O BRASIL NAS HISTÓRIAS DO SÉCULO XX

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FREITAS, Itamar. O Brasil nas histórias do século XX. In: Anais do Seminário Debates do Tempo Presente, 2013, São Cristóvão. Seminário Debates do Tempo Presente, 2013.

Este trabalho anuncia resultados de uma pesquisa em andamento que se ocupa da vulgata histórica veiculada pela “historiografia de síntese” sobre o século XX, produzida em território nacional estrangeiro. Aqui, inventariamos as formas pelas quais o “Brasil” é referido e o lugar da experiência nacional brasileira na experiência mundial, narrada por alguns professores de história e formadores de opinião que escreveram, nas últimas duas décadas (19932013), no Brasil – Paulo Fagundes Vizentini –, Estados Unidos – Geoffrey Blainey – e na Inglaterra – Eric Hobsbawm. Estes autores circulam no nosso país e são referenciados em programas de pós-graduação em história e em livros didáticos para o ensino fundamental. Empregando as categorias “narrativa” e “acontecimento”, de Paul Ricoeur (1991; 1994; 2007), composição “narrativa”, composição “quadro”, composição “mista”, de Antoine Prost (2008), “horizonte de expectativas” e “espaço de experiências”, de Reinhart Koselleck (2006) e de “tempo presente de Júlio Aróstegui” (2004), buscamos inventariar o processo de transformação do Brasil em matéria do tempo presente, nesse gênero – historiografia de síntese – destinado ao público não acadêmico, embora não mais escolar. As respostas à questão central – Como o Brasil é representado na historiografia de síntese sobre o século XX? – são fornecidas mediante dois blocos de texto que correspondem a quatro questões secundárias: “Fios condutores” – (1) Que sentidos os autores constroem para o século XX, como o definem, isto é, qual a resultante da tensão entre o espaço de experiências e o horizonte de expectativa do autor? (2) Quais os acontecimentos empregados na “realização” dessas definições e desses sentidos? “O Brasil no mundo” – (3) Quais os acontecimentos que a experiência Brasileira ajuda a “realizar”? (4) Qual o caráter da representação do Brasil nesses acontecimentos, ele é protagonista ativo ou passivo? Nas conclusões, por fim, dissertamos sobre lugar do Brasil nas obras, em meio à diversidade de sentidos para o século XX. Fios condutores

A história tem um sentido? Afinal, a história do mundo – já chamada de história universal, história da civilização e história geral – é um território do historiador? Essas perguntas já ocuparam o trabalho de muitos intelectuais e até nomearam livros e artigos. Elas estiveram na pauta dos historiadores durante dois séculos, principalmente no período em que a filosofia da história era também historiografia. A especulação foi expulsa do campo, no início do século XX, transformada em “pecado mortal” pelos historiadores da primeira geração da Escola dos Annales. No entanto, as perguntas continuam lhes ocupar a mente sempre que se propuseram construir narrativas que envolvam objetos escalares. A história do mundo no século XX é um exemplo dessas abordagens ditas “de escala”. Isso percebemos na análise das três obras referenciadas. A história, enfim, tem um sentido e este, obviamente, é construído pelo historiador. Assim, para Eric Hobsbawm, a experiência recortada em análise significa uma Era dos extremos. Como afirma o subtítulo, “O breve século XX” constitui-se em uma sucessão de três eras: catástrofe (1914-1945), de "ouro" ou de transformação econômica e social (1945-1970) e de "decomposição, incerteza e crise" (1980-1990). Em termos temporais, é também o século que nasce com o "colapso da civilização ocidental" e todo o otimismo no progresso material, moral, científico, educacional, o declínio da "civilização burguesa", caracterizada por uma economia capitalista e política liberal, encerrando-se com as catástrofes ocorridas em lugares como a África os países exsocialistas da Europa. (Hobsbawm, 1995, p. 13-14). Ao encerrar a escrita, em 1994, Hobsbawm recusa-se a fazer previsões. Mas elabora um quadro daquilo que as gerações nascidas no novo século enfrentarão. É um mundo em desordem. Um mundo onde os sistemas construídos entre grandes potências, as religiões e as ideologias estão enfraquecidos; onde há problemas gravíssimos como a explosão demográfica e a destruição do meio ambiente; onde é patente a incapacidade do livre comércio e do protecionismo para resolver a atual crise. É também um mundo onde perderam a força o Estado-Nação, gerando desigualdade social, as autoridades globais, as assembleias e governos eleitos democraticamente, onde foram ampliados os poderes dos meios de comunicação, das minorias e do cidadão comum. O quadro, por fim, lhe permite concluir: o capitalismo pode destruir a humanidade. E se a sociedade aprende com o passado e o futuro não pode ser a repetição do mesmo, é importante construir uma nova sociedade bem distante dessas bases que já duram três séculos. (Hobsbawm, 1995, p. 537-562).

