O bunak: saber oral e oratória, bem e poder

May 23, 2017 | Autor: Lúcio Sousa | Categoria: Oral history, Oral Traditions, Timor-Leste Studies, East Timor, Oral History and Memory, Timor Leste
Share Embed


Descrição do Produto

O bunak: saber oral e oratória, bem e poder Lúcio Sousa

O processo de aprendizagem é complexo, porque é percebido como uma demanda individual. Todos os membros da comunidade, sobretudo os que sempre viveram na montanha, passaram por cerimônias – sobretudo da Casa – nas quais experimentaram a fruição das palavras a ser proferidas. No entanto, o apelo para a aprendizagem é fruto de um desejo interior e de uma capacidade que não é reconhecida a todos; para o ser, há que ter: gubul ati – cabeça capaz, ou “inteligente”. Reter toda a informação é um processo lento e moroso, pelo que há que buscar a estrutura, que só pode ser obtida junto dos “mestres”.

Lúcio Sousa

Introdução Este texto corresponde ao subcapítulo 2.4, “O bunak: saber e oratória, bem e poder”1, da minha tese de doutoramento: “An tia: partilha ritual e organização social entre os bunak de Lamak Hitu, Bobonaro, Timor-Leste”, defendida em 20102. É baseado em trabalho de campo etnográfico efetuado junto da comunidade bunak de Tapo, um suku localizado no subdistrito de Bobonaro, distrito de Bobonaro, em Timor-Leste (SOUSA, 2010). O foco da pesquisa realizada foi a vida ritual dessa comunidade a partir do estudo do ritual an tia – e, em particular, a componente redistributiva que envolve todas as suas Casas – fortemente marcadas pela noção de continuidade da sociedade, entendida numa acepção holística (plantas, seres animais e humanos, vivos e mortos), perfilando-se assim nos estudos clássicos do sudeste asiático sobre o “fluxo de vida” (BARNES, 1974; FOX, 1980). Nesse contexto, a relevância da palavra e a oratória foi percebida como central nos atos rituais, altamente valorizada pelos seus executantes e apetecida pela audiência. De fato, 1 Agradeço o convite dos autores para que este subcapítulo integre a presente obra, o que muito me honra. 2 Tese orientada pelas Professoras Doutoras Claudine Friedberg e Maria Beatriz Rocha Trindade. Este trabalho de investigação foi apoiado por uma bolsa de doutoramento atribuída pela Fundação Oriente.

77

Tradições Orais de Timor-Leste

a oratória é uma das formas veiculares de persistência e condição de continuidade social, um elaborado discurso formado por categorias duais, por normas similares e complementares (FOX, 1988; KUIPERS, 1998). Aliás, é mais do que isso, é também prova de uma resiliência cultural que anima a vontade das pessoas, mesmo os que não a dominam. O seu conteúdo é muito simbólico, objeto de conhecimento restrito e altamente valorizado socialmente como fonte de legitimação e poder, articulado com o saber pragmático de determinados lugares-chave no território que são locais de memória e fixação das relações entre vivos e antepassados, marcadores de tempo, relacionando o passado mítico com o presente, e também de espaço porquanto são elementos que permitem ligar, por um lado, o céu e a terra, e por outro, reclamar a posse do espaço e das suas riquezas. Para visualizarmos a centralidade da palavra nas suas múltiplas acepções apresentamos em seguida o diagrama 013 em que se articula, não as esgotando, algumas das variáveis em presença.

Diagrama 01. Centralidade da palavra 3 Esta figura, agora adaptada, foi usada originalmente na comunicação “Oratória e oralidade – palavra, memória, identidade e património imaterial numa comunidade Bunak de Timor Leste”, proferida no IV Congresso Internacional sobre Etnografia AGIR, Lamego 30 e 31 de Maio de 2008.

