do âmbito legislativo das decisões conciliares. 32 Vale ressaltar que é provável que senhores laicos tivessem alguma participação, direta ou não, nestes concílios. Em aguns deles inclusive, estes nobres possuíam o direito de consultamos também as disposições canônicas presentes em TEJADA Y RAMIRO, Juan. Colección de cánones y de todos los Concilios de la Iglesia de España y de América. 1863. 28 ORLANDIS, José. In:__, RAMOS-LISSÓN, Domingos. Historia de los Concilios de la España romana y visigoda. Pamplona: Universidad de Navarra, 1986, p. 261. 29 Alguns autores chamam atenção para o que se convencionou chamar de “renascimento isidoriano”, em referência à Isidoro de Sevilha, importante bispo da região da Bética que presidiu o IV Concílio de Toledo. No entanto, objetivando não dar demasiada importância à atuação de figuras individuais no processo de institucionalização do episcopado, buscamos não chamar demasiada atenção à isto. 30 BASTOS, Mário Jorge da Motta. Religião e hegemonia aristocrática na Península Ibérica (séculos IV – VIII). Tese apresentada à Área de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor. USP, 2002. p. 84. 31 No entanto, é óbvio que não devemos deixar de lado ou muito menos diminuir a importância de hagiografias, epigrafias, regras monásticas, achados arqueológicos, iconografias etc. Como o próprio autor chama atenção: BASTOS, Mário Jorge da Motta, Ibidem. 32 MARTÍNEZ DÍEZ, Gonzalo. Los Concilios de Toledo. Anales Toledanos, Toledo, n. 3, p.119-138, 1971.

21 assinar a ata, confirmando sua presença e apoio às resoluções apresentadas. 33 Isto reforça a noção de que estas assembléias não tinham caráter meramente teológico. Devemos considerar, então, que há uma influência da instituição eclesiástica na legislação civil.34 Alguns pontos que corroboram com este argumento são: a influência religiosa na política do período; a participação do episcopado nas redes de interrelação senhorial; o reconhecimento monárquico do caráter legislativo do direito canônico – o que poderia significar a inclusão de decisões conciliares na compilação de leges.35 Estes três elementos corroboram com nossos pressupostos e evidenciam mais ainda a participação dos bispos nas camadas nobiliárquicas, garantindo a eles uma posição similar a de juízes.36 Além disto, ao observarmos estes textos, percebemos uma clara distinção entre dois tipos principais de concílios: os toledanos, que são idealmente direcionados a toda extensão do reino visigodo, e os regionais, que possuem seu raio de ação circunscrito a uma localidade.37 Notamos, então, que temos em primeiro lugar sínodos que são presididos e convocados pelo monarca, orientados para a resolução de questões que abrangem todo o reino e pretendem reforçar a unidade territorial do reino visigodo em torno do rei. Em segundo, conclaves que debatem, usualmente, pendências surgidas na dinâmica social regional, e não contam com a presença do rei ou do episcopado de outras regiões, mas que, no entanto, podem se referenciar a decisões tomadas nos concílios gerais.38 Tendo em vista nossos objetivos, focaremos nossa análise na comparação entre estes dois tipos de atas, pois buscamos compreender a atuação do discurso eclesiástico neste âmbito dúplice que está presente: institucional, no espectro toledano, e senhorial, nas questões locais. Desta forma pretendemos, destacando semelhanças e diferenças 33

O Concílio de Toledo VIII é talvez o exemplo mais claro disto. CONCILIO DE TOLEDO VIII. In: VIVES, José (ed.) et alli. Concilios visigóticos e hispano-romanos. Barcelona: Instituto Enrique Flórez, 1963. p. 289. 34 VELÁZQUEZ SORIANO, Isabel. Impronta religiosa en el desarollo jurídico de la Hispania visigoda. Illu. Revista de ciencia de las religiones, Madrid, n. 2, p. 97-121, 1999. 35 Muitas das leges constituídas no reino visigodo serão expostas posteriormente na compilação da Lex Visigothorum, ocorrida no reinado de Recesvinto, a qual possui leis datadas desde o Brevário de Alarico. 36 FUENTES HINOJO, Pablo. Sociedad urbana, cristianización y cambios topográficos em la Hispania tardorromana y visigoda (siglos IV-VI). Studia Historica: historia antigua. Salamanca, v. 24, p. 257-289, 2006. p. 261 37 Edward Arthur Thompson aponta que “teoricamente a regra geral era que se celebrasse um concílio geral quando houvesse que discutir um artigo de fé ou quando se houvesse levantado uma questão que afetava a toda Igreja Espanhola. Para os demais, deveria celebrar-se um sínodo provincial em cada província uma vez ao ano.” THOMPSON, E. A. Los Godos en España. Madrid: Alianza. 2007. p. 316. 38 A partir deste ponto referenciada como Conc. Tol.

22 presentes nas disposições canônicas, reconhecer as bases que reafirmam o poder dos bispos em suas dioceses, enquanto definem limites à sua autoridade, reforçando aspectos normativos da administração dos bens das igrejas. Denotamos, portanto, um espaço social que é permeado por uma contínua tensão, amplamente fundamentada na própria forma como o domínio se estabelece no reino visigodo, especialmente no setores religiosos. Posto isto, podemos destacar mais atentamente algumas características das atas que almejamos analisar. O Conc. Tol. III foi o momento de estabelecimento da conversão monárquica ao cristianismo niceno, solidificando, como apontamos inicialmente, a aliança do rei com um setor, extremamente influente da camada nobiliárquica visigótica. Isto significou a elevação do episcopado a um papel de preeminência dentro da lógica de produção simbólica do poder político, ressaltando sua posição como principal estruturador da normatividade.39 Neste sentido, o documento produzido em tal circunstância volta-se tanto para a esfera clerical quanto para algumas questões laicas.40 Destarte, notamos que as disposições canônicas se estabelecem em um sentido de imposição da autoridade bispal na lógica local das relações de dominação. O bispo é retificado como administrador de todo o patrimônio diocesano, alargado em vários casos devido à transmissão das propriedades arianas à sua responsabilidade,41 bem como é corroborada sua ingerência sobre algumas questões laicas. Orlandis destaca que após a realização do Conc. Tol. III, é perceptível um esforço por parte dos prelados de realização de diversos concílios provinciais, sendo a época final do século VI e inical do VII um dos períodos de que temos a permanência de mais atas de sínodos regionais.42 O autor aponta que o processo de conversão da 39

NAVARRO CORDERO, Catherine. El Giro Recarediano y sus implicaciones políticas: el catolicismo corno signo de identidad del Reino Visigodo de Toledo. In: Ilu. Revista de Ciencia de las Religiones, n. 5, Madrid, p. 97-118, 2000. 40 Sob este aspecto, Leila Rodrigues da Silva nos chama atenção para a importância da estruturação da autoridade episcopal em dois níveis: o primeiro, “interno”, refere-se ao esforço de adotar um caráter normatizador e regulador das ações do clero nas mais diversas instâncias, reforçando o caráter hierárquico e o poder das altas camadas eclesiásticas. O segundo nível, “externo”, alude ao uso de textos das “Sagradas Escrituras” e à menção da presença do monarca nos concílios de Braga. Apesar da autora focar suas análises sobre o reino suevo, devido às semelhanças entre os processos de estruturação da autoridade eclesiástica de ambos os reinos, consideraremos suas conclusões não somente válidas, como de extrema utilidade para a compreensão da institucionalização desta autoridade: SILVA, Leila Rodrigues da. Limites da atuação e prerrogativas episcopais nas atas conciliares bracarenses. In: BASTOS, Mário Jorge da Motta; FORTES, Carolina Coelho, e; SILVA, Leila Rodrigues da. Atas do I Encontro Regional da ABREM. Rio de Janeiro: HP Comunicação, 2007. p. 208-215. 41 CONCILIO DE TOLEDO III. In: VIVES, José (ed.) et alli. Concilios visigóticos e hispano-romanos. Barcelona: Instituto Enrique Flórez, 1963. p. 289. 42 ORLANDIS, José. Op. Cit., p. 227.

23 monarquia, aliado a um objetivo de institucionalização da hierarquia eclesiástica, teria sido o propulsor destas assembléias, ressaltando a ingerência de Toledo sobre outras sedes metropolitanas. Devido ao caráter diminuto e mais sintético dos concílios provinciais, suas atas muitas vezes não apresentam questões voltadas ao patrimônio, por isto focamos nosso olhar em quatro dos dez concílios realizados entre 589 e 633, são elas: Narbona (589), Sevilha I (590), Toledo (597) e Sevilha II (619). As atas do primeiro destes, ainda segundo Orlandis, tem como questão central a disciplina clerical, tratando da formação cultural e de aspectos litúrgicos entre outros assuntos. O segundo dos documentos analisados possui um elemento que merece atenção, a atuação de Leandro de Sevilha, um dos principais nomes do Conc. Tol. III. O eixo principal deste sínodo é a resolução de um problema de caráter bastante pontual, a manumissão de um grande número de servos feitos por um bispo falecido de nome Gaudêncio, o que afetava diretamente as propriedades da diocese de Écija. O concílio levado a cabo em Toledo no ano de 597, tem um objeto que o diferencia e que devemos demarcar. Apesar de voltado para a região cartaginense, reune epíscopos de outras províncias. Sevilha II também apresenta uma especificidade que o individualiza em comparação aos outros, ele é o único dentre os quatro que ocorre no século VII e já apresenta um caráter mais associado aos aspectos institucionalizantes do Conc. Tol. IV, contando com a presença, inclusive, de Isidoro de Sevilha. Neste sentido, a despeito de estar dedicado a diversas temáticas particulares da Hispalia, como a deliberação acerca de problemas de delimitação territorial, muitas de suas decisões apresentam repercussões já na reunião de 633, demonstrando uma interrelação entre concílios gerais e provinciais. O Conc. Tol. IV é marcado como um dos principais documentos do reino visigodo, devido a seu caráter amplo de institucionalização e normatização, não apenas do clero, mas de diversos aspectos sociais e políticos. Transcorrido em um momento de reafirmação da estrutura monárquica ele apresenta mais claramente a intervenção do episcopado nas questões de poder laico. Outrossim, é um dos sínodos que mais apresenta os moldes em que os setores religiosos projetam seus esforços de controle social. Contendo nada menos que setenta e cinco cânones, demonstra o esforço de posicionamento legislativo e jurídico do qual o clero busca estruturar as relações e se colocar como principal ator no jogo político. Variando entre desígnios dirigidos à

24 disciplina conciliar, ao poder do rei, ao procedimento de ascensão de um monarca e, evidentemente, ao patrimônio eclesiástico e sua relação com os bispos. A análise dos documentos propostos é em grande parte baseada na identificação do contexto e da intenção de sua produção. Aproximamo-nos, então, de uma tendência à percepção do texto como algo construído socialmente. Em outras palavras, a elaboração textual é permeada pelas relações e interações de uma sociedade historicamente localizada. O teor da obra escrita é portanto objeto e objetivo do poder simbólico do período, uma vez que ela é determinada ideologicamente, mas também tem a possibilidade de atuar ou modificar a estrutura cultural de seu tempo.43 Ou seja, visamos reconhecer a existência de um discurso que tem seu lugar de produção e divulgação nas camadas senhoriais do reino visigodo, e que reafirma sua posição nobiliárquica. Não é primordial nesta dissertação uma dissecção semiótica ou heurística das atas conciliares. Neste sentido, temos dois pressupostos teórico-metodológicos norteadores deste estudo: em primeiro lugar, a elaboração discursiva legislativa tem como sistema de significação o mundo natural,44 isto quer dizer que ela parte de uma interepretação da realidade significando-a segundo valores culturais. O segundo pressuposto é relativo à investigação dos documentos sob uma visão de intentatio operis,45 especialmente em sua natureza extra-textual, relacionando a obra com seu contexto e com outros textos do período. No entanto, não podemos deixar de reconhecer, seguindo as teorias de José Luiz Fiorin, que a intentatio operis, a intentatio auctoris e a intentatio lectoris estão amplamente associadas entre si, ligando o processo de escrita, dispersão e reprodução textual. Tendo em vista os objetivos de nossa pesquisa, o método comparativo de Jürgen Kocka é um dos pilares fundamentais deste trabalho, pois nos permitirá estabelecer as similaridades e diferenças entre o discurso eclesiástico nos níveis locais e pluriprovinciais.46 Direcionamos nosso foco às diretrizes associadas ao trato com a propriedade e as relações de interdependência política. Neste sentido elencamos alguns eixos de comparação: a afirmação da inalienabilidade patrimonial das igrejas, a relação com os fundadores laicos de templos, em um sentido que nos aproxima da questão das 43

FIORIN, José Luiz. Tendências da análise do discurso. Caderno de Estudos Liguísticos, Campinas, n. 19, p. 173-179, 1990. 44 FIORIN, José Luiz. Linguística e pedagogia da leitura. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 7, n. 14, p. 107117, 2004. p. 110. 45 Idem. Ibidem, p. 112 46 KOCKA, Jürgen. Comparison and beyond. History and Theory, 42. p. 39-44, fev/2003. [tradução de Maria Elisa Bustamante]

25 igrejas próprias, e a normatização relativa aos dependetes político associados à familia ecclesiae.47 Destarte, aproximamo-nos aos propósitos de caráter descritivo e análitico nomeados pelo autor. Isto porque pretendemos, por um lado, compreender melhor a relação estabelecida entre os bispos e o patrimônio eclesiástico, reconhecendo seu caráter entremado pelas questões institucionais e senhoriais. Reconhecendo as contribuições da Análise do Discurso para o processo metodológico voltado para a pesquisa com documentos históricos, percebemos que é fundamental considerarmos a construção social como influente e influenciada pelos discursos normativos. Neste sentido, optamos por realizar em nosso trabalho uma análise de tipo retórica, nos moldes propostos por Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva.48 Pretendemos desta forma estabelecer a construção argumentativa das atas conciliares associadas às questões presentes na estruturação legislativa e jurídica do reino visigodo, destacando a interrelação entre os dois âmbitos em que isto se estabelece. Desta forma, as questões teóricas apresentadas aqui são de caráter fundamental para a leitura que realizamos da elaboração de normas voltadas para as questões patrimoniais da instituição eclesiástica.

Problematização e Hipótese Cabe neste momento explicitarmos mais detalhadamente nossa problematização, hipótese e objetivos gerais. A construção do poder episcopal se fundamenta, de forma correlata à nobreza laica, em sua autoridade sobre um extenso patrimônio fundiário. A diferença entre membros do clero e outros senhores reside no direito de usufruto dos bens das igrejas garantidos aos primeiros. Teoricamente, o bispo não detém direito de posse sobre estes bens, pois eles pertencem à instituição como um todo e não a um indivíduo apenas. Ou seja, os epíscopos atuam como administradores e não

47

O termo familia ecclesiae é recorrente nas documentações do período e se referem a todos aqueles indivíduos que têm laços diretos com a instituição eclesiástica, sejam eles pertencentes da hierarquia clerical ou servi, mancipi, liberti. Pretendemos, utilizando esta expressão no latim, ressaltar as relações entre estes homens de estamentos sociais variados, mas que, no entanto, possuem em comum a participação nesta instituição. 48 SILVA, Andréia C. L. F. Reflexões metodológicas, sobre a análise do discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gênero. In: Cronos: Revista de História, Pedro Leopoldo, n. 6. 2002. p.194-223.

26 proprietários. No entanto, no início da Idade Média, as noções de autoridade e posse não são facilmente divididas, pois o poder é caracteristicamente senhorial, afirmado pelo domínio de alguns domini sobre seus dependentes políticos de forma personalista, agindo como patroni para com os homens que trabalham a terra. Na medida em que reconhecemos nos prelados estes traços dominiais, cabe indagarmos: a atuação dos bispos como administradores não é em vários aspectos análoga a dos senhores fundiários laicos? Neste sentido, a principal hipótese que norteia nosso trabalho é que a propriedade clerical é tratada sob um aspecto senhorial por parte dos prelados. Como afirmamos acima, grande parte da autoridade episcopal é garantida pelos bens eclesiásticos que estão sob seu governo. Ou seja, a participação destes homens na instituição impulsiona seu poder, não apenas por sua posição de liderança religiosa, mas também por ser um dominus-patronus. Por outro lado, a inserção destes religiosos no cargo diocesano implica o reconhecimento da hierarquia e, particularmente, da normatividade conciliar como um instância superior. Neste sentido, o interesse coletivo deste grupo era restringir a subtração de patrimônios das igrejas, tanto por parte de laicos quanto clérigos. Isto porque a alienação de posses poderia significar uma gradual perda do domínio sobre localidades específicas, bem como um enfraquecimento da coesão institucional, que, como realçamos anteriormente,49 era um dos elementos que fortalecia a autoridade bispal individual. Deparamo-nos, então com um ponto de tensão: o poder dos epíscopos é reforçado por sua condição de membros deste setor social, mas este mesmo setor delimita os direitos dos bispos sobre as propriedades em sua diocese. Ao contrário de reconhecermos aí um paradoxo, ressaltamos que a construção personalista das instituições, baseadas nas redes de interdependências da camada nobiliárquica, é perpassada por esta instabilidade. Objetivando consolidar nossos argumentos, visamos reconhecer a construção da dominação sobre terras e homens como um elemento dúplice de afirmação do poder senhorial, denotando como se dá a participação da instituição eclesiástica neste nível. Assim sendo, o debate bibliográfico terá como seu aspecto central estes dois elementos:

49

Manuel Sotomayor demonstra este aspecto da coesão institucional eclesiástica, particularmente no que ele chama da “relação igreja urbana-igreja rural”, como sendo enviesado por questões patrimoniais, centrada nas lideranças episcopais e sua administração. SOTOMAYOR, Manuel. Las relaciones iglesia urbana-iglesia rural en los concilios hispano-romanos y visigodos. Sacralidad y Arqueología: homenaje al profesor Thilo Ulbert al cumplir, v. 65, p. 525-539, 2004. p. 527.

27 a construção do conceito de Senhorio – aspecto de dominação –, e o fortalecimento do Patrimônio Eclesiástico – que garante o poder dominial dos bispos. Por meio da comparação, visamos demonstrar também dois elementos fundamentais da estrutura conciliar do reino visigodo: a busca pela coesão institucional, que limita os poderes individuais dos prelados; e o reconhecimento e reafirmação dos epíscopos como domini-patroni em suas dioceses. Portanto, as questões, relacionadas à organização da hierarquia administrativa eclesiástica, são vistas em um sentido de composição e manutenção deste setor entre as camadas nobiliárquicas, permeadas pela constante tensão presente nas discussões acerca de posse, propriedade ou autoridade territorial no período. Desta forma, tencionando fundamentar nossa hipótese e dar direcionamento à pesquisa, podemos destacar que nossos objetivos são: destacar as referências ao patrimônio das igrejas presentes no corpus documental; identificar elementos que demonstram o aspecto senhorial do poder dos bispos; analisar o papel dos prelados a respeito da administração destes bens, enquanto indivíduos inseridos na construção normativa institucional; e, comparar os Concílios Toledanos e os provinciais estabelecendo pontos de aproximação e distanciamento, que indicam particularidades da relação intrainstitucional entre níveis diferentes da hierarquia clerical. Sendo assim, devemos retomar o ponto central que pretendemos discutir, a atuação dos epíscopos no tocante às propriedades eclesiásticas sob sua responsabilidade, permeada pelo caráter dominial e pela complexa noção de posse existente no período.

CAPÍTULO II – DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA: O poder episcopal, o senhorio e o patrimônio eclesiático

Se a História é a ciência dos homens no tempo, como propunha Marc Bloch,1 a historiografia é, essencialmente, o seu produto. Compreendemos, portanto, que ela desempenha um papel central no processo de pesquisa, assumindo uma posição de importância equivalente ao da análise documental e da proposição teórica. Tendo isto como uma questão central ao trabalho do historiador, dedicaremo-nos, neste capítulo, a uma revisão bibliográfica. Cabe ressaltar que a delimitação dos autores expostos é um ato, até certo ponto, de dissecção arbitrária de suas diversas obras e, por conseguinte, um esforço de caráter amplamente individual, pessoal e absolutamente relacionado aos problemas que nos propomos com a realização de nossa pesquisa. Portanto, esta etapa de nossa dissertação procura definir, a partir de uma síntese de aspectos teóricos defendidos por historiadores, um ponto conceitual que será também fio condutor de nossa produção. Visando a coesão com o desenvolvimento de nosso trabalho, focamos a análise da historiografia sob dois elementos: o senhorio e o patrimônio eclesiástico. Neste sentido, pretendemos chamar atenção para o debate acerca da dependência política e da propriedade como fontes para a afirmação do poder e da dominação de um setor social sobre outro. Este ponto é um alicerce de nosso trabalho porque é parte constitutiva de nossa visão acerca da estruturação da autoridade episcopal e nobiliárquica. Ou seja, partimos de uma observação que reconhece nas alianças pessoais e nos laços dos homens com a terra a construção da hierarquia. Devemos ressaltar também que, devido à atualidade das discussões aqui levantadas, não seguimos um viés cronológico referente à apresentação das principais correntes e teorias.

1

BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.55.

29 Senhorio Antes de nos debruçarmos sobre as teses acerca do tema, devemos ressaltar que não nos focaremos na questão da existência, ou não, do feudalismo ibérico, devido a enorme complexidade que isto acarretaria frente ao objetivo de nosso trabalho.2 Subjaz no debate acerca do modo de produção estabelecido na região peninsular uma série de aspectos políticos e teóricos que impõe uma enorme complexidade ao tema.

No

entanto, diversos autores reconhecem uma estreita relação que há entre o conceito de Senhorio e o sistema feudal o que nos leva em diversos momentos a nos depararemos com a aproximação conceitual entre ambos. Dominique Barthélemy, em seu verbete acerca do senhorio, afirma que “é normal que o historiador elabore o conceito, apresentando-o em seguida para a discussão”.3 Seguindo esta proposta, apresentaremos aqui a discussão bibliográfica objetivando a composição do conceito que melhor atende nossos interesses científicos. No trato do termo, concordamos em grande parte com Julio Valdeón Baruque4 no que tange à existência de uma divisão fundamental entre duas correntes, comumente

2

Não é novidade, para medievalistas, a longa discussão que acarreta os vários aspectos desta questão, desde críticas de caráter terminológico, afirmando um distanciamento do momento histórico e construção do conceito feito a posteriori como em BROWN, Elizabeth A. R. The tyranny of a construct: feudalism and historians of Medieval Europe. The American Historical Review. Oxford, v. 79, n. 4, p. 1063-1088, 1974, às especificidades juridica-institucionais que caracterizam o feudalismo, inexistentes, segundo alguns autores, na região Ibérica GARCÍA DE VALDEAVELLANO, Luis. El feudalismo hispánico. Barcelona: Biblioteca de Bolsillo, 2000. Neste sentido alguns autores defendem o uso do termo proto(pre)-feudalismo como forma de reconhecer um fenômeno visigodo que possui diversas semelhanças com teorias atuais sobre o que é o feudalismo, tendo usualmente como realidade modelar deste sistema a França Carolíngia GARCÍA MORENO, Luis A. El estado protofeudal visigodo: precedente y modelo para la Europa carolingia. In: FONTAINE, Jaques; PELLISTRANDI, Christine (ed.). L'Europe héritière de l'Espagne wisigothique. Madrid: Casa de Velazquez, 1992. p. 17–43. Por outro lado, há um número crescente de autores produzindo atualmente trabalhos que defendem a existência de fato de um feudalismo visigodo, alguns se utilizam justamente da crítica relacionada à existência de um modelo estático e engessado como forma de apresentar uma diversidade presente neste modo de produção. ESTEPA, Carlos. Las transformaciones sociales en la periferia del mundo romano: ¿una nueva formación del feudalismo? In: ______ [coord.] Transiciones en la antiguedad y feudalismo. Madrid : Fundo de Investigaciones Marxistas, 1998, p. 53-68. Além disto, cabe citarmos os trabalhos arqueológicos ou interdisciplinares que pretendem engrossar as fileiras daqueles que defendem a existência de um feudalismo, baseado nos aspectos de dependência pessoal, posse e autoridade sobre terras, como MARIA LLURÓ, Josep . Nuevas tendencias en arqueología y la historia del feudalismo. In: BARCELÓ, Miguel [coord.]. Arqueología medieval en las afueras del “medievalismo”. Barcelona: Crítica, 1988, p. 53-72; RODRÍGUEZ RESINO, Álvaro. Comunidades rurales, poderes locales y señorío episcopal en la tierra de Santiago de los siglos V a XI: una visión desde el registro arqueológico. Munibe Antropologia-Arkeologia, San Sebastián, n. 59, p. 219 – 245, 2008. 3 BARTHÉLEMY, Dominique. Senhorio. In LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. [coords.] Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru:EDUSC, 2002. 2v., V. 2, p. 465. 4 VALDEÓN BARUQUE, Julio. El feudalismo hispânico em la reciente historiografia. In: ESTEPA, Carlos et alli [coord.] Transiciones en la antiguedad y feudalismo. Madrid : Fundo de Investigaciones Marxistas, 1998.

