O BRASIL NA CONTRAMÃO: A REDUÇÃO DA DESIGUALDADE DURANTE A CRISE MUNDIAL.

July 28, 2017 | Autor: Ir Kallabis | Categoria: Desigualdades Sociales, Pobreza e desigualdades sociais
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O BRASIL NA CONTRAMÃO: A REDUÇÃO DA DESIGUALDADE DURANTE A CRISE MUNDIAL.

Ana Paula Fregnani Colombi Rita Petra Kallabis Laura Carla Moisa Elicabide1 Resumo O Brasil viveu nos anos de 2004 a 2008 um fato histórico inédito: crescimento econômico elevado com redução dos indicadores de desigualdade. A redução da desigualdade deve-se a um conjunto de fatores, dentre os quais o aproveitamento político da boa fase econômica internacional com a adoção deliberada de políticas públicas pelo governo brasileiro. Essa complementaridade não se deve, somente, a fatores conjunturais. Pode-se entender a dinâmica da seguinte forma: o ajuste macroeconômico da década de 1990 retardou a implantação mais ampla das políticas sociais legadas pela Constituição de 1988. A inversão da política macroeconômica a partir de 1999 permitiu o início de um processo da redução da desigualdade. A conjuntura favorável nos anos 2000 permitiu uma mudança na postura governamental em prol da inclusão social, via programas como Bolsa Família e políticas de valorização do salário mínimo. Sustenta-se, portanto, que a recuperação da renda média do trabalho e a redução na desigualdade de renda não são somente frutos do processo econômico, mas, sobretudo expressão destas políticas. A mudança da postura governamental, mais visivelmente a partir de 2006, foi respaldada pela existência do desenho institucional criado na fase da redemocratização do país. No entanto, esta institucionalidade ainda é insuficiente, tanto para fazer valer os interesses das camadas chamadas populares quanto para garantir uma inclusão social medida não somente pela renda média das famílias, mas pelo acesso aos bens e serviços públicos. Como as melhoras nos indicadores de desigualdade não se devem a transformações estruturais no sistema produtivo e no sistema de proteção a ele ligado, coloca-se urgente avançar na consolidação das instituições centrais na sociedade capitalista: a formalização do mercado de trabalho e a institucionalização das políticas sociais. Palavras-chave: Brasil; desigualdade social; políticas sociais. Introdução

O Brasil vivencia, desde 2004, uma situação histórica inédita. Após 25 anos de estagnação, as taxas de crescimento se elevaram de maneira substancial, com uma breve interrupção somente durante a crise internacional, ao mesmo tempo em que a desigualdade de renda passou por um processo de queda contínua. 1

Ana Paula Fregnani Colombi: [email protected] (bolsista Capes) Mestranda em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, IE/ Centro de Estudos Sindicais e da Economia do Trabalho CESIT. Rita Petra Kallabis: [email protected] (bolsista Cnpq) Doutoranda em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, IE/Centro de Estudos Sindicais e da Economia do Trabalho - CESIT. Laura Moisa: [email protected] (Docente da Universidad Nacional de Colombia sede Medellin) Doutoranda em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, IE/ Centro de Estudos Sindicais e da Economia do Trabalho - CESIT.

