O Brasil na Conferência da Paz de 1919

June 13, 2017 | Autor: E. Vargas Garcia | Categoria: História da Política Externa Brasileira, Primeira Guerra Mundial, Diplomacia Brasileira
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Artigo publicado in Boletim da ADB (Associação dos Diplomatas Brasileiros), Brasília, ano XIV, nº 59, out./nov./dez. 2007, p.11-13.

O Brasil na Conferência da Paz de 1919

Eugênio Vargas Garcia Em 28 de junho de 1919, era assinado em Versalhes o volumoso Tratado que concluiu a Primeira Guerra Mundial. Terminava a Conferência da Paz. O Brasil, que abandonou a neutralidade e reconheceu o estado de guerra com a Alemanha em 1917, estava presente na cerimônia. A Grande Guerra, como os contemporâneos a chamavam, teve um impacto profundo na história do século XX. Suas conseqüências não se resumiram às alterações territoriais que redesenharam o mapa-múndi. Para citar apenas um exemplo, o conflito marcou a queda de quatro grandes Impérios: Alemão, Austro-Húngaro, Otomano e Russo. A guerra havia deixado de ser uma prática restrita aos Exércitos em teatros de operação distantes. Invadiu as cidades e a vida das pessoas, afetando duramente as populações civis. Calcula-se, por baixo, um saldo só na Europa de mais de 8 milhões de mortos e 6 milhões de inválidos, um número até hoje assustador. A carnificina despertou indignação e revolta. Aspirações pacifistas ganharam força. A guerra passou a ser vista como algo intrinsecamente mau, uma imoralidade que deveria ser banida da vida internacional. O Presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, personificou esse sentimento. Na primeira viagem além-mar de um Presidente norteamericano no exercício de seu mandato, Wilson foi ao Velho Mundo levar sua mensagem a favor do projeto da Liga (ou Sociedade) das Nações. Ele pretendia tornar o mundo “seguro para a democracia”. A Conferência da Paz era a mais importante reunião internacional desde o Congresso de Viena de 1815.

A Conferência da Paz teve início em janeiro de 1919, em Paris. Dela tomaram parte 32 países. A Alemanha, ex-inimiga, não foi autorizada a participar. Os trabalhos mais importantes eram realizados fora das sessões plenárias e da estrutura formal das comissões. O Conselho dos Dez era uma virtual extensão do Conselho Supremo de Guerra dos aliados. Criou-se mais tarde o Conselho dos Quatro, órgão ainda mais exclusivo, reunindo apenas Wilson e os Primeiros-Ministros da Grã-