30 denominadas de “jurídico-institucionalista” e “materialista histórica” ou “marxista”. A divergência entre elas está demarcada, em grande parte das vezes, por seus arcabouços teóricos mais do que por suas análises documentais. Cabe afirmarmos, então, que apesar de reconhecermos o valor que esta cisão, arbitrária em muitos casos, representa para nos ajudar a definir as posições dos diferentes autores, pretendemos expor também as contradições internas de historiadores que se encontram em uma mesma linha de pensamento. Além disto, em alguns pontos encontramos dificuldades para determinar a predisposição dos autores entre os dois eixos. Assim sendo, trilharemos por algumas questões que representam estas discrepâncias e argumentaremos sobre as opções que adotamos para nosso trabalho, evitando a recusa de aspectos que poderiam significar um acréscimo a nossa pesquisa levando em conta apenas a filiação teórico-metodológica dos historiadores. No entanto, devemos admitir nossa tendência em aproximar-nos das visões ditas marxistas, devido a propensão que estas possuem de trabalhar as leis segundo um viés crítico, reconhecendo-as como um processo de construção social e não de imposição ética. Em outras palavras, a percepção do estabelecimento legislativo, entre os historiadores que utilizam argumentos jurisdicistas, segue a lógica positivista do Direito, na qual as leis se impõem sobre a sociedade. No tocante à corrente jurídico-institucionalista, tratamos dos autores José MaríaMínguez, Luís Antonio García Moreno, além de citar trabalhos de Luis García de Valdevellano, Santiago Castellanos e Pablo de la Cruz Díaz Martínez. A opção por estes nomes está relacionada a concordânica expressa por eles às teorias de Claudio Sánchez Albornoz, aproximando-se do tema por meio de uma via predominantemente juridicista. Por outro lado, ao nos focarmos no materialismo histórico destacamos Perry Anderson, Chris Wickham, Abilio Barbero de Aguillera e Mário Jorge da Motta Bastos, além de fazermos referência a Alain Guerreau. Elencamos estes historiadores tendo em vista, em primeiro lugar, que são ainda poucos os trabalhos com viés marxistas produzidos e divulgados acerca do Senhorio no reino visigodo. Além disto, as obras destes autores tem como um aspecto em comum a noção de um processo geral que abarca a maior parte da Europa Ocidental. Neste sentido, apesar das especificidades regionais podemos ressaltar diversas confluências entre os diferentes territórios europeus, influenciadas pelas mudanças ocorridas no curso do estabelecimento dos reinos romano-bárbaros. Ao trabalharmos com a noção de senhorio, o primeiro problema com o qual nos detemos é sua delimitação. Na historiografia aliada à corrente jurídica-institucionalista,

31 influenciada imensamente por Jean-Louis Ganshof e Claudio Sánchez Albornoz – este último mais voltado para o caso específico da Península Ibérica – defende-se uma separação completa entre os termos do que se convencionou chamar de regime feudal e regime senhorial.5 O primeiro limita-se às relações horizontais, chamadas feudovassálicas, inerentes ao estrato superior e baseados na troca de terras por serviços militares e auxílio político; o segundo seria essencialmente a relação verticalizada entre senhores e camponeses, baseado na exploração do trabalho e nos direitos da nobreza sobre o excedente produtivo do trabalho agrário. Não podemos imaginar que a sujeição de um amplo setor social, majoritário em termos demográficos absolutos, se dá de forma natural e simples, no entanto, também não podemos admitir que a única via criada para a manutenção desta realidade é a coerção direta – apesar de esta ser enormemente significativa. Reafirmamos, portanto, nossa opção teórica por Pierre Bourdieu ao denotarmos que a afirmação de um poder simbólico, amplamente nobiliárquico, é uma das formas principais para construção desta relação, marcada pela desigualdade, constituindo laços de dependência impostos aos homens para que se mantenham em suas condições. Neste sentido, encontramos ainda um campo aberto de debates acerca das estruturas sociais que garantem a existência desta dominação. José María Mínguez,6 partindo de uma extensa análise da LV, afirma que os laços fundamentais que garantem a manutenção de camponeses, além de outros trabalhadores, na condição servil é sua permanência sob o estatuto de escravos (servus). Para reforçar seu argumento, o autor demonstra na LV a existência de uma grande variedade de acepções jurídicas e punições condizentes com a posição de cada homem. Ele aponta, também, a esmagadora maioria de usos do termo servus ao invés de ingenui ou ingenui in obsequio vel patrocinio constituti e a associação dos servi com outras propriedades viventes dos senhores – e.g. animais de tração – demonstrando o status inferior deles e sua condição de pertencimento a outrem, impossibilitando sua liberdade. Neste sentido, a crescente rigorosidade das leis, ao longo dos séculos VII e VIII, produzidas no âmbito nobiliárquico com relação à fuga de mancipiis,7 comprovaria a inexistência de um método produtivo que pudesse substituir o escravismo. Desta forma, María Mínguez pretende demonstrar que o reino visigodo não representou uma ruptura 5

Idem. Ibidem, p. 137. MARÍA MÍNGUEZ, José. En torno a la génesis de las sociedades peninsulares altomedievales. Reflexiones y nuevas propostas. Studia Historica: historia medieval, Salamanca, n. 22, p. 169-188, 2004. 7 O autor, nos textos que tivemos acesso, não apresenta argumentos satisfatórios para a diferenciação terminológica entre servi e mancipiis neste caso. 6

32 frente à presença do Império Romano na Península Ibérica, outrossim foi a marca da lenta desagregação do romanismo no período tardoantigo, mantendo o que seria o modo de produção referente ao período imperial, mas aprofundando-se em uma crise sistemática. Ou seja, o modelo de exploração visigótico seria quase completamente herdado dos grandes domínios do Baixo Império, sendo o elemento diferenciador de ambos, os pontos específicos nos quais se encontram de uma curva decrescente que representa o (sub)desenvolvimento de um modelo econômico ultrapassado. Portanto, para este historiador a transformação das formas de exploração só se apresenta a partir do século VIII, sendo a chegada dos muçulmanos um fator fundamental para tal.8 No entanto, ele também ressalta em sua análise que a derrota sofrida pelos visigodos só ocorreu devido a dois fatores: a extensa crise econômica que assoberbava o reino, e; a profunda senhorialização dos estratos superiores da sociedade, que causava a descentralização do poder monárquico. Entrevemos, então, a noção de regime senhorial sob um aspecto de autoridade autônoma sobre as terras e os homens – na condição de escravos – que nela estão englobados, dificultando a atuação do poder real ou a organização militar destes senhores em função de um inimigo externo. É interessante notarmos que María Mínguez coloca a inexistência em absoluto de um feudalismo, diferente do reino franco sob comando do major domus Carlos Martel, como um problema político que levou por fim ao desmantelamento das estruturas visigóticas: O resultado de uma agressão que em seu primeiro assalto provoca a aniquilação dos sistemas defensivos da sociedade visigoda é difícil de explicar se aceita-se a implantação de um sistema, como seria o feudal segundo as proposições de Barbero e Vigil, que ainda que estivesse em vias de estruturação completa, deveria contar já com recursos suficientemente eficazes para opor resistência a uma invasão com as características da muçulmana. Parece-me revelador o contraponto que oferece o hêsito de Carlos Martel em Poitiers frente aos mesmos invasores somente vinte anos depois de Guadeleite.9

8

Seria, portanto, a partir desta ruptura que teria início o processo de desenvolvimento do feudalism hispanico. MARÍA MÍNGUEZ, José. Pacto privado feudal y estructura pública em la organización del poder político em la alta Edad Media. Res Publica, Madrid, n. 17, p. 59-80, 2007. 9 “El resultado de una agresión que en su primer asalto provoca la aniquilación de los sistemas defensivos de la sociedad visigoda es difícil de explicar si se acepta la implantación de un sistema, como sería el sistema feudal según los planteamientos de Barbero y Vigil, que aunque estuviese en vías de estructuración completa, debería contar ya con resortes suficientemente eficaces para oponer resistencia a una invasión de las características de la musulmana. Me parece revelador el contrapunto que ofrece el éxito de Carlos Martel en Poitiers frente a los mismos invasores tan sólo veinte años después de Guadalete.” MARÍA MÍNGUEZ, José. En torno a la génesis... Op. Cit. p. 173. Tradução nossa.

33 Encontramos nos trabalhos de Luís António García Moreno, diversos aspectos de consonância com María Mínguez. A estruturação das forças produtivas era em sua maioria herdeira dos moldes baixoimperiais, baseados em villae romanas, onde camponeses trabalhavam a terra de seus senhores, os quais detinham direitos de posse sobre ela, que fornecia duplamente a subsistência – dos camponeses – e o excedente produtivo – do senhor. Além disto, aponta-se também a permanência de uma maioria de escravos que também estavam sujeitos ao domínio destes dominus.10 No entanto, há uma diferença fundamental entre os autores no que toca a própria relação de escravidão e servidão no período, pois García Moreno defende uma tendência à uniformização de ambas sob a condição de dependentes dos senhores.11 Percebemos, então, que os laços de dependência, que reafirmam a dominação sobre os membros das classes inferiores, estão baseados na propriedade fundiária dos grandes senhores. Ou seja, a condição servil desses homens está diretamente associada ao uso que ele faz da terra de outrem buscando a subsistência, devendo em função disto retribuir ao proprietário com o trabalho nas reservas senhoriais e, em muitos casos, a concessão de seu excedente produtivo. Trilhando este raciocínio, o autor aponta, acerca das numerosas referências aos servi na LV, uma transformação na condição dos escravos e na acepção jurídica deste termo. Estes escravos tinham uma nova dupla dependência, pois à tradicional do dominus se unia a da terra que trabalhavam, e com a que necessariamente se transmitia sua propriedade. Este último ponto assemelhava aos escravos do protofeudalismo visigodo aos colonos do Baixo Império. 12

Neste sentido, o gradual desaparecimento do termo colonus representa o processo de degradação de sua condição a ponto de que a diferenciação entre este e o servus é, em um sentido prático, nula.13 Além disto, o autor chama atenção para um elemento que dificulta ainda mais a identificação de especificidades jurídicas; muitos dos trabalhadores livres, pressionados pelo crescimento dos grandes patrimônios e pela

10

GARCÍA MORENO, Luis A. El estado protofeudal... Op. Cit. Idem. Ibidem, p. 20. 12 “Dichos esclavos tenían una novedosa doble dependencia, pues a la tradicional del dominus se unia a la tierra que trabajaban, y con la que necessariamente se transmitia su propiedad. Este último hecho asemejaba a lós esclavos del protofeudalismo visigodo a los colonos del Bajo Imperio.” Idem. Ibidem, p. 21. Tradução nossa. 13 GARCÍA MORENO, Luis A. Composición y estructura.... Op. Cit. 11

34 força política – tributária e quiçá ameaças militares – dos domini, abrem mão de sua liberdade e entregam-se como escravos ou libertos sub patrocinium relatione.14 Cabe ressaltarmos neste ponto que as teorias de García Moreno, em grande parte alinhadas com as idéias de Sánchez Albornoz, possuem ainda uma enorme influência em toda produção espanhola. Por ora, cabe citarmos, a título de exemplo trabalhos de Santiago Castellanos15 e Pablo de la Crúz Diaz16 que não apenas fazem referência ao historiador que tratamos, mas reforçam os argumentos dele. Eles o fazem apontando as transformações terminológicas que comprovam a ambiguidade jurídica do termo servus no século VII e analisando a formula visigothica utilizada no período para a regular a transmissão de um livre para o status de escravo por vontade própria, respectivamente. Destarte, é de se notar que o autor apresenta um aspecto senhorial da sociedade visigoda que difere de María Mínguez, pois reconhece um desenvolvimento processual dos elementos legais herdados do período romano. As titularidades de caráter oficial não são estáticas, elas acompanham e se transformam juntamente com a realidade que pretendem normatizar. No entanto, devemos notar que García Moreno insiste no uso do termo escravo em diversos de seus trabalhos, buscando manter uma suposta fidelidade à época que estuda. Além disto, o modelo visigodo proposto por ele possui uma estreita relação com o período carolíngio tomando este segundo como forma modelar do feudalismo. Em consonância com esta visão encontra-se, principalmente, Luis García de Valdeavellano,17 que defende que o reino visigodo não se feudalizou totalmente, pois as relações no âmbito nobiliárquico não têm as mesmas marcas do Império Carolíngio. Isto porque, segundo os autores, a retribuição aos laços de fidelidade e o auxílio militar e político não são ampla e diretamente expostos nos documentos sob os termos de beneficium e feudum. Porém, ambos reconhecem extensivamente a existência de uma relação dos principais senhores entre si e para com o rei sob o título de fideles, nos quais podem ser destacadas a concessão de terras e de direitos sobre estas, profundamente semelhante às instituições francas. Nomeiam, portanto, o sistema hegemônico visigótico

14

Idem. Ibidem. CASTELLANOS, Santiago. Terminología textual y relaciones de dependencia en la sociedad hispanovisigoda. En torno a la ausencia de coloni en las Leges Visigothorum. Geríon, Madrid, n. 16, p. 451-460, 1998. 16 DÍAZ, Pablo de la Cruz. Sumisión voluntaria: estatus degradado e indiferencia de estatus en la Hispania visigoda (FV 32). Studia Historica: historia antigua, Salamanca, n. 27, p. 507-524, 2007. 17 GARCÍA DE VALDEAVELLANO, Luis. El feudalismo hispánico. Barcelona: Biblioteca de Bolsillo, 2000. 15

35 com proto ou pré-feudais,18 aproximam-se por isto de uma corrente jurídicoinstitucionalista. Tradicionalmente, a divisão entre historiadores alinhados com esta corrente ou com o materialismo histórico é construída acerca da aproximação de ambas as tendências para com o regime senhorial. Usualmente, os primeiros abordam as formas legislativas oficiais, os segundos, por outro lado, preterem os aspectos sociais que influenciam as interrelações pessoais,19 reconhecendo a normatividade legal como um reflexo da constituição nobiliárquica da justiça no período. No entanto, como apontamos no início do capítulo, essa diferenciação nem sempre é clara ao analisarmos a produção de cada autor. Neste sentido, notamos em Perry Anderson, estudioso tradicionalmente associado ao marxismo, uma visão que dá grande ênfase em elementos institucionais para investigar as sociedades que fazem parte da época da transição da antiguidade ao feudalismo. Este autor apresenta a formação dos reinos romano-bárbaros da “Idade das Trevas”20 como um momento em que se processa uma síntese, no sentido dialético do termo, entre vários aspectos das culturas romana, germânica e cristã, que levará por fim à formação do feudalismo. Percebemos, portanto, uma semelhança com a teoria – de caráter teleológico, há de se ressaltar – do protofeudalismo de García Moreno. Ao longo dos capítulos iniciais de seu livro, Anderson critica a busca acadêmica por definir a herança específica de diversos elementos que compõe as relações sociais da época, o que “(...) suscitou as paixões dos sucessivos historiadores nacionalistas (...)”.21 Ele reconhece desta forma que “A origem inicial das instituições especificamente feudais, muitas vezes parece indestrinchável, dada a ambiguidade das fontes e o paralelismo da evolução dos dois sistemas sociais antecedentes.”22 O autor defende continuamente sua tese de que a marca principal do feudalismo seria a síntese entre os elementos romanos e germânicos, porém aponta que esta só foi possível devido a presença da instituição eclesiástica que permitiu a interação entre os dois graças a sua adaptabilidade. Desta forma, devemos nos questionar se, ao relegar a Há de se notar, porém, que García Moreno em seu texto utiliza mais vezes o termo “feudalismo” em detrimento de “protofeudalismo”. GARCÍA MORENO, Luis A. El estado protofeudal… Op. Cit. 19 VALDEÓN BARUQUE, Julio. Op. Cit. 20 Perry Anderson de fato usa a expressão “Edad Oscura” em seu livro. ANDERSON, Perry. Transiciones de la Antiguedad al feudalism. Madrid: Siglo XXI, 1979. p. 139 21 Idem. p. 127. 22 Idem. Ibidem, p. 129 18

36 segundo plano a influência majoritária de uma ou outra sociedade, ele não coloca sob a égide do cristianismo o motivo principal para a formação do modo de produção feudal. Acerca do senhorio, o norte-americano, assim como para García Moreno, afirma que este seria amplamente herdeiro do sistema produtivo de colonato, típico das grandes propriedades fundiárias auto-suficientes, as villae do Baixo Império, não tendo um equivalente conceitual entre os povos imigrantes por estar amplamente associado à posse de grandes porções de terras, algo que seria incomum para além do limes. No entanto, ele apresenta uma diferenciação entre servidão e economia senhorial demonstrando que além da existência da condição dos coloni, as relações verticais são reafirmadas pela estrutura coercitiva dos chefes guerreiros bárbaros que submetem homens ao seu serviço por meio da força e, mais tardiamente, da justiça nobiliárquica. Podemos reconhecer, com isto, uma interessante proposição, ademais da dependência política dos trabalhadores para com os domini, em função do uso da terra, estes últimos detém um direito consuetudinário de autoridade sobre aqueles que se encontram em sua propriedade. Anderson aponta que isto é a semente do que mais tardiamente criará os senhorios ditos banais, um dos elementos fundamentais do feudalismo que se formará após a Primeira Idade Média.23 Chris Wickham alinha-se em grande parte com estas ideias, apesar de optar por dar mais ênfase ao processo de transição de sistemas econômicos sob um aspecto tributário, que em sua opinião era a marca fundamental do modo de produção antigo.24 Porém, devemos ressaltar que ele se detém mais do que outros autores que apresentamos sobre a gradual fusão entre propriedade e cargos públicos: A mudança pode expressar-se simplesmente em termos materiais: um funcionário do século IV, a menos que fosse excepcional e particularmente rico, conseguia mais de seu cargo em termos de riqueza e status que da propriedade da terra. Desde o século VI, no entanto, isto só era certo na

23

Podemos observar aqui um dos elementos que separa dois momentos do desenvolvimento das relações econômicas medievais, o regime dominial e o senhorial, presente ainda em diversas leituras acerca do período, especialmente em importantes manuais historiográficos sobre o medievo. A título de exemplo: ANTONETTI, Guy. A agricultura. In:______. A economia medieval. São Paulo: Atlas, 1977. e FRANCO JR., Hilário. As estruturas econômicas. In:______. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006. 24 “El cambio puede expresarse simplemente en términos materiales: un funcionario del siglo IV, a menos que fuera excepcional y personalmente rico, conseguía más de su cargo en términos de riqueza y status que de la propiedad de la tierra. Desde el siglo VI, sin embargo, esto sólo era cierto en tanto que los oficios comportaban tierras; a la larga ambos llegaron a ser lo mismo.” WICKHAM, Chris. The other transition: from the ancient world to feudalism. Past and Present. Oxford, n. 103, p. 3-36, 1984. p. 25. Tradução para o castelhano: Angel Martín Expósito e Carlos Estepa Diéz. Tradução nossa.

37 medida em que os títulos comportavam terras; ao longo, ambos chegaram a ser o mesmo.25

Fica exposto, desta forma, o caráter materialista de suas teorias, associando diretamente as formações sociais com o modo de produção vigente. Seguindo este raciocínio, o poder político relacionava-se com a posse fundiária, que é por sua vez reafirmada pelos laços senhoriais entre nobres e camponeses. Reside aí um ponto fundamental de crítica à corrente jurídica-institucionalista,. Para Wickham a dominação econômica-social é o aspecto central desta sociedade, neste sentido, “(...)este feudalismo não tem nada que ver com as obrigações militares, a vassalagem ou o feudo.”26 Ou seja, a exploração do trabalho destes tenancieiros é que define as relações, inclusive em seu âmbito nobiliárquico, pois aqueles que possuem mais homens sob sua autoridade detêm mais poder político. Assim, a crescente ruralização, em um sentido duplamente econômico e político – descentralização da autoridade e seu crescimento em nível local – da Europa Ocidental é uma das principais marcas destes séculos.27 Seguindo esta linha de raciocínio, fica claro para o autor a noção de uma autoridade monárquica que prevalece sobre os interesses de nobres é praticamente inexistente, apesar de garantir a eles titulações. Por conseguinte, compreendemos que a senhorialização da sociedade, dada sua característica de afirmação da dependência política em um sentido personalista e marcadamente local, impede a ascensão de um rei forte. As teorias de Abilio Barbero de Aguillera vão ao encontro das de Wickham, reconhecendo fatores econômicos e extra-econômicos que definem o vínculo entre senhores e os membros da camada inferior. Cabe ressaltar que este autor é considerado ainda um marco na historiografia espanhola por ter sido um dos primeiros após o franquismo a trabalhar aspectos jurídicos sob uma ótica social no reino visigodo. No entanto, diferentemente de García Moreno ou María Mínguez, ele reconhece que não podemos nomear estes trabalhadores como escravos, pois os aspectos que definem a relação vertical estão muito mais baseados na dependência política do que na posse destes homens.