78

Lúcio Sousa

É nesta acepção que pensamos ser pertinente analisar os usos da palavra e das narrativas tradicionais, transcendendo a abordagem sintáxica que tem sido feita, em particular pela escola australiana (FOX, 1988; McWILLIAM, 2002; THERIK, 2004), e examinando a dimensão pragmática que enquadra as narrativas e os discursos tradicionais no seu contexto situacional, apelando, aqui, à dimensão performativa que palavras e rituais veiculam (AUSTIN, 1962; TAMBIAH, 1985). O bunak: saber oral e oratória, bem e poder4 O bunak que se fala em Tapo é diferente, do ponto de vista lexical e semântico, de outras áreas que utilizam o bunak. Mesmo entre Tapo e Oeleu ou Ai Asa, povoações situadas a curta distância, há diferenças dialéticas assinaláveis (ex.: deu (casa) diz-se dou em Ai Asa5). A comunicação diária nesse suku é efetuada em bunak. No entanto, há mais línguas em presença que concorrem com a sua utilização ou contribuem para o próprio léxico bunak. O tétum e o português são as mais relevantes (a primeira, sobretudo pelos mais novos; e o português, entre as gerações mais velhas e na escola). Segue-se o bahasa indonésio, que é falado sobretudo pelas gerações mais novas, em particular pelas suas músicas. O japonês ainda é conhecido por alguns idosos. O inglês é a língua em expansão, pelo interesse que desperta, nomeadamente entre aqueles que fizeram o ensino secundário. Na escola, o ensino é feito em português e tétum, embora certas explicações se realizem em bunak. 4 O texto que se apresenta reproduz o que consta da tese, com a exceção de algumas notas que consideramos oportuno aditar de forma a poder contextualizar o escrito, assim como alguns dos interlocutores com quem trabalhei. 5 Na transcrição e tradução dos termos bunak o t inicial deve ser lido como ts diante de i e tch antes de u. Foi adotada neste trabalho a transcrição usada por BERTHE (1965) e FRIEDBERG (1978), com a exceção da representação ortográfica da oclusão glotal, figurada nas palavras presentes neste texto por um apóstrofo.

79

Tradições Orais de Timor-Leste

Numa perspectiva sociolinguística, a importância da língua nessa comunidade oral é, justamente, a sua síntese, como veículo de transmissão de saber e fonte de poder. Assim, a língua, a palavra, é não só um veículo poderoso de transmissão de cultura – fato associado comumente à sua dimensão diádica (FOX, 1988, 2, THERIK, 2004), mas, igualmente, uma arena de definição e confronto de estatutos e funções sociais. A língua bunak, tal como entendida localmente, dividese em bunak de “comunicação”, língua usada diariamente por todos os falantes, e em bunak adat6, língua usada prioritariamente por quem detém um cargo políticoreligioso e, em alguns casos, por alguém que, não possuindo um cargo, obteve as palavras, mas está impedido de as dizer, a não ser que para tal seja convocado. As palavras são, na sua maioria, coincidentes em ambos os contextos, mas o seu significado pode ser diferente. No entanto, no domínio adat, há palavras que apresentam um caráter exclusivo e raramente são usadas no dia-a-dia. Esta opacidade ou obscuridade da língua, no plano ritual e mitológico, está sobretudo relacionada com a sua dimensão metafórica, cuja chave se encontra na posse de alguns7. A palavra em bunak, tal como a frase, designa-se lal. A “palavra” é associada nos versos rituais com “ferro”: 6 O termo adat, do bahasa indonésio, era usado recorrentemente e pensamos que exprimia a apropriação decorrente da interação entre autoridades indonésias e timorenses, e em particular os detentores de cargos tradicionais, durante o período de ocupação indonésia. O seu uso remete igualmente para uma tradução e inserção em contextos mais vastos, uma percepção do papel desempenhado pela tradição na sociedade que não pode ser descartado para os seus agentes. Atualmente o termo “cultura” tende, de certa forma a substituir ou a concorrer com este, deixando de lado a componente sensível da crença associada ao culto dos antepassados. (SOUSA, 2009; 2010; SILVA, 2014). 7 Essa dificuldade de compreender o discurso proferido é já referida no primeiro texto etnográfico que encontramos sobre os bunak, escrito por Francisco Torrezão, ao falar da cerimônia “Tei il guié” (Festa para chamar a chuva): “Começa com um discurso feito por um velho, o “gassé ubo” (orador), que é sempre mais ou menos a mesma coisa e dito em estilo de reza, duma maneira tal que os próprios timorenses têm dificuldade de perceber. No dito discurso, o “gassé ubo” explica a origem de todas as coisas e principalmente da água e pede ao “hoto golo” (Deus Sol) que a chuva venha”. (1949, 31-14)

