O CALEIDOSCÓPIO E A MÁSCARA EM SANGUE DE COCA-COLA

May 31, 2017 | Autor: F. Marquetti | Categoria: Teoría Literaria, romance moderno
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O CALEIDOSCÓPIO E A MÁSCARA EM SANGUE DE COCA-COLA Flávia Regina Marquetti Para Juliana Santini

A identidade é uma máscara que repousa no vazio. J. Lacan, Escritos, 1998

Novas Experiências & Antigas Sobrevivências

O romance contemporâneo apresenta uma multiplicidade de estilos, desde o resgate das narrativas realistas até as narrativas descentradas, fragmentárias ou niilistas. Um dos motivos para esse pluralismo formal está na influência sofrida pela narrativa por parte dos meios midiáticos e da cultura de massa; se eles por um lado banalizaram a arte, por outro criaram movimentos de reação e propostas de reutilização do discurso da propaganda na arte. Somado a isso, desde o início do século XX a velocidade e a tecnologia são objetos de desejo dos produtores de arte. O Modernismo brasileiro já apresentava correntes fortemente voltadas para essa vertente que, com o passar do tempo, foram se firmando ainda mais. Com o crescente aceleramento dado à vida cotidiana e o surgimento de novas tecnologias, as artes e, em especial, a literatura buscaram novos modelos para o expediente mais antigo do mundo: a representação da relação homem e mundo, ou, eu e outro. É importante salientar que a forma narrativa está intimamente ligada à maneira como o homem vê e se relaciona com o mundo ao seu redor, visão esta marcada pela geografia física de seu país, pelos conceitos filosóficos vigentes, pela História, pelas Ciências, pelas relações com os meios de produção, as crenças, as tradições, enfim, elementos múltiplos e diversificados que contribuem para um determinado enquadramento dado à narrativa, mesmo em tempos globalizados. O termo enquadramento, ligado à terminologia cinematográfica, adéqua-se às novas narrativas porque revela a forte ligação da tecnologia com as propostas literárias contemporâneas,

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explicita a questão do olhar sobre o objeto focado e prenuncia a sobreposição dos planos ou takes que as compõem. Enquanto o romance do século XIX focava suas lentes ora em um personagem, ora em uma ação ou espaço determinado e centrado, o romance contemporâneo apresenta o que Linda Hutcheon (1995, 96) denomina de olhar excêntrico. O posicionamento excêntrico é definido pela mecânica enquanto “peça cujo eixo de rotação não ocupa o centro e que é destinada a transformar um movimento de rotação contínuo em movimento de natureza diferente, alternativo1”. O olhar descentrado, desfocado, fora do centro, altera o próprio movimento da narrativa, que apresenta uma infinidade de órbitas elípticas2. Nestas, cada movimento/olhar focado pelo narrador será reflectido pela elipse na direção de outro foco. Seguindo essa propriedade da estrutura elíptica, qualquer choque entre dois olhares ou pontos de vista acontecido em um foco, será refletido e baterá em um terceiro ponto de vista estacionado em outro foco. Própria da elipse geométrica, essa curiosidade permite ao autor literário jogar com pontos de vista estranhos à narrativa convencional, o que acarreta um distanciamento espacial e temporal do objeto ou objetos focados, assim como privilegiar o olhar marginal dos personagens que estão ou se colocam à margem do acontecimento - espectadores ou voyeurs de toda a ação; narrador, personagens e leitor compartilham dessa excentricidade, dessa marginalização. Outro ponto importante deste foco excêntrico é apresentar a história sob o ângulo dos marginais: vencidos e/ou excluídos. A literatura contemporânea prima ainda pela exploração de uma exacerbação estética do olhar. O voyeurismo é uma constante em diversos autores, criando um choque e um estranhamento entre as culturas, os espaços, o tempo, os personagens. Estrangeiros à suas próprias vidas, os personagens orbitam um mundo do qual estão excluídos. A narrativa memorialista, frequente desde a década de 1970 no Brasil, por exemplo, resgata o passado nacional conjugando-o à história do personagem ficcional

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VENTURI, J. J., Cônicas e Quádricas, cap. 3, p. 69. Disponível em: http://www.geometriaanalitica.com.br/cq/cq.pdf. Acesso em 20/06/2011. 2 Uma elipse é o lugar geométrico dos pontos do plano cuja soma das distâncias de dois pontos fixos (os focos) é constante (Venturi, op.cit., p.69).