25

Idem. Ibidem, p. 25 “(...)este feudalismo no tiene nada que ver con las obligaciones militares, el vasallaje o el feudo” Idem. Ibidem. 27 WICKHAM, Chris. La transición en… Op. Cit. 26

38 Encontra-se no patrocinium uma das formas pelas quais se expressa oficialmente os laços verticalizados desta sociedade, semelhante a outras regiões da Europa, porém com traços que demarcam algumas especificidades da Hispania. Devemos notar, contudo, que o historiador nomeia a dependência como “pessoal” para além de seu caráter legislativo. Assim, reconhece-se um aspecto pactual ou de fidelidade, entre aquele que promete servir e o outro que se encarrega de protegê-lo, que implica em pesadas punições caso este primeiro descumpra com suas obrigações. Devemos atentar novamente para a desigualdade presente nesta relação. Observamos assim, a ascensão do dominus-patronus, figura nobiliárquica que une em si a propriedade sobre as terras e a autoridade sobre os homens, o patronato. Percebemos, portanto, que para Barbeiro de Aguilera é indivisível a dominação, social e política, e a posse fundiária, pois ambos os elementos se alimentam mutuamente. Não é difícil imaginarmos isto, em um período no qual a definição de fronteiras é uma tarefa quase impossível e a garantia da propriedade estava diretamente associada à produção sobre esta, o domínio sobre a parte humana do trabalho agrário significava o reconhecimento de que a terra pertencia a alguém.28 Outro aspecto a se ressaltar da obra de Barbero de Aguillera, refere-se às relações nobiliárquicas, que para ele refletem o caráter personalista das interações verticais, porém baseado na fidelitas intra-classe. Neste sentido, a base das alianças entre os senhores seria o apoio militar e político em troca de terras – lembrando, novamente, a associação entre poder e propriedade. Desta forma, notamos uma grande semelhança com o raciocínio de García Moreno. No entanto, o autor que por ora tratamos expõe em seu trabalho uma diferença fundamental, que o aproxima das correntes

marxistas,

o

reconhecimento

de

relações

nomeadamente

feudais,

independentemente da inexistência dos termos específicos nos documentos. O único elo que estaria acima destes é o vínculo direto com o monarca, feito por todos os súditos e que garante também a participação em cargos públicos, associados a administração real. Porém, não devemos concebê-lo como uma aliança que é incomum ou destoante de outras desta sociedade, apesar de seu elemento jurídico diferenciado. Interessa notarmos que as teorias deste autor se assemelham – e provavelmente influenciaram – as de Alain Guerreau que, ao escrever sobre o feudalismo, defendia a autoridade dúplice sobre homens e terras, o dominium, como um dos seus aspectos fundamentais. GUERREAU, Alain. O feudalismo: um horizonte teórico. São Paulo: 70, 1982, p. 217-223; GUERREAU, Alain. Feudalismo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Org.), Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru:Edusc. 2006. 2v. V. 1. p. 437-456. 28

39 No entanto, as relações pessoais que em sua origem estavam ligadas à dependência econômica e serviram para garantir esta última, foram estendidas, como já dissemos, a um plano político de forma que serviram para manter a coesão da monarquia.29

Explicitando de outra forma, os laços de dependência que garantem a posição do rei são similares àqueles que podemos notar entre outros senhores. Sendo assim, o próprio aspecto senhorial, que para Wickham impede a estruturação de um poder central, é o que garante a preeminência do monarca. Outro ponto que devemos atentar é acerca da definição cronológica que este historiador dá ao período no qual foca, divergindo de Anderson, Wickham e estudiosos da corrente institucionalista. Evitando a discussão acerca das origens do feudalismo, Barbero de Aguillera pretende elaborar uma pesquisa que compreende a época sob seu caráter único, apartando-se da visão que considera o reino visigodo como um período intermediário entre a desestruturação administrativa romana e formação da sociedade medieval “plena”.30 Mário Jorge da Motta Bastos possui diversas críticas à obra de Barbero de Aguillera, apresentando-o como participante das tendências jurídico-institucionalistas, devido, entre outros aspectos, à preocupação que possui em trabalhar com os termos legais presentes nas fontes. Notamos, no entanto, muitos pontos em comum entre ambos. No tocante à dominação das classes inferiores, a dependência pessoal codificada como patrocinium, possui, para os dois estudiosos, um papel central para reafirmar a posição servil, sendo difícil, além de praticamente irrelevante, a separação destes trabalhadores sob nomenclaturas específicas ou no binômio livres/escravos.31 Bastos apresenta significativa contribuição a este debate no que concerne ao papel central que a propriedade desempenha na estruturação social do reino visigodo, “Sin embargo, las relaciones personales que en su origen estaban unidas a la dependecia económica y que servían para asegurar esta última, fueron extendidas, como hemos dicho, a um plano político de tal forma que sirvieran para mantener la cohesión de la monarquía.” BARBERO DE AGUILERA, Abilio, e; VIGIL PASCUAL, Marcelo. Op. Cit. p. 106. Tradução nossa. 30 Este debate acerca da definição temporal dos períodos iniciais da Idade Média centra-se atualmente nas discussões acerca dos conceitos de Antiguidade Tardia e Primeira Idade Média. Cf., dentre outros, CRUZ, Marcus. Transformação e continuidade do Império Romano: apontamentos para uma discussão historiográfico do conceito de Antiguidade Tardia. In: NETO, Dirceu, NASCIMENTO, Renata (orgs.). A Idade Média: Entre a História e a Historiografia. Goiânia: PUC Goiás, 2012, p. 321-38. e SILVA, Paulo Duarte. O debate historiográfico sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média: considerações sobre as noções de Antiguidade Tardia e Primeira Idade Média. Signum. Brasília, v. 14, n. 1, p. 73-91, 2013. 31 BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na Terra como no Céu...: Paganismo, Cristianismo, Senhores e Camponeses na Alta Idade Média Ibérica (Séculos IV-VIII). São Paulo: EDUSP, 2013, p. 63. 29

40 afirmando a existência da terra não apenas como elemento material, mas também sob a ótica de sua significação cultural. A posse fundiária não é construída a partir da relação do homem com o solo e sim por meio do reconhecimento de sua condição de proprietário por parte da sociedade em que está inserido. Ou seja, devemos perceber o patrimônio senhorial como parte de um quadro mais geral que reafirma a dominação, ele é apenas uma expressão das relações construídas no interior desta sociedade. A terra não é agente dos vínculos entre nobres e camponeses, a posse sobre esta significa o reconhecimento socialmente legítimo – independentemente de como esta legitimidade é defendida – do domínio de alguém sobre algo. Isto significa que o próprio fato de apropriação de um bem, fundamental à sobrevivência diga-se de passagem, é uma demonstração de força política. Além disto, outro ponto ao qual o autor nos chama atenção, é a complexidade do processo de bipartição social e distanciamento entre senhores e dependentes: Fenômeno cotidiano característico desse sistema, contrariamente às tão arraigadas imagens da suposta petrificação da estrutura social medieval, os setores enriquecidos do campesinato eram alçados à condição senhorial, uma espécie de contraface, decerto socialmente restrita, de seus amplos setores que, fragilizados, sucumbiam à dependência servil. Instituíam-se, assim, com frequência desconcertante, aristocratas de pequena extração, fenômeno que se traduzia em um movimento incessante de ampliação dos quadros sociais dominantes.32

Devemos denotar neste sentido, que internamente às camadas nobiliárquicas podemos notar uma forma de reprodução da dominação senhorial, dado que se estabelecem vínculos de caráter personalista, baseados na discrepância com relação à posição na hierarquia social. Portanto, há membros da camada nobiliárquica que formam laços de dependência com seus pares. Desta forma compreendemos melhor a presença da fidelitas, que destacamos no trabalho de Barbero de Aguillera. Por outro lado, é preciso reconhecer que tratamos de formas relacionais de natureza distinta ao nos referirmos a liames que seguem uma lógica horizontal, entre membros de uma mesma classe social, ou vertical, marcados pela opressão e exploração da força de trabalho. Ao analisarmos as ideias de Bastos, percebemos que para ele a própria legitimação da monarquia se dá por meio das promessas de cargos oficiais – aliados a 32

Idem. Ibidem, p. 65.

41 terras – àqueles que lhes apóiam, uma forma de ascensão na complexa teia de interdependências. Contudo, o crescimento político de um nobre é também uma ameaça ao rei, pois dificulta a consolidação da sua preeminência multiregional. Desse modo, podemos enxergar o poder real para além das noções de forte, subjugando a todos os outros senhores à coroa, ou fraco, incapaz de impor-se em âmbito local. A construção da figura do rei é um processo inerentemente instável. Isto porque ele se fundamenta na própria teia de interdependências para afirmar sua autoridade, tendo, constantemente, que formar novas alianças, assim como revalidar os laços com os senhores que já lhe juraram fidelidade. Todas estas interrelações, por serem caracteristicamente personalista, são frágeis e para serem sustentadas cobram do monarca uma atitude reciprocitária, obrigando-o a ceder terras e cargos. Trata-se de uma relação que, ao mesmo tempo que afirma alguns vínculos, nega outros; enquanto constrói seu poder, destrói seus recursos.33 Cabe neste momento, então, afirmar nossa posição com relação aos aspectos expostos nas diversas obras apresentadas e citadas. María Mínguez ao defender a inexistência do feudalismo no reino visigodo, demonstra também uma ausência de um poder expressivamente senhorial. Esta opinião fundamenta-se na visão de que a dominação no período era disposta sob os termos jurídicos da escravidão comum ao Império Romano. García Moreno posiciona-se de forma divergente, apesar de reconhecer a existência de um grande número de escravos, pois afirma que a autoridade dos grandes senhores encontra-se na dependência dos camponeses para com eles. Esta dependência é imposta devido a condição da nobreza como proprietária de terras, forçando membros da camada inferior a arrendarem o solo, buscando sua subsistência. Seguindo esta linha de raciocínio, destacamos os trabalhos de Castellanos e Martínez Díaz que demonstram a transformação das referências documentais aos escravos, associados a colonos que trabalham a terra de um senhor. Anderson apresenta em suas teorias um segundo aspecto da dominação que vai além da posse fundiária por parte da elite. O poder nobiliárquico ultrapassa o direito sobre a terra e afirma sua autoridade, juridicamente respaldada, sobre os homens que nela se encontram. Neste sentido, o senhorio se afirma não apenas pela dependência com relação ao uso da terra, mas também pelo vínculo político estabelecido entre o servo e o aristocrata. Wickham

33

SOLEDAD ORLOWSKI, Sabrina. Op. Cit.,p. 90.

42 corrobora com as idéias de Anderson, porém enfatiza que o crescimento patrimonial e o crescimento político das altas camadas ocorrem de forma mútua, o domínio sobre terras garante a posição de liderança destes homens. Percebemos uma proximidade disto com as proposições de Barbero de Aguilera, mas uma das coisas que destaca este autor é sua visão dirigida especificamente à Península Ibérica. Ele chama atenção para a importância do termo jurídico patrocinium como uma das formas extra-econômicas que reforça a dependência pessoal e cerceia a liberdade dos trabalhadores. Além disto, este historiador expõe um outro ponto a se destacar, as interações construídas na elite representam um aspecto de interdependência política, estruturando seu poder em laços de fidelidade com outros nobres. Chamamos atenção para isto, pois reside aí um elemento que para nós é constituinte do poder monárquico frente à camada nobiliárquica, as relações intrassenhoriais. Bastos concorda, em algumas questões, com Barbero de Aguilera, mas vai mais fundo, dando mais peso à dimensão social da dominação. Ele nos mostra que a posse da terra é, fundamentalmente, uma significação material do poder dos grandes dominus, o solo em si não pertence a alguém, ele é um constructo das relações que legitimam o poder senhorial. No tocante aos vínculos estabelecidos internamente à alta camada, o autor demonstra que era comum a existência de nobres de categoria inferior, muitas vezes saídos das camadas inferiores. Isto implica em uma desigualdade entre os membros da nobreza senhorial reforçando laços de dependência entre estes homens. Antes de nos determos na ação episcopal em meio às relações senhoriais, realizaremos uma análise da bibliografia concernente à possibilidade das igrejas possuírem propriedades e, especialmente, à normatização concernente à sua inalienabilidade. Isto porquê, pretendemos compreender em que pontos percebemos uma institucionalização associada às posses do clero.

Patrimônio eclesiástico A extensa discussão existente acerca do patrimônio pertencente à instituição eclesiástica, segundo nossa concepção, confirma o papel fundamental que a propriedade exerce nesta sociedade. Seria possível citar diversos trabalhos de historiadores e correntes historiográficas que se detiveram no assunto sem esgotá-lo. No entanto, o principal elemento ao qual pretendemos suscitar a discussão está amplamente

43 fundamentada em uma problematização acerca do processo de institucionalização em um momento em que os vínculos são demarcados por seu semblante personalista. Seguindo esta linha de raciocínio, frisamos a importância do conceito de instituição de Hespanha em nossa pesquisa. Cabe apresentarmos, neste sentido, seis autores que podem exemplificar algumas das tradições mais importantes: Gonzalo Martínez Díez, Abilio Barbero de Aguilera, María Teresa de Juan, Carles Buencasa Pérez, Susan Wood e Marcelo Cândido da Silva. Martínez Díez é, ainda hoje, muito influente no que tange os estudos dos estatutos jurídicos dos bens das igrejas, sua importância para nossa pesquisa se deve em grande parte ao fato de ter sido um dos pioneiros estudiosos do assunto, na Península Ibérica, sob uma ótica historiográfica.34 Cabe ressaltar, antes de nos aprofundarmos, a estreita ligação que o autor possui com a Igreja Católica, sendo ele membro da Companhia de Jesus desde 1942. A grande maioria de seus trabalhos tem como um dos principais objetivos demonstrar a formação de um episcopado que em meados do século VII já apresentava um estágio avançado de institucionalização em toda a Península Ibérica. Processo que teve início com o III concílio toledano, quando o cristianismo niceno é elevado à categoria de religião do reino visigodo.35 Portanto, para este medievalista, as normativas conciliares apresentam indícios de um processo de afirmação do caráter diferenciado que o patrimônio eclesiástico e o clero teriam frente à nobreza laica. Sua argumentação para isso repousa sobre a qualidade eminentemente justa destes homens de deus e da instituição que representam, sendo responsáveis pela liderança espiritual e moral de todo o reino. Desta forma, as propriedades seriam um meio para possiblitar suas finalidades de culto, assistência social, obras de caridade e sustento do clero e edifícios. Assim sendo, este autor opta por reforçar a divisão entre laicos/religiosos como um ponto de diferenciação setorial fundamental. Os representantes deste alto clero seriam administradores das propriedades, obedecendo a um arrolamento de normas auto-impostas – o que reiteraria a profunda separação entre estes homens e outros nobres –, tendo como verdadeiro proprietário deus. Além disto, a

34

Martínez Díez publicou em 1959 o livro: MARTÍNEZ DÍEZ, G. El patrimonio eclesiástico en la España Visigoda. Estudio histórico-jurídico. Madrid: Universidad de Comillas, 1959. Ao qual muitos autores se referem até hoje, mesmo que para apontar seus defeitos teóricos e metodológicos. 35

MARTÍNEZ DIEZ, Gonzalo. Canones patrimoniales del Concilio de Toledo de 589. In: El Concilio III de Toledo. XIV Centenario 589-1989, Toledo 1991. p. 565-579.

44 governança destes bens estava centrada na organização hierárquica da diocese, sendo esta a grande autoridade, ius episcopale, para decidir algumas ações, como o uso da terça parte das rendas para a reforma dos edifícios. Isto acarreta no reconhecimento de uma noção de posse que não está atrelada à pessoa, mas ao cargo que ocupa. Desta forma, ele parece ignorar também o fato de que uma grande parte das decisões conciliares quanto à subtração dos recursos refere-se à ação bispal, considerando que se as leis foram redigidas, provavelmente, eram seguidas. Neste sentido, Martínez Díez afirma que a legislação canônica estava voltada, em grande parte, para impedir, com sucesso, a existência de igrejas próprias que enfraquecessem a organicidade diocesana: Além disso, falando com todo rigor jurídico poderíamos dizer que a Igreja visigoda não conheceu a «igreja própria», e que só poderia germinar na Espanha sobre as cinzas do estado visigótico, e de uma Igreja maltratada e mutilada de seus órgãos centrais, os concílios, pela invasão muçulmana.36

Contudo, o autor concebe que laicos fundadores de templos existiam e detinham alguns direitos relacionados à supervisão destes, nomeados “igrejas de patronato”. Barbero de Aguilera também nos chama atenção para um processo de organização interna do clero visigodo.37 No entanto, diferentemente de Martínez Díez, ele ressalta que um dos aspectos centrais da estruturação da instituição eclesiástica, está pautada no crescimento da figura dos bispos como domini-patroni. Ou seja, utilizam-se da condição que lhes foi incumbida de administrador do patrimônio das igrejas para consolidarem sua alta posição em nível local e garantirem a contínua expansão de seu poder, por meio dos laços de dependência pessoal. Percebemos, então, a existência de uma justaposição entre o caráter institucional e pessoal do epíscopo. É justamente por isso que a produção deste historiador é de grande influência em nosso trabalho, por apresentar o clero como uma organização permeada pelas estruturas sociais do reino visigodo. Portanto, o bispo é uma figura complexa entrecortada pelos aspectos relacionais ao qual está submetido em diversos níveis.

“Más aún, hablando con todo rigor jurídico podríamos afirmar que la Iglesia visigoda no conoció la «iglesia propia», y que ésta solo pudo brotar en España sobre las cenizas del estado visigodo, y de una Iglesia maltrecha y mutilada de sus órganos centrales, los concilios, por la invasión agarena.” Idem. Ibidem, p. 572. Tradução nossa. 37 BARBERO DE AGUILERA, Abilio, e; VIGIL PASCUAL, Marcelo. Op. Cit. 36

45 Notamos novamente que, na obra do autor, o apoio aos pobres é destacado como um argumento fundamental para a inalienabilidade patrimonial: “O caráter não alienável da propriedade eclesiástica se justifica, como é habitual, por meio da denominação alimento dos pobres – pauperum alimentums.”38 Por outro lado, se pensarmos esta relação sob um aspecto patronal, percebemos as igrejas, e particularmente os bispos, como senhores aos quais os camponeses estão vinculados politicamente sob patrocinium. Este laço pode ser estendido inclusive para a organização diocesana das igrejas rurais. É interessante observar como o estipêndio desses clérigos que estavam no escalão mais baixo da hierarquia era designado com a expressão victum et vestitum - sustento e vestuário - característica nestes séculos de bens destinados aos dependentes de ranque inferior.39

A posição dos epíscopos e seus vínculos não seriam muito distantes de outros nobres. No entanto, cabe atentarmos, que este autor ainda faz referência ao binômio clérigos e leigos, afirmando uma série de especificidades concernentes aos primeiros, reside aí mais um ponto de discordância entre ele e Bastos, que reconhece a duplicidade destes setores como algo muito mais retórico que real. Para o brasileiro, o meio de afirmação de seu poder político seria, também, a construção de laços de dependência com senhores laicos.40 No pensamento de Barbero de Aguillera, a inalienabilidade dificultaria, se não impedisse totalmente, vínculos intrassenhoriais. Teresa de Juan apresenta em seus argumentos uma aproximação com as idéias de Barbero de Aguilera quando se refere a uma “confusão patrimonial” levada a cabo pelos bispos que buscam neste período assegurar seu poder pessoal usando posses das igrejas, bem como suas próprias, apartadas aprioristicamente da instituição.41 Percebemos dois pontos que destacam as teorias desta autora: primeiramente, a imprecisão quanto à divisão patrimonial também pode significar a transmissão de bens

“El caráter no alienable de los bienes eclesiásticos se justifica, como es habitual, por medio de la denominación alimento de los pobres – pauperum alimentum.”. Idem. Ibidem, p. 63. Tradução nossa. 39 Tiene interés observar cómo el estipendio de estos clérigos que estaban en el escalón más bajo de la jerarquía era designado con la expresión victum et vestitum - sustento y vestido - característica en estos siglos de los bienes asignados a los dependientes de rango inferior. Idem. Ibidem, p. 84. Tradução nossa. 40 BASTOS, Mário Jorge da Motta. Santidade, hierarquia e dependência social na Alta Idade Média. História Revista, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 135-159, 2006. p. 141. 41 Apesar de a autora possuir um recorte temporal que destoa um pouco do nosso, nos chamaram a atenção as similaridades que atendem ao nosso esforço analítico. TERESA DE JUAN, María. La gestión de los bienes en la iglesia hispana tardoantigua: confusión patrimonial y sus consecuencas. Polis. Revista de ideas y formas políticas de la Antiguëdad Clásica. Madrid, v. 10, p. 167-180, 1998. 38

46 pessoais do epíscopo para a administração diocesana. Isto ocorre pois, na medida em que ascendem aos altos cargos eclesiásticos, estes homens assumem a dupla função de atuar como autoridade religiosa e como protetores de sua comunidade. Fica sob seu encargo a fiscalização dos templos, a intercessão política em favor de seus dependentes e a assistência aos necessitados. No cumprimento destes deveres, utilizam com frequência seu patrimônio pessoal, dificultando o reconhecimento dos limites de suas propriedades em relação às posses da instituição.42 O segundo ponto, algo que a autora dá particular importância, ao que chama de um evergetismo cristão, um dos únicos casos em que é sancionada a subtração de alguns bens.43 A legislação conciliar visigoda adotava uma divisão tripartite com relação à repartição das rendas das igrejas: uma parte para o bispo; uma para os outros clérigos, e a última para o reparo e manutenção dos edifícios. Este dado é de fundamental interesse para nossa pesquisa pois aponta um discurso institucional que pretende empreender limites às ações caritativas, porém sem coibi-las totalmente. Isto porque, o epíscopo reitera seu poder por meio de sua atividade assistencialista. Ainda sobre este aspecto, devemos notar que a estrutura tripartite relativa às rendas das igrejas corrobora com a posição dos bispos como patrono de sua diocese e possibilita a afirmação de seu poder pessoal. As disposições dos concílios em relação à repartição das doações em três partes nos apresentam uma especificidade da Península Ibérica em relação a outras partes da Europa, incluindo Roma, que utiliza um sistema tetrapartite.44 A diferença entre estas duas formas de organização está centrada na parcela dos ganhos das dioceses que é direcionada às ações caritativas. Ou seja, Roma optou por uma divisão que dava um quarto das doações aos bispos, um para os demais clérigos, o outro para a manutenção de templos e o último era revertido a ações caritativas. No reino visigodo não havia uma definição em relação aos valores obtidos pela diocese que seriam dirigidos ao apoio aos pobres, dividindo os bens em três partes.

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Una vez ordenados obispos, estos poderosos actúan como protectores de su comunidad, cumpliendo las funciones religiosas inherentes al episcopado pero también otras que exceden el ámbito propiamente pastoral. Así, se ocupan de la asistencia a los necesitados, construyen o restauran templos etc. Para estos cometidos recurren a los bienes eclesiásticos, cuya administración tenían encomendada pero también, sin duda, con frecuencia, a su propio patrimonio, lo que contribuye a su prestigio y popularidad pero también, evidentemente, a crear confusión entre sus bienes y los de su iglesia. Idem. Ibidem, p. 174. Tradução nossa. 43 TERESA DE JUAN, María. Op. Cit., p. 174. 44

WOOD, Susan. The proprietary church in the Medieval West. Oxford: Oxford University, 2006. p. 10.