80

Lúcio Sousa

lal1 gomo2 besi3 gomo2 – o senhor2 da palavra1, o senhor2 do ferro3 (lança). A palavra é entendida como uma potência capaz de desencadear eventos. O uso de certas palavras, em determinados locais, e a execução de determinados atos, são fonte de poder e legitimidade. Ao saber das palavras associa-se o conhecimento de atos e de locais. Esse trinômio do saber é essencial para se compreender o processo de aprendizagem local. Trata-se de um processo complexo, no qual se tece uma das mais complexas redes de relações interpessoais de poder e de status na comunidade, de subjugação ou de dominação. A palavra é uma prerrogativa dos indivíduos que detêm cargos socialmente reconhecidos. Assim, é expectável que quando um indivíduo é indicado para assumir um cargo, deve “fazer escola”, isto é, deve aprender as palavras. Conhecer somente as palavras pode não ser o suficiente para dominar a potência que elas envolvem. O conhecimento dos pan1 giral2 muk3 gug4 – os olhos2 do céu1, o nódulos4 da terra3 – os locais de encontro entre o céu e a terra, é igualmente determinante e pode funcionar como uma forma de ascensão social perante os outros, pelo respeito e temor que implica. Por outro lado, em determinadas situações, para além das palavras e dos locais, há que saber desempenhar determinadas ações. Essas são, por norma, realizadas por quem tem legitimidade reconhecida, mas podem ser executadas por delegação. Assim, um indivíduo, numa determinada Casa, embora não desempenhe um cargo, pode ter uma ascendência perante os restantes, pela sua capacidade em dominar o trinômio referido8. No campo das palavras, esse saber implica o conhecimento da origem do mundo e da humanidade, dos seres animais e dos vegetais, dos eventos que marcaram a formação do 8 Uma das pessoas que conheci e que mais se adequa a esse respeito é o matas Turo, Pedro Maia, da casa Namau Deu Masak. Reconhecido e temido pelos seus conhecimentos, sendo recorrente o recurso aos seus serviços para rituais privativos, mas igualmente para oficializar de forma delegada atos rituais nas casas e Casa sagrada. Faleceu a 9 de maio de 2010.

81

Tradições Orais de Timor-Leste

espaço e do tempo do tas. No contexto da Casa é necessário saber exatamente a origem dos seus fundadores e dos seus aliados – fato importante para dirimir conflitos ou dúvidas, em caso de disputas. O conhecimento dessas conexões é uma fonte de legitimidade pessoal e de valorização social. O processo de aprendizagem é complexo, porque é percebido como uma demanda individual. Todos os membros da comunidade, sobretudo os que sempre viveram na montanha, passaram por cerimônias – sobretudo da Casa – nas quais experimentaram a fruição das palavras a ser proferidas. No entanto, o apelo para a aprendizagem é fruto de um desejo interior e de uma capacidade que não é reconhecida a todos; para o ser, há que ter: gubul1 ati2 – cabeça1 capaz2, ou “inteligente”. Reter toda a informação é um processo lento e moroso, pelo que há que buscar a estrutura, que só pode ser obtida junto dos “mestres”9. Os principais mestres que o neófito educando pode ter são os pais ou os tios, que desempenham, ou desempenharam, um cargo. Muitos reconhecem que o fato de os terem acompanhado nas tarefas da Casa os ajudou a absorver a informação. Mas, por vezes, há que procurar ativamente esse saber, contatando com os mestres em causa, e combinado com estes sessões de aprendizagem que decorrem, por norma, à noite. Para a sessão, o educando deve levar bens comestíveis, vinho e alguma oferta extra, como um cobertor. Como alguns me confidenciaram, ao fim de horas de conversa, pouco se conseguia extrair. Na realidade, os mestres bunak são ciosos do seu saber acumulado (palavras, locais e atos) e dificilmente facultam toda a explicação solicitada (BERTHE, 1972; FRIEDBERG, 1982). O seu discurso é, muitas vezes, comparado a um 9 A objetificação da palavra, a sua materialidade, pode também ser objeto de “roubo”. De fato, o recurso a gravadores para registrar as palavras foi-me referido. De igual forma a percepção de que ouvir e registrar as palavras é um roubo está bem presente na interjeição que o matas Paulo Mota dirigiu à audiência, entre as quais se contava o antropólogo, numa sessão de magalia: “vocês vieram para roubar as minhas palavras…” (SOUSA, 2008).

