O Brasil na África: Comércio e Parcerias de Desenvolvimento

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: Development Studies, Africa, Brazil, Brazil and Africa, Aid to Development
Share Embed


Descrição do Produto

Nesta última década, imprensa abundante, observadores internacionais muitos e vários títulos académicos, sobretudo editados na Europa e nos Estados Unidos, têm vindo a analisar, muita vezes de forma excessivamente crítica e pouco parcial, o crescimento exponencial do envolvimento comercial, dos investimentos e da cooperação da China no continente africano. Agora que vários outros países asiáticos, com destaque para a Índia, o Japão e a Coreia do Sul, decidiram multiplicar também a ajuda e os investimentos em África, parece chegada a altura de fixar com mais atenção a colecção de novos competidores em busca das generosas oportunidades que os recursos naturais africanos, a sua abundante mão-de-obra jovem e a emergência de algumas das suas economias e mercados oferecem à concorrência global. Entre os novos parceiros que se movimentam em África destaca-se igualmente o Brasil que, em pouco mais de oito anos, ampliou decididamente a sua presença política-diplomática no continente, multiplicou por seis o volume de comércio e se apresenta entre os diferentes países africanos como um parceiro diferente, incontroverso e credível, sendo portador de propostas para o desenvolvimento sustentado das suas sociedades e economias que se estribam na própria

lusofonias nº 07 | 29 de Julho de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS: • Os Investimentos Brasileiros em África: Angola e Moçambique • Recursos, Construção e Mercado • Comércio, Investimentos e Cooperação: Estratégias Políticas e muito Estado • Saúde vária e Energias alternativas • Um Concorrente da China?

Dia 05 de Agosto: Amílcar Cabral, 40 anos: Memórias e Alguns Poemas

APOIO:

Brasil na África

Comércio Parcerias de Desenvolvimento e

O Brasil na África:

Comércio e Parcerias de Desenvolvimento Ivo Carneiro de Sousa

N

esta última década, imprensa abundante, observadores internacionais muitos e vários títulos académicos, sobretudo editados na Europa e nos Estados Unidos, têm vindo a analisar, muita vezes de forma excessivamente crítica e pouco parcial, o crescimento exponencial do envolvimento comercial, dos investimentos e da cooperação da China no continente africano. Agora que vários outros países asiáticos, com destaque para a Índia, o Japão e a Coreia do Sul, decidiram multiplicar também a ajuda e os investimentos em África, parece chegada a altura de fixar com mais atenção a colecção de novos competidores em busca das generosas oportunidades que os recursos naturais africanos, a sua abundante mão-de-obra jovem e a emergência de algumas das suas economias e mercados oferecem à concorrência global. Entre os novos parceiros que se movimentam em África destaca-se igualmente o Brasil que, em pouco mais de oito anos, ampliou decididamente a sua presença política-diplomática no continente, multiplicou por seis o volume de comércio e se apresenta entre os diferentes países africanos como um parceiro diferente, incontroverso e credível, sendo portador de propostas para o desenvolvimento sustentado das suas sociedades e economias que se estribam na própria experiência de desenvolvimento social brasileira, nestas últimas semanas questionada e contestada em centenas de grandes manifestações espalhadas pelas grandes metrópoles do país. Desde a primeira eleição do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, o Brasil alargou numa década as suas representações diplomáticas em África de 17 para 37 embaixadas, sendo agora o quarto país com maior presença oficial no continente depois dos Estados Unidos (49 embaixadas), da República Popular da China (48 embaixadas) e da Rússia (38 embaixadas). Em retribuição, Brasília é a capital da América Latina que acolhe o maior número de representações diplomáticas africanas com as suas 19 embaixadas. Uma renovada atenção pela África que se comprova igualmente na multiplicação de visitas oficiais dos mais altos responsáveis governamentais brasileiros. Durante os seus dois mandatos, entre 2003 e 2010, o antigo Presidente Lula da Silva visitou 29 países africanos em 12 diferentes visitas de Estado, mobilizando muitos ministros e fartas comitivas de empresários. A sua sucessora, a actual Presidente Dilma Rousseff, conhecida pela sua aversão a demora-

das viagens tanto como pela sua modesta preparação em matérias internacionais, praticamente inaugurou a sua política externa, em Outubro de 2011, com uma visita a três países africanos – África do Sul, Moçambique e Angola –, declarando solenemente a continuidade e reforço da presença brasileira no continente apresentada como diferente, fraterna e comprometida com parcerias para o real desenvolvimento económico-social das nações e populações africanas. A somar a muitas outras visitas ministeriais, tanto de responsáveis dos Negócios Estrangeiros como das diferentes pastas económicas, consolidadas ainda com a abundante organização dos mais variados fóruns, conferências e exposições sobre a África em que sobressai um inevitável Fórum Brasil-África reunindo governantes, empresários, académicos e numerosas organizações não-governamentais. Mais ainda, tem sido o Brasil a liderar as conferências bienais África-América do Sul, juntando chefes de estado em torno de temas e programas como o Diálogo sobre Segurança Alimentar, a Luta Contra a Fome e o Desenvolvimento Rural. Não surpreende assim que, neste contexto, as relações comerciais entre o Brasil e a África tenham crescido mais de seis vezes na última década, ao mesmo tempo que o governo brasileiro aliviou a dívida dos países africanos em cerca de 1,8 biliões de dólares, transformando-se ainda em doador efectivo e dirigindo quase metade