2

A despeito dos indicadores terem se manifestado quando da apresentação de um contexto favorável da economia internacional, tal evolução não se restringe a fatores conjunturais. O ponto de partida desse processo deu-se em 1999 quando a reversão da política macroeconômica2 e o aumento da fiscalização do Ministério de Trabalho e Emprego arrefeceram a informalização até então crescente no mercado de trabalho no Brasil; iniciou-se um processo de recuperação dos salários na economia. A partir de 2003 essa tendência se intensifica através da adoção de uma política deliberada de valorização do salário mínimo em concomitância ao contexto internacional favorável que atingiu positivamente as exportações brasileiras, impulsionando a atividade econômica e inaugurando um período de maiores taxas de crescimento econômico. O mercado de trabalho, por sua vez, se tornou mais dinâmico, com a criação de postos de trabalho, aumento do emprego formal e elevação da renda média do trabalho. Ademais, a implementação e expansão dos programas de combate à pobreza, com destaque para o Programa Bolsa Família, veio associar-se e complementar os demais determinantes da redução da desigualdade de renda no Brasil. Esse trabalho sustenta que as políticas adotadas no período em questão demonstram uma mudança da postura governamental, mais visivelmente a partir de 2006, respaldada pela existência do desenho institucional criado na fase da redemocratização do país. No entanto, esta institucionalidade ainda é insuficiente, tanto para fazer valer os interesses das camadas chamadas populares quanto para garantir uma inclusão social medida não somente pela renda média das famílias, mas pelo acesso a condições de vida decentes. Expressão disso são o ainda elevado índice de pobreza e a baixa renda média das famílias, incapaz de prover a base material para o exercício da cidadania. Além disso, como as melhoras nos indicadores de desigualdade não se devem a transformações estruturais no sistema produtivo e no sistema de proteção a ele ligado, coloca-se urgente avançar na consolidação das instituições centrais na sociedade capitalista: a formalização do mercado de trabalho e a institucionalização das políticas sociais. Para discutir essas questões o artigo percorrerá duas etapas. A primeira analisará a queda da desigualdade de renda no período de 2004 a 2008, bem como suas causas; a segunda seção discutirá o escopo e a importância das políticas sociais ancoradas na Constituição de 1988, destacando o problema do estreitamento no tratamento da questão da desigualdade somente enquanto desigualdade de renda, isto é, desprezando o acesso aos bens e serviços públicos como expressão do exercício da cidadania. 2

Vide Baltar et al. 2009.

3

1.

Redução da desigualdade de renda no Brasil (2004-2008): avanços e limites.

A redução da desigualdade de renda corrente e da pobreza de natureza monetária no Brasil, mais fortemente entre 2004-2008, são inegáveis. A tabela abaixo apresenta alguns indicadores que demonstram tal evolução: Tabela 1: Indicadores de desigualdade de renda e de pobreza monetária Desigualdade de renda: índice de Gini

Ano

Renda - razão entre a dos 10% mais ricos e a dos 40% mais pobres

Pobreza - número de pessoas pobres

Pobreza - número de pessoas extremamente pobres

2004

0,572

19,91

59.541.909

23.325.610

2005

0,569

19,55

55.476.712

20.674.228

2006

0,563

18,7

48.526.810

17.133.160

2007

0,556

18,12

44.204.094

15.777.557

41.460.919

13.888.662

2008 0,548 17,13 Fonte: IBGE-PNAD. Indicadores elaborados pelo IPEADATA.

Olhando tanto pela redução do número absoluto de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza quanto pela razão entre os 10% superiores no estrato de renda e os 40% inferiores é possível inferir uma melhora na distribuição dos rendimentos em favorecimento da população dos estratos inferiores. Corroborando essa hipótese, os indicadores mostram que a renda média dos mais pobres cresceu mais que a renda média dos mais ricos, acentuando a queda da pobreza. Quadros (2010) ressalta que o movimento de melhora da estrutura social brasileira foi muito mais forte na base da pirâmide, enfraquecendo ao se caminhar para o topo. Essa questão pode ser visualizada na tabela abaixo:

Tabela 2: Proporção da renda total do país apropriada pelos decis da distribuição segundo a renda domiciliar per capita (renda corrente). População remunerada

Renda domiciliar - participação por décimo da população (%) 2004

2005

2006

2007

2008

50% (mais pobres)

13,83

14,05

14,45

14,73

15,24

10%

6,13

6,19

6,25

6,48

6,57

10%

7,82

7,86

7,93

8,11

8,16

10%

10,68

10,62

10,63

10,81

10,84

10%

16,21

15,95

15,98

16,01

15,94

10% (mais ricos)

45,33

45,33

44,76

43,87

43,24

100,00% 100,00% 100,00% 100,00% Fonte: Elaboração própria a partir dos indicadores disponibilizados pelo IPEADATA.