82

Lúcio Sousa

labirinto: kleuk, em que o caminho dificilmente encontra o objetivo final; rodeia-o. Por outro lado, como me explicou um lal gomo, não pode dizer-se tudo, pois, caso contrário, as pessoas perderiam o respeito. Durante a estadia pude, ainda, presenciar encontros semipúblicos, em que jovens matas tentaram (algumas vezes devido à minha presença) questionar um matas mais velho. Embora quase todos os detentores de cargos com quem conversei reconheçam que o seu percurso de aprendizagem foi feito dessa forma, alguns reivindicam, ainda, uma inspiração interior. Ao contrário do que afirmam certos autores (HOSKINS, 1998; THERIK, 2004) os meus interlocutores não se mostraram, em momento algum, dispostos a assoberbarme com as suas narrativas. Pelo contrário, o segredu da palavra, prevaleceu. No entanto, tal como foi algumas vezes referido, a recusa de falar pode esconder outras razões, como a ignorância e o desconhecimento. Nesse sentido, eu não estava numa situação muito diferente do matas, que é investido num cargo e que tem que procurar as palavras10. Não foi possível apurar a variedade de gêneros narrativos que parece existir noutros contextos (THERIK, 2004). Embora a regra de base seja os versos diádicos, comuns ao estilo narrativo do sudeste asiático, o que destaco na comunidade em estudo como mais pertinente são as posturas narrativas ou atitudinais perante os conteúdos discursivos. Temos, portanto, que discernir os atores e contextos em que as palavras são proferidas, para compreender o seu sentido. A atitude mais comum perante as palavras é a de temor. As palavras têm um peso, uma densidade que resulta da sua ligação íntima com os antepassados. Proferir as palavras, tal como atuar de forma errada, acarreta consequências de caráter individual e coletivo – no âmbito da Casa ou 10 Todavia, foi possível obtê-las, apesar dos diversos processos usados para dissimular essa partilha de saber ao neófito. Por norma muitas destas entrevistas tiveram lugar à noite, no meu quarto, que ficou conhecido como o “quarto do segredu” (SOUSA, 2008) .

83

Tradições Orais de Timor-Leste

da comunidade. Pronunciar as palavras, nomeadamente nomes, pode desencadear a ira dos aludidos, cujos nomes não podem ser proferidos de forma inconsequente, exceto por alguém habilitado e/ou num lugar apropriado. Para proferir as palavras sagradas, é necessário proceder a uma oração preliminar e abrir uma garrafa de vinho. Nessa oração estabelece-se uma ligação com os antepassados (para os avisar que os seus nomes vão ser proferidos) e procurase assegurar a integridade dos participantes11. O exemplo seguinte ilustra esta situação; reporta-se à oração inicial que precedeu a segunda entrevista formal efetuada ao matas Paulo Mota12, em 2004: Bunak

Português

01.

hot o hul pan o mug

sol e lua céu e terra

02.

meterei lolo uen meterei hot mil

hoje neste local, hoje neste dia

03.

nei opi tata op bei gontiet

nossos cinco grandes bisavós, enormes avós

04.

nei Lete Bele Mauk Sina Bau nossos Lete Bele Mauk Sina Mau Bau Mali Sina Mali Bele Bau Mau Bau Mali Sina Mali Mali Bele Mali

05.

Tau Bele Luan Meta

06.