47 Isto não quer dizer que o episcopado não possuía esforços voltados à assistência, pelo contrário, a caridade era uma das formas principais de afirmação do poder eclesiástico em seu âmbito pessoal.45 Cabe destacarmos aqui nossa discordância em relação ao termo “confusão” escolhido por ela. O uso desta palavra indica uma valoração que infere, necessariamente que, ou a interferência de caráter pessoal seria algo destoante da norma social vigente, ou seria feita de forma passiva e desinteressada, quase acidental. Porém, segundo nossa linha de pensamento, devemos considerar que os aspectos personalistas neste período são parte constituinte das instituições existentes. Buenacasa Pérez, possui uma extensa obra acerca do patrimônio eclesiástico e do processo de institucionalização associado a este.46 Percebemos, em primeiro lugar, idéias bastante parecidas com as de Barbero de Aguillera, uma instituição permeada pelas estruturas sociais do período que se afirma politicamente por meio de uma consolidação de seu capital social e simbólico. No entanto, o autor opta por se focar nos elementos de organização interna do episcopado, tentando compreender os aspectos que reforçam a coesão interna e permitem a ascensão dos bispos a posições centrais politicamente frente ao restante da sociedade. Ou seja, a estruturação de um caráter institucional possibilita um controle da hierarquia eclesiástica e garante a manutenção do patrimônio das dioceses contra a expropriação praticada por membros do clero, permitindo que os bispos permaneçam figuras fundamentais nas localidades em que atuam, independentemente da ação de um indivíduo. Neste sentido, os contornos jurídicos que os concílios assumem no período tornam-se um instrumento fundamental para a construção e crescimento do poder episcopal. Percebemos em seus trabalhos que o exercício da autoridade está relacionada a uma série de aspectos simbólicos, econômicos e sociais, diferentemente de estudos mais tradicionalistas que pretendem engrandecer a figura de epíscopos e monarcas. Por outro lado, há também uma tentativa de apresentar uma complexidade social inerente ao Bruno Miranda Zétola demonstra isto afirmando que “a caridade tornou-se uma virtude e uma obrigação dos bispos, e era desenvolvida como se fosse uma obra de misericórdia não da Igreja, muito menos daqueles que doavam bens para a Igreja, mas do próprio bispo.” ZÉTOLA, Bruno Miranda. Discurso caritativo e legitimação do poder episcopal na antiguidade tardia: o caso de Emerita (550633). Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre pelo curso de Pós-Graduação em História da Universidade do Paraná. Curitiba, 2005. p. 147. 46 BUENACASA PÉREZ, Carles. Op. Cit. La legislación conciliar..., 2002; BUENACASA PÉREZ, Carles. La figura del obispo y la formación del património de las comunidades cristianas según la legislación imperial del reinado de Teosio I (379-395). Studia ephemerides Augustinianum. Roma, v. 1, n. 58, p. 121-139. São alguns exemplos. 45

48 período, sem juízos de valor em relação à presença clerical na esfera política. Porém, um interessante aspecto ao qual o autor nos chama atenção é que a recusa completa em participar nas redes de dependência intra-nobiliárquicas não era uma opção totalmente viável, pois significaria uma perda de sua influência local. Sendo assim, a contínua reafirmação episcopal em meio aos nobres, sob o aspecto de doação de homens e terras, geralmente pertencentes às igrejas, se fazia necessária. Notamos que a condição inalienável do patrimônio eclesiástico é um aspecto fundamental para afirmar a posição institucional do bispo, concedendo-lhe uso de terras e apoiando sua preeminência entre nobreza. Desta forma o prelado garante a sua presença no cenário político, uma vez que o episcopado é o responsável pela administração dos bens da igreja. Por outro lado, esta mesma posição de poder gera deveres de carater institucional, pelos quais ele pode vir a ser repreendido quando não agir de acordo com as normas. Encontramos, portanto, uma questão fundamental no tocante às atitudes do epíscopo, responsabilizado pelo cuidado material dos pobres – função imposta por seu pertencimento à instituição –, doação de propriedades a outros nobres e a manutenção da integridade das posses das igrejas. Carles Buenacasa Pérez aponta esta relação como uma divisão entre espiritualidade cristã e racionalidade econômica,47 podemos fazer uma analogia às noções de autoridade espiritual, autoridade ascética e autoridade pragmática de Claudia Rapp.48 Susan Wood foca suas análises sobre aquilo que se convencionou chamar de igrejas próprias.49 Nosso objetivo ao destacarmos as reflexões desta autora é denotar a profunda complexidade do período com relação à propriedade e autoridade sobre templos e suas posses. A autora argumenta que, em parte, isto ocorre pois alguns fundadores de edifícios religiosos detêm para com estes uma série de direitos hereditários, assemelhando-os a suas propriedades. Notamos, um entendimento diametralmente oposto ao defendido por Martínez Díez, já que a posição destes homens como patronos das igrejas, segundo a autora, os coloca em constante atrito com a administração diocesana.

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BUENACASA PÉREZ, Carles. Espiritualidad vs racionalidade económica: los dependientes eclesiásticos y el perjuicio económico a la iglesia de Dumio em el testamiento de Ricimiro (656). POLIS. Madrid, v. 16, p. 7-32, 2004. 48 RAPP, Claudia. Op. Cit. 49 WOOD, Susan. Op. Cit.

49 Para além da questão de laicos ergindo e dotando locais de culto, há um elemento no trabalho de Wood que devemos ressaltar, até que ponto podemos definir que os bens pertencem ao episcopado, sob seu caráter institucional, e não a uma igreja no âmbito local. A autora demonstra que desde o século V começam a multiplicar os números de doações que tem como beneficiários diretos templos específicos – muitas vezes personificados por meio de santos e mártires – e não a instituição eclesiástica. A necessidade de afastar os fundadores é clara: o que é ambígua é se a dotação deve ir para a propriedade diocesano centralizada, ou ser de propriedade da igreja individual, mas sujeito a administração do bispo. A palavra potestas poderia ser usada para significar a controle da propriedade; mas aqui, usado alternadamente com ordinatio, soa mais como a potestas que o conselho de Calcedônia (451) tinham reivindicado para os bispos sobre mosteiros em suas dioceses, não a um direito de propriedade, mas a autoridade pública50

Neste sentido fica mais evidente a complexa associação entre propriedade e autoridade que envolve o patrimônio, em particular o fundiário. Se nos atermos à noção da terra como um receptáculo das relações sociais estabelecidas no período, percebemos que a ligação entre legitimidade e domínio é constantemente reconstruída. Assim sendo, a participação como membro da instituição eclesiástica é uma das formas que os bispos dispõem para garantir seu poder. Tal opção, no entanto, reforça a necessidade de seguir preceitos normativos construídos em concílio. Ou seja, tais preceitos ratificam o senhorio dos epíscopos, por meio de sua condição clerical, enquanto impõem sobre estes o reconhecimento da legislação canônica. Desta forma, a garantia de alguns direitos à família de fundadores de igrejas, representa também a possibilidade de o episcopado manter uma forma de controle sobre as ações expropriatórias de bispos. Marcelo Cândido da Silva, ao analisar a normatividade voltada para inibir o roubo ou alienação de bens eclesiásticos, presentes em atas conciliares, códigos legislativos e hagiografias do mundo franco,51 traz uma nova problematização, avançando no debate acerca da inalienabilidade: o discurso que fomenta a divisão conceitual entre as posses clericais e quaisquer outras. Reside nesta diferenciação 50

The need to fend off the founders is clear: what is ambiguous is whether the endowment should go into the centralized diocesan property, or be the property of the individual church but subject to the bishop’s administration.14 The word potestas could be used to mean the control of property; but here, used alternately with ordinatio, it sounds more like the potestas that the council of Chalcedon (451) had claimed for bishops over monasteries in their dioceses, not property-right but public authority. Idem. Ibidem, p. 19. Tradução nossa. 51 SILVA, Marcelo Cândido da. História do Roubo na Idade Média. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.

50 simbólica, majoritariamente, a defesa do patrimônio eclesiástico como tendo um status apartado e, por isto, quase que intocável frente às tentativas de subtração deste. O autor ressalta em sua obra que esta construção ideológica está relacionada duplamente à função que estas propriedades desempenham com relação aos pobres e aos direitos de proprietário das igrejas associado à figura divina. Novamente, o discurso caritativo surge como ponto fundamental para a manutenção material dos templos, mas o que diferencia o trabalho de Silva é sua compreensão da jurisprudência no período. A defesa de um bem não está associado ao seu próprio valor, na maioria das vezes, e sim à posição de seu dominus na sociedade. Devemos, novamente, lembrar que as estruturas jurídicas desta sociedade têm como seu arcabouço as relações senhoriais, marcadamente pessoais. Neste sentido, deus seria o real possuidor de todas as terras e edifícios religiosos, sendo os bispos apenas administradores destes, vicários de seu senhor. A “santuarização” dos bens da Igreja é uma resposta ao roubo, e um instrumento de defesa do proprietário, muito mais do que a defesa da propriedade.52

Apesar dos seis autores aqui apresentados se pautarem em conceitos muito diferentes para discorrerem sobre o assunto, devemos apontar que há também uma confluência entre suas idéias. Para todos eles, o que define a excepcionalidade do patrimônio eclesiástico para o laico é a sua inalienabilidade frente ações expropriatórias de qualquer natureza. Além disto, eles demonstram também que o discurso em que o episcopado se pauta para defender as propriedades das igrejas é, na maioria dos casos, relacionado à proteção dos pobres. Para Martínez Díez isto é um claro exemplo do caráter institucional sobre a importância do clero neste período como uma instituição que tem em vista o bem maior da população.53 Barbero de Aguilera argumenta, por outro lado, que a caridade cristã, neste período, representa uma forma de se reafirmar os laços de dependêcia entre bispos – enquanto membros da aristocracia – e as populações locais.54 Teresa de Juan concorda com estes dois autores, no entanto, vai além ao demonstrar que o evergetismo das igrejas visigodas representa também uma forma de se aumentar a coesão social entre os membros do setor religioso pertencentes às altas

52

Idem. p. 137.

53

MARTÍNEZ DIEZ, Gonzalo. Canones patrimoniales del... Op. Cit. BARBERO DE AGUILERA, Abilio, e; VIGIL PASCUAL, Marcelo. Op. Cit.

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51 camadas.55 Além disto, Buenacasa Pérez atenta para a importância que o patrimônio e os esforços caritativos possuem para um reconhecimento intitucional da ação bispal, por mais que esta ação seja permeada por aspectos dominiais, assim sendo, a participação como membro do clero torna necessária a afirmação da autoridade sob uma via espiritual e ascética, além da pragmática.56 Susan Wood reforça isto, demonstrando que a propriedade eclesiástica precisava constantemente ser assegurada de expropriações, tanto de laicos quanto eclesiásticos, desta forma, a legislação conciliar reforça a coerência institucional.57 Marcelo Cândido da Silva traz à tona um ponto essencial, a questão patrimonial está atrelada à posição de seu proprietário na sociedade, que no caso dos templos religiosos é o próprio deus, um dominus incontestável.

A dominação nobiliárquica no reino visigodo é legitimada tendo como base dois elementos: a dependência política e propriedade de terras. No entanto, a partir de uma da análise da historiografia produzida acerca do senhorio concluimos que a própria relação de patrocinium corrobora a formação de monópolios fundiários na mão de uma elite. Sendo assim, devemos notar que a afirmação da inalienabilidade do patrimônio clerical, juntamente com os homens que nele trabalham, é uma garantia da permanência do poder episcopal sob um ponto de vista senhorial. Isto significa que, grande parte da autoridade local dos bispos é garantida por meio de sua participação como membro da instituição eclesiástica. Destarte, a própria normatividade canônica consolida o domínio patronal por parte das altas camadas clericais. Por outro lado, este mesmo aspecto de coesão impõe aos prelados uma série de obrigações que visam garantir que a ação individual não poderia depredar ou expropriar os bens das igrejas. Contudo, a propriedade das terras deve ser constantemente legitimada e reconhecida. Neste sentido, a participação do episcopado em meio às teias de interdependência nobiliárquicas é um ponto fundamental para sua afirmação política.

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TERESA DE JUAN, María. Op. Cit BUENACASA PÉREZ, Carles. Espiritualidad vs racionalidade económica... Op. Cit. 57 WOOD, Susan. Op. Cit. 56

CAPÍTULO III – AS QUESTÕES PATRIMONIAIS NAS ATAS CONCILIARES

A tradição conciliar tem uma posição extremamente influente em diversos aspectos do reino visigodo, ultrapassando um objetivo puramente teológico ou relativo à disciplina clerical, apesar de estes também serem amplamente tratados. Seguindo esta linha de raciocínio, os concílios provinciais ocorridos no reino visigodo possuem características distinta dos gerais, localizados usualmente em Toledo, devido ao seu campo de atuação, porém, como já mencionamos,1 isto não significa que não haja uma estreita relação entre ambos. Comumente, os sínodos estabelecidos nos âmbitos regionais, são atendidos pelos bispos os quais as dioceses estão inseridas dentro dos limites administrativos de um metropolitano, tendo um número de assistentes reduzido quando comparados aos Conc. Tol. A participação e convocação do rei não são pré-requisitos, mas seu nome é constantemente citado nas linhas iniciais das atas, no formato semelhante ao dos concílios gerais. Tal dado corrobora o indicado pela historiografia2

no sentido de

realçar a estreita relação estabelecida entre o episcopado e a monarquia, dado que o reconhecimento da atuação da realeza, mesmo em um cenário expressivamente religioso e localmente delimitado, concede aos bispos direitos de atuação legislativa e judicial.3 Neste sentido, podemos afirmar que os concílios provinciais possuem dois objetivos principais: reafirmação das disposições canônicas toledanas e resolução de problemas pontuais ocorridos nas instâncias locais. No primeiro ponto, fica claro o esforço de centralização institucional levado a cabo pelo episcopado, pretendendo reforçar uma unidade hierárquica e estabelecer uma normatividade ao qual todo o clero deveria responder.4 No segundo, notamos os sínodos atuarem como tribunais voltados à No subcapítulo “Corpus documental”, no capítulo I. Cf: VELÁZQUEZ SORIANO, Isabel. Impronta religiosa en el desarollo jurídico de la Hispania visigoda. Illu. Revista de ciencia de las religiones, Madrid, n. 2, p. 97-121, 1999. p. 99. ANDRADE FILHO, Ruy de O. Mito y monarquía en la España visigoda católica. Temas medievales, Buenos Aires, v. 13, p. 9-27, 2005. DÍAZ MARTÍNEZ, Pablo de la Cruz. Rey y poder en la monarquía visigoda.Iberia: Revista de la Antigüedad, La Rioja, v. 1, 175-196, 1998. p. 186. 3 ORLANDIS, José. In:______, RAMOS-LISSÓN, Domingos. Historia de los Concilios de la España romana y visigoda. Pamplona: Universidad de Navarra, 1986. 4 Fica claro, neste sentido, o esforço de institucionalização do clero que segue o CT III, que influenciou a celebração de seis concílios provinciais em apenas uma década, como intentamos demonstrar mais a frente. 1 2

53 resolução de disputas surgidas entre clérigos ou desvios perpetrados por prelados, com decisões baseadas na tradição conciliar bem como na legislação formulada pelo poder real.5 Percebemos inclusive algumas das punições serem definidas neste momento, como podemos exemplificar com o cânone oitavo do Concílio de Narbona: Qualquer clérigo, subdiácono, diácono ou presbítero que tomar ou defraudar, sem consciência do bispo, algo dos bens ou dos edifícios da igreja, não somente com todo o constrangimento da desonra restituirá aquilo que tomou, mas também não deverá permanecer na igreja em que cometeu a fraude. Durante dois anos ficará sob penitência e quando houver chorado o fato, poderá ser retornado ao ofício. 6

Em ambos os casos (reafirmação das disposições canônicas ou resolução de problemas pontuais) vemos a constituição de uma especificidade jurídica voltada para os membros das igrejas, tratando-os sob uma ótica diferenciada frente o restante da sociedade visigótica. Portanto, não é inesperado que encontremos semelhanças entre o discurso eclesiástico dirigido à totalidade do reino e o existente nas diferentes localidades, porém a própria necessidade de se dedicar à solução de irregularidades ou tensões entre os bispos demonstra que a regulamentação conciliar não era sempre seguida à risca. Notamos, então, que a construção desta organicidade institucional vigente nos textos das atas conciliares gerais representa, no momento entre os Conc. Tol. III e IV, entre 589 e 633, – e talvez até o final do reino visigodo –, muito mais o semblante de um processo em andamento do que uma realidade. Resulta disto, nossa opção por trabalhar com os Concílios de Narbona (589), Sevilha I (590), Toledo (597) – que, apesar de ocorrido na cidade real, é voltado apenas para a região cartaginense – e Sevilha II (619), reconhecendo que após a conversão da monarquia ao cristianismo niceno intensifica-se a tentativa de estruturação do clero visigodo. Cabe denotar também que é nestes documentos que podemos observar melhor a regulamentação dirigida ao patrimônio eclesiástico. 5

Para ilustrar esta afirmação basta chamarmos atenção que o Concílio de Sevilha I é, quase que em sua totalidade, voltado para debater acerca das manumissões realizadas pelo bispo Gaudêncio. CONCILIO DE SEVILHA I. In: VIVES, José (ed.) et alli. Concilios visigóticos e hispano-romanos. Barcelona: Instituto Enrique Flórez, 1963. p. 151-153. 6 “Quiquumque clericus, subdiaconus, diaconus, prebyter sine conscientia episcopi aliquid de possessionibus vel de domo ecclesiae tulerint aut fraudem fecerint, non solum cum omni dedecore constricti restituant quod fecerunt, set etiam non debere ibi in ecclesia esse ubi fraudem visus est operasse: duobus iaceat sub poenitentia annis et dum defleverit factum revertatur ad officium.”, tradução nossa. As punições raramente remetem a algum castigo corporal, sendo usualmente a realização de penitência em mosteiro. CONCILIO DE NARBONA. In: VIVES, José (ed.) et alli. Concilios visigóticos e hispano-romanos. Barcelona: Instituto Enrique Flórez, 1963. p. 148.

54 José Orlandis defende que as assembleias do século VI estavam todas voltadas para a dispersão das normas do Conc. Tol. III, seguindo a ordem canônica que ocorressem concílios provinciais com regularidade anual. No entanto, mesmo este autor reconhece que a periodicidade conciliar não é muito respeitada ao longo da existência do reino visigodo, considerando a escassa quantidade de atas que permaneceram até os dias de hoje, bem como de referências ou outros indícios documentais.7 Sendo assim, para este historiador, o próprio Conc. Tol. III teria influenciado um processo de estruturação da hierarquia e da administração eclesiástica, buscando reforçar a organicidade institucional, que ele nomeia como “um ciclo de concílios menores”. A celebração destes concílios constitui um claro testemunho da virtualidade do impulso dado à atividade sinodal no concílio III de Toledo.(...) Mas, além disto, o cânone 18 constitui do terceiro concilio toledano, ao urgir a observância da disciplina tradicional da periodicidade dos concílios provinciais, constituiu um positivo estímulo para a celebração destas assembleias que, se nunca chegaram a alcançar o ritmo estabelecido, se reuniriam sim, segundo parece, a uma frequência desconhecida em qualquer outro período da história visigoda.8

O século VII, demonstraria um momento semelhante, apesar de muito mais caracterizado pela atuação de Isidoro de Sevilha e tendo o Conc. Tol. IV como um marco fundamental para a sistematização da organização episcopal, sendo ponto focal para os próximos seis concílios toledanos.9 Concordarmos, em parte, com Orlandis no que se refere aos Conc. Tol. III e IV como expressão da institucionalização do clero, porém divergimos quanto à importância que ele infere sobre estes sínodos para a quase totalidade do período. Isto porque nos parece haver uma ambiguidade relativa à análise das atas conciliares pelo autor, que, por um lado, esvazia as tensões políticas pontuais que levam aos concílios (toledanos e provinciais) subsequentes e, por outro, ao enfatizar os Conc. Tol. III e IV, diminui o aspecto processual da estruturação da autoridade episcopal ao longo de todo o reino. Ou

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É preciso ter em mente a possibilidade que as atas de concílios provinciais simplesmente tenham se perdido com o tempo, o próprio Orlandis reconhece isto, mas os indícios apontam que realmente estes sínodos não ocorressem com muita frequência. 8 “La celebración de estos concílios constituye un claro testimonio de la virtualidad del impulso dado a la actividad sinodal em el concilio III de Toledo.(...) Pero, además, el canon 18 del tercer concilio toledano, al urgir la observancia de la disciplina tradicional de la periodicidad de los concilios provinciales, constituyó un positivo estímulo para la celebración de estas asembleas que, si nunca llegaron a alcanzar el ritmo establecido, sí se reunirían, segun parece, una frecuencia desconocida en cualquier otro periodo de la historia visigoda.” ORLANDIS, José. Op. Cit., p. 227-228. Tradução nossa. 9 Idem, Ibidem. p. 261.

55 seja, para utilizarmos uma referência braudeliana,10 Orlandis dissipa o caráter de curta duração destes sínodos, ao mesmo tempo em que nomeia um ponto quase arbitrário como início de um movimento de longa duração que já existia. No entanto, não podemos deixar de notar a posição de preeminência dos Conc. Tol. III e IV neste período, especialmente por demarcarem o estreitamento da aliança entre os bispos e a monarquia.11 Com o processo de afirmação da figura do bispo como líder local, não apenas no âmbito religioso, mas também político, suas prerrogativas cada vez mais se relacionam com as estruturas que permeiam as relações sociais. Ou seja, sua atuação é marcada pelo desenvolvimento de sua autoridade como dominus-patronus, proprietário de terras e principal representação política dos homens inseridos em suas propriedades, bem como de outros senhores aliados a ele por laços de interdependência. Notamos, portanto, que seu domínio estabelece-se em dois pilares fundamentais, como detentor primordial dos meios de produção simbólica – embasada em sua condição como principal elo com Deus – e como principal autoridade sobre os homens e a terra em um determinado espaço. Como pretendemos demonstrar anteriormente, 12 a legitimidade do poder senhorial é caracteristicamente dispersiva e não centralizadora, tendo como foco principal as localidades territoriais em que exercem sua autoridade, prevalecem em grande parte dentro destes limites. Devemos reconhecer que os laços estabelecidos com outros nobres demonstram sua influência para além de suas propriedades, mas a base de seu poder é mais significativa nestas e em áreas adjacentes. Consequentemente, podemos notar que a atuação destes domini-patroni convergem em regiões específicas. É neste sentido que nos interessa analisar mais profundamente as atas conciliares provinciais, pois podemos observar de forma mais direta os atritos entre a estruturação institucional eclesiástica e o poder senhorial reforçado em um nível local. Além disto, cabe ressaltarmos, que a lógica administrativa da monarquia do período tem na divisão provincial um dos seus principais meios de atuação, utilizando-

10

BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989). Unesp: São Paulo, 1998. p. 45-78 NAVARRO CORDERO, Catherine. El Giro Recarediano y sus implicaciones políticas: el catolicismo corno signo de identidad del Reino Visigodo de Toledo. In: Ilu. Revista de Ciencia de las Religiones, Madrid, n. 5, p. 97-118, 2000. p. 116-118. 12 No subcapítulo “Senhorio” do capítulo II. 11

56 se de uma hierarquia administrativa para reforçar sua autoridade. 13 Céline Martin nos demonstra isto ao remeter às leges e cânones que tratam das sedições internas. Estas referências indicam a responsabilidade das populações pertencentes às províncias específicas onde ocorrem rebeliões ao embate inicial contra os inimigos.14 No âmbito clerical, vemos um cenário bem semelhante, os bispos se utilizam dos diversos níveis e graus da disciplina institucional para estabelecer uma rede de alianças que ajudam a manter sua tutela sob a diocese. Este modelo de governança é construído tendo como principal arcabouço as associações interpessoais típicas das estruturas intersenhoriais, um quid pro quo constante, baseado na troca de títulos e terras pelo reconhecimento da autoridade, que consolida uma integração institucional.15 Percebemos inclusive a construção de novas sedes episcopais ocorrer com cada vez mais frequência a partir do final do século VI, expandindo a presença do clero no ambiente rural, mantendo estreitas relações com o episcopado dos centros urbanos que possuem uma clara prevalência administrativa.16 No entanto, a reciprocidade característica destes vínculos pode indicar uma via de mão-dupla entre regiões periféricas e centrais. Sendo assim, podemos inferir que há uma clara interinfluência entre as várias províncias e o poder central, que busca manter seu domínio delegando sua autoridade entre seus aliados, criando uma política bastante instável. Destarte, devemos novamente explicitar uma discordância com Orlandis, demonstrando que: se por um lado a normatividade dos Conc. Tol. intervém nos concílios provinciais, como aponta o autor, as disposições destes também influenciam nos concílios gerais. Visando elucidar, podemos observar um exemplo disto nos cânones 9 do Concílio de Sevilha II (619)17 e 48 do Conc. Tol. IV (633),18 os quais se referem à nomeação de oeconomi19 para cuidar da administração financeira de cada diocese. As duas atas explicitam a necessidade de nomear-se religiosos para que exerçam este cargo, 13

CASTELLANOS, Santiago; MARTÍN VISO, Iñaki. The local articulation of central power in the north of the Iberian Peninsula. Early Medieval Europe, Oxford, v. 13, n. 1, p. 1-42, 2005. 14 MARTIN, Céline. In confinio externis gentibus: la percepción de la frontera en el reino visigodo. Studia Historica. Historia Antigua. Salamanca, n. 16, p. 267-280, 1998. 15 A partir da segunda metade do século VII, especialmente, vemos a afirmação da primazia de Toledo fundamentar-se nessa estrutura de inter-relações entre os bispos. MARTIN, Céline. Les évêques visigothiques dans leur espace: de l’autonomie à l’integration. In: BOUGARD, François; DEPREUX, Philippe; LE JAN, Régine [org.]. Les élites et leur espace: mobilité, rayonnement, domination (VIᵉ Xᵉ siècles). Turnhout: Brepols, 2007. p. 207-223. 16 GURT I ESPARRAGUERA, Josep M. e SÁNCHEZ RAMOS, Isabel. Episcopal groups in Hispania. Oxford journal of archeology. Oxford, v. 30, n. 3, p. 273-298, 2011. p. 276. 17 VIVES, José. Op. Cit., p. 169. 18 VIVES, José. Op. Cit., p. 208. 19 A tradução do latim significaria algo como “ecônomos”.