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(marginal) e apresentando-o sob a forma de testemunho, relato jornalístico que, desejando recuperar o passado, empenha-se na descoberta de um futuro – fato histórico e ficção se fundem no experimentalismo formal, e um dos pontos centrais desta nova narrativa são os olhares excêntricos sobre o fato. Todos esses expedientes não são novos à criação literária e mesmo à arte em geral; o Modernismo usou diversos desses elementos para recriar o texto literário 3. Oswald de Andrade, visionariamente, foi precursor de muitas dessas propostas ao rever a “História do Brasil” 4 sob a ótica dos “índios”, ou ao criar um romance fragmentado, como é o caso de Memórias sentimentais de João Miramar, composto por cartas, frases, poemas, trechos de jornais e outros gêneros. A grande inovação da literatura contemporânea está em fundir todos esses expedientes e buscar uma pluralidade de olhares justapostos sobre um determinado fato, ou personagem, descentrando-o e fazendo com que este chegue ao leitor apenas pelos olhares/vozes alheios; e por criar uma ilusão de velocidade, decorrente dos capítulos frequentemente curtos e com aparente embaralhamento narrativo. A sensação experimentada pelo leitor assemelha-se ao ato de caminhar por uma grande metrópole, quando se observam/ouvem fragmentos de conversas e ações sem continuidade – flashes da vida cotidiana. Esse arrebatamento vertiginoso que se apodera dos personagens, engolidos pelo vórtice da narrativa/sociedade moderna, é compartilhado pelo leitor. Os personagens são apresentados parcialmente delineados; suas histórias, colhidas em meio à trajetória, não permitem ao leitor o conhecimento cabal: são vislumbradas apenas algumas passagens que se cruzam com a de outros personagens. Em contraponto à ilusão de velocidade do relato, tem-se o estancamento do tempo, os personagens anônimos e sujeitados ao curso da história patinam ou flutuam em um agora infinito, impossível de ser ultrapassado, e que os revela em toda a sua

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Os romances pós-modernos retomam algumas das propostas dos romances da geração modernista de 30, como os do ciclo canavieiro ou do cacau. 4 Os expedientes de intertextualidade e, muitas vezes, de paródia, utilizados por Oswald de Andrade ao trabalhar as crônicas e narrativas dos primeiros exploradores do Brasil, marcam esse olhar marginal sobre a história oficial do país, criando um diálogo entre a história e a releitura feita pelos modernistas sob a ótica de novas filosofias sociais, como o marxismo.

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“tragicidade” esvaziada5 e angústia diante da inexequível mudança almejada por seus atos. Observa-se, em geral, nessas narrativas, a desconstrução do mito humanista do progresso revolucionário, questionado por meio da multiplicidade contraditória dos discursos e da desconstrução da crença de um sujeito dado, capaz de representar a si e a seu mundo; o sujeito pós-moderno seria apenas um simulacro, uma rede impessoal de símbolos manipulado sob um nome próprio e não uma pessoa (Villaça, 1996, 88). O personagem, antes bem definido, caracterizado e apresentado em seus pormenores pelo narrador, agora possui apenas uma silhueta esfumada; é vago e anônimo como as pessoas nas grandes cidades, desenhado pelos olhares de outros personagens, pelo universo do consumo. O espaço no qual os personagens se movem, embora reconhecível, é igualmente multifacetado, podendo assumir contornos míticos, irreais, como em um sonho ou pesadelo, levando toda a representação a uma crise abissal. Os discursos divergentes sobre o sujeito narrativo, que o pensam sob uma multiplicidade de parâmetros, misturam-se e confundem-se com os signos do eu, consciência, pessoa, inconsciente, interioridade, identidade, individualidade; o sujeito apagado no eixo das simulações torna-se persona, não mais buscando a identidade, mas sim os processos de identificação com grupos/tribos, ou, como afirmam Adorno e Horkheimer (1969, passin), busca-se o estar em dia, o prestígio, e não a individuação. O conjunto dessas técnicas, utilizadas na construção da narrativa contemporânea, leva a um caleidoscópio da realidade, fragmentada e sujeita a rearranjos dos fatos e personagens de acordo com o movimento encetado pelo autor/leitor, insólita, fluídica, metamórfica, escapando à total apreensão. Da mesma forma, a identidade dos personagens converte-se em máscara que recobre o vazio da existência moderna. Roberto Drummond, autor inserido neste contexto, denomina sua obra de Literatura Pop, aproximando-a à Pop Art, voltada à sociedade de consumo, à tecnologia, à sexualidade e à diversão. Com raízes no dadaísmo de Marcel Duchamp, a Pop Art começou a tomar forma no final da década de 1950, quando alguns artistas, após