Dasi Mau Lae Mali Mali Na Dasi Mai Lae Mali Mali Na Mau Na Mau Na

07.

nei atal olo no o lua no

nós somos os vossos netos, os vossos descendentes

08.

ie dele ie zal

levamos o vosso [caminho]

09.

meterei lolo uen meterei hot mil

hoje neste local, hoje neste dia

Tau Bele Luan Meta

11 No final da minha estadia foi igualmente feita uma cerimônia em que, simultaneamente, se procurou definir quem me tinha dado palavras e, através de um ato ritual, salvaguardar todos os envolvidos (SOUSA, 2008). 12 O Matas Paulo Mota, da Casa Namau deu Masak, era igualmente um dos matas gonion, sendo usualmente referido como o lia nain de Tapo. Ele foi o lal gomo com quem a antropóloga francesa Claudine Friedberg falou quando da sua visita a Tapo em 1971 (comunicação pessoal). O meu encontro com esse homem único é relatado em Sousa (2008). Faleceu a 1 de setembro de 2006.

84

Lúcio Sousa 10.

nei ibug tetu nei ua lal

falamos da nossa origem, do nosso caminho

11.

hani hahei hani lag mag

não se assustem, não se surpreendam

12.

isin na gita golo go na gita gial

para estes corpos, para estas sementes

13.

tue hot a mug

o vinho [de palma] do sol, a comida da terra

14.

ba’a na lake na ba’are apal na com ele vamos abrir, com ele ba’are vamos iniciar

15.

isin gonion na gita golo go para estes corpos, para estas gonion na gita gal sementes

16.

si…Orlando, Lucio

assim… Orlando, Lucio

17.

isin na gita golo go na gita gial

aqui está o corpo, aqui está a semente

18.

gaga ni ata rapal gup ni ata para que a voz aumente, para debeg que língua se desenvolva

19.

sulat na gizi…papel na gita, o papel para escrever… com o lapis na hone papel pegamos no lápis

20.

giri ata ho’on gon ata mimig

para descrever o percurso e os feitos realizados

21.

giri ni na site gon ni na kene

o percurso correto os feitos dignos

22.

dene giri kina gon no kuen

o percurso completo, os feitos bons

23.

masak mil solon solon gene taeg de todos os grandes taeg gene antepassados, um por um

24.

ie ata na gine hele kere ie ata na com o vosso acordo, com a gini haula vossa ajuda

25.

tue kornel a maiol

o vinho coronel a comida major

26.

tue hot a mug

o vinho do sol, a comida da terra

27.

ba’a na lake na ba’are apal la vão abrir, vão desvendar ba’are

85

Tradições Orais de Timor-Leste 28.

si isin na gita golo gon na gita assim o corpo está repleto e gal seguro

29.

dale gie ba’are bote gie ba’are

30.

pan na basin gie mug nabe ‘on do céu ainda oco da terra vazia gie na

31.

nibe tie lon gene zap lon gene

até aos teus descendentes atuais

32.

tege dele ba’are tege tetu ba’are

estas histórias, estas explicações que vamos dar

33.

si isin gonion gita golo gon assim para estes corpos, para gonion gita gal si estas três sementes

34.

sena ni ati soul ni hono

estas pessoas aqui presentes

35.

ata hurug loi uga loi

dar-lhes boa frescura e vida

36.

tie gini ata pa’ zap gini ata og

o galo vai cacarejar o cão vai ladrar

37.

Saude…

Saúde

38.

Viva Luaben, saude, saude

Viva Luaben, saúde, saúde

estas histórias estas explicações

boa

Friedberg (1982) refere que, em Lamaknen, era igualmente necessário proceder ao sacrifício de determinados animais. Somente uma vez fui interpelado neste sentido, nesse caso o animal a sacrificar seria um búfalo (o animal mais prestigiado). Por outro lado, as palavras e a sua revelação são partes das funções de determinados indivíduos que detêm a prerrogativa de falar ou comentar determinado tema, seja ele da Casa ou da comunidade. Assim, falar sem direitu é interferir na ordem estabelecida e pode ocasionar punição com multa: tues. Porém, é possível falar sobre determinados assuntos sem se estar para isso habilitado. Basta que, para tal, se tenha o cuidado de não desvendar muito, deixando-o muito