100,00%

4

Nessa tabela percebe-se que há tendência de elevação da participação na renda total do país entre os decis inferiores, enquanto os dois decis superiores apresentam ligeiro declínio no patamar de participação, a despeito de ainda muito desproporcionais se comparados aos demais decis. A renda corrente pode originar-se do mercado de trabalho, de aposentadorias e pensões e de “outras fontes”, conforme mostra o gráfico 1. Tendo em vista que a renda proveniente do trabalho ocupa a maior parte da renda domiciliar per capita, e que à medida que se caminha em direção às famílias abaixo da linha da indigência (¼ de salário mínimo per capita) e da pobreza (½ de salário mínimo per capita) o peso das “outras fontes” vai acrescendo, é possível perceber que o aumento da renda corrente para os decis inferiores dá-se, primordialmente, pelo impacto das políticas sociais, enquanto para os decis superiores o impacto da recuperação do mercado de trabalho é mais expressivo (BARROS et al, 2010). Gráfico 1: Distribuição percentual dos rendimentos, por origem dos rendimentos.

Fonte: IBGE (2010), com base na PNAD 2009.

Segundo IBGE (2010), para o total das famílias em 2009, os rendimentos de “outras fontes” representavam 5,0% do total de rendimento familiar; os rendimentos do trabalho correspondiam a 76,2%; e os rendimentos de aposentadoria e pensão, a 18,8%. Para as famílias com rendimento familiar per capita de até ¼ de salário mínimo, os rendimentos de “outras fontes” representavam 28,0%, em 2009, do total da renda familiar, ao passo que, em 1999, essa participação era de apenas 4,4%. O aumento significativo da renda por “outras fontes”, segundo o mesmo relatório, é reflexo da expansão de programas de transferência de renda focalizados na população mais pobre, como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social - BPC-LOAS, entre outros de âmbitos estadual e municipal que vem contribuindo para uma redistribuição interna entre as diversas partes

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componentes do rendimento familiar total. É neste sentido que as políticas de transferência de renda também ganham vulto como determinantes do processo de redução da desigualdade de renda e da pobreza monetária no Brasil, principalmente para os estratos inferiores. Segundo Baltar et al. (2009), ao lado das políticas de transferência de renda e de seguridade social, como determinantes da redução da desigualdade de renda no Brasil, estão o fortalecimento do mercado de trabalho, com ampliação da inserção comercial externa, a recomposição da capacidade do setor público de investimento em infra-estrutura, nas políticas sociais e no fortalecimento das instituições e a política de valorização do salário mínimo. Os autores ressaltam que a melhoria na distribuição de renda foi possibilitada pela decisão de adotar políticas públicas específicas sob o ensejo da retomada do dinamismo econômico. Nesse sentido, elevação e formalização do emprego se associam à implementação das demais políticas públicas, criando um círculo virtuoso de geração de emprego e renda que realimenta o consumo, a produção e os investimentos. É importante ressaltar, ainda segundo os autores, a baixa inflação que garantiu aumentos reais no poder de compra e favoreceu as condições de acesso ao crédito pela população de baixa renda, tendo em vista a elevação do rendimento médio real em um contexto de redução sistemática do risco de desemprego. É importante fazer ainda outra ressalva: houve entre 1999 e 2003 redução da desigualdade, no entanto ela se distingui da redução da desigualdade a partir de 2004 pela qualidade. Em ambas ocorreu aumento da formalização, em ambos os períodos houve aumento dos salários mais baixos; porém o primeiro período caracteriza-se pela deterioração no mercado de trabalho, dada a redução das rendas mais altas, ao passo que no segundo período todas as rendas aumentaram, sendo as rendas mais baixas mais favorecidas. Esta diferença não se justifica apenas por fatores conjunturais, mas está diretamente ligada à mudança da postura governamental. Tal postura foi sancionada por maior ritmo de crescimento econômico, dado o vigor exportador da economia brasileira impulsionado pelo aumento da demanda mundial, a partir de 2004. Internamente, a ampliação do acesso ao crédito, o aumento do volume das transferências de renda aos pobres, com elevação do salário mínimo e consequente aumento do piso dos benefícios da seguridade social estimularam o mercado interno como importante componente do crescimento do PIB. Entretanto, as melhoras do mercado de trabalho foram modestas. A taxa de desemprego recuou pouco (de 9,2 % para 8,5% de 2002 para 2006) e nas piores ocupações (não assalariadas, não protegidas pela legislação trabalhista e associadas a baixíssimos rendimentos do trabalho). (Santos, 2011).