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Emprega-se o termo a partir de Nietzche, que formula o conceito de tragicidade e individuo como aquele que, mesmo sem esperança, resiste à ameaça mítica do destino, (Nietzsche, 1996, p.65). Em sentido mais abrangente, toma-se o indivíduo moderno como aquele incapaz de escolha, de opor-se aos valores capitalistas da sociedade.

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estudarem os símbolos e produtos do mundo da propaganda na Inglaterra e nos Estados Unidos, passaram a transformá-los em tema para suas obras. É enganoso pensar que este tipo de arte seja fácil e simples; aparentemente ela o é, mas no cerne de sua estrutura criativa encontra-se uma concisa análise dos mecanismos publicitários aos quais os objetos devem seu consumo, sua fama. Os artistas pop se identificam com o ambiente comercial das cidades e a aparência cuidadosamente projetada dos produtos industriais (McCarthy, 2002, p. 24). Outro ponto de contato entre Drummond e os artistas pop é a falta de interesse nas imagens selecionadas: elas não possuem, para os artistas, nenhuma significação especial; o seu uso está vinculado ao comentário da situação abordada, o que torna o texto, imagético ou verbal, irônico, ácido e implacável. Na Pop Art, de artistas como Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Robert Rauschenberg, Claes Oldenburg, Tom Wesselmann, Richard Hamilton, Peter Blake, a representação assume, nos primeiros momentos do movimento, o figurativismo realista, para ganhar o abstracionismo em sua última fase. Todos têm como objeto de representação a vida nas metrópoles, e como pretexto e motivo para a criação o ambiente urbano; mas os padrões jamais são os tradicionais, de épocas anteriores. O foco são modelos, objetos nunca antes considerados como dignos do fazer artístico, produtos que determinam o comportamento e o desejo das pessoas na sociedade de consumo. No momento em que a Pop Art surge, a despersonalização do indivíduo e o consequente conflito gerado a partir de então marcam o retrato da realidade social. O desfile de informações, inerente aos meios de comunicação de massa, gera indiferença ao drama humano, que é reduzido à condição de notícia, produto. Diante disso, o artista pop usa os mesmos mecanismos artísticos, a impessoalidade, para retratar este momento. A Literatura Pop, segundo Luiz Costa Lima (1981, p.147), além desses elementos, apresenta o exagero na representação de situações e coisas cotidianas, o uso de uma linguagem repleta de clichês, que a banaliza, e o Kitsch como matéria-prima de construção textual; Roberto Drummond usa de todos esses expedientes. Segundo ele próprio (1970, p.1-3), a literatura pop, enquanto uma nova forma de escrita, utiliza os

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ícones da cultura popular, mas também incorpora um estilo de narrativa inspirado na linguagem dos desenhos animados e dos quadrinhos. Ágil, repleta de gírias e com uma estrutura que sobrepõe fatos, personagens e épocas, a escrita de Drummond aproxima-se da colagem praticada pela Pop Art, criando um emaranhado histórico/ficcional, semelhante à ação de abrir-se inúmeras telas (takes) simultaneamente, que nos vão enredando vertiginosamente. Drummond afeiçoaria seu romance ao que Gumbrecht (1998, p. 97-100) denomina de hiper-realismo pop somado à fragmentação pós-moderna. Recursos responsáveis pelos efeitos de destemporização, quando o tempo esquizofrênico, não cronológico do eterno presente se mescla ao passado e às alucinações de futuro em focos narrativos dispersos entre fluxo da consciência, rememoração, experiência e alucinação; de desreferencialização, que marca a perda da referência, do ideal de representação da essência, tornado-se uma arte do simulacro, ou seja, a cópia da cópia porque não existiria original; e, finalmente, de destotalização, entendida como a não obediência às figuras canônicas instituídas como representação da essência.