da sua cooperação técnica internacional para o continente africano. Em termos muito simples: o Brasil tem um grande interesse na África. Muito menos claras são as verdadeiras razões deste renovado interesse: será o Brasil mais uma economia emergente em busca dos cobiçados recursos naturais da África indispensáveis para o seu crescimento económico, apetite convenientemente disfarçado pela oferta de ajuda e programas de cooperação? É o Brasil o campeão da cooperação Sul-Sul que, como tantas vezes repetiu Lula da Silva e Dilma Rouseff agora reconfirmou, inaugurou em África um novo capítulo de relações económicas, investimentos e comércio favoráveis ao genuíno desenvolvimento do continente? Existirá mesmo um modelo singular de cooperação Brasil-África absolutamente distinto daqueles que são oferecidos pelos outros grandes parceiros económicos e comerciais dos diferentes países africanos? Comecemos por tentar dilucidar as questões anteriores mergulhando imediatamente nesse universo aparentemente indiscutível dos números com que se esclarece o comércio. Revisitando apenas as estatísticas actualmente já consolidadas, o volume total de comércio entre o Brasil e a África aumentou de 4,2 biliões de dólares, em 2000, para 27,65 biliões, em 2011 (os resultados ainda provisórios de 2012 situam-se em ligeira queda nos 26 biliões), assim crescendo mais de seis vezes e meia. No entanto, descobrem-se relações comerciais assimétricas em favor dos parceiros africanos: as importações brasileiras em 2011 chegaram a 15,43 biliões de dólares contra 12,22 biliões de exportações. Enquanto as importações brasileiras de produtos africanos representaram 6,6% do total geral das importações do país, as exportações do Brasil expressam modestamente apenas 3,4% do total de todas as importações compradas pela África. O que coloca o Brasil como o 10º mais importante destino para as exportações africanas e, reversamente, situa as exportações brasileiras num sofrível 16º lugar. Mesmo no contexto das grandes economias emergentes, o comércio do Brasil em África é largamente ultrapassado não apenas pela China, como também pela Índia e a Coreia do Sul. E, quando se desfibram as estatísticas em produtos concretos, o Brasil não parece realmente diferente da restante concorrência: 90% das importações brasileiras de África fazem-se de petróleo em crude e outros recursos minerais. Por isso, os principais parceiros comerciais do Brasil são, por ordem descrescente, Angola, Nigéria, África do Sul e Lí-

LUSOFONIAS - SUPLEMENTO DE CULTURA E REFLEXÃO Propriedade Tribuna de Macau, Empresa Jor­na­lística e Editorial, S.A.R.L. | Administração e Director José Rocha Dinis | Director Executivo Editorial Sérgio Terra | Coordenação Ivo Carneiro de Sousa | Grafismo Suzana Tôrres | Serviços Administrativos Joana Chói | Impressão Tipografia Welfare, Ltd | Administração, Direcção e Redacção Calçada do Tronco Velho, Edifício Dr. Caetano Soares, Nos4, 4A, 4B - Macau • Caixa Postal (P.O. Box): 3003 • Telefone: (853) 28378057 • Fax: (853) 28337305 • Email: [email protected]

II

Segunda-feira, 29 de Julho de 2013 • LUSOFONIAS

lusofonias

bia, verificando-se também que a maior parte das empresas brasileiras activas em África se encontra envolvida no sector dos recursos. O que sendo perfeitamente compreensível para o modelo comercial da China, da Índia ou da Coreia do Sul, parece bastante mais estranho no caso brasileiro. Na verdade, em contraste com os seus outros parceiros nos BRICS, especialmente a China e a Índia, o Brasil é um grande exportador de recursos naturais que, constituindo mais de metade das vendas externas do país, se apresentam expressivamente dominados pela exportação de petróleo, minério de ferro e óleo de soja. Assim, as importações brasileiras de recursos africanos, principalmente de crude, parece remeterem tanto para um modelo do passado quanto para a diversificação de mercados procurada pelas suas grandes empresas. Com efeito, o Brasil começou a importar grandes volumes de petróleo da África ainda no início da década de 1970 quando o regime militar tentava responder à grande procura interna de energia. De qualquer modo, esta ligação comer-

cial específica mostrou-se ainda relevante nestes últimos anos quando se ampliaram os processos de nacionalização no sector petrolífero em muitos países da América do Sul como foi, entre outros, o caso da Bolíva que, em 2006, abalou significativamente o gigante brasileiro que continua a ser a Petrobras: as importações de petróleo africano compensaram as quebras súbitas de produção e a grande limitação de direitos entre os vizinhos do Brasil. No entanto, com as descobertas, desde 2007, de grandes reservas de petróleo na bacia de Santos e em outras áreas da grande plataforma marítima brasileira, em alguns casos já em rápida produção, o país vai praticamente deixar de importar crude para se transformar num dos maiores exportadores mundiais. Em consequência, as importações de petróleo africano vão diminuir substancialmente como se comprova na alteração significativa dos planos estratégicos da Petrobras: o programa da companhia para o período de 2007 a 2011 duplicara os seus investimetnos em África, mas o actual plano estratégico para 2012 a 2015 mobiliza 95% dos seus investimentos para a explo-

ração e produção petrolíferas nos novos campos das águas profundas da reserva marítima. Em contraste, as exportações do Brasil para os seus diferentes parceiros comerciais em África são muito mais diversificadas. A abrir, destacam-se as exportações de produtos agrícolas, principalmente açúcar, lacticínios, cereais e carne. Neste último caso, não sem polémicas, tendo-se assistido nos últimos meses a uma verdadeira revolta dos produtores sul-africanos contra as importações maciças de frango congelado brasileiro, esse mesmo que se encontra na maior parte dos super-mercados de Macau a preços extremamente competitivos. O Brasil exporta também para a África produtos manufacturados e semi-manufacturados, sobretudo veículos e suas componentes, descobrindo-se um mercado paulatinamente mais importante para as indústrias brasileiras. Contudo, quando se somam aos dados do comércio os volumes de investimento público e privado brasileiro em África prontamente se descobre uma geografia bem mais limitada em que se fala oficialmente em português no ocidente e oriente africanos.

Os Investimentos Brasileiros em África: Angola e Moçambique

A

pesar de não existirem dados estatísticos completamente rigorosos, o conjunto dos investimentos públicos e privados do Brasil em África era em 2012 cerca de metade do volume do comércio, rondando 12 biliões de dólares, representando o continente apenas a quinta região do mundo preferida pelos investidores brasileiros. Todavia, o padrão de investimentos é distinto do comercial, concentrando-se maioritariamente em Angola e, ainda que menos expressivamente, em Moçambique, sendo tão marginal nos outros países africanos lusófonos quanto relativamente limitado ainda entre os grandes exportadores de produtos petrolíferos e minerais para o Brasil, com o são a Nigéria, a Líbia ou a Tanzânia. Sem novidade, Angola é, de longe, por agora, o principal destino dos investimentos do Brasil na África. Recorde-se que o governo da ditadura militar, profundamente reaccionário e ainda mais ferozmente anti-comunista, foi o primeiro no mundo a reconhecer imediatamente a independência de Angola, em 1975, sob a liderança do MPLA. Poucos meses após a proclamação de soberania, a gigante semi-pública Petrobras (oficialmente Petróleos do Brasil S.A, inaugurada em 1953) foi oficialmente convidada a investir no novo país lusófono independente, não se fazendo rogada: em 1979, a grande empresa petrolífera brasileira começava as suas operações em Angola que têm vindo a crescer continuadamente através da aquisição regular de novos direitos de prospecção e exploração de petróleo, assim ajudando também a transformar a companhia do Brasil na quarta maior do mundo na sua área, para além de importan-