6

A partir de 2006 o governo Lula passa a adotar políticas deliberadas de incentivo à atividade econômica, reposicionando - inclusive - o papel do Estado na promoção do desenvolvimento. Como medidas adotadas pelo governo estão o acordo com as Centrais Sindicais em torno de uma política de valorização do salário mínimo3, o aprofundamento do Programa Bolsa-Família e a formulação de um conjunto de políticas de promoção do desenvolvimento da infra-estrutura, da promoção industrial e de desenvolvimento regional que tomou corpo no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Como resultado, entre 2006 e 2009 há uma forte expansão do assalariamento formal na estrutura ocupacional, explicada também pela redução no ritmo de crescimento da parcela de trabalhadores não assalariados (trabalhadores por conta-própria ou empregadores) e de assalariados sem carteira de trabalho, pois estes segmentos diminuíram seu peso na estrutura ocupacional (Santos, 2011; Baltar et al., 2009). Por fim, entre 2004 e 2008, acompanhando a retomada do crescimento econômico e a formalização do emprego, ocorreu uma recuperação da renda média do trabalho, indicando uma tendência de redução na desigualdade das remunerações do trabalho, pois o aumento do rendimento médio apresentou mais expressividade entre as piores ocupações, como efeito da política de valorização do salário mínimo e das conquistas de acordos e convenções coletivas com elevação real dos salários. No entanto, apesar dos avanços em termos da redução da desigualdade de renda serem inegáveis, a melhoria do nível de renda da população não foi capaz de mudar o baixo perfil das rendas brasileiras. O salário mínimo (R$ 415,00 em 2008) era alcançado somente no 6º decil da distribuição de renda. Somente no 9º decil começam a aparecer rendas mais expressivas e os “ricos” ostentam uma renda mensal per capita média de R$ 1.099,55. (Tabela 3)

3

Entre 2002 e 2011 a variação acumulada do reajuste real do salário mínimo foi de 65,9 % (ANFIP, 2011).

7

Tabela 3: Renda domiciliar per capita - média por décimo da população (R$). Renda domiciliar per capita - média por décimo da população (R$)

2004

2005

2006

2007

2008



47,39

52,39

59,00

57,46

66,26



104,00

112,81

127,30

132,34

145,09



150,04

161,46

182,33

190,75

209,03



200,21

214,95

242,30

254,58

275,81



260,65

279,29

311,74

330,41

355,33



337,49

361,46

399,13

424,69

452,94



430,79

458,89

505,95

531,91

562,54



588,16

620,01

678,40

708,67

747,42



892,66

931,42

1019,99

1050,29

1099,55

10º 2497,06 2646,91 2856,76 Fonte: IBGE-PNAD. Indicadores elaborados pelo IPEADATA.

2877,23

2982,17

Qualificando o nível de renda, o artigo 7° da Constituição Federal de 1988 prevê que o salário mínimo deva atender a mínimos dignos4 para uma família de 4 pessoas. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) levanta mensalmente o valor que atenderia à exigência da Constituição chamando-o de ‘salário mínimo necessário’. Em 2009, na média (há variações regionais e também temporais) este valor seria de R$ 2.000,00, ou seja, mais do que quatro vezes o valor do salário mínimo legal. Somente 42% das famílias brasileiras têm uma renda superior a esta linha, apesar do contínuo avanço da renda domiciliar ao longo dos anos 2000. Assim, houve aumento da renda média da população, mas esta renda ainda está em patamares muito baixos e a maioria dos brasileiros permanece em condições precárias ou muito precárias (IPEA, 2011). Ademais, a heterogeneidade dentro dos agrupamentos é muito elevada. Segundo Baltar et. al. (2009), a extrema diferenciação salarial demonstra que, para a grande maioria dos trabalhadores, a renda do trabalho tende a se concentrar em torno de um salário mínimo, enquanto a renda sai em disparada nas ocupações ligadas à direção e supervisão. Por outro lado, a capacidade fiscal de diminuir os níveis da extrema pobreza, via transferências de renda, é limitada e sem a recuperação do nível de renda do trabalho para a maioria da população, não há como conseguir “romper com a história”5 e destituir a convivência histórica entre elevada desigualdade e pobreza no Brasil (CEPAL, 2010; SOARES, 2006; BARROS et al, 2000; HENRIQUE, 1999).