57 reafirmando disposições do Concílio de Calcedônia. Devemos considerar que em ambos os casos houve a atuação de Isidoro de Sevilha como catalisador desta normativa, ainda sim, o fato da atuação de um importante bispo da região da Baetica ecoar nas decisões políticas de todo o clero visigodo ressalta a possibilidade das relações existentes em uma província influenciarem o episcopado da Península Ibérica como um todo. Passemos, portanto, à análise comparativa das decisões canônicas de Toledo e de outras províncias.

Inalienabilidade patrimonial As primeiras referências à inalienabilidade do patrimônio eclesiástico datam do início do século IV no concílio de Ancira e fazem alusão aos abusos feitos por representantes do alto clero.20 Como buscamos demostrar no capítulo anterior, a inalienabilidade patrimonial é uma das grandes características que define a excepcionalidade das propriedades eclesiásticas, sendo um dos pontos fundamentais que possibilita a manutenção do poder episcopal. Neste sentido, não é inesperado encontrarmos referências diretas proibindo a subtração de bens das igrejas não apenas nos concílios, e.g. “que ninguém aliene as coisas da igreja”,21 influenciando também na legislação real.22 Percebemos, então, como os aspectos institucionais se estruturam em torno da consolidação da posição dos bispos como senhores, reafirmando sua autoridade ao responsabilizá-los como administradores das posses clericais: “(...) todas as coisas, conforme estabelecido antigamente estão sob a administração e o poder do bispo.”23 Reconhece-se assim, o domínio dos epíscopos, protegendo seu controle sobre extensas propriedades e, consequentemente, sobre os homens estabelecidos nelas. A conversão da monarquia ao cristianismo niceno significou a legitimação da religião como principal referencial simbólico no reino visigótico e do clero como principal (re)produtor ideológico. Podemos perceber neste processo dois aspectos indissociáveis que reforçam 20

MARTINEZ DIEZ, Gonzalo. Cánones patrimoniales del Concilio de Toledo del 589. In: Concilio III de Toledo: XIV Centenario (589-1989). Toledo: Diputación Provincial, 1991. p. 565-579. 21 VIVES, José. Op. Cit., p. 125. 22 Na Lex Visigothorum, livro V, título I, lei 1, podemos ler: “Portanto, decretamos que toda a propriedade que tenha sido dada, seja por reis ou por qualquer outro fiel, à edifícios devotados à adoração Divina, devem eternamente e irrevogavelmente pertencer às respectivas igrejas.” SCOTT, S. P. The visigothic code. Boston: Boston Book Company, 1910. p. 143. 23 VIVES, José. Op. Cit., p. 131.

58 a posição de bispos e outros membros das elites religiosas como únicos detentores das formas politicamente aceitas de compreensão e representação do mundo: a promoção de uma integração social em torno da fé e a exclusão de formas heterodoxas que fogem à normatização das relações sociais.24 Além disto, o Conc. Tol. de 589 tem como um de seus elementos, afora a centralização política local na figura dos prelados, o crescimento das posses eclesiásticas. Por decreto deste concílio se estabelece que as igrejas, que antes foram arianas e agora são católicas, pertençam aos seus bispos, com suas posses respectivas, a quem correspondem o território diocesano no qual se encontram edificadas. 25

Reparamos certo paralelo com o processo ocorrido no quarto final do IV século, no qual a legislação imperial influenciou diretamente na estruturação do poder terreno das lideranças comunitárias cristãs, baseado também no incremento proprietário e em isenções fiscais.26 Devemos notar, portanto, a importância que a inalienabilidade patrimonial assume nesta sociedade. Para tal, podemos nos remeter às teorias de Barbara Rosenwein acerca da noção de imunidade. A autora apresenta a imunidade relacionando-a aos conceitos de taboo (ou como Rosenwein usa, tapu) e mana, comuns aos antropólogos, apesar de reconhecer que suas definições ainda são vagas e fugidias. Na sociedade Polinésia, a habilidade do chefe de declarar algo tapu demonstrava seu poder, não apenas ritualmente e simbolicamente mas substantivamente, pois desta maneira ele controlava e canalizava empreendimentos produtivos. Tal controle era, por sua vez, crítico para a iniciativa de distribuição de bens feita pelo chefe, a principal fonte de seu poder terreno, privilégio e prestígio. Imunidades medievais oferecem paralelos.27

Neste sentido, a normatização que se propõe a proteger os bens das igrejas é em si parte estrutural do episcopado, pois reforça a predominância econômica e política que a envolve. Além disto, a imunidade garante o aspecto simbólico da autoridade bispal, reafirmando seu poder sob três elementos constitutivos de seu predomínio: a piedade cristã, pois a liderança destes prelados está associada ao seu cuidado com os pobres e o 24

CORDERO, Navarro. Op. Cit. p. 114. VIVES, José. Op. Cit., p. 127. 26 BUENACASA PÉREZ, Carles. La figura del obispo y la formación del patrimonio de las comunidades cristianas según la legislación imperial del reinado de Teodosio I (379-395), Studia Ephemeridis Augustinianum, Roma, v. I, n. 58, p. 121-139, 1997. 27 ROSENWEIN, Barbara H. Negotiating space: power restraint and privileges of immunity in Early Medieval Europe. Nova Iorque: Cornell University, 1999. p. 22. 25

59 seu auto-controle ao limitar sua exploração; a prevalência sobre outros nobres, podendo interferir nas propriedades de laicos que possuem igrejas, e o controle sobre a delimitação espacial, marcado pela definição geográfica de sua administração.28 Por outro lado, a imunidade apresenta outra característica fundamental para compreendermos as relações sociais do período, uma abrangente flexibilidade, podendo ser um ponto de negociação entre membros da aristocracia, incluindo clérigos. Sendo assim, ela garante as alianças sociais entre nobres, que as concedem em troca de fidelidade política. A questão na Alta Idade Média não era realmente a força ou fraqueza do Estado: era a habilidade de soberanos e outros com poder para manter suas posições como figuras basilares e centrais nas vidas de famílias chaves, amigos (amici), guerreiros, e figuras religiosas (as categorias se sobrepõem).29

Portanto, os concílios buscam constantemente manter um controle de cunho institucional sobre seus prelados, por meio da ameaça de perda de seu domínio sobre as propriedades eclesiásticas. Algo que pode corroborar nossa hipótese, demonstrando a instabilidade na relação individual de bispos com a totalidade da instituição da qual faz parte. Seguindo esta linha de raciocínio, devemos nos debruçar novamente sobre as atas conciliares gerais com relação às proibições de alienação das posses das igrejas, expressadas principalmente nos cânones III e XXXIII dos Conc. Tol. III e IV respectivamente. Este santo concílio não autoriza a nenhum bispo a alienar as coisas da igreja, porque isto está proibido nos cânones antigos; porém se derem alguma coisa, que não prejudique gravemente os bens eclesiásticos em ajuda dos monges e igrejas pertencentes a suas dioceses, seja válida a doação. Também estão autorizados a socorrer as necessidades dos

28

Recentemente o arqueólogo Luís Fontes da Universidade do Minho vem analisando as delimitações espaciais da propriedade do mosteiro de Dume, ressaltando este aspecto do poder episcopal. Apontamentos iniciais desta pesquisa podem ser encontrados em: FONTES, Luís. O Período Suévico e Visigótico e o Papel da Igreja na Organização do Território. In: PEREIRA, Paulo (Coord.). Minho – Traços de Identidade. Braga: Universidade do Minho, 2009. p. 272-295. 29 “The issue in the Early Middle Ages was not really the strength or weakness of the state: it was the ability of rulers and others with power to maintain their positions as pivotal and central figures in the lives of key families, friends (amici), warriors and religious figures (the categories overlap).” ROSENWEIN, Barbara. Op. Cit., p. 7. Tradução nossa.

60 peregrinos, dos clérigos e dos pobres quando seja possível respeitando os direitos da igreja.30 A avareza é a raiz de todos os males, e a ânsia da mesma se apodera também dos corações dos bispos, e muitos fiéis por amor de Cristo e dos mártires constroem igrejas nos territórios dos bispos, e as enriquecem com oferendas, porém os bispos arrebatam estes bens e os empregam em seu próprio proveito; por isto falta quem se ocupe do culto divino, ao perder seus meios de sustento. A partir disto resulta que não se reparam as basílicas em ruínas, porque a avareza episcopal arrebata tudo. Pelo qual decreta o atual concílio que os bispos devem reger suas dioceses de modo que não tomem nada dos bens desta, senão que conforme ao prescrito nos concílios anteriores, se contentem somente com a terça parte, tanto das doações como das rendas e frutos, e se tomarem alguma coisa mais do que o estabelecido, o concílio reparará a injustiça, seja ante a reclamação dos próprios fundadores, seja ante a de seus parentes, se aqueles já estiverem mortos; mas saibam também os fundadores das basílicas, que não têm nenhum direito sobre os bens que houverem doado às ditas igrejas, senão que conforme o determinado pelos cânones, a igreja, bem como seus dotes estão sob a administração do bispo.31

Fica

evidente

nestes

cânones

que

estas

diretrizes

estão

voltadas,

majoritariamente, para os próprios epíscopos e não apenas para laicos, apesar de retirarlhes o direito de domínio, algo que discutiremos mais à frente ao tratarmos das igrejas próprias. Devemos considerar que os concílios, por sua definição, são direcionados, majoritariamente, para o próprio clero,32 por isto as proibições são dirigidas aos bispos. Ademais, as primeiras referências à inalienabilidade do patrimônio eclesiástico datam do início do século IV no concílio de Ancira e fazem alusão aos abusos feitos por 30

Haec sancta synodus nulli episcoporum licentiam tribuet res alienare ecclesiae, quoniam et antiquoribus canonibus prohibetur; si quid vero quod utilitatem non gravet ecclesiae pro suffragio monachorum vel ecclesiis ad suam parochiam pertinentium dederint, firmum maneat; peregrinorum vero vel clericorum et egenorum necessitati salvo iure ecclesiae praestare permittuntur pro tempore quo potuerint. VIVES, José. Op. Cit., p. 125-126. 31 Avaritia radix cunctorum malorum cuius sitis etiam sacerdotum mentes obtinet; multi enim fidelium in amore Christi et martyrum in parrochiis episcoporum basilicas construunt, oblationes conscribunt, sacerdotes haec auferunt atque in usus suos convertunt: inde est quod cultores sacrorum deficiunt dum stipendia sua perdunt, inde labentium basilicarum ruinae non reparantur, quia avaritia sacerdotali omnia auferentur. Pro qua re constitutum est praesenti concilio episcopos ita dioceses suas regere, ut nicil ex earum iure praesumant auferre, sed iuxta priorum auctoritatem conciliorum tam de oblationibus quam de tributis ac frugibus tertiam consequantur: quod si amplius quippiam ab eis praesuntum extiterit, per concilium restauretur, appellantibus autem ipsis conditoribus, aut certe propinquis eorum si iam illi a seculo decesserunt. Noverint autem conditores basilicarum in rebus quam eisdem ecclesiis conferunt nullam potestatem habere, sed iuxta canonum constituta sicut ecclesiam ita et dotem eius ad ordinationem episcopi pertinere. VIVES, José. Op. Cit., p. 204. 32 A presença de senhores laicos nos concílios visigóticos é ainda muito debatida entre estudiosos do período, José Orlandis possui um trabalho voltado a esta questão: ORLANDIS, Jose. Los laicos en los concílios visigodos. Anuario de historia del derecho español, Granada, n. 50, p. 177-187, 1980. É de se destacar que no CT VIII podemos notar inclusive a assinatura de alguns nobres laicos nas atas o que pode ser um indício de que, de fato, alguns não religiosos, além do rei, presenciavam estas assembleias, reforçando a idéia de uma estreita relação entre ambos os setores da nobreza.

61 representantes do alto clero,33 podendo significar que há um esforço de alusão a uma legislação canônica. No entanto, a condenação da avareza presente entre religiosos é frisada como uma das principais ruínas do elemento pastoral, portanto não podemos ignorar este claro indício da utilização dos bens das igrejas para engrandecer suas próprias riquezas. Se observamos os cânones XX e XXI do Conc. Tol. III,34 percebemos como a atitude de prelados para com a sua diocese de forma amplamente dominial, ambos proibindo a tributação sob a forma de “prestações pessoais” (suis angariis) de presbíteros, diáconos e servos da familia ecclesiae, para bispos e juízes, respectivamente. Ou seja, estas duas figuras estão associadas em seu descomedimento com relação aos graus mais baixos do clero. No cânone LI do Conc. Tol. IV a referência é ainda mais explícita, acusando epíscopos de tratarem os mosteiros que estão na região de sua atuação como sua propriedade (possessio). Isto não significa afirmar que eles não obtinham regalias das propriedades que estavam sob sua responsabilidade, claramente exposto em seu privilégio sobre a terça parte “(...) tanto das doações como das rendas e frutos”.35 Este direito é constantemente reafirmado utilizando-se de uma tradição canônica, aparentemente bem estabelecida,36 o que permite que estes alto-sacerdotes tenham um retorno material por sua posição de liderança. Como já denotamos no capítulo anterior, a divisão tripartite não prevê uma porção específica das riquezas episcopais para a caridade. María Teresa de Juan propõe que este evergetismo cristão se apresenta como um dos fatos que causa a confusão entre as propriedades do bispo e as da instituição eclesiástica.37 Isto porque, na medida em que investia muito de suas próprias posses para apoiar a comunidade que o cercava, encontraria no uso do patrimônio eclesiástico uma forma de autocompensação. Apesar de reconhecermos um ponto importante levantado pela autora no que se refere à ambiguidade que as medidas assistenciais causam, poderíamos observar isto sob outro ângulo, tendo em mente o conceito de dominus-patronus.

33

MARTINEZ DIEZ, Gonzalo. Cánones patrimoniales del Concilio de Toledo del 589. In: Concilio III de Toledo: XIV Centenario (589-1989). Toledo: Diputación Provincial, 1991. p. 565-579. 34 VIVES, José. Op. Cit., p. 132. 35 VIVES, José. Op. Cit., p. 204. 36 Cânones: 20 CT III, 33 CT IV. 37 TERESA DE JUAN, María. La gestión de los bienes en la iglesia hispana tardoantigua: confusión patrimonial y sus consecuencas. Polis. Revista de ideas y formas políticas de la Antiguëdad Clásica. Madrid, v. 10, p. 167-180, 1998.

62 Na medida em que estamos tratando de uma sociedade, que tem como um dos aspectos essenciais de sua estrutura a subjugação dos homens por meio da relação desigual, especialmente demarcadas no que concerne às relações verticais. Os grandes senhores de terra, especialmente os clérigos, ao se tornarem protetores das comunidades que os rodeiam, criam laços de dependência por parte de seus subservientes. Podemos citar Bruno Miranda Zétola, quando afirma: Considerando que no Reino Hispano-Visigodo não havia uma quantia do patrimônio eclesiástico reservada para a assistência aos pobres, e que os bispos se apropriavam de parte das riquezas da Igreja, notamos que a caridade se desenvolveu muito mais em âmbito pessoal do que de uma maneira institucionalizada pela Igreja. Em outros termos, a institucionalização da caridade urbana investiu-se na própria figura episcopal, e não no aparato eclesiástico. A caridade tornou-se uma virtude e uma obrigação dos bispos, e era desenvolvida como se fosse uma obra de misericórdia não da Igreja, muito menos daqueles que doavam bens para a Igreja, mas do próprio bispo.38

Compreendemos então que, a falta de uma especificação das rendas contribui para reforçar a imagem pessoal destes representantes do alto clero. Poderíamos considerar, também, que a escolha de um sistema tripartite estaria centrada no empenho em delimitar bem a divisão entre propriedades eclesiásticas e próprias, i. e., uma forma de coibir o uso do patrimônio das igrejas nas ações caritativas, mantendo sua inalienabilidade. Porém, é interessante notarmos que as atas conciliares demonstram um aspecto mais de ressalva e não proibição no tocante à doação de bens para os pobres: “(...) estão autorizados a socorrer as necessidades dos peregrinos, dos clérigos e dos pobres quando seja possível respeitando os direitos da igreja.”39 Martin, defende algo semelhante, mas vai mais além, argumentando que a distribuição para os pobres reforçava a dependência pessoal das comunidades (tanto citadinas quanto rurais) que estavam em torno das sedes episcopais, reiterando os domínios espaciais destas.40 Portanto, não é considerado pecaminoso que estes homens de deus possuam propriedades nem que utilizem o recurso dos templos ou tomem para si uma porção, considerável deve se dizer, de suas rendas. A riqueza em si não é um problema, mesmo para religiosos seculares, devemos então nos questionar o sentido que o pecado da 38

ZÉTOLA, Bruno Miranda. Discurso caritativo e legitimação do poder episcopal na antiguidade tardia: o caso de Emerita (550-633). Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre pelo curso de Pós-Graduação em História da Universidade do Paraná. Curitiba, 2005. p. 147. 39 VIVES, José. Op. Cit., p. 125-126. 40 MARTIN, Céline. Les évêques visigothiques... Op. Cit. p. 211.

63 avareza assume no período. O pensamento de Isidoro de Sevilha é de suma importância para trilharmos este caminho, não apenas por tratar-se de um autor visigodo, presente em parte do período que analisamos, mas devido à grande influência que este possui no discurso episcopal. Não podemos deixar de notar também que, a intertextualidade de sua obra demonstra seu amplo conhecimento de outros teólogos que também foram fundamentais para a estrutura cultural da Idade Média, sendo expressão de uma idéia que não é referenciada por apenas um indivíduo.41 Segundo a concepção isidoriana, o erro estaria associado ao mau uso destes extensos recursos em favor dos pobres ou ao desejo de se obter aquilo que não lhe pertence. Ambos estes vícios são representados de forma análoga, aquele que cobiça bens de outrem não os distribui e quem não é generoso anseia obter mais do que necessita, porém eles são subdivididos em avaritia e cupiditas respectivamente. A [diferença] entre avarus e cupidus: o avarus é aquele que não emprega seus próprios bens para bom uso, o cupidus é aquele que anseia aquilo que é do outro.42

Percebemos uma associação entre o bom uso do patrimônio e a distribuição de bens para os mais necessitados. Neste sentido é pertinente denotarmos que o termo explicitado no cânone XXXIII das atas do IV Conc. Tol., no qual Isidoro de Sevilha estava presente, é avaritia. Sendo assim, podemos compreender que a normativa aí exposta está acusando os bispos de gerirem mal as posses sob sua administração. O metropolita hispalense, ainda associado a uma tradição de autores cristãos,43 demonstra que o ato da avareza episcopal desencadeia uma série de eventos que culminam com a deterioração de toda a sociedade, levando-a a ruína. Isto pode ser observado segundo uma concepção de que os bispos atuam no âmbito secular, como representantes terrenos da realidade que está no Além. As igrejas, sendo representações materiais da divindade no mundo, deveriam reger seus bens não apenas para estabelecer a adoração a deus, mas ser também um aspecto do paraíso na terra, sob uma lógica de mediação. 44 Ou seja, o pecado de um destes líderes religiosos significava, sob esta ótica, a punição de todos 41

NEWHAUSER, Richard. The early history of greed: the sin of avarice in Early Medieval thought and literature. Cambridge: Cambridge University, 2004. p. 107-110. 42 ISIDORO DE SEVILHA. De differentiis verborum. 43 Richard Newhauser demonstra como o argumento de uma reação em cadeia que leva à completa degradação social está presente nos autores cristãos desde Lactâncio. NEWHAUSER, Richard. Op. Cit., p. 22. 44 IOGNA-PRATT, Dominique. Préparer l’au-delà, gérer l’ici-bas: les élites ecclésiastiques, la richesse et l’économie du christianisme (perspectives de travail). DEVROEY, Jean Pierre; FELLER, Laurent; LE JAN, Régine [eds.]. Les élites et la richesse au haut Moyen Âge. Turnhout: Brepols, 2011. p. 59-70.

64 aqueles que estão sob sua autoridade, não apenas no plano mundano, mas também no pós-vida.45 Encontramos neste ponto, um dos elementos fundamentais que constroem a duplicidade “espiritualidade x racionalismo econômico” que propõe Carles Buenacasa Pérez,46 reafirmando a autoridade episcopal nos sentidos pragmático, espiritual e ascético.47 A administração da diocese não pode empobrecer em demasiado as igrejas, mas deve constantemente redistribuir rendas e frutos para consolidar, duplamente, sua prevalência sobre outros setores da nobreza e sua posição como patronus daquele entorno. Estabelece-se, desta forma, a compreensão de que, em devidos casos, o uso de bens eclesiásticos é permitido para “(...) socorrer as necessidades dos peregrinos, dos clérigos e dos pobres(...)”.48 No IV Conc. Tol., em 633, já observamos uma menção direta aos concílios provinciais como forma de fiscalização dos gastos de bispos, em um cânone intitulado: “das promessas de pagamento a partir de bens da igreja.”49 Convém que, qualquer bispo que com a ajuda de outro promoveram algo no interesse da igreja, e houverem prometido a este alguma pequena remuneração, paguem o prometido, assim como busquem confirmação disto com aqueles reunidos em concílio provincial, pois disse o apóstolo Paulo: ‘o operário merece seu salário’ [1Tm 5,18] 50

Cabe ressaltar que, apesar da presença desta menção em concílio geral demonstrar um processo de institucionalização em diversos níveis da estrutura clerical, observamos que nos sínodos provinciais já havia uma tentativa de imposição de um controle da ação episcopal. Em Sevilha I, por exemplo, a doação de manumitidos e seus

45

Valério do Bierzo, autor visigodo da região da Galiza cujo a obra apresenta claras influências de Isidoro de Sevilha, demonstra certa consonância a isto em seu texto De Genere Monachorum, afirmando que os monges e pregadores que não possuíam conhecimento das escrituras estavam condenando não apenas a si mesmos, mas também a toda sua congregação. Neste sentido, para este eremita, seria o pior dos desvios de um cenobita, pois levaria ao inferno um grande contingente de inocentes. DÍAZ Y DÍAZ, Manuel. Valerio del Bierzo. Su Persona. Su Obra. León: Centro de Estudios e Investigación San Isidoro, 2006. 46 BUENACASA PÉREZ, Carles. Espiritualidad vs racionalidade económica: los dependientes eclesiásticos y el perjuicio económico a la iglesia de Dumio em el testamiento de Ricimiro (656). POLIS. Madrid, v. 16, p. 7-32, 2004. 47 Aqui, devemos lembrar as reflexões realizadas por Rapp. Cf.: RAPP, Claudia. The nature of leadership in late antiquity. In:______. Holy bishops in late antiquity. Berkley: University of California, 2005. p. 322. 48 (...)pergrinorum vero vel clericorum et egenorum necessitati salvo(...). VIVES, José. Op. Cit., p. 126. 49 De promissi solutione ex rebus ecclesiae. VIVES, José. Op. Cit., p. 205. 50 Quiquumque episcopi suffragio cuiuslibet aliquid ecclesiasticae utilitatis providerint et pro id quodquumque modicum in remuneratione promiserint, promissi solutionem eos exsolvere oportebit, ita ut id ad concilium conproviciale deductum eorum coniventia confirmetur, quia sicut Paulus apostolus ait: Dignus est operarius mercedem suam accipere. VIVES, José. Op. Cit., p. 205. A indicação bíblica foi feita por nós.