lusofonias

te líder na exploração de crude em águas profundas como ocorre na plataforma marítima angolana. Somando, assim, ao recente aumento da sua capacidade produtiva no Brasil as generosas posições adquiridas em Angola, depois na produção de petróleo na Nigéria, desde 1998, mais a prospecção e exploração nas costas da Tanzânia, a partir 2004, os direitos obtidos em 2005 no petróleo e gás da Líbia, seguindo-se, em 2011, na produção de crude no Gabão e, recentemente, na exploração de petróleo em águas profundas da Namíbia e do Benin, não pode surpreender que a Petrobras tenha um valor de mercado de cerca de 300 biliões de dólares, mais do que o PIB de Portugal, também mais do que grandes colossos mundiais como a Microsoft ou a BP. Outras grandes companhias brasileiras seguiram para Angola na senda da Petrobras. Fundada ainda em 1944, mas consolidada como imenso conglomerado industrial em 1981, a Ode-

instalou-se firmemente desde 1984 na área da construção civil, não abandonou o país durante a devastadora guerra civil que se prolongou até 2002, logo se tornando numa das primeiras companhias requisitadas para vários projectos de reconstrução de Angola, das estradas aos hospitais, do muito imobiliário às grandes barragens, aqui se destacando o lançamento recente do importante projecto para a construção do Aproveitamento Hidroelétrico de Laúca, na província do Kwanza Norte. Tendo-se envolvido também nos negócios de petróleo, biofuel, diamantes e supermercados, a Odebrecth é actualmente o maior empregador privado em Angola com mais de 17.000 trabalhadores, esmagadoramente locais. A vetusta Companhia Vale do Rio Doce, criada em 1942, mais conhecida apenas por Vale, instalou-se também na exploração dos minérios angolanos, sobretudo carvão, ou não fosse a gigante mineira brasileira a brecht

Lula

da

Silva

quer

Petrobras

em

Cabo Verde

segunda maior empresa do mundo na sua área. O país lusófono recebeu também os habituais investimentos da TV Globo e da Record com o seu gostoso (e imbatível) menu de telenovelas muitas, mais futebol e algumas variedades. Ainda mais significativamente, nos últimos oito anos, várias pequenas e médias empresas brasileiras decidiram investir em Angola levando mesmo à instalação de uma delegação da agência brasileira para a promoção do comércio e das exportações, a APEX. Apesar de ainda menores, os investimentos brasileiros em Moçambique são igualmente importantes e prometem tornar-se muito volumosos nos próximos anos. Destaca-se, desde 2005, a Vale com o seu grande projecto de exploração de carvão em Moatize, na província de Tete, em produção desde 2011 e atingindo 3,8 milhões de toneladas no ano passado. Desenvolvido pela subsidiária Vale Moçambique, o investimento da empresa, quando totalmente concluído, chegará aos 8,5 biliões de dólares, 65% do PIB moçambicano. Estas reservas minerais em Moatize foram avaliadas em 22 milhões de toneladas tanto em carvão térrmico usado para produzir energia em termoelécticas como em carvão metalúrgico que serve, juntamente com minério de ferro, para a produção de aço. No entanto, a empresa brasileira tem vindo a enfrentar recorrente contestação popular entre várias manifestações, cortes de estrada e de ferrovia: o empreendimento desalojou 5.104 pessoas que, entre outros protestos, se têm vindo a indignar com as CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE >

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 29 de Julho de 2013

III

< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

suas novas habitações construídas pela Odebrecht, consideradas da pior qualidade. O que não abona em favor do grande conglomerado industrial brasileiro que, presente em Moçambique desde 2006, se encontra responsável pela construção do aeroporto internacional de Nacala, no norte do país, com inauguração prevista para o final deste ano. Apesar deste empreendimento, a Odebrecht, empregando no país lusófono 2.000 trabalhadores, 85% locais, prevê facturar mil milhões de dólares por ano em Moçambique em 2020, sobretudo através do investimento precisamente na construção das estruturas logísticas, rodoviárias e ferroviárias para suportar aquelas grandes indústrias de exploração de carvão. Uma outra grande construtora brasileira, a Camargo Corrêa, ganhou em 2007 o contrato para a edificação da barragem de Mphanda Nkuma, no Zambeze, a montante de Cahora Bassa. Com 90m de altura e 700m de comprimento, criando uma albufeira de 100 km2, a grande barragem terá uma capacidade de produção prevista de 1.500 MW, obrigando com as suas duas linhas de transporte de energia com 1.500 quilómetros de extensão a mobilizar um enorme investimento de 3,2 biliões de dólares, três vezes superior a toda a carteira de contratos internacionais da companhia brasileira. A construtora encontrou parceiro interessado na estatal Eletrobras que assinou, em 2010, um contrato complementar com o governo moçambicano e a Electricidade de Moçambique para o desenvolvimento do projecto de interligação da rede nacional de energia centro-sul (CESUL), assim ligando em linha de alta tensão a província de Tete, no centro do país, à capital Maputo, no sul. Estes investimentos são não apenas fundamentais para reverter uma situação em que apenas 10% dos moçambicanos têm acesso regular a energia eléctrica, mas mostram-se igualmente importantes para reforçar as exportações de energia de Moçambique para a África do Sul. Entretanto, a poderosa Petrobras descobriu recentemente as muitas potencialidades de Moçambique. Associada a outra empresa brasileira, a Tereos, já presente no país lusófono na produção de açúcar, o colosso petrolífero vai investir fortemente no etanol. Criada uma unidade industrial chamada Companhia de Sena, está prevista a conclusão de uma destilaria ainda este ano e a produção industrial de etanol arrancará em 2014, processando 1,2 milhões de toneladas de cana-de-açúcar.