A borboleta verde e a roda viva

Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu a gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu... (Chico Buarque, Roda Viva,1967)

O romance Sangue de Coca-Cola (1980) é um dos textos de Roberto Drummond que compõem o chamado Ciclo da Coca-Cola; os demais pertencentes ao grupo são: O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado (romance de 1978) e os livros de contos: A morte de D.J. em Paris (1975) e Quando fui morto em Cuba (1982). Em todos, nota-se o jogo entre os fragmentos, ou cacos de espelhos, que refletem imagens pouco precisas e fugidias dos personagens, a presença de conceitos ligados ao consumo de massa, além do contexto histórico-político vinculado ao Ato Institucional nº5 (AI5) no Brasil.

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O romance Sangue de Coca-Cola abre com uma dedicatória, um pequeno texto “explicativo” e uma epígrafe. Na dedicatória o autor informa que o que se segue é uma “visão carnavalizada e lisérgica do Brasil, na qual os personagens aparecem fantasiados de pessoas reais...”. O uso do termo fantasia sugere não só a criação ficcional, mas também o travestimento carnavalesco, no qual as “pessoas” aparentam ser reais e assumem papéis contrários aos da vida real. Há neste início uma ambiguidade bastante interessante e que se manterá ao longo de todo o romance, na qual os termos fantasia e real se opõem e se complementam, tanto podendo sugerir a conhecida frase que costuma acompanhar determinados filmes, “Esta é uma obra baseada em fatos reais”, na qual se atesta a veracidade dos fatos, como em outra igualmente conhecida de filmes/novelas, mas oposta: “Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações terá sido mera coincidência”. Esse jogo entre elipses opostas instaura a primeira dúvida no leitor; a segunda se dá ao longo do romance, quando algumas das pessoas nomeadas existem (ou existiram), mas são apresentadas como fruto da mídia, do merchandising, para consumo do povo e, em decorrência disso, vazias, sem verdadeira humanidade que as sustentem; trata-se de máscaras portanto, que tendem ora ao humor, ora ao grotesco ou ao terror. A idéia de uma visão carnavalizada6 e lisérgica do Brasil é reforçada no pequeno texto “explicativo” que segue a dedicatória: “Relato de alucinações num dia 1º de Abril que cheirava a carnaval, quando o Brasil, segundo suspeitas mais tarde confirmadas, tomou Coca-Cola com LSD e entrou numa bad” (Drummond, 1980). Aqui é intensificada a visão de uma sociedade consumista e alienada, da qual o autor/narrador não se exclui de todo, uma vez que ele também compõe esses olhares excêntricos. A epígrafe, extraída da fala do personagem Camaleão Amarelo, proferida antes de sua morte, explicita o título do romance, pois se refere ao sabor de seu próprio sangue como sendo de Coca-Cola e, como se verá ao longo do texto, alude à covardia ou medo do mesmo diante da vida. Dentre todos os personagens, a escolha da fala do Camaleão Amarelo para a epígrafe inicial reforça a idéia de fantasia, metamorfose, troca

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O conceito de carnavalização apresenta ainda a noção de inversão de valores, que será explorado por Roberto Drummond.