Bretanha, David Lloyd George, da França, Georges Clemenceau, e da Itália, Vítor Emanuel Orlando. Depois da saída de Orlando, inconformado porque as pretensões italianas não eram ouvidas, praticamente tudo se concentrou no Conselho dos Três. Ali eram de fato tomadas as decisões cruciais, em absoluto segredo. Era o primeiro e duro golpe contra os princípios da diplomacia aberta. Além disso, do Leste já sopravam os ventos de revolução, em bases totalmente diversas da ordem liberal que se tentava implantar na Europa e vender para o mundo. Contra o ideal de democracia defendido por Wilson, a Rússia bolchevique liderava o chamado ao socialismo, que deveria pôr fim às ambições das potências capitalistas, como expôs Lênin em seu livro Imperialismo: fase superior do capitalismo, de 1917. Mas um dado comum unia os dois movimentos, wilsoniano e leninista: ambos reagiam contra a velha ordem colonial eurocêntrica, acenando com a realização da utopia e a superação dos males do passado. Eram ambas ideologias globalizantes e sedutoras, que serão propagadas com vigor por esses novos pólos de poder. Não se sabia na época, mas a Guerra Fria estava nascendo. O Brasil foi o único país da América do Sul a participar da guerra. Com isso garantiu sua presença na Conferência da Paz na qualidade de país beligerante. A escolha da delegação que deveria representar o país deu origem a uma polêmica disputa entre Domício da Gama, então Ministro das Relações Exteriores, e Rui Barbosa, que havia liderado manifestações como Presidente da Liga Brasileira pelos Aliados. Por causa dessa disputa um terceiro nome foi escolhido para a chefia da delegação: Epitácio Pessoa, jurista e Senador pela Paraíba. Logo nos primeiros dias, o Brasil se colocou contra a tendência de classificar os países em duas categorias: de interesses “gerais” ou “particulares”. Nas conferências diplomáticas do século XIX, toda a ação pertencia às grandes potências. Os Estados menores dificilmente tinham voz. Agora, em 1919, mais essa premissa da “velha diplomacia” era questionada. Ao criticar o monopólio das decisões pelos grandes, o Brasil deixou seu protesto em defesa dos pequenos, que eram mantidos alijados das principais deliberações da Conferência. O Brasil, no entanto, era um ator periférico. Os assuntos europeus centralizavam todas as atenções. Problemas concretos de outras regiões, como Ásia ou Oriente Próximo, tinham precedência sobre os temas de eventual interesse latino-americano. Do Rio de Janeiro, Domício da Gama instruía a delegação brasileira a atuar com firmeza, em estreita coordenação com os Estados Unidos, na resolução das duas questões que afetavam mais diretamente o Brasil. Na primeira, o governo brasileiro queria garantir o recebimento do depósito feito ao iniciar-se a guerra na casa bancária Bleischroeder, de Berlim. O dinheiro vinha da venda do café que o Estado de São Paulo possuía estocado em alguns portos europeus como garantia de dois empréstimos. Graças às gestões brasileiras, obteve-se o reconhecimento da responsabilidade alemã pelo pagamento. A Alemanha deu garantias ao Brasil de que todas as somas provenientes da venda do café paulista 2

seriam reembolsadas, com juros, pelo câmbio ao dia do depósito. A segunda questão, mais complexa, envolvia a posse dos 46 navios ex-alemães que o Brasil havia arrestado ao romper relações diplomáticas com a Alemanha, em abril de 1917. Durante a Conferência, ficou decidido que todos os navios alemães apreendidos seriam partilhados entre os aliados na proporção de suas perdas marítimas. A decisão iria atingir fortemente o Brasil, que havia capturado tonelagem maior do que suas perdas e teria então que ceder navios a países que haviam perdido mais na guerra. Aflito, Epitácio Pessoa recorreu a Wilson em nome da “tradicional amizade” entre o Brasil e os Estados Unidos, um legado do barão do Rio Branco. Com o apoio decisivo norte-americano, prevaleceu afinal a tese do Brasil de não aceitar a partilha dos navios, como pretendiam os franceses. “Não se marcou aqui o ponto de partida de uma política de renúncia ou de diminuição. Ao contrário, consagrou-se o desfecho da amizade que vimos cultivando de longa data”. Raul Fernandes, defendendo a aliança entre o Brasil e os Estados Unidos na Conferência da Paz.

Epitácio também participou da comissão de dez membros encarregada de redigir o Pacto da Liga das Nações. A comissão apresentou uma proposta que reservava quatro assentos não permanentes às potências menores no Conselho da futura organização. Mais uma vez Wilson ajudou Epitácio e, para ocupar essas cadeiras, foram indicados Brasil, Bélgica, Grécia e Espanha. O ingresso no Conselho foi festejado pelo governo brasileiro como sinal do reconhecimento pela sua contribuição (mínima, diga-se de passagem) ao esforço de guerra aliado. No tumulto da Conferência, um fato novo surpreendeu Epitácio. No Brasil, a sucessão presidencial dominava a cena política. Não havia consenso quanto a um provável candidato paulista ou mineiro. O nome de Rui Barbosa chegou a ser sugerido, mas as oligarquias estaduais dominantes relutavam em aceitá-lo. Era preciso encontrar um terceiro nome, neutro, capaz de acomodar as forças políticas regionais. A solução consistiu em indicar Epitácio, político de um Estado pequeno do Nordeste que, por acaso ou destino, desempenhava naquele momento função de relevo internacional. O próprio candidato só foi informado depois, por telegrama, de que seu nome havia sido lançado oficialmente à presidência da República. Epitácio aceitou a indicação, segundo ele uma “honra tão insigne quanto inesperada”. Na oposição, Rui Barbosa lançou sua candidatura alternativa contra o adversário ausente. Seu esforço foi em vão. Mais uma prova de como era viciado o sistema eleitoral na República Velha, as eleições de 13 de abril deram a vitória ao candidato oficial, como esperado. Epitácio nem fez campanha. Continuou seus trabalhos em Paris e não precisou sequer emitir uma declaração sobre seu programa de governo. Essa foi