65 pecúlios para parentes feitas pelo bispo Gaudêncio é considerada inválida e indica-se que estes homens e posses retornem ao domínio da diocese.51 No entanto, uma das referências mais explícitas encontradas nos concílios provinciais, sobre relação ao uso indevido ou subtração de patrimônios, é o cânone VIII presente nas atas de Narbona, que já foi citado neste capítulo. 52 Devemos atentar ao fato de que, esta normativa foca-se sobre outros membros da hierarquia clerical que não os prelados: “qualquer clérigo, subdiácono, diácono ou presbítero(...)”.53 Interessa-nos observar neste ponto que, o escopo dos assuntos tratados possui um caráter bem mais localizado em comparação aos Conc. Tol., tratando de níveis mais específicos da administração episcopal. Além disto, é relevante destacarmos uma das ações punitivas propostas, afora da devolução das coisas tomadas e da penitência, a remoção do perpetrador das imediações de onde cometeu a fraude. Considerando tal punição em perspectiva com a estrutura social que apresentamos, percebemos que o afastamento de um indivíduo de uma localidade específica, deve significar a decomposição de diversas de suas alianças políticas, ainda que estas sejam incomparáveis com aquelas estabelecidas entre membros mais destacados da nobreza.54 Como já expusemos anteriormente, a afirmação da autoridade se dá, majoritariamente, em um nível local, o que significa que a realocação de um indivíduo que tem anseios de ascender na hierarquia clerical, e provavelmente socialmente também, pode vir a ser um grande empecilho. Outrossim, há de se frisar que a disposição canônica que citamos não proíbe a retirada de algo dos templos, apenas reforça a necessidade de consentimento do bispo, reafirmando sua posição de liderança e gestão. Notamos mais uma vez, um aspecto do processo

que

busca

estruturar

institucionalmente

a

responsabilidade

e,

consequentemente, o poder dominial das altas camadas do clero. Destarte, o problema não está em subtrair este bem, mas em fazê-lo de forma errônea ou buscando o benefício próprio, assim como vemos no IV Conc. Tol., evitando o consentimento diocesano.

51

VIVES, José. Op. Cit. p. 151-152. VIVES, José. Op. Cit. p. 148. 53 Quiquumque clericus, subdiaconus, diaconus, presbyter(...).VIVES, José. Op. Cit. p. 148 54 Devemos nos remeter novamente a Mário Jorge da Motta Bastos quando ele defende a existência de uma discrepância social entre senhores de terra. BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na Terra como no Céu...: Paganismo, Cristianismo, Senhores e Camponeses na Alta Idade Média Ibérica (Séculos IVVIII). São Paulo: EDUSP, 2013. p. 65. 52

66 O cenário de reestruturação da História, levado a cabo em particular pela Escola dos Annales, possibilitou o alargamento do conceito de “documento” permitindo um crescimento indefinido de materiais que fundamentam a pesquisa historiográfica como nos mostra Jacques Le Goff.55 No entanto, como consequência disto, notamos um relativo abandono de códigos legislativos e outros textos do âmbito jurídico, tão caros aos historiadores positivistas, bem como leituras críticas voltadas ao funcionamento do direito nas sociedades do passado. Mesmo com a renovação desenvolvida pela Nova História Política, ainda são poucos os historiadores que propõe novos olhares sobre estes temas, especialmente no tocante ao período dos séculos V-VII no Ocidente europeu. Portanto, fica a cargo dos juristas o estudo das antigas leis, enfocando-se mais os aspectos da jurisprudência ou aplicabilidade destas normativas do que à tentativa de compreensão destas como discursos constitutivos de uma realidade social, permeadas por disputas políticas. Neste sentido, podemos esboçar um elemento presente em todo o discurso conciliar ao qual poucos autores chamaram atenção: o patrimônio eclesiástico é inalienável, porém, não é intransferível ou imutável. Podemos encontrar um exemplo muito claro disto, ao qual vamos dar mais atenção, nas referências à prescrição de 30 anos, presentes em diversas fontes do período visigótico.56 Embasando-nos em aspectos teóricos da ciência do Direito, a normatividade contida nesta construção legislativa apresenta um sentido de ação de reivindicação: As condições essenciais ou pressupostos jurídicos para o exercício da ação real reivindicatória são dois: um autor proprietário e um réu possuidor. Os dois termos são correlatos. Ao proprietário deve faltar a posse e ao demandado deve faltar a propriedade: um proprietário não possuidor e um possuidor não proprietário(...).57

Sendo assim, esta normativa está voltada para a solução de conflitos que envolvem a posse de uma terra ou objeto por tempo determinado de 30 anos, cedendo

55

LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In:______. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1990. p. 535-553. 56 O título II do livro X da Lex Visigothorum é completamente voltado para a questão da prescrição de 30 anos, ressaltando o aspecto jurídico que delineia os elementos de posse e domínio sobre uma propriedade. SCOTT, S. P. Op. Cit., p. 343-347. É interessante notarmos que toda a legislação em torno disto tem como um de seus marcos iniciais uma normativa antiqua que já estava presente no Breviário de Alarico, no entanto, as releituras ocorridas no desenvolvimento da sociedade visigótica demonstram uma profunda transformação na jurisprudência destas leges. 57 BORGES, Marcos Afonso. Ação de Reivindicação. Revista da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 4, n. 1, p. 63-75, 1980.

67 direito de propriedade, caso o proprietário não busque reclamar seus bens.58 No entanto, são diversos os trâmites legais apresentados na Lex Visigothorum que demonstram os vários entraves para que um senhor fosse forçado juridicamente a ceder seu domínio.59 Retomando nossa temática mais específica, é pertinente observarmos a normativa presente nos cânones do IV Conc. Tol. acerca da prescrição de 30 anos para o patrimônio eclesiástico. Qualquer bispo que possuir por 30 anos ininterruptos a paróquia de outro bispo, posto que segundo o juízo da lei esta paróquia já é vista como sendo sua, não se admitirá contra ele ação de reivindicação, porém esta posse será considerada nula caso ultrapasse os limites provinciais, para que ao defender-se uma paróquia não se confundam as fronteiras das províncias.60

Dois elementos são muito significativos neste texto e devem ser destacados: os limites provinciais são diretamente apresentados como fronteiriços (termini) e a transmissão do direito de posse entre bispos está apresentado explicitamente. O primeiro ponto, ao qual já chamamos atenção, dá mais carga a nosso ponto de vista, no qual consideramos a questão das províncias como uma constituição administrativa de importância fundamental, onde líderes locais assentam boa porção de seu poder como dominus-patronus. Seguindo esta linha de raciocínio, a transposição deste limiar poderia significar uma ameaça à estrutura dominial visigótica, especialmente se considerarmos as questões relacionadas ao combate de sedições internas, como afirmou Martin.61 O segundo elemento que destacamos demonstra claramente o processo de transferência da autoridade sobre uma paróquia entre dioceses. Portanto, não podemos considerar que o domínio sobre uma igreja seja algo tão imutável quanto inicialmente se

58

A lex 1 do título II do livro X da Lex Visigothorum define inicialmente a prescrição de 50 anos, no entanto as leges e referências canônicas que perpassam o reino visigodo do século VII, indicam, usualmente, a contagem de 30 anos. SCOTT, S. P. Op. Cit., p. 343. 59 Dois motivos nos levam a desconsiderar esta normativa como uma ação de usucapião: em primeiro lugar, pois estabelece-se a obrigatoriedade do proprietário de reclamar os bens sob sua autoridade. Em segundo lugar, percebemos no discurso presente nas leges uma prevalência do dominus que já detém o direito de propriedade, sob aquele que o possui. 60 Quiquumque episcopus alterius episcopi diocesem per XXX annos sine aliqua interpellatione possederit, quia secundum ius legis eius iam videtur esse diocesis, admitenda non est contra eum actio reposcendi, sed haec intra unam parrochiam, extra vero nullo modo, ne dum diocesis defenditur provinciarum termini confundantur. VIVES, José. Op. Cit., p. 205. 61 MARTIN, Céline. In Confinio Externis... Op. Cit. p. 269.

68 pensava. Ademais, este cânone demonstra que há, inclusive, um aspecto de competição entre epíscopos para afirmar seu arbítrio sobre templos específicos. Ambas questões ficam ainda mais evidentes quando analisamos os cânones presentes nas atas conciliares de Sevilha II: (...) foi tratada a controvérsia surgida entre os mencionados irmãos nossos Fulgêncio, de Écija, e Honório, de Córdoba, bispos, pelo pertencimento de certa igreja, pois afirmava um deles que era Celticense, e o outro que era Reginense, e como entre ambas as partes se discute uma questão de limites que não poderia ser presumida por nenhuma posse antiga que fosse, por isto, e para que daqui adiante não houvesse entre eles nenhuma dúvida de nosso parecer, foram lidos os decretos conciliares, a autoridade dos quais manda que convém de tal modo dar fim a cupidez, que ninguém possa usurpar terrenos alheios, e assim consideramos por bem enviar peritos para inspecionar em ambas as partes de tal modo que se a linha fronteiriça fixada por velhos sinais mostrar que a basílica se encontra situada na diocese do atual possuidor, permaneça como eterno domínio da diocese que atualmente a retém com justiça, e se a legítima linha fronteiriça não abarca esta basílica, porém caso fique provado a prescrição, durante o prazo suficiente, a reclamação do bispo requerente não prosperará, porque lhe impõe silêncio a objeção de posse durante trinta anos, pois isto ordenam os éditos dos príncipes seculares 62 (...). Mas se parece que a basílica foi injustamente retida dentro de fronteiras alheias, por um tempo inferior aos trinta anos, será restituída sem adiamento ao domínio do bispo requerente. 63

Este excerto que optamos por reproduzir demonstra a complexidade que estão envolvidos nos concílios provinciais. Primeiramente é notável o processo relativo à solução de conflitos que ocorrem entre membros do alto clero, buscando afirmar seu poder sobre uma igreja. Cabe destacar que estas atas foram produzidas antes da realização do IV Conc. Tol., manifestando a intercadência presente entre as disposições

62

Cabe ressaltarmos que a compilação da Lex Visigothorum, que organiza toda uma tradição legal visigótica, só é realizada no reinado de Recesvinto entre 653 e 672, portanto bem depois da realização de qualquer um dos concílios mencionados. SCOTT, S. P. Op. Cit. 63 Inter memoratos fratres nostros Fulgrntium Astigitanum et Honorium Cordobensem episcopos discussio agitata est propter parrochiam basilicae, quam horum alter Celtisensem alter Reginensem adservit; et quia inter utrasque partes hactenus limitis actio vindicata est, cuius quamvis vetusta retentio nullum iuris praedicium adferret, ideoque ne in dubium ultra inter cos nostra devocaretur sententia, prolatis canonibus synodalia decreta perlecta sunt quorum auctoritas praemonet ita oportere inhiberi cupiditatem ut nequis terminos alienos usurpet, ob hoc placuit inter alternas partes inspectionis viros mittendos, ita ut in diaecesi possidentis sitam baselicam veteribus signis limes praefixus monstraverit ecclesiae cuius est iusta retentio sit aeternum dominum; quod si et limites legitimus eandem baselicam non concludet sed tam longi temporis probatur obiecta praescribtio, appellatio repetentis episcopi non valebit, quia illi tricennalis obiectio silentium ponit. Hoc enim et saecularium principum edicta praecepiunt et praesulum Romanorum decrevit auctoritas. Sin vero infra metas tricennalis temporis extra alienos terminos baselicae injusta retentio reperitur, repetentis iuri sine mora restituetur. VIVES, José. Op. Cit. p. 164.

69 elaboradas no âmbito regional e geral. Neste sentido, vemos uma clara referência a cupidez dentro da teologia visigótica, e especialmente a isidoriana, já que Isidoro atuava como metropolita na Bética deste período e estava presidindo este sínodo. A cupiditas está relacionada aqui, diretamente à tentativa de subtração do território alheio. É significativo que as ordens dos “(...) éditos dos príncipes seculares” esteja presente em um contexto conciliar. Isto demonstra como a construção legislativa religiosa e laica se influenciam mutuamente no reino visigodo, reforçando o poder da justiça real como uma referência à estruturação da normatividade, concomitantemente à reafirmação do direito canônico como um discurso jurídico tão importante quanto as leges.64 Destarte, não é de se estranhar que a consulta à tradição conciliar desempenha um papel fundamental para a resolução do embate entre os bispos. Ou seja, percebemos como o episcopado busca consolidar sua posição como (re)produtores de um sistema simbólico, ressaltando seus próprios preceitos em um semblante de legalidade enquanto o equiparam ao código legislativo secular. Isto demonstra também os laços que a instituição eclesiástica possui com a monarquia, fortalecendo-se reciprocamente em um sentido ideológico. Ainda nas atas de Sevilha II, no cânone I, é relevante que o uso especificidades legais civis sejam utilizadas: (...) Teodulfo, bispo da igreja malacitana, apresentou ante nós uma súplica afirmando que a antiga diocese desta cidade havia sido dilacerada em outro tempo por ocasião de algumas operações militares e havia passado parcialmente ao poder das dioceses de Écija, Elvira e Cabra. Acerca do qual decidimos por bem que qualquer território que provar haver pertencido antes das operações militares por direito antigo a sua própria diocese, seja devolvido à jurisdição daquela(...) pois não poderá afirmar-se haver passado o prazo de prescrição onde existia a causa maior da guerra.65

Neste cenário, a prescrição de 30 anos desempenha um papel central na sociedade e entre os membros do clero especialmente. O risco de se negligenciar alguma parte de toda a extensão da autoridade diocesana, pode significar a perda de 64

VELÁZQUEZ SORIANO, Isabel. Op. Cit. Teudulfi Malacitanae ecclesiae antestitis ad nos oblata precatio est adserentis antiquam eiusdem urbis parrochiam militaris condam hostilitatis discrimine fuisse descissam et ex parte aliqua ab ecclesiis Astigitanae, Eliberritanae atque Egabrensis urbio esse retentam. Pro qua re placuit ut omnis parrochia quae ab antiqua ditione ante militarem hostilitatem retinuisse ecclesiam suam conprobaret eius privilegio restitueretur. Sicut enim per legem mundialem his quos barbarica feritas captiva necessitate transvexit, postliminio reverentibus redditur antiqua possessio, non aliter et ecclesia receptura parrochiam quam ante retinuit cum rebus suis, sive ab aliis ecclesiis possideantur sive in cuiuslibet possessione transfusa sunt, non erit obicienda praescriptio temporis ubi necessitas interest hostilitatis. VIVES, José. Op. Cit., p. 163-164. Cabe destacar que esta disposição é muito semelhante à presente em LV, X, 2, 6. SCOTT, S. P. Op. Cit. 65

70 uma parcela de seu domínio sobre um território, ressaltando a necessidade do bispo de se afirmar como dominus-patronus das propriedades sob sua liderança. Porém, o patrimônio eclesiástico se constitui simbolicamente ao contrário do que podemos observar entre os laicos, detendo uma série de especificidades que se aplicam a ele. Assim como pela posse durante 30 anos se adquire uma igreja alheia, do mesmo modo não se obtém jurisdição do território; de forma que as igrejas que forem fundadas novamente pertencerão à jurisdição do bispo que a fez fundar.66

Portanto, notamos que o direito de propriedade de uma terra na lógica jurídica visigoda é bastante complexa, especialmente ao tratarmos da posse sobre igrejas. Devemos chamar atenção que, comumente nas atas conciliares a figura do bispo é associada a sua atuação como administradores do patrimônio. Não é de se admirar que mais tardiamente, no reinado de Wamba (672-680), os bens das dioceses serão considerados como pertencentes diretamente a deus e por isto não poderem ser subtraídos.67 É expressivo que a influência divina seja traduzida por meio de uma jurisprudência amplamente senhorial, que apresenta sua autoridade segundo a construção institucional desta sociedade.68 Devemos considerar também, segundo a teoria de Susan Wood, que após o século V vemos surgir na Europa Ocidental a possibilidade de templos individuais possuírem bens, que apesar de estarem sob responsabilidade de epíscopos, estão também sob influência das famílias que as constroem e dotam.69 Esta conjuntura de dispersão do privilégio sobre a terra está em total consonância com nossas propostas analíticas e teóricas, reforçando nossa visão de que o poder depende das constantes alianças que os senhores constroem entre si. Isto pode ser denotado, principalmente na relação estabelecida entre os prelados e os fundadores de igrejas, ao qual vamos tratar abaixo.

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Sicut diocessim alienam tricenalis possessio toilit, ita territorii conventum non adimit, ideoque basilicae quae novae conditas fuerint ad eum proculdubio episcopum pertinebunt, cuius conventus esse constiterit. VIVES, José. Op. Cit., p. 205. 67 LV, V, 1, 6. SCOTT, S. P. Op. Cit. 68 A característica amplamente senhorial e consuetudinária do código legislativo visigodo é referenciado por alguns estudiosos do Direito, por exemplo: LEAR, Floyd Seyward. The public law of the visigothic code. Speculum, Cambridge, v. 26, n. 01, p. 1-23, 1951.; AZEVEDO, Luiz Carlos de. O direito visigótico. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 96, p. 3-16, 2001. 69 WOOD, Susan. The proprietary church in the Medieval West. Oxford: Oxford University, 2006. p. 13-14.

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Fundadores de igrejas A possibilidade de laicos erigirem edifícios religiosos não é uma particularidade deste período. Outrossim, para alguns autores, esta atividade é um forte indício da presença das chamadas “igrejas próprias”. Segundo define Magdalena Rodríguez Gil: (...) Essa denominação identifica as igrejas (incluindo monastérios) construídas e dotadas por proprietários, sobretudo laicos, em terras de sua propriedade. Exerciam sobre elas um conjunto de direitos patrimoniais, pessoais e reais(...). Esses direitos procediam da fundação e dotação de templos nesse solo (...). Por esta causa, o dono podia perceber certos direitos, tanto na nomeação do clérigo, como na arrecadação de todo ou parte do rendimento da igreja, dízimos, estipêndios, doações, etc. (...) Utilizadas [também] como via de consolidação da propriedade fundiária que se desejava proteger frente à pressão régia, expropriatória ou devolutória (sic).70

Sendo assim, a construção e dotação de templos cristãos está fundamentada na relação patrimonial, intimamente ligada ao conceito de propriedade segundo os aspectos que delineamos, amplamente dispersivo. Diversos autores que se debruçaram sobre a questão da posse de templos por parte de indivíduos que não eram pertencentes aos setores clericais afirmam que a existência desta prática é um obstáculo para a centralização política que ocorre no período.71 Isto devido à visão deles de que, a edificação e apropriação de locais de culto por parte da nobreza laica assume uma perspectiva aparentemente discrepante do cenário de estruturação política que vinha sendo construído, particularmente após o Conc. Tol. III.72 Distanciamo-nos diametralmente destas opiniões, este perfil instável que alguns historiadores concebem

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RODRÍGUEZ GIL, Magdalena. Consideraciones sobre una antigua polémica: las Iglesias propias. Cuadernos de historia del derecho, Madrid, n. 6, p. 247-272, 1999. p 248-249. 71 O trabalho de Manuel Torres é possivelmente um dos primeiros a tratar deste tema, relacionando-o diretamente ao reino visigodo: TORRES, Manuel. El origen del sistema de “iglesias propias”. Anuario de historia del derecho español, Granada, n. 5, p. 83-217, 1928. Além disso, cabe ressaltar outros vários trabalhos sobre história do reino visigodo que não pretendem abordar diretamente o assunto, porém possuem importantes considerações acerca dele, como: MARTÍNEZ DIEZ, Gonzalo. Canones patrimoniales del Concilio de Toledo de 589. In: ARZOBISPADO DE TOLEDO. CENTENARIO DEL CONCILIO III DE TOLEDO, 14, 1989. Actas..., Op. Cit., Toledo: Arzobispado de Toledo, 1991. e ORLANDIS, José. Historia del Reino Visigodo Español. Madrid: Rialp, 1988. p. 314-315. 72 Esta visão fica particularmente clara em autores como: FERNANDEZ ALONSO, Justo. La cura pastoral en la España romanovisigoda. Roma: Iglesia Nacional Española, 1955. p. 215-223; GARCIA VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia en España. Espanha: Biblioteca de Autores Cristianos, 1979. p. 595-610. Há também um trabalho mais recente: TESTÓN TURIEL, Juan Antonio. El monacato en la diocésis de Astorga en los periodos antiguo e medieval: La Tebaida Berciana. León: Universidad de León, 2008. p. 154-159.

72 para os templos particulares se deve ao próprio processo no qual se baseia a organização política desta sociedade. Renan Frighetto nos traz duas hipóteses sobre a intervenção secular na vida religiosa,73 mais especificamente na monástica, feita sob o pretexto de direito senhorial sobre suas propriedades. A primeira está associada a um caráter ideológico, “(...)a afirmação da condição cristã por parte de um grande proprietário seria condição sine qua non de sua aproximação aos elementos da alta nobreza(...)”74. A segunda possui um caráter diretamente econômico, “assim destinavam-se a estas fundações monásticas uma quantidade considerável de oferendas e dádivas que a transformavam em autênticos pólos de atração da economia regional.”75 Neste último ponto devemos chamar a atenção de que a edificação de mosteiros garantia aos nobres uma forma de expandir seus direitos de proprietários sobre bens imóveis previamente régios, assim como obter regalias referentes à taxação e fiscalidade do poder secular. Cabe lembrarmos as reflexões realizadas por Bastos, que apesar de não possuir nenhuma obra dedicada exclusivamente às igrejas próprias, interessa-se pelo tema.76 Partindo disto, podemos notar uma proximidade entre as idéias deste autor e de Frighetto. Bastos afirma que a construção de templos por parte de senhores remete-se à “(...) articulação, em seu entorno, das atividades econômicas, das dependências pessoais e da própria dinâmica religiosa”77 percebemos aí a diferença essencial entre estes pesquisadores sobre esta questão. Enquanto Frighetto centraliza o debate no binômio clérigos/leigos, Bastos apresenta uma teoria mais condizente com o reconhecimento de um elemento sistemático no tocante às igrejas próprias. Ou seja, ele defende a existência de uma rede relacional, entre senhores laicos e senhores eclesiásticos, mais pautada no

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FRIGHETTO, Renan. Sociedade e Cultura no NO. Peninsular Ibérico em finais do século VII, segundo o De Genere Monachorum de Valério do Bierzo. Gallaecia, Santiago de Compostela, v. 18, p. 363-373, 1999. 74 Idem, p. 365. 75 Idem, p. 366. 76 BASTOS, Mário Jorge da Motta. Religião e hegemonia aristocrática na Península Ibérica (séculos IV – VIII). Tese apresentada à Área de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor. USP, 2002. e; BASTOS, Mário Jorge da Motta. Santidade e relações de dom(inação) na Alta Idade Média Ibérica (séculos VI/VII). Colóquio Ler, Escrever e Narrar na Idade Média, Rio de Janeiro, 5 a 8 de maio de 2009. 77 BASTOS, Mário Jorge da Motta, et alli. Dom, dominação e santidade na Alta Idade Média Ibérica. NOTANDUM. São Paulo/Porto, v. 13, n. 24, p. 65-78, 2010.