86

Lúcio Sousa

incompleto, ou em aberto, o discurso. Essa situação pode ocorrer numa situação dual ou em grupo, nomeadamente quando de cerimônias fúnebres em que, paralelamente ao “holon” – o cântico ritual (individual e coletivo) – se cavaqueia, em pequenos grupos. Esta conversa, em prosa, denominada koalia halimar, em tétum, significa “conversar a brincar”. No entanto, no calor da conversa e do debate aceso que muitas vezes se gera na discussão de eventos particulares, testemunhei, em algumas situações, o recurso aos versos diádicos como forma de legitimar um argumento e, algumas vezes, à designação de um nome tutelar. Mas esses casos ocorrem, sobretudo, entre pessoas que desempenham cargos e têm, por isso, a autoridade para o fazer. Há assim, uma arte oratória própria, que destaca indivíduos que, pelas suas capacidades de presença, conseguem impor respeito ou temor (que está sempre associado aos responsáveis). A diferença estatuária entre esse tipo de discurso em prosa e o discurso mais oculto e restrito em que são referidos eventos e nomes é marcada pela necessidade de introduzir, previamente, uma pequena oração, que alerta as entidades para o fato de os seus nomes serão proferidos, salvaguardando, desta forma, a saúde dos interlocutores. A oração preliminar é, como veremos, um elemento essencial na garantia de continuidade da comunidade. Essa situação ocorre, principalmente, quando da enunciação de narrativas como a magalia, o bei gua, em situações públicas e privadas (todas as reuniões que tive foram previamente objeto dessa salvaguarda). Numa situação intermédia entre esses dois tipos de postura encontra-se o campo vasto das hamula’ ou hamulak – do tétum, orações, preces. Essas orações são proferidas em variadíssimas circunstâncias, em momentos privados ou públicos – da Casa e da comunidade – em rituais agrícolas, cerimônias da Casa, eventos do ciclo de vida ou 87

Tradições Orais de Timor-Leste

nos processos divinatórios. No contexto da Casa, as preces devem ser asseguradas pelos matas, ou alguém por eles designado. No âmbito de questões comunitárias, podem ser proferidas por um bei ou um deu gonion: responsáveis que se analisaram, de seguida13. No entanto, as preces podem, também, ser proferidas por qualquer pessoa, homem ou mulher, sobretudo no contexto dos trabalhos agrícolas. Embora não seja indicada nos gêneros narrativos há, ainda, uma quarta forma de proferir palavras: no contexto da divisão de bétel e areca, o pronunciamento das quantidades respectivas é um processo simulador dos reais nomeados e, como tal, pode-se considerar este fato como um processo narrativo, eminentemente performativo na sua essência14. A palavra é proferida essencialmente por homens. No entanto, há mulheres que detêm, igualmente, o conhecimento das palavras mais ocultas. Todavia, o papel das mulheres na pronunciação das palavras é mais reservado ao domínio interior da Casa ou ao campo. No domínio ritual comunitário, só houve uma ocasião em que as mulheres tomaram um lugar de destaque público: a e’, durante a il po’ ho’15. No entanto, no plano doméstico, no interior da Casa, a complementaridade dos gêneros pode observar-se na execução do iel1 gie2 ‘on3 – fazer3 (com) que2 cresça1 , rito que se executa antes de cozinhar o arroz, quando de rituais da Casa. Essa prece é um dos primeiros temas de estudo 13 A organização político ritual da comunidade envolve a existência de quatro beis (responsáveis de quatro casas para lidar com o exterior), três matas principais (responsáveis de três Casas, para lidar com o interior), os deu gónion, que oficializam os rituais de caráter comunitário, entre outros. Para uma análise mais apurada ver Sousa (2010). 14 Para saber mais sobre esta matéria, e as possibilidades de tradução cultural, consultar: SOUSA, Lúcio. ´This is the beginning of the relationship’: material supports of cultural translation. In Translation, society and Politics in Timor-Leste, Paulo Seixas,(Org.)Porto, Universidade Fernando Pessoa. 2010. pp.37-60.  15 O il po`ho` ou a “festa de chamar a água (chuva)” teve lugar em 2005. A a e` é uma prece comunal, podendo ser traduzida como “chamar a comida/alimentos”, enunciada por elementos da casa Holoa, liderados pelo seu matas e acompanhados por todos os outros responsáveis rituais em torno da povoação de Tapo (SOUSA, 2010).