Cinco anos após a escrita de Hobsbawm, Paulo Fagundes Vizentini (1998), professor de história contemporânea na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – à época da publicação da História do século XX –, considerou “decepcionante” o livro A era dos extremos. Para ele, a história do século XX somente seria compreensível mediante a relação de eventos da curta, média e longa duração. Essa abordagem lhe permitiria, então, definir a história do século XX como a narrativa da "maturidade" do capitalismo, caracterizada pela existência de três sucessivos "sistemas" e seus respectivos "desafios", "lideranças" e modelos de "produção e acumulação: a Pax britânica, fundada no “liberalismo”, a Pax americana, fundada no “fordismo”, e o “sistema internacional pós-hegemônico”, fundado na “globalização (Vizentini, 1998, p. 8). Seus determinantes, como se pode perceber, são de natureza econômica, ou seja, constituem-se por crises político-sociais e inovação cultural. São fruto das crises dos modelos

de

produção

e

acumulação



imperialismo/colonialismo,

fordismo/keynesianismo etc. Há saídas para um mundo assim caracterizado? Para Vizentini, sim. Ele afirma que as "forças opostas ao neoliberalismo precisam lutar ofensivamente para que a revolução científico-tecnológica, que impulsiona a globalização, seja socialmente condicionada" (Vizentini, p. 217), ou seja, os críticos do capitalismo devem lutar pela redução da jornada de trabalho, pela defesa e ampliação dos direitos sociais, promovendo, assim, uma sociedade "norteada pro valores sociais coletivos”. Neste sentido, a Ásia pode fornecer a inspiração para um novo modelo econômico-social, oposto ao “individualismo” e à “sociedade de consumo – maior inimiga do meio ambiente” (Vizentini, 1998, p. 218). Para Geoffrey Blainey, historiador, professor das universidades de Harvard e de Melbourne, que produziu Uma breve história do século XX, em 2005 – e não faz referências diretas ao texto de Hobsbawm ou ao texto de Vizentini –, o século XX é um período “tempestuoso” (Blainey, 2008, p. 5), constituído por duas guerras, pela emancipação do Terceiro Mundo e também por atos relativos à esfera das sensibilidades e do conhecimento. Em outras palavras, as descobertas e invenções – o automóvel, comunicações sem fio, aviões –, as transformações do cristianismo e do islamismo, o agenciamento das mulheres, a emergência do movimento ecológico configuram o século XX. Com laivos historicistas, ele se ocupa em captar o "clima" ou "reter o espírito de cada época" (Blainey, 2008, p. 6), em lugar de apresentar estatísticas e fatos a

mancheias. Mas é curioso que entenda o curso da história como desordenado. Ao final da narrativa, têm-se a impressão de que o conjunto de "climas" não é mais que a transmissão da ideia de indeterminação da vida humana. Sua história é a demonstração dos momentos "otimistas" – fé no progresso, teoria nuclear, internet – e "pessimistas" – descrença no progresso, Hiroshima e terrorismo (Blainey, 2008, p. 77, 277), experimentados no lapso de tempo nomeado como século XX. É também a história da aceleração e do "encolhimento do mundo" (Blainey, 2008, p. 291).

O Brasil no mundo

Como foi anunciado, cada autor estabelece uma partição para a narrativa, de acordo com os fios condutores elencados, como aponta o quadro n. 1. Quadro n. 1 – O Brasil nas histórias de síntese sobre o século XX Autor/Obra Hobsbawm A era dos extremos

Vizentini História do século XX

Parte 2

Parte 3

Catástrofe (1914-1945)

Parte 1

Transformação econômica e social (1945-1970)

Decomposição, incerteza e crise (1980-1990)

Implantação do Estado Novo Popularização do samba

Instalação da Volkswagen Redução do campesinato Crescimento do número de alunos do ensino superior Ampliação das classes operárias industriais Criação dos sindicados das classes operárias industriais Jovens ricos passaram a gostar de música popular Industrialização do Brasil Inclusão do Brasil nos NICS Criação do PT Pax Americana (1945-1991)

Ampliação da desigualdade econômica Ampliação da dívida externa Tentativas de separação Rio Grande do Sul/Brasil Tentativa de tomada do poder pela via armada Migração da guerrilha do campo para as grandes cidades

Golpe de Estado de 1964 Instalação da Zona Franca de Manaus Fim do regime militar Guerra Fria, Terceiro Mundo e mudanças nas sensibilidades e no conhecimento (19502011) Crescimento urbano de São Paulo

Criação do Mercosul Corrupção no governo federal Ampliação dos direitos civis

Pax britânica (1900-1945) Reformas econômicas década de 1930 Suicídio de Getúlio Vargas

Blainey Uma breve história do século XX

na

Imperialismo e guerras mundiais (1900-1950) Invenção do avião Desenvolvimento de Manaus Ampliação da democracia Queda nas exportações do látex

Globalização (1991-1997)

Produzido pelo autor com base em Blainey (2008), Hobsbawm (1995) e Vizentini (2008).