73 pertencimento de ambos à camada nobiliárquica do que ser ou não um homem do clero.78 Além disto, há uma questão de cunho bem mais subjetivo que influencia nosso trabalho: a noção delineada de uma “igreja própria” não é algo que se faz presente no período em questão. Em nenhum documento encontramos uma referência explícita nestes termos, o que aponta para a ausência de uma forma jurídica específica destas basílicas, apartada de outros edifícios religiosos que estavam sob cuidado diocesano. Ainda que a existência de locais de culto administrados ou pertencentes a indivíduos leigos desde o Baixo Império seja um fato.79 A diferenciação conceitual entre igrejas pertencentes a laicos ou à instituição eclesiástica é uma problematização delineada em finais do século XIX, sendo Ulrich Stutz o autor que cunhou a expressão eigenkirchen.80 Destarte, não podemos deixar de conceber que esta idéia está muito mais associada à visão de homens contemporâneos, buscando abarcar uma realidade distante da nossa. Ainda assim, é fundamental nos debruçarmos sobre esta problematização para compreendermos mais sobre o patrimônio eclesiástico. Neste sentido, destacamos os cânones XV e XXXVIII dos Conc. Tol. III e IV, respectivamente: Se algum dos servos fiscais [servis fiscalibus]81 por ventura construir alguma igreja e quiser enriquecê-la de sua pobreza, que procure o bispo com suas súplicas para que o feito seja confirmado pela autoridade real.82 Os sacerdotes devem dar aos pobres o necessário para uma vida confortável, sobretudo para aqueles aos quais exercitase uma restituição. Portanto, qualquer fiel que por devoção ceder algo de seus bens à igreja, se acaso ele próprio ou seus filhos forem reduzidos à pobreza, deverão receber da mesma igreja o necessário para viver segundo as circunstâncias, pois se de fato clérigos, monges, peregrinos e qualquer um que padeça de necessidade se concede o desfrute de bens

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BASTOS, Mário Jorge da Motta. Santidade, hierarquia e dependência social na alta idade média. História Revista, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 135-159, 2006. p. 139-140 79 TORRES, Manuel. Op. Cit, p. 145. 80 Termo tradicionalmente traduzido do alemão como “igreja própria”. 81 O termo utilizado aqui remete-se à questão dos servi fisci, que diferentemente do que o nome poderia sugerir, não são sob nenhum aspecto servos. Segundo a opinião de Santiago Castellanos, a qual compartilhamos, o servus fisci é na realidade um membro da aristocracia que detém terras cedidas sub precário, estratégia aparentemente bastante utilizada por alguns reis visigodos para estabelecer uma relação de fidelidade com membros da nobreza. CASTELLANOS, Santiago. Political nature of taxation in Visigothic Spain. Early Medieval Europe, Oxford, v. 12, n. 3, p. 201-228, 2003. 82 Si quis ex servis fiscalibus fortasse ecclesias contruxerint easque de sua paupertate ditaverint, hoc procuret episcopus prece sua auctoritate regia confirmari. VIVES, José.. Op. Cit. p. 129.

74 eclesiásticos apenas pelo intuito religioso, quão mais consolo devemos àqueles ao qual se deve uma retribuição justa? 83

Devemos notar que não há em nenhum momento nestes concílios uma proibição em relação à fundação de templos por membros da aristocracia laica, por outro lado, há uma espécie de incentivo para a edificação destas, contanto que tenha a bênção da instituição eclesiástica. Percebemos, então, que a ação clerical está associada a um esforço de regulação mais do que de extinção desta iniciativa. Aliás, a disposição conciliar deixa claro que os membros da aristocracia detém alguns direitos, hereditários diga-se de passagem, sobre os templos fundados ou dotados. Inclusive, podemos nos remeter novamente ao cânone XXXIII das atas do Conc. Tol. IV, já destacado em outros momentos, no qual é reforçado o poder que os fundadores e seus parentes possuem para destituir um bispo de seu cargo, por meio de denúncias relativas à avareza episcopal.84 É significativo também que a normativa que apresentamos do Conc. Tol. III esteja se referindo à figura do “servos fiscais”. Este termo, remete-se à questão dos servi fisci, que diferentemente do que o nome poderia sugerir, não são, sob nenhum aspecto, servos. Segundo a opinião de Santiago Castellanos, a qual compartilhamos, o servus fisci é na realidade um membro da aristocracia que detém terras cedidas sub precario, ou seja, sem direito de posse, apenas de usufruto. Segundo o autor, este modelo jurídico de propriedade era estrategicamente bastante utilizado por alguns reis visigodos para reforçar os laços de fidelidade com membros da nobreza, podendo destituí-los destas terras, em momentos convenientes.85 No entanto, templos religiosos detinham imunidade e isenção frente o poder régio, como afirma Rodríguez Gil. 86 Desta forma, podemos concluir que este subterfúgio deveria ser constantemente utilizado pela aristocracia para tentar afirmar sua autoridade sem intervenção direta da monarquia. Seguindo esta linha de raciocínio, a instituição eclesiástica aparenta ser mais uma facilitadora deste processo do que um entrave a ele, dando a esta relação um caráter oficioso, um reconhecimento do rei. Fica novamente clara a estreita aliança entre a

83

Praebendum est sacerdotibus vitae solatium indigestibus et maxime his quibus restituenda vicissitudo est. Quiquumque ergo fidelium de facultatibus suis ecclesiae aliquid devotione propria contulerint, si forte ipsi aut filii eorum redacti fuerint ad inopiam, ab eadem ecclesia suffragium vitae pro temporis usu percipiant. Si enim clericis vel monachis seu peregrinis aut quamlibet necessitatem sustinentibus pro solo religionis intuitu in usu res ecclesiasticae largiuntur, quanto magis his consulendum est quibus retribuitione iusta debetur? VIVES, José. Op. Cit. p. 206. 84 VIVES, José. Op. Cit. p. 204. 85 CASTELLANOS, Santiago. Political nature of taxation… Op. Cit. p. 216-218. 86 RODRÍGUEZ GIL, Magdalena. Op. Cit.

75 monarquia e o clero, na qual os prelados detêm o poder de consagrar estes templos, garantindo desta forma a confirmação régia. Ao nos voltarmos para as atas conciliares provinciais, percebemos que no sínodo ocorrido em Toledo no ano de 597, a normativa que possui alusão aos nobres laicos que dotam as igrejas, encaminha também uma tentativa de controle sobre estes templos. O modo como isto é perseguido, é a nomeação de um clérigo de grau adequado. (...) Decidiram também os bispos que todo o prelado averigue em sua diocese os templos de Deus, e quando um doador, que edificou uma santa igreja de Deus, e a deixou para seu herdeiro, que seja nomeado ali mesmo um presbítero que a sirva segundo as disposições dos cânones anteriores. E se o patrimônio não permitir sustentar um presbítero, designe-se um diácono; e se nem mesmo a isto chega a renda, que o bispo eleja um hostiário que cuide da limpeza do interior do templo e que acenda as luminárias das santas relíquias ao cair de cada noite.87

Observamos que o direito de herança sobre um santuário não é questionado em nenhum momento, apenas é explicitado a necessidade de que o epíscopo nomeie alguém com um nível apropriado às rendas do local. Cabe destacarmos sobre o tema outro ponto fundamental: segundo alguns autores as igrejas próprias são em grande parte responsáveis pela disseminação do cristianismo nas áreas rurais distantes dos centros urbanos onde atuavam os principais membros da elite eclesiástica.88 Portanto, era interessante, até certo ponto, para o episcopado a contínua construção de locais de culto, pois garantia, por um lado, a expansão das estruturas simbólicas que reforçava a autoridade clerical, por outro, o crescimento das propriedades que poderiam ser consideradas patrimônio eclesiástico. Outrossim, podemos perceber algumas críticas ao baixo nível de qualificação dos párocos em alguns textos do período, entre eles o mais digno de nota seria o De Genere Monachorum de Valério do Bierzo. Nesta obra do eremita, os pregadores que atuam em

87

Id placuit sacerdotius, ut quisquis antistes infra suam parrochiam Dei aulam inquirat, et munificus ille, qui sanctam Dei aedificaverit ecclesiam, quod ibidem pro suum herede largitus est, eodem loco presbyterum ea facultas habere non permittit, vel diaconus instituatur. Certe, si minus est census, ostiarius a sacerdote sit electus, qui nitorem infra sinus ecclesiae faciat; qui sanctarum reliquiarum luminaria omni subsequente nocte accendat. VIVES, José. Op. Cit. p. 156-157. 88 FONTES, Luís. O Período Suévico e Visigótico e o Papel da Igreja na Organização do Território. In: PEREIRA, Paulo (Coord.). Minho – Traços de Identidade. Braga: Universidade do Minho, 2009. p. 272-295. p. 286.

76 templos particulares e que não possuem competência para exercerem esta função, são identificados como a pior classe de religiosos que existem.89 No que concerne o apoio aos fundadores laicos devemos nos remeter a Frighetto, que demonstra que o reconhecimento dos bens simbólicos cristãos é aspecto fundamental para a inserção nas redes de interdependência das altas camadas.90 Podemos considerar que fazer parte desta rede de auxílio da igreja é um dos vários aspectos de reconhecimento e pertencimento ao sistema simbólico instituído. Desta forma, a construção de igrejas serviria como um meio de estreitar os laços com membros do episcopado. Além disto, ao considerarmos que a relação da nobreza secular com estas igrejas próprias retém semelhanças com o trato do bispo para com as basílicas de sua diocese, devemos considerar que estes epíscopos também apresentam um vínculo quase que de posse com estes edifícios religiosos. A propósito, podemos nos remeter à questão da autonomia monacal frente ao domínio diocesano como um dos pontos nevrálgicos ao discutirmos estes templos particulares, como apontam diversos historiadores. 91 Como apresenta Manuel Torres: “Os proprietários de igrejas tomam como modelo para suas pretensões de independência àquela dos monastérios.”92 É de esperarmos que os prelados buscariam evitar construir comunidade monacais, e que as atas conciliares assumiriam uma posição de interdição frente à conversão de paróquias em mosteiros. Porém, ao nos voltarmos ao cânone IV do Conc. Tol. III, vemos algo diferente. Se o bispo quiser consagrar como mosteiro uma das igrejas de sua diocese para que nela viva conforme à regra uma comunidade monacal, tenha faculdade de fazê-lo com o consentimento do concílio. O qual também se atribuir a tal lugar, para sustento dos monges, algo dos bens da igreja que não cause prejuízo à mesma, seja válido; pois este santo concílio dá seu consenso a esta boa obra.93

89

DÍAZ Y DÍAZ, Manuel. Op. Cit. “(...)a afirmação da condição cristã por parte de um grande proprietário seria condição sine qua non de sua aproximação aos elementos da alta nobreza(...)” FRIGHETTO, Renan. Op. Cit., p. 365. 90

91

Por exemplo: DÍAZ MARTÍNEZ, Pablo de la Cruz. Formas económicas y sociales en el monacato visigodo. Salamanca: Universidad de Salamanca. 1987; LAWRENCE, C. H. El monacato medieval : formas de vida religiosa en Europa occidental durante la Edad Media. Madrid : Gredos, 1999; ORLANDIS, José. Historia del reino... Op. Cit.; FRIGHETTO, Renan. Op. Cit.; TORRES, Manuel. Op. Cit. 92 TORRES, Manuel. Op. Cit., p. 212. 93 Si episcopus unam parrochitanis ecclesiis suis monasterium dicare voluerit, ut in ea monachorum regulariter congregatio vivat, hoc de consensu concilii sui habeat licentiam faciendi; qui etiam si de rebus ecclesiae pro eorum substantia aliquid quod detrimentum ecclesiae nin exhibeat eidem loco

77 Ou seja, os próprios epíscopos buscam consagrar cenóbios que, segundo defende parte representativa da historiografia,94 não estariam sob o domínio de sua liderança religiosa. No entanto, não devemos imaginar que isto significa que eles não detenham poder nenhum sobre estas comunidades, pelo contrário, quer dizer que os mosteiros em questão podem estar sob sua autoridade sem que haja uma interposição da instituição eclesiástica. Tal quadro deveria ser um acontecimento corriqueiro na sociedade visigótica, a ponto de que haja uma disposição conciliar voltada diretamente a este abuso no Conc. Tol. IV: Foi denunciado no presente concílio que os monges são dedicados a trabalhos servis a mando do bispo, e que os bens do mosteiro são arrebatados com um atrevimento criminoso contra do estabelecido nos cânones, de modo que se faz do mosteiro como uma posse e a ilustre porção se vê reduzida a infâmia e à servidão, de forma que admoestamos àqueles que governam as igrejas, que em diante não procedam deste modo, senão que os bispos reclamem para si dos mosteiros, o que permitem os sagrados cânones, isto é, admoestar os monges a uma vida santa, nomear abades e outros cargos e corrigir as violações das regras; e àqueles que se atreverem a proceder com os monges de maneira proibida nos cânones, ou tentarem tomar algo dos bens do mosteiro, não lhes faltará a pena de excomunhão.95

Neste sentido, como afirma Díaz Martínez. Acreditamos que a independência patrimonial do mosteiro frente ao patrimônio eclesiástico não é um acontecimento excepcional. É certo que foi anterior no tempo e que serviu, quiçá, de modelo formal para que outros organismos eclesiásticos se independentizassem paulatinamente, mas responde a um processo estrutural que afetava a sociedade tardoantiga em geral e à sociedade visigoda em particular, e que levava em direção a um processo de feudalização global da sociedade.96

donaverit, sit stabile. Rei enim bonae statuendum sanctum concilium dat adsensum. VIVES, José. Op. Cit. p. 126. 94 FONTES, Luís. Op. Cit. FRIGHETTO, Renan. Sociedade e Cultura no NO. Peninsular Ibérico em finais do século VII, segundo o De Genere Monachorum de Valério do Bierzo. Gallaecia, Santiago de Compostela, v. 18, p. 363-373, 1999., e; LAWRENCE, C. H. El monacato medieval : formas de vida religiosa en Europa occidental durante la Edad Media. Madrid : Gredos, 1999. 95 Nuntiantum est praesenti concilio eo quod monachi episcopali imperio servili opere mancipetur et iura monasteriorum contra instituta canonum inlicita praesumptione usurpentur, ita ut pene ex coenobio possessio fiat atque inlustris portio Christi ad ignominium servitutemque perveniat; quapropter monemus eos qui ecclesiis praesunt, ut ultra talia non praesumant, sed hoc tantum sibi monasteriis vindicent sacerdotes quod recipiunt canones: id est monachos ad conversationem sanctam praemonere, abbates aliaque officia instituere, atque extra regulam acta corrigere. Quod si aliquid in monachis canonibus interdictum praesumserint aut usurpare quippiam de monasterii rebus temtaverint, non deerit ab illis sententia excomunicationis qui se deinceps nequanquam substulerint ab inlicitis. VIVES, José. Op. Cit. p. 208-209. 96 DÍAZ MARTÍNEZ, Pablo de la Cruz. Op. Cit., p. 62.

78 Observando a questão da independência monacal sob o aspecto das imunidades, reafirmamos a presença deste processo como parte integrante do poder senhorial do período, especialmente com relação aos epíscopos edificadores de monastérios. Ademais, fica evidente a ação do episcopado sob seu semblante institucional, de reprimir abusos dos bispos, mas não de impossibilitar que construam estes locais de adoração. Na realidade é inclusive ressaltado alguns dos direitos que os prelados detém para com estas comunidades, devido a sua posição de governo.

Familia ecclesiae A estrutura social visigótica, baseada em relações senhoriais que se estabelecem em torno da interdependência política, tem como um de seus pilares a afirmação do poder de posse sobre a terra e de autoridade sobre os homens, constituindo-se a figura do dominus-patronus, como apresentamos no capítulo anterior. Neste cenário, o domínio que se constrói nas interações entre membros da camada nobiliárquica e os servos que trabalham a terra, está intrinsicamente associado à posição deste nobre entre seus pares. O direito à propriedade é reafirmado pelo vínculo patronal, que, por sua vez, coloca os membros das camadas inferiores em posição de subserviência para com a aristocracia. Isto significa que, apesar de observarmos um momento de diminuição no número de escravos durante o período de transformações que marcaram o século V, 97 os ditos libertos ou manumitidos não gozavam de liberdade plena, estando aliados aos domini para poder manter sua subsistência sub patrocinium relatione. O que observamos com mais frequência nesta sociedade é um acordo de manumissão parcial entre os servi, coloni, mancipia,98 etc. e seus patroni.99 Devemos sublinhar que, dada a natureza desigual deste liame, os membros das camadas inferiores eram constantemente ameaçados de coerção física ou de perdas materiais caso buscassem desfazer esta relação.100

97

BARBERO DE AGUILERA, Abilio, e; VIGIL PASCUAL, Marcelo. La formación del feudalismo em la Península Ibérica. Barcelona: Crítica, 1978. p. 21. 98 Como defende Santiago Castellanos, uma leitura aprofundada dos documentos demonstram a intercambiedade entre os diversos termos que estão associados à condição servil. CASTELLANOS, Santiago. Terminología textual y relaciones de dependencia en la sociedad hispanovisigoda. En torno a la ausencia de coloni en las Leges Visigothorum. Geríon, Madrid, n. 16, p. 451-460, 1998. 99 GARCÍA MORENO, Luis A. Composición y estructura de la fuerza del trabajo humana en la Península Ibérica durante la Antigüedad tardia. Memorias de historia antigua, Oviedo, v. 1, p. 247-256, 1977. 100 O título III do livro V da Lex Visigothorum demarca bem como a relação entre o patronus e seu dependente político era considerado sob o aspecto da generosidade dos nobres, que por isto tinham direito

79 Percebemos, então, uma ligação entre possuir um território e deter o arbítrio sobre as pessoas que estão inseridas nele, que se constitue reciprocamente. Isso porque, segundo uma lógica senhorial, a autoridade sobre aqueles que produzem em uma terra está diretamente ligada à posse da mesma. Como tentamos demonstrar no tocante às discussões sobre igrejas próprias, a atuação do episcopado com os bens da instituição eclesiástica segue, na maioria dos casos, uma lógica semelhante à dos setores laicos, apesar da estrutura administrativa clerical buscar reprimir alguns dos elementos caracteristicamente senhoriais entre os epíscopos. Neste sentido, ressaltamos a importância de membros da alta camada clerical de se firmarem como figuras de liderança local, retificando sua presença como patronos daqueles em seu entorno. Enfatiza-se, para tal, a responsabilidade administrativa e uma divisão entre bens específicos dos prelados, como nobres, e pertencentes às igrejas, das quais seu direito seria mais relativo a uma posição de administração. Sendo assim, é notável a quantidade de referências que podemos encontrar acerca do trato com os dependentes políticos nas atas conciliares visigóticas. Apenas no Conc. Tol. IV são 8 cânones (LXVII – LXXIV) direcionados à questão dos laços que limitam a liberdade destes homens impostos à condição servil. De uma forma ou de outra, todas as disposições conciliares reiteram o elemento inalienável do patrimônio eclesiástico, quer por parte dos bispos, proibidos de manumitirem pessoas sem compensarem à igreja, quer por parte dos libertos que não detêm o direito de se apartarem do patrocinium desta, a não ser em casos excepcionais.101 Esta questão era defendida seguindo a principal argumentação da importância das posses episcopais para a proteção e cuidado dos pobres, sendo comparável o arrebate destes bens com um abuso direto às populações necessitadas. Ou seja, a normativa eclesiástica institucional impedia que os manumitidos fossem libertos de suas obrigações aos seus patronos, pois isto afetaria os pobres que dependiam da ação caritativa das igrejas, e que por isto mesmo estavam provavelmente subjugados E é certo que aqueles que não distribuem nada seu aos pobres de Cristo, serão condenados na vida futura, pelas palavras do Juiz Eterno, quanto mais aqueles que arrebatam aos pobres o que não lhes deram? Portanto, os bispos que de reverter libertos em escravos, além de outras penas, sob o aparato jurídico de uma ingrati actione. SCOTT, S. P. Op. Cit. 101 Segundo o cânone LXVIII do CT IV, a única maneira de libertar um servo, retirando-lhe a condição de patrocínio eclesiástico, é se um bispo oferecer de suas posses pessoais dois servos de igual valor e pecúlio em concílio provincial, condicionado a aprovação do episcopado. VIVES, José. Op. Cit. p. 214.

80 não concederem nada seu à Igreja de Cristo como compensação, temam esta sentença divina e não se atrevam, para sua condenação, a manumitir aos servos da igreja, pois é coisa ímpia que aqueles que não aportaram de seu às igrejas de Cristo, causem-nas dano e pretendem subtrair a propriedade da igreja.102

Devemos chamar atenção, também, que os laços característicos que se estabelecem entre representantes da alta hierarquia clerical e seus dependentes é perpassado pelo aspecto jurídico aplicado aos laicos, presente na Lex Visigothorum. Desta forma, este elo é demarcado pela concessão, sub precaria, manifestamente de posses, que reforçam as obrigações que os camponeses teriam para com seus senhores.103 Aos servi é proibido que vendam ou troquem as propriedades concedidas a eles pelas igrejas, caso libertos, ou mesmo aquilo que conquistaram quando estavam vinculados politicamente a estas: (...) E tudo que estes [libertos promovidos ao sacerdócio] adquirirem, quer seja doado junto com a liberdade, quer seja por direito hereditário, quer de qualquer outro modo, não poderão transmitir nem em partes a pessoas estranhas, senão que depois de sua morte passará integramente à igreja do qual foram manumitidos.104

Além disto, é significativo notarmos, que se atribui um perfil marcadamente interpessoal à relação entre os libertos e as igrejas aos quais estão associados, condizente com a contrução simbólica do período no tocante à jurisprudência. 105 No entanto, é interessante percebermos que este laço era estabelecido juridicamente não entre os dependentes e os bispos, mas entre os manumitidos e a própria instituição. Os manumitidos da Igreja, porque sua patrona nunca morre [grifo nosso], jamais estarão livres de seu patrocínio, nem tampouco seus descendentes, segundo decretado nos cânones antigos,(…) abandonarão o patrocínio desta, mas

102

Et si qui nulla ex rebus suis pauperibus Christi distribuunt aeterni iudicis voce in futurum condemnabuntur, quanto magis hii qui auferunt pauperibus quod non dederunt? Quaepropter episcopi qui nicil ex proprio suo ecclesiae Christi compensavcrunt hanc divinam setentiam metuant, et líberos ex familiis ecclesiae ad condemnationem suam facere non presumant: impium est enim ut quis res suas ecclesiis Chirsti non contulit damnun inferat et ius ecclesiae alienare intentat. VIVES, José. Op cit. p. 214 103 O título III do livro V é nomeado: “Concernente às dádivas dos patronos” (Concerning the gifts of patrons), e faz diversas referências às obrigações dos manumitidos associados ao recebimento destas dádivas. SCOTT, S. P. Op. Cit. 104 VIVES, Op cit. p. 216 Percebemos um paralelo com a LV, V, III, 4 a qual reafirma o direito dos patronos sobre as propriedades de manumitidos desertores. SCOTT, S. P. Op. Cit. 105 Como já afirmamos anteriormente, ao citar Floyd Seyward Lear, a estrutura legislativa e jurídica visigótica é premeada pelos aspectos relacionais senhoriais, reforçando a autoridade dominial. LEAR, Floyd Seyward. Op. Cit.