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de aparência7 e de pontos de vista do qual o romance fará uso em sua estrutura e na “definição” dos personagens e suas ações. A tentativa de adaptação/mutação dos personagens às condições impostas pela sociedade de consumo é criticada com humor e ironia. A alusão constante à Coca-Cola remete à sociedade de consumo, à coisificação do ser humano e, claro, à Pop Art, que subverteu este ícone do consumo em arte, como fará Roberto Drummond em seu texto, sobrepondo o erudito - referências a outras obras literárias (romances, poemas), filmes, fatos históricos - ao universo popular, quer na linguagem (com gírias, estrutura gramatical próxima à fala cotidiana) quer no uso de músicas e marchinhas de carnaval modificadas que se opõem ao tom tenso de várias passagens, ou, ainda, na presença da Umbanda, com seu dialeto nagô. O primeiro capítulo, identificado pelo algarismo de nº 18, tem início com a transformação ou disfarce de um personagem no Homem do Sapato Amarelo. O capítulo inicia-se por: “Põe a peruca loura, retoca a sobrancelha e chega na janela do 17º andar: e se ele pular agora? Hoje é 1º de abril [...], o Brasil cheirava a cenoura amarela e a pastel e ao suor da pele loura e cheia de sardas de Erika Sommer...” (Drummond, 1980, p. 13),

ao final deste, sem mais informações sobre o personagem travestido em Homem do Sapato Amarelo ou Erika Sommer, surge a Borboleta Verde da Felicidade, trazendo consigo a lembrança de outro personagem: a vidente M. Jan, ou Sissi, cassada e morta pelo AI5. Não é necessária uma leitura muito acurada para perceber, desde o início, uma alternância entre as cores: amarelo (louro, dourado) e verde presente na borboleta e nos olhos de diversos personagens: o próprio Homem do Sapato Amarelo, Erika, Sissi, Terê, Elisa, todos ligados à esquerda, ou a membros pertencentes a ela. O patriotismo, ou, melhor, nacionalismo simbolizado pelas cores emblemáticas do Brasil será

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Vale lembrar que o camaleão é um animal mutante; sua coloração, que funciona como uma camuflagem, torna-o quase imperceptível no meio ambiente. O uso da cor amarelo para o personagem o aproxima das cores símbolo do país, mas também à covardia, pois o amarelo é, na gíria nacional, sinônimo de alguém que não luta até o fim, que se vende, entrega o jogo. 8 Parece óbvia esta informação, mas na 2ª, 3ª e 4ª partes do romance há um capítulo inicial, sem numeração, seguido do capítulo nº 1. Os capítulos que antecedem o nº1, nas demais partes do romance, são ocupados pelas personagens: Elisa (jogadora da seleção brasileira de vôlei) e o “guerrilheiro urbano”, que não é identificado por nome próprio.

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associado a personagens marginais e/ou disfarçados por todo o romance9. O Homem do Sapato Amarelo enverga ainda um paletó de lamê azul, descrito como inspirado em Chacrinha, que prenuncia a ponte com a cultura de massa e transforma esse repórter na voz do Brasil, uma voz fictícia, travestida, camuflada, não comprometida com a verdade, mas sim com o consumo, com a pilhéria. Nesses personagens o

amarelo, o

verde e

mesmo

a sugestão

de

calor/verão/liberdade, que estabelecem uma empatia com o leitor, é toda pautada em expedientes da propaganda, ou seja, visando ao consumo e, em alguns casos, sobretudo no âmbito do feminino, ao apelo sexual, como, por exemplo, nas “descrições” de Erika, Elisa ou Terê. Este método de construção das personagens está intimamente ligado à Pop Art, como nas obras de Andy Warhol, Richard Hamilton ou Peter Blake, quando é destacado o valor de objeto de determinadas personalidades, como Marilyn Monroe. O caos/embaralhamento iniciado com o primeiro capítulo, da primeira parte, perdurará por toda a narrativa. O início do romance delineia um espaço tempo anárquico: o 17º andar de um prédio não identificado, sem definição de cidade ou bairro, que desenraiza o personagem fazendo-o pairar no ar; o tempo é o do não verdadeiro/real, pois de mentira – 1º de abril – habitado por um “mascarado” do qual pouco se sabe, a não ser que é uma figura pública, repórter de uma rádio que entrará em cadeia nacional para transmitir a Revolução da Alegria do 1º de abril e que foi, no passado, um subversivo de esquerda. Esse caos será ampliado sistematicamente nos sete capítulos seguintes, quando surgem in media res diversos personagens que só retornarão, em ordem aleatória, após o oitavo capítulo. Alguns só entrarão na narrativa a partir da segunda parte do romance, como é o caso de Elisa e o guerrilheiro. No primeiro capítulo se esboça um dos focos ou elipses do romance: a dos personagens marginais de esquerda, que sobreviveram à repressão, em oposição aos, igualmente marginais e de esquerda, que sucumbiram durante o governo militar e que são confrontados com as personagens de direita: o General Presidente do Brasil10, os militares responsáveis pelo helicóptero nº3, Tyrone Power. Nasce assim um relato