IV

Recursos, Construção e Mercado Q

uando se qualificam os investimentos brasileiros em África, tanto em Angola, Moçambique como, em muito menor escala, noutros diversos países, não se afigura encontrar nenhum modelo claramente diferente do padrão dominante entre os grandes investidores no continente: o Brasil também investe predominantemente em recursos e construção, sobretudo através dessas três grandes companhias com larga presença e experiência internacional. Conhecidos já os investimentos da Petrobras em vários países produtores de petróleo, também a Odebrecht soma aos investimentos em Angola e Moçambique outros projectos em andamento no Botswana, Congo, Djibuti, Gabão, Líbia e Libéria, enquanto a Vale acrescentou à forte presença em Angola e Moçambique investimentos em recursos mineiros do Congo, Gabão, Guiné, Malawi, África do Sul e Libéria. Em termos práticos, porém, os investimentos brasileiros em África assentam numa grande mobilização de financiamentos públicos e de empréstimos do banco de desenvolvimento do Brasil, o BNDES, responsável desde 2007 por várias linhas de crédito dirigidas aos negócios em África tanto das grandes empresas como de companhias menores. Saíram dos cofres do BNDES, entre muitos outro outros capitais, os 3,2 biliões de dólares em créditos para investimentos em Angola nos sectores da construção civil, desenvolvimento de centros tecnológicos, maquinaria agrícola e equipamentos técnicos. A seguir em volume de crédito, descobrem-se os 80 milhões de dólares já liberta-

Segunda-feira, 29 de Julho de 2013 • LUSOFONIAS

dos para os serviços de engenharia e construção do aeroporto de Nacala pela Odebrecht, parte do pacote de 300 milhões disponibilizados para apoiar projectos em Moçambique. Entre os vários créditos oferecidos para investimentos noutros países africanos ainda se destacam os 35 milhões de dólares para o desenvolvimento de sistemas de pagamento electrónico nos transportes públi-

cos da África do Sul. Ao lado destes créditos de origem estatal, um dos maiores bancos privados brasileiro, o BTG Pactual, anunciou em 2012 a criação de um fundo especial de 1 bilião de dólares para apoiar investimentos em África. Seja como for, se retirarmos da pintura geral os projectos apenas debuxados para Angola e Moçambique, alguns à procura de mais capitais e indispensáveis parceiros internacionais, o volume geral de investimentos brasileiros em África é ainda limitado quando comparado aos expressivos montantes de capitais mobilizados pela China (dez vezes mais) ou pela Índia (três vezes mais), concentrando-se as linhas de crédito em projectos em Moçambique e Angola que, neste úl-

timo caso, garante os investimento brasileiros em exploração e exporta ções de petróleo, ao mesmo temp que 32,5% destes créditos se dirigem directamente para a Odebrecht. Apesar desta concentração domi nante nas áreas dos recursos natu rais e da construção, responsávei governamentais e empresas bra sileiros procuram enfatizar que África pode vir a ser um dos mai importantes mercado emergentes para a exportações de maqui narias, equipamento técnicos, materiais de construção, produto alimentares e agríco las. Na verdade, 42% das exportações brasi leiras para o continen te africano realizam-se já com produtos manu facturados, acima do 36% que representam no total das exporta ções brasileiras, fa zendo da África o seu terceiro mais impor tante destino em per centagem depois da América Latin e dos Estados Unidos. Também nes tes sectores, departamentos esta tais e empresas do Brasil agitam em muitas feiras, exposições e visita constantes aos países africanos a vantagens dos produtos industriai e das tecnologias brasileiras que es tariam muito melhor adaptados à “condições tropicais”. Na prática contudo, o modelo é bastante mai primário: empresas industriais apro veitam o terreno aberto pelas gran des companhias, sendo habitual en contrar ao lado dos investimentos d Petrobras, da Odebrecth ou da Val uma dezena de outras companhia menores e mais especializadas ofe recendo os necessários componente e consumíveis industriais.

lusofo

os apo m

iuis aa is os as ios e os o% ine uos m aau rrna sam as as is sàs a, is onnda

Comércio, Investimentos e Cooperação: Estratégias Políticas e muito Estado I

mporta sublinhar que o desenvolvimento do comércio, investimentos e cooperação brasileiros em África nesta última década esclarece não apenas uma evidente nova estratégia política internacional, como também se mostra generosamente dominado pelas iniciativas estatais. A reorientação do interesse do Brasil pela África decorre de uma assumida vontade política do antigo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, em 2003, decidiu mesmo promover a cooperação com o continente africano a prioridade nacional. Nesta altura, Lula da Silva começou a insistir numa nova geografia comercial mundial que deveria passar a ser pautada pelo crescimento das conexões Sul-Sul. Encarado inicialmente com um projecto meramente ideológico, hostilizado até pelos grandes empresários brasileiros que não vislumbravam qualquer interesse em investir numa África considerada excessivamente pobre e muito má pagadora, o antigo Presidente teve também de afrontar o criticismo agressivo das diferentes oposições políticas, normalmente de acordo em destacar a importância fundamental de se continuar a apostar nas ligações comerciais predominantes aos mercados dos Estados Unidos e da Europa. Contudo, desde o início do seu primeiro mandato, Lula da Silva mobilizou muitos empresários brasileiros para integrarem as suas visitas oficiais a países africanos, libertou fundos estatais genero-

sos para suportar a circulação de empresas nas grandes feiras, exposições e certames comerciais espalhados pelo continente, promovendo ainda dezenas de encontros no Brasil entre associações, companhias e instituições comerciais brasileiras e africanas. Visitas de Estado e iniciativas governamentais muitas serviram ainda para espalhar entre as elites africanas o modelo que se queria singular da estratégia brasileira para a África que, nesse contexto renovador de cooperação Sul-Sul, foi sistematicamente apresentado como sobrepujando os meros interesses comerciais. É verdade que Lula da Silva foi procurando no continente africano encontrar apoios para essa ambição política maior de sentar o Brasil em lugar permanente do Conselho de Segurança da ONU, mas conseguiu igualmente disseminar um discurso solidário em que se destacava a familiaridade cultural e social brasileira com os grandes desafios colocados à África. O antigo Presidente foi explicando aos potenciais parceiros africanos que o Brasil oferecia projectos de cooperação que, libertos de qualquer herança colonial, convocavam a própria experiência nacional de desenvolvimento em áreas fundamentais como a redução da pobreza, os serviços de saúde ou a socialização da energia. Mais ainda, Lula da Silva foi pedindo sistematicamente desculpa pelos séculos de escravatura africana no Brasil, sublinhando a maioria negra da