88

Tradições Orais de Timor-Leste

de qualquer novo matas. Trata-se da recitação das Casas aliadas, doadoras e tomadoras de mulheres, respetivamente: deu gomo, nai mil e os aiba`a. A sua execução é feita pelo matas, que nomeia as Casas, no que é repetido por uma mulher (por norma a pana deu bali, cujo estatuto se analisará posteriormente), que coloca simultaneamente um punhado de arroz cru no grande cesto. A ligação entre a execução de atos e a pronúncia de palavras é tão estreita que uma das formas de distinguir o tipo de narrativa é designar lal1 guzu2 – palavras negras (do escuro), ou lal1 belis2 – palavras brancas (da claridade). As primeiras são enunciadas quando de cerimônias fúnebres, enquanto as segundas são declaradas no decurso de cerimônias que envolvem a construção / reconstrução da Casa sagrada. Outra forma de distinguir as palavras é através da separação dos discursos hurug e tinu. O primeiro, “fresco”, versa sobre o caminho dos antepassados, enquanto o segundo, “quente”, é o caminho da guerra16. Em princípio, os discursos bei gua não integram, de forma clara, os conflitos armados. O caráter restrito e inacessível da palavra não é somente de acesso delimitado ao antropólogo. Em conversas informais com os professores locais, este confronto de metodologias era claramente exposto: os professores devem procurar que os seus estudantes saibam tudo para o exame, devendo por isso ensinar bem (tudo) sem ocultar nada, o inverso do que ocorre com a lecionação dos matas. A consequência desse secretismo é, para muitos, a perda da palavra17. Os matas, cientes do estatuto dos professores na comunidade, não se coíbem de os repreender, igualmente, 16 O lal gomo que tem o direto de proferir estas palavras quentes, da guerra, o tinu gie, é por norma o bei coronel, um dos quatro bei. A versão que tenho foi-me transmitida pelo bei coronel José Tilman, da Casa Namau Deu Masak, um dos meus principais interlocutores, e companheiro assíduo, durante a minha estadia (SOUSA, 2015). Faleceu a 5 de setembro de 2007. 17 Em privado, recebi este lamento de alguns jovens matas ou jovens com cargos rituais. Em duas ocasiões assisti ao desafio público dirigido aos mais velhos com o argumento de que, se eles não ensinassem as palavras e procedimentos corretos, o futuro da comunidade estaria em perigo para todos.

89

Tradições Orais de Timor-Leste

por só saberem o que vem nos livros. Pude presenciar a prédicas dos matas, em relação aos matenek sira – os inteligentes, “intelectuais”, que ignoram ou desprezam o saber oral e as narrativas, não procurando ou não querendo perder tempo em conhecerem as palavras dos antigos.

Fotografia 01 – Registo escrito da recitação da magalia. Namau Deu Gol. Fonte: acervo pessoal, 2003.

Fotografia 02 – Pormenor do Bei Gua - Tata Gibuk da Casa Dato Pou Tato Metan, facultado por indicação do seu matas Julião. Fonte: acervo pessoal, 2006.

No entanto, alguns dos matas mais jovens já sabem escrever e usam cadernos para registrar as palavras. Noutros 90

Tradições Orais de Timor-Leste

casos, a tarefa é efetuada por membros da família. É o caso da Fotografia 02, que ilustra o Bei Gua Tata Gibuk – “o itinerário dos antepassados o caminho dos avós”, da Casa Dato Pou Tato Metan18. Outros, fizeram gravações de recitações guardando ciosamente estas cassetes. O recurso à fotografia e ao vídeo ocorre, igualmente, sobretudo por parte dos naturais que vivem em Díli e Maliana e que regressam nos dias dos grandes rituais.

Fotografia 03 – Matas Paulo Mota e bei José Tilman, lia-na’in sira, representantes do Distrito de Bobonaro na cerimónia de restauração da independência no dia 20 de maio de 2002, em Tasi Tolo, Díli. Fonte: foto da emissão da RPT, 2002.