4 O salário mínimo deve ser “capaz de atender às necessidades vitais básicas (do cidadão) e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social," (Constituição de 1988, capítulo II, Dos Direitos Sociais, artigo 7º, inciso IV). 5 Ver World Bank (2003).

8

2.

A

construção

das

políticas

sociais

no

Brasil:

importância

da

institucionalidade brasileira para a redução das desigualdades.

Olhando, por um lado, para a redução da desigualdade de renda e, por outro, a persistência da precariedade das condições de vida da maior parte da população fica claro que a desigualdade não se resolve somente pela dimensão monetária. O próprio processo de construção da cidadania no Brasil demonstra que a redução da desigualdade social padece do enfrentamento das questões histórico-estruturais que permeiam a estrutura social brasileira. É neste sentido que os avanços conquistados até aqui, se colocados em perspectiva, representam apenas o início de um longo processo que exigirá por um lado, a estruturação do mercado de trabalho a fim de superar sua composição precarizada, fortemente informalizada e marcada por baixos salários; e por outro, a institucionalização progressiva das políticas sociais, para que possam prover a população excluída do mercado de trabalho ou até mesmo inserida precariamente nele. A dimensão social da desigualdade diz respeito ao acesso a bens e serviços sociais6; por exemplo, transporte, alimentação, educação, energia, habitação, trabalho, previdência e terra (Dedecca, 2010). Nesses exemplos fica visível como a questão da desigualdade afeta todas as esferas da sociedade. Então é necessário superar as heranças estruturais que tangenciam a estrutura produtiva e as relações de trabalho, e uma parte disso pode ser alcançada pelo aprofundamento do alcance das políticas sociais. Para entender o processo de redução das desigualdades é preciso analisar, além das políticas sociais ligadas ao trabalho, o papel desempenhado pelas políticas assistenciais. São as políticas assistenciais que asseguram o direito de viver e uma vida digna às pessoas incapacitadas de se inserirem no mercado (sobretudo de trabalho) ou que não conseguem auferir uma renda suficiente por este meio. No Brasil, a questão social emergiu muito tardiamente, durante o Império, e ganhou força na visão daqueles que almejavam um Brasil moderno, como questão de Estado, uma questão a ser resolvida para formar um Estado e promover a integração nacional; para formar uma nação (CARDOSO, 2010). No entanto, a Revolução de 1930 - a ‘Revolução de Vargas’ - não encaminhou a solução pacífica da questão social,

mas

se transformou

em

poderoso mecanismo

de reprodução

das

desigualdades existentes, aponta o autor. Ela não ordenou o acesso ao patrimônio (base da desigualdade econômica e social) ao não promover a reforma agrária e mal equacionou o problema da renda, ao ordenar apenas o mercado urbano de trabalho, 6

Vide a discussão internacional em OCDE (2009) e PNUD (2010).

9

contemporizando com a elite agrária, fato que viria a solapar o êxito do projeto do Estado de Bem Estar Social brasileiro. Na década de 1930, diz Sonia Draibe (1985), houve uma metamorfose do Estado brasileiro, que começou a investir com peso nos rumos da economia nacional para realizar um projeto de modernização da nação, do qual a proteção social associada ao exercício do trabalho fez parte. No entanto, a forma como a proteção social se efetivou não equacionou o grave problema da vulnerabilidade social gerada pela imensa desigualdade econômica e social existente. Ou, na visão de Henrique (1999), o desenvolvimento trunco e limitado das políticas sociais e o caráter conservador da intervenção do Estado na área social são características marcantes do “capitalismo selvagem” brasileiro. A discussão é controversa se houve ou não – até meados dos anos 1980 – a implementação de um Estado de Bem Estar Social no Brasil. Draibe e Aureliano (1989) advogam que ele chegou a ser idealizado, mesmo que de forma fragmentada e seletiva, e classificam o sistema como meritocrático - particularista: a posição ocupacional e de renda adquirida no nível da estrutura produtiva constitui a base sob a qual se ergueu o sistema brasileiro de política social. Quer dizer, este sistema, gestado desde os anos 1930, estava fortemente ligado ao mercado formal de trabalho e reproduziu as desigualdades predominantes na sociedade, pois a seguridade social teve poucos aspectos redistributivos e igualitários e uma forte relação entre renda, contribuição e acesso a um posto de trabalho. A universalidade foi incorporada, teoricamente, somente nas áreas da educação e da saúde, mas não existiam mínimos sociais7 extensivos a todos. Até os anos 1980 este projeto da modernização com proteção social avançou, mas, metade da população ainda ficou fora dele e a pobreza se instalou em patamares absurdos. A crise dos anos 1980 estancou a dinâmica do projeto da “cidadania regulada”, ligado à carteira de trabalho, e expôs todas suas fragilidades estruturais, como os profundos e não resolvidos problemas de emprego e renda. O projeto de redemocratização da década de 1980 retomou as bandeiras de luta por reformas de base mais amplas, da cidadania plena, que se materializaria na Constituição de 1988. Uma parte deste novo projeto foi a consolidação do embrionário Estado de Bem Estar Social, como desenho de uma política redistributiva global, com um conjunto articulado de políticas (reforma agrária, reforma urbana, saúde e previdência, política trabalhista, educação etc.) e novos esquemas mais progressivos de financiamento. Assim, na