sua população actual – a segunda no mundo depois da Nigéria –, logo assumindo que o país tinha uma dívida moral para com a África que haveria de ser paga em ajuda e cooperação desinteressadas. Para além das grandes empresas petrolíferas, mineiras e da construção, o anterior Presidente encontrou ainda parceiros relevantes em duas importantes organizações subsidiadas pelo Estado e com amplo reconhecimento internacional: a Fundação Oswaldo Cruz com o seu activo instituto de investigação biomédica e de saúde pública, a que se juntou a poderosa Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Definida uma estratégia política, especializado um discurso apelativo pejado de tópicos afro-brasileiros, alargada a presença diplomática, depois reunindo progressivamente mais apoios, o governo do Brasil tem vindo desde 2003 a ampliar a cooperação em África a partir dos sucessos reclamados em casa (mas agora também quase surpreendentemente contestados nas ruas das grandes cidades brasileiras). Permitindo ao Brasil atingir as metas do Desenvolvimento do Milénio com cinco anos de avanço, os programas de redução da pobreza seguiram também para a África tanto no domínio do desenvolvimento agrícola quanto em projectos de assistência social. Terceiro maior produtor alimentar do mundo, país tropical com condições climáticas e geológicas similares às de mui-

tos países da África subsaariana, o Brasil tem vindo a privilegiar uma cooperação técnica, de investigação e de formação apostando no melhoramento dos solos agrícolas, na adaptação de sementes e no fortalecimento da resistência das culturas às secas e pragas. Presentemente, a Embra pa desenvolve estes tipo de projectos agrícolas em 15 diferentes países africanos, estendendo-se da investigação e formação em horticultura no Senegal às tecnologias de produção de caju na Tanzânia e Guiné-Bissau. Em estreita ligação à cooperação agrícola, o governo brasileiro foi lançando vários projectos de ajuda ao combate à fome em África inspirados no sucesso dos programas domésticos da F ome Z ero e, no seu interior, da Bolsa Família, parte do grande projecto B rasil S em M iséria (BSM), lançado em 2003. Na verdade, desde 2005, o Brasil financiou a formação de técnicos de vários países africanos na planificação, implementação e gestão dos projectos do tipo B olsa F amília que, assim, chegaram à Guiné-Bissau, a Moçambique, ao Gana, à Zâmbia, à África do Sul, estando ainda em negociações com o Benin. A seguir, em 2008, foi criado o programa de cooperação África-Brasil em desenvolvimento social, permitindo ao país lusófono ser em Outubro desse ano o único convidado não-africano a participar na coferência da União Africana de Ministros das pastas sociais.

le

as ees

onias

desenvolvimento em áreas fundamentais como a redução da pobreza, os serviços de saúde ou a socialização da energia

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 29 de Julho de 2013

V

Saúde Vária

A

cooperação brasileira em África apresenta-se também na literatura oficial como modelar nas áreas da saúde e das energias. Em termos quantitativamente impressivos, o governo brasileiro apoiou até hoje 53 acordos bilaterais em 22 diferentes países africanos em diversas áreas da saúde, destacando-se, mais uma vez, a convocação dos programas domésticos que, sobretudo no campo da SIDA, reduziram substancialmente a mortalidade e a morbilidade no Brasil. Os programas nacionais de distribuição gratuita massiva de preservativos, de realização sistemática de testes e de educação escolar juvenil foram oferecidos como modelo a um continente que é o mais flagelado pela terrível pandemia. A partir de 2003, a cooperação brasileira desenvolveu programas de assistência, combate, prevenção e educação sobre a SIDA em Moçambique, Serra Leoa, Quénia, Tanzânia, Zâmbia, Gana, Libéria, Congo e Burkina Faso. Actualmente, estes programas de cooperação conduziram à construção de uma fábrica de medicamentos genéricos anti-retrovirais em Moçambique, aberta em 2012, projecto em que foram já investidos 100 milhões de dólares. Capaz de produzir 21 diferentes tipos de medicamentos de combate à SIDA, a unidade industrial farmacêutica moçambicana ambiciona vir a servir toda a África subsaariana. O Brasil tem também procurado desenvolver projectos de combate e prevenção da malária em Angola, Moçambique, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Camarões e Congo. Outros programas menores de cooperação, nomeadamente na prevenção da tuberculose, no domínio do cancro, das doenças cardíacas, da pediatria e da saúde oral encontram-se novamente em Angola, Moçambique,

Um Concorrente

da

Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe, estendendo-se ainda à Argélia e Serra Leoa. Culminando este domínio de cooperação, o governo brasileiro lançou em Maio de 2010 a Rede de Investigação em Saúde África-Brasil destinada a desenvolver projectos de investigação comuns em doenças tropicais. Finalmente, a cooperação brasileira no continente africano tem vindo a gerar vários projectos nas áreas das energias outra vez inspirados em doméstico sucesso, especialmente do programa nacional Luz para Todos, responsável desde 2003 por ter fornecido electricidade a mais de 3 milhões de famílias rurais. Um domínio de cooperação que, a uma leitura apressada, parece quase paradoxal: riquíssima em energias fósseis e recursos hidrográficos, a África subsaariana com os seus 48 países tem, no entanto, uma capacidade instalada de geração de energia menor do que o da França, ao mesmo tempo que praticamente 90% da sua população rural não conhece ainda os muitos favores da electricidade. Face a estes constrangimentos mais do que profundos a qualquer processo de desenvolvimento sócio-económico sério, o Brasil movimenta-se em África com um modelo de cooperação privilegiando a difusão de energias renováveis e não-renováveis nos meios rurais, prometendo ainda transferência de tecnologias e formação de técnicos africanos. Em Maio de 2012, o governo brasileiro assinou com o seu homólogo de Moçambique um acordo de cooperação para a implementação da versão local do Luz para Todos. Outros programas de cooperação técnica existem com Angola, África do Sul, Burkina Faso, Nigéria, Quénia, Zâmbia e Camarões, incluindo a transferência de tecnologias de produção de biofuel em que o Brasil se tem vindo a especializar.