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Novamente o amarelo aparece em sua ambiguidade, como no Camaleão. A personagem do General Presidente do Brasil é um amálgama de todos os ex-presidentes brasileiros ligados ao Governo Militar desde 1964 até 1985, com a Eleição de Tancredo Neves. Neste personagem o conflito também será uma constante, ampliado pela febre, pelo delírio e reminiscências dos torturados. O tratamento excêntrico dado às lembranças do personagem e mesmo ao seu contorno/definição resulta em uma colagem bem ao gosto da Pop Art. 10

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memorialista, com forte tom jornalístico a partir de diversos ângulos sócio-políticos do período mais duro da Ditadura Militar no Brasil e também uma crítica bastante sutil à esquerda “fantasiada”, também denominada festiva e sobrevivente, prenunciando que o relato não se pretende maniqueísta. No segundo capítulo, o foco é levado para dois oficiais do exército, um em terra, o superior – sargento Garcia, e outro no ar, jovem e subalterno, o piloto do helicóptero nº3. O autor faz da troca de informações entre esses dois personagens um dos pontos de humor do romance, mesclando jargão militar, gírias descabidas para a situação, rezas, lembranças e reminiscências pessoais. Os dois personagens revelam o lado humano e cotidiano dos opressores, as crises de consciência por que passam ao terem de executar as ordens, sobretudo o jovem piloto, e o absurdo de algumas delas. Para os que viveram as décadas de 1970 e 1980, é flagrante a aproximação do personagem, sargento Garcia, ao seu homônimo que figurava como inimigo do Zorro em um seriado americano 11, gordo e bonachão; o sargento do seriado era incapaz de grandes valentias e mesmo de atitudes agressivas, só se preocupando com o estômago e a bebida. No romance de Drummond, há muitos pontos de contato entre esses dois personagens; o sargento Garcia (do romance) chora a saudades da esposa, Bebel, reza para seu santo de devoção (São Domingos Sávio), não é rígido com o subalterno, trata-o às vezes como filho, mas, ao final do romance, ordena a morte do Homem do Sapato Amarelo (1980, p.324- 26) e revela que mandou sumir com a esposa, Bebel, depois de uma denúncia anônima de que ela o traía (1980, p. 263-64), desmascarando-se para o leitor; como tudo no romance, ele oscila entre pontos extremos, pois parece ser um personagem divertido de ficção, mas não o é. Fica a dúvida para o leitor: onde está a verdade/realidade dos fatos históricos e dos ficcionais? Afinal, tudo parece mentir, e o mundo possui múltiplos pontos de vista. A aproximação do Homem do Sapato Amarelo, objeto de perseguição do sargento Garcia no romance, com o Zorro também é irônica, pois embora ambos usem uma máscara e aparentemente lutem para libertar a sociedade de um governo opressor, o Homem do Sapato Amarelo é um fantoche nas mãos do editor chefe, teme que este o denuncie, e demonstra sua covardia em diversos momentos do passado, às vezes

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Série de TV da Walt Disney, estrelada por Guy Williams, na década de 70.