7

Mínimos sociais expressam o limite determinado socialmente do que é considerado o existencial básico para viver, materializam o direito de viver. Marshall (1964).

10

Constituição Federal de 1988 uma cidadania substantiva que contemplava as três dimensões (patrimônio, renda e assistência social) começou a se delinear. Um dos elementos novos da Constituição de 1988 foi ancorar a assistência social como direito. Draibe (1998)8 mostra que o sistema de políticas sociais que chegou à década dos 1980 já se constituía em área destacada da ação estatal e embora teoricamente as políticas assistenciais fossem residuais, pelo tamanho do problema social se dirigiram à maior parte da população. No entanto, seu desempenho tinha sido medíocre, muito aquém das necessidades sociais da população e das possibilidades do país. Em 1988 a assistência social tornou-se política social, fundada no direito e integrada (com a previdência social e a política de saúde) à política de Seguridade Social. Inseridos na concepção ampla de seguridade social, as políticas assistenciais são a institucionalização dos mínimos sociais e a concretização de direitos sociais básicos: cumpre ao Estado resolver necessidades vitais dos cidadãos e de suas famílias, dentro de uma concepção (universalista) de um patamar fixado de mínimos sociais. Até 1997 instalou-se uma gama bastante ampla e diversificada de programas voltados para combater ou atenuar as várias formas da exclusão social e direcionados a situações de carência e vulnerabilidade social, tais como insuficiência de renda, grupos etários que demandam maior proteção, localização territorial adversa, ou, na combinação dessas condições, a situações graves de pobreza e miserabilidade. Houve duas inovações programáticas: a introdução e a institucionalização de programas do tipo ‘inserção produtiva’9 e os programas de distribuição de recursos monetários sob a forma de Benefícios de Prestação Continuada (BPC). Foram concebidos programas para desempregados, segmentos específicos de grupos de pobres, e para a “franja do mercado informal onde se localizam os pouco qualificados”10. A inovação consistia também no condicionamento da garantia de patamares mínimos de renda familiar a objetivos de melhoria do desempenho escolar e de saúde dos seus membros. No entanto, até 2003, a maioria dos progressos conquistados no campo social foram sistematicamente contrarrestados pelas políticas e decisões tomadas pela área econômica no governo federal. Por um lado, o Estado brasileiro procurou atender às legítimas demandas sociais, por outro ele buscou conter os gastos sociais a fim de manter um orçamento equilibrado, capaz de controlar a dívida pública (FAGNANI, 8

Os próximos parágrafos referem-se a este texto. Embora já existissem programas de inserção produtiva’, o Sistema S e o crédito popular. Exemplos são o Planfor (Plano Nacional de Educação Profissional) e o Proger (Programa de Geração de Renda, depois ampliado para Proger rural, Pronaf, Procera). Os dois programas são financiados pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