Referências AUSTIN, John. How to do things with words. Oxford: Clarendon Press, 1962. 18 Esse exemplar foi-me facultado pelo seu matas Julião Cardoso. Nesse caso, o conhecimento e interesse de alguns dos membros da Casa em elaborarem o seu “livro” foi incentivado pelo conhecimento do Bei Gua, de Berthe (1972). Vários exemplares encontram-se agora distribuídos por alguns elementos da família, embora a prerrogativa da sua utilização dependa do chefe da Casa. Aliás, o matas Julião afirmou-me que o título da sua versão era mais correto do que o de Louis Berthe, pois “bei gua” não pode ser proferido isolado, sendo o par “Bei Gua Tata Gibuk” o mais correto (o que não deixa de estar em conformidade com a norma diádica dos versos tradicionais)..

91

Tradições Orais de Timor-Leste

BARNES, Robert. Kédang A Study of the Collective Thought of an eastern Indonesian People. Oxford: Clarendon Press, 1974 BERTHE, Louis. Morpho-Syntaxe et Lexique du Buna’. Policopiado (cópia facultada por Claudine Friedberg), 1965. BERTHE, Louis. Bei Gua Itinéraire des Ancêtres. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1972 FOX, James, (ed.). The Flow of Life: Essays on Eastern Indonesia. Cambridge: Harvard University Press, 1980. FOX, James. To speak in pairs, essays on the ritual language of Eastern Indonesia. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. FRIEDBERG, Claudine. Comment fut tranchée la liane céleste et autres textes de littérature orale bunaq (Timor, Indonésie). Paris: SELAF, 1978. FRIEDBERG, Claudine. Muk gubul nor, ‘la chevelure de la terre’: Les Bunaq de Timor et les plantes. 1982. Tese de Doutoramento de Estado. Paris, Universidade Paris V [5 tomos].1982. HOSKINS, Janet. Biographical Objects – How Things Tell the Stories of People`s Lives. New York – London: Routledge, 1998. KUIPERS, Joel. Language, Identity, and Marginality in Indonesia – The Changing Nature of Ritual Speech on the Island of Sumba. Cambridge – New York: Cambridge University Press, 1998. SILVA, Kelly. O governo da e pela kultura. Complexos locais de governança na formação do Estado em Timor‑Leste, Revista Crítica de Ciências Sociais, 104, 2014, p. 123-150. SOUSA, Lúcio. Vocês vieram para roubar as minhas palavras… Etnografia do caminho das palavras. In FRIAS, Sónia (Org.) Etnografia & Emoções. Lisboa: ISCSP, 2008, p. 87-97.

92

Lúcio Sousa

SOUSA, Lúcio. Denying peripheral status, claiming a role in the nation: sacred words and ritual practices as legitimating identity of a local community in the context of the new nation. In CABASSET-SEMEDO, Christine & DURAND, Frédéric (Ed.). East-Timor How to Build a New Nation in Southeast Asia in the 21st Century?. Bangkok, IRASEC-CASE. 2009. p. 105-120. SOUSA, Lúcio. An tia: partilha ritual e organização social entre os Bunak de Lamak Hitu, Bobonaro, Timor-Leste. 2010. Tese de Doutoramento. Lisboa, Universidade Aberta, 2010. URL: https://repositorioaberto.uab.pt/ handle/10400.2/1703 SOUSA, Lúcio. Tino gie: memória oral e práticas rituais de guerra entre os Bunak de Timor Leste. Conferência apresentada no dia 4 de maio de 2015 na inauguração da exposição Timor na Biblioteca do Exército, na Biblioteca Espaço por Timor, em Lisboa. Disponível em: https://uab-pt. academia.edu/LúcioSousa. TAMBIAH, Stanley. Culture, Thought, and Social Action. An Anthropological Perspective. Cambridge: Harvard University Press, 1985. THERIK, Tom. Wehali the Female Land, Traditions of a Timorese ritual centre. Camberra: Pandanus Books – ANU, 2004. TORREZÃO, Francisco. Os Lamakitos (grupo étnico da Fronteira), Monografia etnográfica para concurso de administrador de circunscrição. Bobonaro, 1 de janeiro de 1949.

93

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.