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repreendido por Erika Sommer. Tal qual o Camaleão Amarelo, o Homem do Sapato Amarelo é um escravo da mídia/sociedade em que vive. O conjunto dos personagens-objeto consumidos pela sociedade tem sua continuidade em Tyrone Power, terceiro capítulo, que no agora da narrativa é francoatirador a mando do governo, fez parte do grupo de extermínio do Delegado Fleury e, antes de tudo, foi isca sexual para um executivo de Banco, o Dr. Juliano. Tyrone foi o responsável pela morte de Sissi, ou M. Jan, e só mata e tortura pessoas de olhos verdes, fato que permanece inexplicável em todo o romance. Tyrone prefigura o objeto de consumo em sua mais alta acepção: foi usado pelo Dr. Juliano devido à sua boa figura, atrai as jovens mulheres, mas, com a mudança na moda, ele deixa de ser o tipo de beleza desejado, ideal: - Olha Tyrone, você tem que reconhecer a marcha do tempo. A verdade, Tyrone, é que as mulheres mudaram muito, seu tipo de beleza está em franca decadência Tyrone... [...] -Não tente tapar o sol com a peneira, Tyrone. Até o seu nome está fora de uso. Quem sabe hoje, entre a nova geração de mulheres, quem foi Tyrone Power? O mundo agora é outro. (1980, p.118)

e, portanto, deixa de ser útil. Demitido, tem que se contentar com o trabalho oferecido pelo “compadre Fleury”, que, a princípio, não era no DOI-COD, mas sim segurança de Wanderléa, a Ternurinha da Jovem Guarda12, que também tem de abandonar. Mesmo Fleury o deixa à própria sorte ao morrer. O personagem Tyrone representa as relações de força existentes entre a repressão, o poderio econômico (Dr. Juliano do Banco) e a sociedade de entretenimento, os artistas e toda uma parcela da sociedade civil. Alienado, Tyrone não consegue compreender as relações de ludíbrio que vivenciou nas mãos dos diversos patrões; é inconsciente de seu papel político, social e mesmo pessoal/íntimo. No momento em que é apresentado ao leitor, Tyrone está cumprindo um último serviço para o governo, mas sob pressão, para se esquivar da perseguição pelos assassinatos cometidos a mando da Ditadura Militar. Ele só conseguirá sua “liberdade”, uma nova identidade e terras no Paraguai, se matar novamente. Como não é militar, ele não é protegido por eles e, enquanto civil, está à mercê do julgamento da sociedade. 12

Há no romance diversas referências aos integrantes da Jovem Guarda, sobretudo pelo uso de trechos de músicas, deixando entrever a relação de simpatia existente entre os integrantes do movimento e o governo militar, dentre eles encontram-se Roberto Carlos, Erasmo Carlos, a própria Wanderléia. As crônicas e charges de Henfil e outros cartunistas do Pasquim, feitas à época da Ditadura, revelam essa ligação.

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Tyrone encontra-se em um apartamento vazio e sujo e aguarda a ordem para matar alguém, que ele desconhece quem é. As revelações sobre sua vida, como ocorre com os demais personagens, vêm fragmentadas, esparsas por toda a obra e não chegam a se completar. Só o que se tem é a linha tênue (uma referência) que o liga a Sissi, assim como ela aos demais. Tyrone é a figura do homem comum preso entre vários mundos: o militar, ao qual serviu, mas do qual não faz parte; o do consumo, enquanto símbolo sexual, do qual foi banido por não ser mais o produto da moda; o familiar, que está se esfacelando em decorrência de suas ações anteriores; e seu mundo interior, que é incapaz de compreender; restam-lhe dele apenas impressões. O quarto capítulo abre com o título do romance entre parêntesis, (Sangue de Coca-Cola), e traz à cena o Camaleão Amarelo, funcionário das “Empresas de Deus”, que, por analogia aos capítulos nos quais o General Presidente do Brasil aparece, indica uma empresa governamental. Somente nos capítulos dedicados ao Camaleão Amarelo o título do romance aparecerá, o que torna o personagem um símbolo do colonialismo, do consumo, da submissão, do próprio Brasil. Será ainda o Camaleão Amarelo que, após bater no filho pequeno sem razão e dirigir-se até a empresa para reclamar o corte de 12 dias de trabalho no holerite, se “metamorfoseará” em Urso (salvador do Brasil) e morrerá fuzilado em meio à grande festa do Brazilian Follies13, que ocorre no Palácio de Cristal para comemorar o início da revolução da Alegria no Brasil. É através das lembranças desse personagem que alguns dos expedientes narrativos mais interessantes surgirão no romance, como nos capítulos 12 e 22 da primeira parte, nos quais aparece o “subtítulo”: Jornal de ontem, grafado também entre parênteses e que traz fragmentos de lembranças do Camaleão Amarelo, no período em que foi interno do Colégio do Bosque, como se fossem notas de jornal, sempre com várias entradas anunciando os assuntos: Alvíssaras, Esportivas, Pastilhas de cianureto, Filmes em cartaz (1980,45-47) e assim por diante. As notas do Jornal de ontem não só estabelecem correlações com os fatos históricos vividos pelo país, como vão aclarando a personalidade do Camaleão, de seus 13