9

10

11

2011). Na avaliação de Fagnani até os anos 2002 existiu extrema tensão entre os defensores de um Estado Mínimo e os idealizadores do projeto desenhado na Constituição de 1988. Em 2002, o novo governo teria, inicialmente, incorporado esta tensão. Mas a crise

política,

a

retomada

do

crescimento

econômico

e

a

estabilização

macroeconômica permitiram aos idealizadores de um Estado Social redirecionar parte do gasto público para por em prática as políticas sociais amplas, entre 2006 e 2010. Este desfecho, para Fagnani, completa o projeto de reformas que levaria a redemocratização na segunda metade dos anos 1980, baseada em três núcleos: a restauração do Estado Democrático de Direito e a construção de um sistema de proteção social foram ancoradas na Carta Magna. O terceiro núcleo, a retomada do desenvolvimento, precisava de condições políticas e macroeconômicas específicas para se realizar, dadas a partir da segunda metade dos anos 2000 que permitiram a concepção de uma nova estratégia macroeconômica, direcionada para o crescimento econômico com distribuição de renda (FAGNANI, 2012). Na avaliação de Fagnani (2012), o sistema de proteção social brasileiro – criado, principalmente, a partir da Constituição de 1988 – é complexo e muito abrangente11 e suas bases financeiras, institucionais e de controle social consolidaram-se frente à conjuntura econômica favorável desde 2006, pois ajudou a criar reforços positivos entre o mercado de trabalho e as políticas sociais amplas. No entanto, apesar de todos esses avanços a institucionalidade ainda é precária, pois 40% da população economicamente ativa permanece em situação de informalidade. E, de fato, a política assistencial não é residual, isto é, 20% da população ainda vive em situação de pobreza e 40% da população em situação de vulnerabilidade social (IPEA, 2011).

Considerações Finais O Brasil viveu nos anos de 2004 a 2008 um fato histórico inédito: crescimento econômico elevado com redução dos indicadores de desigualdade, principalmente a desigualdade de natureza monetária. As políticas públicas adotadas, principalmente a partir de 2006, foram essenciais para a redução da pobreza no Brasil, com destaque para o papel exercido pelo mercado de trabalho, através do aumento da renda média e da formalização, pela política valorização do salário mínimo e pelas políticas de transferências de renda.

11

Vide Fagnani (2012) apresentação de um desenho completo das políticas sociais no Brasil.

12

Procurou-se destacar que o bom momento vivido pela economia brasileira impulsionou a retomada do crescimento econômico, permitindo a implementação deliberada de políticas públicas tanto como indutoras do dinamismo interno da atividade econômica quanto como promotoras da redução nos índices de desigualdade de renda, principalmente a partir de 2006. A retomada do dinamismo econômico, portanto, mostrou-se condição sine qua non para a melhora da estrutura social brasileira. Os bons resultados também contaram com a matriz institucional existente na sociedade brasileira que fora desenhada a partir da Constituição de 1988 e que permitiu o uso da estrutura existente não só como modelo para outras iniciativas, mas especialmente como instrumento de consolidação de normas que há muito deveriam viger

na

sociedade

brasileira.

Todavia,

tentou-se

inferir

que

esta

mesma

institucionalidade que comportou avanços, impôs limites e desafios para o enfrentamento da questão social. Os avanços alcançados também precisam ser relativizados se analisados sob o espectro dos problemas estruturais existentes na sociedade brasileira e que respeitam a conformação do desenvolvimento capitalista no Brasil, qual sejam: a existência de um excedente de mão-obra que mantém os baixos níveis salariais e as dificuldades de acesso à terra, dada a não realização de uma reforma agrária; problemáticas abrangentes que exigiriam um novo trabalho para discussão. Resta ressaltar que enquanto a desigualdade como objeto de análise não for entendida sob diferentes dimensões que contemplem tanto a incapacidade monetária quanto de acesso a bens e serviços públicos, a exercício pleno da cidadania na sociedade brasileira continuará sendo o grande desafio a ser encarado pelas políticas de combate à pobreza. É neste sentido que se torna urgente avançar na consolidação da institucionalidade brasileira tanto no que se refere à reestruturação do mercado de trabalho quanto no que respeita à institucionalização das políticas sociais.

13

Referencias Bibliográficas

ANFIP

(2011). Análise da Seguridade Social. Disponível em: http://www.anfip.org.br/publicacoes/livros/includes/livros/arqspdfs/analise2011.p df. Acesso em 12/06/2012.

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