e

Energias Alternativas

Recorde-se que o grande país lusófono é o maior exportador mundial de etanol que, baseado na sua gigantesca produção de cana-de-açúcar, encontrou no programa federal Pró-Alcool um modelo doméstico que, de novo, governo e empresas querem situar em África. Surgiu, por isso, o programa Pró-Renova visando apoiar outros países em desenvolvimento na área das energias renováveis, tendo sido também assinado um memorando de entendimento com a União Económica e Monetária da África Ocidental para cooperação em biofuel cuja transferência de tecnologia foi ainda alvo de acordo formal no seio do Fórum Índia-Brasil-África do Sul (IBSA). Domínio de cooperação difundido, entre vários outros, pelas agências da Embrapa em África, o Brasil assinou já acordos de cooperação bilaterais de produção de biofuel com Angola, Moçambique, Congo, Nigéria, Senegal, Gana, Quénia, Zâmbia, Uganda e Sudão. Assim, significativamente, alguns dos maiores produtores de petróleo africanos fazem parte desta lista. De facto, com a Nigéria o Brasil assinou um acordo, em 2007, para o desenvolvimento de uma “cidade do biofuel” a erguer com emigrantes das zonas rurais treinados pela cooperação brasileira. Em Angola surgiu uma Companhia de Bioenergia de Angola (BIOCOM), associando a Sonangol e a Odebrecht, projectando-se uma unidade industrial capaz de gerir 32 mil hectares de plantações de cana destinadas a produzir 30 milhões de litros de etanol e 250 toneladas de açúcar por ano. Mesmo o Sudão mobilizou a tecnologia oferecida pela cooperação brasileira para se transformar em exportador também de etanol, qualquer coisa como 15 milhões de litros anuais quase exclusivamente destinados aos mercados europeus.

China?

A

África é uma espécie de última fronteira de recursos naturais tão abundantes como a sua imensa mão-de-obra. O interesse do Brasil pelo continente parte daqui, como o da maior parte dos antigos e novos concorrentes internacionais, mas pretende oferecer contrastivamente muito mais. A insistência nos benefícios de uma cooperação Sul-Sul tem servido ao Brasil para concorrer, pelo menos política e estrategicamente, com o chamado ocidental Norte industrializado, do qual os mais altos responsáveis brasileiros recordam amiúde, Portugal incluído, o seu passado de exploração colonial, de infamante tráfico de escravatura e de pretensões imperiais. Ao mesmo tempo, governantes, empresários e cooperantes brasileiros acautelam também com cada vez maior insistência o que consideram ser os vários problemas sociais gerados pela renovada imensa presença chinesa em África. Na verdade, em termos reais, as grandes companhias brasileiras como a Petrobras, a Odebrecth e a Vale competem regularmente com gigantescas empresas chinesas (e muitas outras agora da mais diversa geografia) na obtenção de direitos e contratos em África, maiormente em busca de recursos e grandes obras públicas

VI

“Eu

não tenho nada contra os meus amigos chineses. Pelo contrário, são um grande parceiro para nós e queremos manter a nossa parceria estratégica. Mas a verdade é que, por vezes, eles ganham uma mina e só trazem chineses para trabalharem aqui, não criando nenhuma oportunidade para os trabalhadores locais”

(Lula

da

Silva

na

mais do que lucrativas. Muito frequentemente, perdem a competição já que, apesar do apoio financeiro do Estado, sobretudo através do BNDES, as empresas brasileiras não dispõem dos amplos recursos estatais em ca-

Segunda-feira, 29 de Julho de 2013 • LUSOFONIAS

Tanzânia, 2010)

pitais investidos mais do que generosamente nas muitas companhias chinesas activas por toda a África. Uma limitação sistematicamente ultrapassada pelo discurso da afinidade cultural e social de que decorre-

ria um modelo brasileiro singular de novo relacionamento económico com o continente, edificando muito para além do imediatismo das vantagens comerciais uma cooperação, investimentos e projectos em verdadeiras parcerias para o efectivo desenvolvimento económico e social com que as populações africanas pelo menos sonham há muitas décadas. Este discurso inclui muito recorrentemente e aos mais altos níveis a explicitação em contraste crítico do que se designa como modelo chinês em África (na verdade, muito semelhante no essencial ao de todos os outros, caso retirarmos as famosas discussões sobre pré-condições e alguns repetidos disparates de responsáveis e empresas chinesas na sua muito defeituosa representação cultural e humana das sociedades africanas...). Na sua visita oficial à Tanzânia, por exemplo, em Julho de 2010, o anterior Presidente Lula da Silva não deixou de comentar criticamente a concessão de um projecto mineiro neste país africano a uma companhia chinesa em detrimento da poderosa Vale: “Eu não tenho nada contra os meus amigos chineses. Pelo contrário, são um grande parceiro para nós e queremos manter a nossa parceria estratégica. Mas a verdade é que, por

lusofonias

vezes, eles ganham uma mina e só trazem chineses para trabalharem aqui, não criando nenhuma oportunidade para os trabalhadores locais”. Criticismo imediatamente reiterado por um alto responsável governamental brasileiro que, nesta mesma viagem presidencial, não deixou quase de sugerir uma teoria completamente contrastiva: “A China está a vir para a África atrás das minas, do cobre, do ferro, do manganês, do petróleo e do gás. Nós, o Brasil, vimos atrás do vazio criado por eles...” Tópicos repetidos também abertamente pela Presidente Dilma Rousseff durante a sua visita oficial a Moçambique, em Outubro de 2011, reiterando em contraste com as propostas chinesas as vantagens dos investimentos e cooperação brasileiros baseados em real solidariedade, preocupações sociais, transferência de tecnologias, formação e compromisso constante com o bem-estrar das populações africanas. Um discurso tão político como estratégico a que não é naturalmente estranha a subida concorrência internacional pelo acesso aos recursos mineiros de Moçambique ou às grandes reservas de gás descobertas na bacia do Rovuma. Por isso, em coerência, nesta sua recente visita oficial a Adis-Abeba, no final de Maio deste ano, para participar nas comemorações oficiais dos 50 anos da União Africana (antiga Organização de Unidade