Pelo quadro n. 1, podemos perceber que a experiência Brasileira é referida em todos os grandes períodos – que circunscrevem acontecimentos-macro – de todas as obras, mas de forma desequilibrada. No texto de Hobsbawm, inicialmente, o Brasil é sujeito influenciado pelo fascismo europeu e apresenta-se como um lugar onde a cultura popular se expandiu, a partir do uso de novas tecnologias como o rádio. No segundo momento, tempo de forte desenvolvimento econômico, o país é apresentado como vítima dos novos processos de expansão do capital, já que possuía poucos cientistas e engenheiros, comparando-se aos números dos países desenvolvidos, ainda que tenha auxiliado na construção da idéia de Terceiro Mundo. Além disso, é citado como campo de expansão da nova divisão

internacional do trabalho, das revoluções sociais e culturais do período. Por fim, na fase do “desmoronamento” das instituições e dos valores, o país aparece na condição de vítima da desigualdade econômica, da qual se torna “candidato a campeão mundial” (Hobsbawm, 1998, p. 397), como detentor de grande dívida externa. Por outro lado, é também espaço para a luta armada de ideologia esquerdista. No texto de Vizentini, o Brasil aparece como interessado na industrialização e também como vítima, haja vista que a morte de Getúlio Vargas também foi causada por pressões externas. No período da Guerra Fria, tempo de reestruturação do capitalismo, O Brasil entra de vez para o grupo dos países industrializados, com o auxílio de capitais internacionais. No entanto, ajuda a erodir a hegemonia estadunidense no momento em que põe fim ao regime militar, elegendo José Sarney e Tancredo Neves para a presidência da República. Por fim, em tempos de Globalização, o Brasil mantém a Argentina longe dos EUA, ao criar o Mercosul, mas sofre com a ingerência internacional, promovida mediante Organizações Não Governamentais (ONGs). Para Blainey, finalmente, Brasil foi exportador de matéria prima e consumidor de equipamentos e costumes da Europa, na primeira década do século XX e colaborador do progresso tecnológico atingido na área dos transportes (avião). Ainda em relação a esse período, é destacado como lócus da democracia, embora não estenda o direito de voto aos monges, militares de baixa patente e indígenas. No tempo das guerras mundiais, o Brasil sofre abalos na venda de látex e diamantes, em virtude da Grande Depressão. Na segunda metade do século, é exemplo de metropolização, ou seja, de expansão da sua maior cidade – São Paulo – que superou Nova York em número de habitantes.

Conclusões

O inventário de horizontes de expectativas e espaços de experiência das obras analisadas, escritas por um brasileiro, um inglês e um estadunidense, junto ao rol de acontecimentos de caráter mundial e nacional, permitem-nos afirmar, por fim, que (1) o pertencimento nacional não representa crescimento em termos de participação do sujeito Brasil na história do século XX, (2) que o pertencimento epistemológico relacionado à determinada leitura do marxismo amplia as possibilidades de protagonismo do Brasil na cena mundial, (3) que a dimensão econômica, por conseguinte, prevalece na experiência brasileira selecionada e (4), ainda, que a experiência brasileira é, predominantemente, efeito de acontecimentos de duração conjuntural – imperialismo – e de curta duração – Primeira Guerra Mundial, Depressão, Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria, Estado de bem estar e Neoliberalismo. Os raros lapsos de protagonismo são representados pelo papel do país na realização de uma idéia chamada “Terceiro Mundo”.

Fontes

VIZENTINI, Paulo Fagundes. História do século XX. Porto Alegre: Novo Século, 1998. BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. 2ed. São Paulo: Fundamento Educacional Ltda., 2008. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos – O breve século XX (1914-1991). 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Referências

ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida. Sobre la historia del presente. Madrid: Alianza Editorial, 2004. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas. In: Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-RJ, 2006. p. 305-327. PROST, Antoine. Criação de enredos e narratividade. In: Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 211-233. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. RICOEUR, Paul. Événement et sens. Raisons Pratiques, [Paris], v. 2, p. 41-56, 1991. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Papirus, 1994. v. 1.

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