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a única vez na história brasileira em que um representante do governo, em missão diplomática no estrangeiro, retornaria ao país como Chefe de Estado. Epitácio Pessoa foi o único Presidente do Brasil eleito enquanto se encontrava em missão diplomática no exterior.

O saldo da Conferência da Paz continua sendo objeto de debate. As teses idealistas, tão em voga naquele tempo, se chocaram com as cruas realidades do poder. A contradição básica da Conferência foi a tentativa das democracias vencedoras de congelar o status quo de 1919, cristalizado num modelo ideológico e institucional de nova ordem. O resultado serviu de fermento aos revisionismos nacionalistas que afloraram na década de 1930. Se aquela havia sido “a guerra para acabar com todas as guerras”, como dizia a retórica, a Conferência teria sido “a paz para acabar com a paz”. O Tratado de Versalhes era uma colcha de retalhos. Havia de tudo: delimitação de novas fronteiras, cláusulas militares, navais e aéreas, questões financeiras, até assuntos trabalhistas (criação da OIT). Cada país procurou garantir o seu quinhão no butim da vitória. Nada parecia mais distante dos ideais que animaram os primeiros dias da Conferência. A Alemanha foi obrigada a se desarmar, devolver a Alsácia-Lorena à França e ter a Renânia ocupada por tropas aliadas. Além de perder território e todas as suas colônias, os alemães foram considerados “culpados” pela guerra, conforme estabelecia o fatídico artigo 231. Nisso se baseou a exigência aliada de pagamento de reparações, tema-chave da política européia no entreguerras. “A Alemanha pagará”, passaria a ser o lema da França. Os alemães tomaram conhecimento do Tratado como um pacote fechado, que deveria ser aceito sem discussões. Foi, sob todos os títulos, um Diktat: uma paz ditada pelos vencedores, assinada à força pelos vencidos. A humilhação calou fundo na memória do povo alemão. Versalhes continha em si o germe da discórdia que acabou contribuindo para a eclosão de uma segunda guerra mundial de proporções ainda mais dramáticas que a primeira. _____________________________________________________________________ Eugênio Vargas Garcia é Doutor em História pela UnB e Professor do Instituto Rio Branco (2007).

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A assinatura do Tratado de Versalhes pela delegação do Brasil registra um fato curioso. Existe um quadro pintado por Belmiro, pertencente ao acervo do Itamaraty, que mostra o que teria sido, na livre interpretação do artista, o momento exato da firma do Tratado pelos delegados brasileiros. Naquele dia, Epitácio Pessoa já havia partido em visita a países europeus como Presidente eleito. Na verdade, a cena mostrada na tela nunca ocorreu. No dia anterior Raul Fernandes tivera de ir às pressas para a Suíça, devido a problema de saúde de sua esposa. Calógeras, com fino sarcasmo, comentaria depois: “Bem se vê que não posei para o artista, tão mal inspirado desta vez: nunca tive sapatos daquele tipo”. O historiador Heitor Lira, que também não gostava do quadro, recordará em seu livro Minha vida diplomática aqueles “três cavalheiros de triste figura, colocados em fila, um depois do outro, como numa parada de ônibus, Calógeras em atitude de guerreiro vencido, Raul Fernandes com as calças sem passar a ferro e Rodrigo Otávio com ar de missa de sétimo dia”.

Óleo de Belmiro. Acervo do Itamaraty, Rio de Janeiro. Da esquerda para a direita: Pandiá Calógeras, Raul Fernandes e Rodrigo Otávio. Reprodução extraída de Grandes personagens da nossa História: Arthur Bernardes. São Paulo: Editora Abril, 1970.

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