Africana), a Presidente Dilma Rousseff anunciou solenemente o perdão e reestruturação da dívida de 12 países africanos no valor de 840 milhões de dólares (o que a China também tem feito repetidamente em muito maiores volumes). Ficam, assim, praticamente perdoados, apesar das críticas subsequentes do Senado do Brasil, os 350 milhões de dólares que o Congo-Brazaville deve a credores brasileiros, mais os 237 milhões da Tanzânia, os 113 milhões da Zâmbia, a adicionar a diversas dezenas que se espalham pelo Senegal, Costa do Marfim, República Democrática do Congo, Gabão, República da Guiné, Mauritânia, Sudão, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Apesar das críticas recorrentes à designada ofensiva chinesa em África circulando em normativo discurso em muitos media ou na investigação académica, também no Brasil, misturando críticas políticas, sociais e culturais sérias a muita ignorância, parcialidade, algum ciúme e abundante (saudável) incomodidade com a feliz pluralização de actores e escalas do processo de globalização, não se podem ignorar completamente os vários efeitos positivos da crescente presença económica, comercial, investimentos e cooperação da China na África. Em rigor, contribuindo à sua escala e com os seus muitos meios para o desenvolvimento de infra-estruturas

indispensáveis, para o crescimento de rendimentos, transacção de bens e alargamento precisamente dos mercados de consumo que, nomeadamente nos sectores alimentares e das manufacturas, o Brasil procura no continente africano. Existem naturalmente demasiados oceanos (pelo menos três...) a separar a China e o Brasil que são felizmente nações soberanas distintas com diferentes histórias, culturas e sociedades. E é também aqui que, na intermediação de diferenças e na construção de pontes de entendimento, o Fórum de Macau pode continuar a ser importante. Antes de mais, procurando promover um muito maior engajamento (como os brasileiros gostam de dizer...) de responsáveis, empresas, técnicos e cooperantes do Brasil na troca de experiências, na formação e na preparação de projectos comuns. Depois, acompanhando e estudando com atenção estas muitas lições da cooperação do Brasil em África que, do combate à pobreza à investigação agrícola, da prevenção da SIDA às energias renováveis, convocam uma credibilidade internacional forjada também pelo desenvolvimento social nacional dos últimos anos. Se bem estudadas, estas lições ajudam a inspirar a plataforma entre a China e os Países de Língua Portuguesa que Macau quer continuar cada vez mais qualificadamente a ser e a fazer.

Publica

textos de estudo e opinião sobre a diversidade cultural das Lusofonias

Martinho

da Vila fala da paixão pelos países lusófonos e da carreira de escritor

Ideias

Por Guilherme Bryan (in: Língua Portuguesa, 93, Julho 2013)

M

artinho da Vila é autor vulcânico. Seus 11 livros, de infantojuvenis a romances, são para ele tão vitais quanto os 48 discos lançados desde os anos 60. Garante que costuma criar um álbum de canções como se escrevesse um livro e recomenda que todo mundo tire um dia da semana para ouvir as faixas de um bom CD só para ler as letras. Martinho da Vila é compositor da lusofonia. Fez um disco, Rosa do Povo, só com os poemas do livro homônimo de Carlos Drummond de Andrade. E transita por países africanos de fala portuguesa a pesquisar raízes e falares com que alimenta sua obra. Tem em Vila Isabel sua sede. O bairro carioca deve a Noel Rosa a fama cosmopolita de seu samba. Hoje, é difícil pensar o lugar sem Martinho. Aos 75 anos, o cantor acaba de ter a obra revisitada pelo escritor Hugo Suckman, numa discobiografia do projeto Sambabook.  Martinho José Ferreira nasceu na cidade fluminense de Duas Barras, em 12 de fevereiro de 1938. Foi para a capital aos 4 anos. Chamou a atenção do público em 1967, no III Festival da Record, com Menina Moça. Mas o primeiro sucesso veio no ano seguinte, com Casa de Bamba. Ele é bamba. Sua relação com a escola de samba Unidos de Vila Isabel é de 1965. Criou o samba-enredo Kizomba: a Festa da Raça, de 1988, para os cem anos da Lei Áurea. Dez anos depois, retomaria o tema no romance autobiográfico Kizombas, Andanças e Festanças.  Nesta entrevista, Martinho comenta a relação do samba com a língua portuguesa, seu carinho pela

lusofonias

lusofonia e seu processo criativo de carpintaria literária. 

“requenguela” e “kizomba”, que estão na minha obra. Não existiam no dicionário brasileiro.

Qual a importância de ter a obra revisitada por artistas tão variados? Para um compositor, é uma honraria muito grande e gostei mais do projeto, sinceramente, porque é muito importante para o samba e não só para mim. Em quase todos os projetos do gênero, em geral se faz algo muito transado, mas o samba sempre fica para o final. O samba nunca teve um produto como esse, tão bem feito, tão bem armado.

Como compõe? Primeiro cria a melodia? Parto principalmente do tema para criar uma música. Preciso ter uma motivação do que vou falar. Então, descubro um assunto. Se já foi muito comentado, busco outra maneira de tratar dele. Ou me concentro numa frase e começo a desenvolver, criando a letra. Depois faço a música. Outras vezes, ocorre uma célula musical na cabeça, começo a repeti-la, desenvolvê-la e crio a música. Depois penso numa temática para criar a letra. Com os parceiros, com alguns fiz melodia, com outros, a letra. Com Ivan Lins, por exemplo, fiz letra. Com Hermínio Bello de Carvalho, música. Na maioria das vezes, eles me mandaram uma música incompleta e eu a desenvolvi.

O samba carioca tem uma maneira própria de lidar com o uso das palavras? A letra do samba é como poesia. Naturalmente, está bem ligada às palavras. O compositor que é bem cuidado prima pela língua. Enriquece a língua, porque, quando vai compor, fica buscando palavras para não ficar repetitivo. Fazer letra é mais difícil do que a música, inclusive. Volta e meia, o poeta, o compositor redescobre uma palavra e até cria palavras. Esse é o caso de

Há liberdade maior no manejo da língua ao se escrever letra de música do que um livro? Nas canções é mais complicado, porque temos de resumir uma ideia e um tema. Para fazer um samba-enredo, há um tema e é preciso resumir aquilo em poucas linhas. Ele não pode ser demasiadamente grande. A música tem um limite já determinado. CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE > LUSOFONIAS • Segunda-feira, 29 de Julho de 2013