81 segundo suas forças, lhe tributarão serviço [obsequium] e obediência [obedientiam].106

Cabe ressaltar os termos em latim utilizados no texto canônico para serviço (obsequium) e obediência (obedientiam), que, segundo Barbero de Aguillera, representam termos jurídicos que reforçam a dominação por meio de uma imposição legislativa e indicam nesta ação um descumprimento judicial arrolado nos termos de uma ingrati actione, relegados, portanto, ao retorno de sua condição de escravidão.107 O patrimônio eclesiástico possui um caráter dúplice de consolidar a posição do bispo e, por conseguinte, da diocese. Isto porque a morte do dominus-patronus não representa um fim aos laços de dependência, como podemos notar desde as atas do Conc. Tol. III. Acerca dos libertos, ordenam os bispos de Deus o seguinte: que se foram libertados pelo bispo conforme o ordenado nos cânones antigos, sejam livres; porém não se apartem do patrocínio da igreja, tanto eles quanto seus descendentes.108

Justapõe-se deste modo, por um lado, a defesa do caráter institucional do clero, por outro, os elementos dominiais que permeiam a normativa acerca da relação com os dependentes políticos. Reconhecemos com isto um argumento que ratifica a indissociabilidade entre os laços pessoais e o episcopado no período. Notamos, então, que a condição inalienável do patrimônio eclesiástico possui um aspecto fundamental para afirmar sua posição institucional, pois desta forma garante a sua presença em meio ao cenário político. Reafirmando a posição do bispo como administrador dos bens das igrejas sob sua jurisdição e repreendendo-o quando este não age de acordo com as normas. Encontramos, portanto, uma questão fundamental no tocante às atitudes do epíscopo, responsabilizado pelo cuidado material dos pobres – função imposta por seu pertencimento à instituição – e a manutenção da integridade das posses das igrejas.109 Ao voltarmos nossas análises para os concílios provinciais, especialmente a Sevilha I, consolidamos ainda mais esta noção, pois estas atas estão quase que

106

Liberti ecclesiae, quia nunquam moritur eorum patrona, a patrocinio eiusdem nunquam discedant, Nec posteritas quidem eorum, sicut priores cânones descreverunt, (...) eiusque patrocinium non reliquant. sed iuxta virtutem suam obsequium et vel obedientiam praebeant. VIVES, José. Op cit. p. 215. 107 BARBERO DE AGUILLERA, Op. Cit. 108 De libertis autem in Dei praecipiunt sacerdotes; ut si qui ab episcopis facti sunt secundum modum canones antiqui dant licentiam, sint liberi, et tamen a patrocionio ecclesiae tam ipsi quam ab eis progeniti non recedant. VIVES, José. Op cit. p. 127. 109 Novamente o aspecto de “espiritualidade x racionalidade econômica” está presente. BUENACASA PÉREZ, Carles. Op. Cit.

82 exclusivamente direcionadas a tratar das extensas manumissões e transmissões de libertos realizadas pelo bispo Gaudêncio, aparentemente ilegais segundo o direito canônico da época. (...)Estando nós reunidos na igreja sevilhana de Santa Jerusalém, vossos diáconos nos apresentaram a lista dos libertos da igreja que havia manumitido vosso predecessor de santa memória, o bispo Gaudêncio. E não só lemos ali os nomes dos que havia manumitidos, senão que vimos ali anotados na mesma listagem aqueles outros que havia doado a seus parentes. De forma que consultamos as disposições canônicas para ver se tal manumissão ou transferência poderia ser válida, porém descobrimos no cânone que o bispo que houver deixado sua própria propriedade, não à igreja, mas a outros que não sejam precisamente seus filhos e netos, qualquer coisa que subtraírem ou doarem dos bens das igrejas, tenha-se por nulo.110

Neste texto que destacamos é fundamental sublinhar dois elementos: primeiramente, as manumissões irregulares não eram o único problema relacionado aos libertos que poderia ocorrer dentre o episcopado; em segundo lugar, o poder do concílio provincial de agir sobre os domínios de um bispo, quando este não age de acordo com a normativa imposta. Acerca do primeiro ponto, as manumissões irregulares de libertos, como buscamos apresentar, uma parte central da posição social nobiliárquica no reino visigodo é sustentada pelas relações intrassenhoriais, que podem significar a preeminência de um dominus-patronus inserido nas altas camadas. Estas alianças são constituídas sob a forma de trocas interpessoais e a promessa de um laço de fidelitas que vincula ambos os senhores, geralmente marcada também pela concessão de terra de um nobre a outro. Se consideramos que a posse fundiária é amplamente influenciada pelas forças produtivas inseridas nas delimitações territoriais, não podemos deixar de supor que a cessão de direitos sobre o domínio de propriedades agrárias está associada com a doação dos homens que nela se encontram. Portanto, quando observamos a doação de manumitidos a parentes, há de se questionar se não estamos nos debruçando justamente sobre uma interação típica entre aristocratas. Ou seja, possivelmente ao conceder a 110

(...)Consedentibus nobis in ecclesiae Spalensi sancta Ierusalem brevem mancipiorum ecclesiae, quos libertasse visus fuerat decessor tuus sanctae recordationis Gaudentius episcopus, vestri nobis diacones obtulerunt et non solum quos libertaverat ibidem relegimus sed etiam quos proximis suis de familiis ecclesiae donaverat in eodem brevi recensuimus adnotatos. Qua de re canonum constituta consuluimus si talis libertas aut transactio potuisset esse stabilis. Conperimus autem in canone ut episcopus qui res proprias, excepto filiis et nepotibus, alteris et non ecclesiae dimiserit, quidquid de ecclesiae rebus aut donavit aut vendidit aut quoque modo ab ecclesia transtulerit irritum habetur. VIVES, José. Op. Cit. p. 151.

83 autoridade sobre estes servi, coloni etc., Gaudêncio estava também outorgando o usufruto sobre o pecúlio ao qual estavam adscritos. Ao seguirmos esta lógica, podemos destacar que nos defrontamos com um membro do clero que está buscando reafirmar sua condição de participante dos setores nobiliárquicos, inserindo-se nas teias de interrelações específicas desta. No que concerne o segundo elemento, a soberania dos concílios provinciais sobre os bispos, é importante ressaltarmos como ele representa uma questão central ao nosso trabalho, pois demonstra a atuação do aspecto institucional do clero, direcionado à proteção patrimonial frente as ações de um epíscopo dentro de sua diocese. Percebemos que apesar do prelado deter um domínio sobre as regiões sob sua administração, sua posição não é inquestionável quando bate de frente com as disposições estabelecidas por seus pares. Destarte, o mesmo processo que nomeia e reafirma o poder deste homem sobre o patrimônio das igrejas, pode destituí-lo desta autoridade ou reverter ações que prejudiquem em demasia a propriedade que está associada à instituição.

Objetivando concluir este capítulo devemos nos remeter a Marcelo Cândido da Silva. Em seu livro mais recente Uma história do roubo na Idade Média, discute acerca da propriedade das igrejas em hagiografias, códigos legislativos e atas conciliares, merovíngios, abordando estes documentos sob uma ótica normativa, quer pelo viés legislativo ou exemplar.111 Seguindo esta linha de raciocínio, este historiador empenhase em expor um conceito de normatividade que se afasta das noções legalistas de estudiosos do Direito, indicando uma percepção do poder não como uma dominação unilateral, mas como capacidade de influenciar e construir uma visão de mundo compartilhada socialmente. Podemos depreender de sua obra alguns eixos discursivos pelos quais o roubo dos bens das igrejas se constitui como um crime perante a estrutura legislativa do reino franco de finais do século VI. Interessa-nos utilizar algumas das propostas deste autor para salientar suas semelhanças na sociedade visigótica, apesar de reconhecermos as profundas diferenças que existem entre ambos os reinos. Primeiramente, a alienação de 111

SILVA, Marcelo Cândido da. História do Roubo na Idade Média. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.

84 bens eclesiásticos não representa apenas uma afronta a igrejas, mas também a todos aqueles que são seus dependentes, comparando-se os ladrões a assassinos de pobres, necatores pauperum A expressão necatores pauperum é utilizada pela primeira vez no 4º cânone do Concílio de Agde, em 506, e faz parte da construção de uma qualificação jurídica dos bens das igrejas.(...) A expressão, que reaparece no I Concílio de Mâcon (581-583), não designa os pobres como proprietários dos bens da Igreja, mas como seus beneficiários. 112

Consequentemente o ato de roubar uma igreja está diretamente ligada a uma afronta à vivência coletiva. Entre os visigodos, na medida em que a instituição eclesiástica busca firmar o monopólio caritativo, sendo o meio pelo qual as doações deveriam seguir para serem distribuídas entre os mais necessitados, a subtração patrimonial também está associada ao abuso contra os mais necessitados (pauperes), como já mencionamos anteriormente. Neste sentido, um bispo também pode ser o pecador, acometido pela avaritia ou pela cupiditas, ele age prejudicando todos que estão em seu entorno, causando um processo de desagregação social. Portanto há uma analogia entre a afronta material dos templos com uma afronta aos indigentes, estruturando simbolicamente a concepção de que a presença do episcopado é fundamental para a alimentação dos pobres. O segundo eixo refere-se à posição do sacerdócio como mediação direta com o divino, não apenas em um sentido espiritual, mas também nas questões terrenas, a propriedade destes edifícios religiosos é posse de deus. A “personificação” de Deus nos cânones conciliares também personifica a propriedade dos bens sagrados, dando-os um proprietário, que é também, pelo estatuto que ocupa, seu mais eficaz defensor.113

Como pudemos observar a “personificação” deísta não é tão recorrente nas atas conciliares visigóticas. No entanto, sua representação concreta por meio das basílicas detém em nome da figura celestial amplos direitos marcadamente senhoriais, sendo o roubo não apenas uma ação contra um clérigo, mas contra todo o clero, cujo o dominus máximo é deus. Sendo assim, a punição para esta transgressão é dúplice, na terra e no paraíso. Não podemos deixar de frisar que a noção de uma igreja-proprietária, que tem suas primeiras referências no século V, provavelmente contribui para esta construção 112 113

Idem, p. 94. Idem, p. 92.

85 simbólica de uma presentificação dos templos como depositário de privilégios jurídicos. Há de se destacar, porém, outra particularidade da Península Ibérica, no que tange à concepção dominial e personalista que notamos, estreitamente associada com a visão da igreja como patrona real no jogo social e discursivo: a rapina episcopal seria também um importante impulso para a desestabilização administrativa, o próprio funcionamento da hierarquia estaria ameaçado de falir. O terceiro e último ponto que devemos ressaltar, é o esforço do direito canônico do período de se afirmar como instrumento legislativo e de jurisprudência em meio a este reino, consolidando uma estrutura e uma atuação particularizada em muitos casos. Segundo Silva, o reino merovíngio se utiliza, para construir esta excepcionalidade legal o Estatuto do Proprietário, na qual o prestígio de que estes bens gozam está conectado à importância de seu proprietário. O Deus dos textos conciliares não é o mesmo dos textos teológicos, mas uma espécie de Deus-proprietário, um qualificativo jurídico. Eis porque o estatuto daquele que se ataca aos bens eclesiásticos nada importa em face do estatuto Daquele que é o seu proprietário legítimo. 114

Contudo, novamente vemos uma singularidade dos visigodos, pois o processo de afirmação de seu qualificativo jurídico peculiar é constituído duplamente, por meio da tradição canônica estabelecida e das leges presentes tardiamente na Lex Visigothorum. O desenvolvimento da normatividade oficial entre o episcopado é resultado da doutrina conciliar e das alianças que este setor da nobreza cria com a monarquia, reafirmando a presença de uma legislação real conjuntamente a uma lei com base nos costumes do bispado. Finalizando, então, podemos afirmar que os três eixos apresentados, o roubo das igrejas como afronta aos pobres, à instituição eclesiástica e a deus, possuem uma intercessão que dá significado simbólico a eles, dentro dos parâmetros da sociedade visigótica, a gradual afirmação da hierarquia clerical em um movimento contínuo de institucionalização. Todos estes elementos andam lado a lado com a organização dos religiosos em torno de uma normativa comum que buscava impor-se sobre interesses individuais, para possibilitar a sobrevivência de sua estrutura maior. Dessa forma, o domínio patrimonial eclesiástico era expresso de forma tão pulverizada, esvaziando o poder senhorial individual de cada epíscopo, para que conseguisse manter a posição 114

Idem, p. 100.

86 privilegiada da camada religiosa como um todo. É de extrema importância neste senso, relacionar os esforços conciliares gerais e provinciais, objetivando destacar a organicidade que existe entre os vários níveis deste processo.

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CAPÍTULO IV – CONCLUSÃO

Antes de nos encaminharmos diretamente aos aspectos conclusivos, devemos retomar nossa hipótese, visando consolidar a linearidade de nosso trabalho. Das estruturas sociais que constituem o reino visigodo, notamos o episcopado como setor que integra a camada nobiliárquica, participando ativamente das relações estabelecidas em seu interior. O que significa que os bispos se apresentam como membros da aristocracia senhorial, definidas duplamente por seu poder sobre terras e homens, e suas interações na complexa teia de alianças políticas realizadas pelos nobres no período. Sendo assim, observamos que estão inseridos neste cenário tanto como domini-patroni quanto pelos laços de fidelitas que constituem. No entanto, dado que sua posição neste cenário é estabelecida por seu domínio sobre o patrimônio pertencente à instituição eclesiástica, sua permanência dentro da hierarquia clerical se torna ponto fulcral para isto. Buscando a sua manutenção e contínua existência, o clero procura associar um caráter inalienável a suas propriedades, impondo uma série de limites à posição dominial de epíscopos no plano individual para proteger os bens das igrejas. Desta forma observamos algo que é central a nossa argumentação: a mesma organização que reafirma a autoridade dos prelados, também delimita sua atuação. Dado as questões características relacionadas à posse, que defendemos existir no período, não é anormal que encontremos um poder senhorial que seja tão multifacetado e disperso. Objetivamos, então, identificar no processo de construção discursiva da normatividade desta sociedade, elementos que demonstrem bilateralmente a coesão institucional e a retificação da autoridade pessoal dos bispos. Para tal, analisamos em perspectiva comparada os concílios toledanos e provinciais, intencionando examinar o arcabouço jurídico e legislativo que se constitui nos âmbitos gerais e regionais, respectivamente. Isto porque, na medida em que observamos as estruturas senhoriais operando-se localmente, poderíamos esperar que nas atas conciliares específicas de cada província teríamos a possibilidade de destacar semelhanças e diferenças que fundamentariam nossas conclusões. Destarte, o trabalho de análise retórica se mostrou como uma das propostas mais condizentes com nossos objetivos.

88 Nossa pesquisa buscou se firmar teoricamente sob dois conceitos: poder simbólico e instituição. Optamos por estas noções pois percebemos o episcopado e seu discurso como basilares dos semblantes políticos da sociedade visigótica. Queremos dizer que, especialmente após a conversão da monarquia e elevação do cristianismo niceno ao lugar de religião oficial do reino, os bispos assumem um papel de principais (re)produtores ideológicos, influenciando, inclusive, na formação de delineações legais àquela sociedade. Ou seja, enquanto se colocam como alicerce discursivo da compreensão da realidade, os prelados também ocuparam a função de conceber os dispositivos legislativos e jurídicos. Notamos então, como ambos preceitos teóricos, poder simbólico e instituição, estão intimamente associados, devido às características que este reino possui, tendo como base interações tipicamente senhoriais. Associando-nos a alguns dos autores assinalados em nosso debate bibliográfico, reconhecemos alguns pontos importantes a serem ressaltados. O processo de desagregação das estruturas políticas e sociais imperiais significou, na Península Ibérica, uma reorganização das relações da exploração de mão-de-obra, fomentando um domínio nobiliárquico que se baseava na propriedade fundiária e na dependência política. Sendo assim, a aristocracia construiu sua autoridade e participação na complexa teia de vínculos pessoais por meio das alianças intrassenhoriais, embasandose na dominância sobre homens e terras como afirmação entre seus pares, angariando titulações oficiais que acompanham isto. No entanto, como os elos entre nobres é recorrentemente marcado pela troca de bens por favores políticos, criou-se um esquema que é marcado por uma contínua dispersão do poder. Assim, enquanto, um senhor reiterava sua posição na alta camada, ele o fez cedendo parte daquilo que o colocava como um importante aliado. Neste sentido, percebemos um cenário de constante instabilidade da autoridade senhorial, que marca também a monarquia no período. Portanto, apresentamos a concepção da supremacia e do prestígio como sendo caracteristicamente dispersivo, interpessoal e fundamentador de todo o aspecto institucional desta sociedade. Posto isto, sublinhamos o episcopado como parte atuante desta conjuntura. Os bispos se afirmam por meio das propriedades sob sua administração, utilizando-as como elemento de promoção pessoal e de liderança local. No entanto, para tal, é necessário que reconheça a supremacia conciliar normativa que o cerca, sob ameaça de perder seu lugar na hierarquia. Consequentemente, sua atuação pode ser vista segundo os termos de

89 uma dicotomia entre um racionalismo econômico e a questão espiritual, associada à caridade cristã. Se observarmos novamente o conceito de poder simbólico de Bourdieu, notamos que a ideologia é duplamente determinada,115 constituindo não apenas o apoio às aspirações senhoriais de prelados específicos, mas atando seus interesses àqueles da instituição clerical como um todo. Circunstancialmente, o que de início poderíamos ler como uma “confusão” acerca da divisão patrimonial das igrejas, invoca um aspecto do crescimento institucional, associando parte das posses dos bispos a suas dioceses. Além disto, como vimos, a estrutura da dominação na época era destacada pelo seu aspecto dispersivo, resultando em uma superposição de autoridades sobre as propriedades associadas aos templos que dificultam a sua subtração. Desta forma, compreendemos teoricamente como uma instituição pode apoiar a ascensão de epíscopos como domini-patroni, concomitantemente ao cerceamento de sua autoridade senhorial. Fica claro ao atentarmos às atas conciliares de Conc. Tol. III e IV que a principal diretriz adotada no discurso eclesiástico é a inalienabilidade do patrimônio das igrejas. Neste sentido é necessário que reconheçamos as características que permeiam a noção de imunidade para o período, voltado tanto para proteger as bases econômicas destes senhores clérigos quanto para ratificar seu poder político. Isto porque além de reafirmar seu status diferenciado frente o restante da sociedade visigoda, também garante a ele uma posição de autoridade, como patronus daqueles que estão sob sua influência política e como um dominus que goza de grande estabilidade, algo que os senhores laicos só podem garantir ao estabelecer vínculos com bispos ou reis. Este poder de imunidade é reafirmado de três maneiras mais recorrentes: a jurisprudência de concílios anteriores, a subserviência ao verdadeiro proprietário (deus) e as ações caritativas da igreja voltado aos pobres. Podemos destacar, deste modo, que as três formas estão diretamente associadas a um processo de construção institucional do episcopado que defende seu caráter diferenciado ao utilizar suas próprias normas, seu caráter como vicário de um senhor maior e sua centralidade nas ações de evergetismo. Por outro lado devemos chamar atenção para o fato de que as disposições são usualmente voltadas para os próprios bispos, acusados de avareza, o que pode significar que muitos deles não agem dentro da norma. Ainda assim, como podemos observar no âmbito dos concílios provinciais, o episcopado garante, por meio de sua 115

BOURDIEU, Pierre. In: O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1989. p. 13.

90 especificidade jurídica e legislativa, a possibilidade de destituição de decisões ou até do domínio de prelados sobre as propriedades que estão sob sua administração. Em outras palavras, o concílio cumpre um papel de soberania sobre a governança dos bispos em suas dioceses. Devemos ressaltar também que a inalienabilidade não significa imobilidade, pois percebemos que a transferência de terras entre clérigos, especialmente por, ações de reivindicação são constantemente mencionadas. Os direitos relativos aos fundadores de igrejas e seus herdeiros é ressaltado no âmbito local, bem como no geral, seus direitos como vigilantes da conduta dos bispos, frente à administração da diocese é reconhecido. No entanto, é interessante notarmos que há também uma tentativa de cercear os direitos destes homens na de indicação de párocos, reforçando a presença do epíscopo no momento de decisão e reestabelecendo o controle hierárquico do episcopado. Desta forma, notamos mais claramente um processo que é bífide de incentivar a construção de templos por laicos, mas impedir seu controle total sobre estes edifícios. Portanto, a tensão que envolve a propriedade eclesiástica é perceptivelmente característica da sociedade visigoda e não um paradoxo. Em outras palavras, os fundadores de igrejas devem ser vistos como uma presença que reforça o poder institucional e cerceia a posição de bispos como domini-patroni inquestionáveis. Por um lado, como fundadores de igrejas, estes homens permitem um crescimento do patrimônio eclesiástico, dado que os epíscopos são os únicos administradores autorizados destes bens. Por outro lado, detêm alguns direitos sobre as igrejas que constroem e dotam, podendo acusar bispos que não cuidam bem de sua diocese, indicar párocos e em alguns casos receber benefícios em favor dos templos que construíram. Vemos aqui claramente uma justaposição de autoridades dominiais, bem como a estreita aliança entre membros do clero e dos setores laicos. Como

realçamos

anteriormente,

o

poder

senhorial

neste

período

é

caracteristicamente baseado no domínio destes senhores sobre uma extensa massa de dependentes políticos. Percebemos que isso não é diferente para o episcopado ao observarmos a quantidade de referências ao processo de manumissão dos servi associados à familia ecclesiae, proibindo que se apartam do patrocinium da igreja, que transfiram ou vendam seu pecúlio ou que acusem seus senhores, sob constante ameaça de uma ação de ingratidão que rebaixaria seu status. No entanto, novamente notamos uma série de normas voltadas aos bispos, impedindo que transfiram servos e seus pecúlios a familiares especialmente. Observamos um estreito vínculo entre a

91 inalienabilidade de bens imóveis com as interdições relativas aos servos. No plano local, o principal problema tratado nos concílios está ligado à transferência de servos para propriedades próprias pertencentes aos bispos, mas fora das terras das igrejas, ou de familiares laicos. Isto pode ser um indício de relações tipicamente intrassenhoriais. Também há de se destacar a posição de clérigos de menor grau como sendo subservientes aos bispos, apesar de deterem algumas liberdades negadas a outros dependentes, devem constantemente responder aos epíscopos como seus senhores. Talvez isto os coloque em uma posição intermediária dentro da complexa hierarquia social do início da Idade Média. Nas províncias, encontramos decisões acerca do direito dos bispos sobre clérigos inferiores, bem como cânones voltados diretamente a este baixo clero, que refletem a situação de sua dependência política. Assim encaminhando-nos para a conclusão de nosso trabalho, retronemos ao problema por nós proposto: como se dá a relação entre o bispo e o patrimônio pertencente à instituição eclesiástica em um período permeado por relações de posse e autoridade caracteristicamente senhoriais? Isto se apresenta claramente como uma questão na medida em que notamos um esforço de construção institucional por parte do episcopado visigodo, estabelecido, majoritariamente, por meio da atividade conciliar. No entanto, a posição de epíscopo é gerida por senhores nobres, os domini-patroni, que consolidam sua preminência mediante a propriedade de terras, a autoridade sobre os homens que as trabalham e a interrelação pessoal e política com seus pares nobiliárquicos. Neste sentido, temos como hipótese de que esta própria estrutura social, tipicamente senhorial, perpassa o direito destes prelados sobre os bens das igrejas, reforçando seu papel como administradores. Isto porque o poder destes homens emana de sua condição enquanto membros da hierarquia clerical, o que lhes garante o usufruto das propriedades clericais. No entanto, o episcopado como um todo, recorrendo às disposições canônicas, condiciona a posse sobre as riquezas da instituição ao enquadramento dos bispos à soberania sinodal. Ou seja, a participação destes homens no clero garante a eles domínio sobre o patrimônio, mas também define elementos caritativos e ascéticos que estes religiosos devem seguir, caso desejem se manter dentro dos graus eclesiásticos.

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