VII

< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

Não há uma canção de duas folhas, de 30 linhas (risos). Na literatura, há mais liberdade. O livro não tem um limite. Pode escrever um pouco, voltar, reescrever, trocar. É muito mais trabalhoso. Mas há responsabilidade maior com a literatura. Na música, embora o compositor tenha um compromisso com a língua, com a ideia, com a verdade e a cultura - há muita responsabilidade -, ela é vista como algo de artista, para ser cantada. Às vezes, a pessoa não gosta muito da letra, mas da melodia. O livro não. O compromisso do escritor é muito grande, porque é algo que fica para sempre e que será consultado e reeditado. É complicada a literatura. É dolorido escrever (risos).  É dolorido fazer música? A música é chata, dolorida, porque começo a fazer uma melodia e fico com ela o dia inteiro na cabeça. Às vezes, dou entrevista, e aquela música ali, na minha cabeça (risos). É algo terrível. Ao cantar, você se preocupa com a dicção? Isso é muito importante. Antigamente, não articulava muito bem. Eu me preocupava mais com o som apenas. Hoje, como me sinto mais cantor, procuro articular melhor as palavras, para ficar bem inteligível e claro. Mas a gente também tem de usar a articulação de maneira que não fique pedante. Às vezes, é muito melhor o “pra” do que o “para” (risos).  Devagar, devagarinho é o seu tratado de dicção? Nela, a palavra certa não é “devagarinho”, mas “devagarzinho”. Só que “devagar, devagarzinho” não soa bem no meu ouvido. “Devagarinho” é muito mais tranquilo. Às vezes, a gente prefere não usar a palavra exatamente como ela é escrita ou deveria ser pronunciada, por causa do resultado. Nós temos uma liberdade poética. É algo permitido. E também, com o uso, a palavra vai sendo aceita de duas maneiras, tanto “devagarzinho”, quanto “devagarinho”, assim como “butiquim”. “Botequim” é complicado (risos). “Fui ao botequim” na música não fica bonito. Identifica a figura do malandro carioca à sua obra, de alguma maneira? Sei que sim, mas não fico muito me analisando, não. A maioria das pessoas fala do meu jeito, da

VIII

Segunda-feira, 29 de Julho de 2013 • LUSOFONIAS

minha forma de escrever, construir as frases, e a maneira meio gingada de cantar ou criar até uma canção romântica. Vou muito por aí. A palavra “malandro” teve várias formas.  Houve um período da história em que malandro era o cara que não trabalhava. Era sinônimo de preguiçoso. Depois ficou malandro aquele que conseguia viver sem trabalhar. Era o cara que chegava e fazia uma coisinha ali, sempre trabalhando um pouquinho, mas nunca com compromisso. Malandro não gostava de ter patrão. Agora tem outra conotação a palavra, que é a de quem sabe fazer malandragem e enganar as pessoas. Esse é o tipo de que o Paulo Vanzolini não gostava. Ele não gostava da palavra “malandro” (risos). Mas tem outra conotação boa hoje, que é “o Martinho tem um jeito malandro de ser”. Quer dizer, é um jeito dengoso, malemolente. É verdade que só trabalha com o conceito de álbum?  Quando vou fazer um disco, é igualzinho a criar um livro. Pego uma temática. Eu não fico juntando músicas para completar o número suficiente para formar um disco e gravar, não. Para só depois ver o que é aquilo. Eu planejo fazer um disco sobre a língua portuguesa, por exemplo. Uma música eu já fiz até sobre esse assunto (risos). Então penso naquele tema e vou criando músicas que falam dele. Se for um disco sobre São Paulo, vou criar e buscar músicas sobre a cidade, botando-as numa sequência, para que elas se encaixem umas às outras, como se fosse o roteiro para um show. 

coisas que nos identificam, mas ele viveu numa época diferente demais.  Morreu num ano e eu nasci no outro. Para Vila Isabel, a importância dele é ter divulgado o bairro. Para mim, é mais a escola de samba Unidos de Vila Isabel, que, no tempo dele, não existia. Se existisse, ele seria um grande compositor de samba-enredo. Por que musicou poemas de Drummond? Num ano, a Unidos de Vila Isabel escolheu como tema-enredo não a vida do Carlos Drummond de Andrade, mas uma poesia dele, Sonho de um Sonho. É difícil fazer enredo e samba por uma poesia, mas consegui. O Drummond achou muito interessante e falou comigo. Como essa poesia está no livro Rosa do Povo, eu o li inteiro, fiquei encantado e resolvi fazer um disco com esse título. No meu samba-enredo, traduzi o poema; no disco, o livro. A música João e José eu fiz com João Nogueira. É um dos meus discos mais interessantes. Há quem diga que é o melhor (risos). Sua relação com o folclore é forte. Por quê? Fiz um disco todo baseado no folclore, O Canto das Lavadeiras, de 1989. A literatura brasileira, de maneira geral, está envolvida pelo folclore. Há músicos eruditos que abominam o popular e o folclore. Estão errados, porque tudo vem daí.

Você encara um disco como se fosse um livro? A maioria das pessoas só escuta música que toca no rádio ou é divulgada, mas há muita gente que pega um disco, bota para ouvir, pega as letras e aí entende que é como se estivesse lendo um livro. Todo mundo devia tirar um dia ou uma hora pelo menos por semana para ouvir música. Pegar um disco, começar a ouvir e ler as letras todas. É um hábito muito bom, mas quase ninguém tem.

Você é autor do livro Os Lusófonos. O que o atrai nos países de língua portuguesa? Portugal é minha outra pátria. Lá eu sou como aqui. As pessoas me tratam como aqui e há uma identificação muito grande. Já fui muitas vezes a Portugal. Em todos os anos, eu vou uma ou duas vezes. Gosto muito da música portuguesa. Já gravei fados à minha moda e eles gostam muito. A minha música é muito difundida por lá. Às vezes, há uma identificação com um país e o por-quê a gente não sabe muito bem. Mas é um país lindo de que gosto muito. Todo brasileiro que puder fazer uma viagem internacional tem de ser a Portugal.

Você fez um disco para Noel. Vê semelhanças entre a sua obra e a dele? Noel Rosa é importante para o samba, até na postura. Tudo o que ele fez é tão forte que ninguém supera. O samba deve muito a ele, mas nunca fui muito um pesquisador do Noel, não. Como todo mundo em Vila Isabel é Noel Rosa fanático (risos), quando cheguei lá tratei de entender um pouco mais dele e ver sua grandeza. Sempre há

Interessa a você o modo como nossa língua é falada em outros países? Cada um deve falar o português à sua maneira, mas creio que o jeito brasileiro acabará predominando, porque somos um país grande e com muito mais gente. Vamos acabar dominando ou influenciando na maneira de falar dos países africanos de língua portuguesa.

lusofonias

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.