Em 1975 foi realizado um musical no Hotel Nacional, denominado Brazilian Follies, dirigido por Caribe Rocha, ficando um ano e meio em cartaz. O Hotel Nacional foi construído em 1968-1972, a partir de projeto de Oscar Niemeyer e serve de referente para o Palácio de Cristal.

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colegas de internato e demais personagens do romance em um intrincado labirinto de espelhos; o foco sempre é mantido na perspectiva do voyeur, distanciado. Ao longo do romance consegue-se ligar alguns desses colegas a subversivos de esquerda, mas tudo é vago, confuso; são vislumbres de silhuetas que se esgueiram pelo texto. A técnica narrativa de montagem, utilizada em todo o romance por meio dos capítulos excêntricos, é agora levada ao extremo ao fragmentar, destemporalizar e desreferencializar o interior do próprio capítulo. Em outros momentos,esta técnica será reutilizada, como no capítulo 27, da 2ª parte, que trata da Jornada Esportiva do Colégio do Bosque; neste a narrativa parece ser feita pelo Homem do Sapato Amarelo, confundindo ainda mais os focos narrativos e criando uma imprecisão, uma dubiedade e mesmo uma incerteza sobre a veracidade do fato lembrado, como por exemplo, no confronto entre Esther Willians 14 e o sargento Marcelino, em uma luta de boxe (1980, p.171 – 175). Outro recurso interessante de montagem utilizada por Drummond é o embaralhamento na ordem dos capítulos, nem sempre eles seguem a cronologia lógica, como ocorre na 2ª parte, que possui dois capítulos de nº 10, um na ordem comum, outro inserido entre os de nº 24 e 26; O capítulo nº 25 não existe, assim como inexistem os capítulos 6 e 17 nesta parte. Essas fragmentação e irregularidade na apresentação dos capítulos e personagens fazem com que o romance possa ser lido como livro de contos, sem sequência lógica, tornando a obra mutante e provisória, além de relembrar os expedientes da censura, pois o texto parece mutilado. É importante salientar que alguns personagens só veem à cena por meio da lembrança e do olhar de outro, como é o caso de Bebel (esposa do sargento Garcia), Sissi (lembrada por Terê, General Presidente, Tyrone e outros), Júlia (esposa de Tyrone), Erika Sommer (Homem do Sapato Amarelo, General Presidente, narrador15). Essa multiplicidade de olhares cria instabilidade sobre o real caráter de cada personagem, esteja ele presente na ação ou apenas na lembrança – nenhum deles é deslindado nos moldes dos romances do século XIX; o leitor tem apenas impressões

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O personagem Camaleão Amarelo apresenta diversos apelidos ao longo da narrativa, no presente capítulo ele é denominado de Esther Willians. Esther Willians foi uma das grandes atrizes dos musicais da MGM em Hollywood, era conhecida como a Sereria de Hollywood. 15 A questão do narrador é outro problema no texto de Drummond, pois ele aparece descontinuamente, pulverizado em alguns capítulos. Na maioria das vezes é onisciente, mas pode confundir-se com a voz dos personagens em algumas de suas lembranças. Como tudo, ele também é mutante e excêntrico.

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sobre eles e, algumas vezes, contraditórias, pois todos são reflexos, relativizados pelos pontos de vista adotados. Dos personagens apresentados no romance metade possui nome (ou alcunhas) em língua inglesa, os demais possuem nomes e apelidos próximos do cotidiano nacional. Os personagens com “nomes nacionais” fazem referência a um Brasil aparentemente alienado, crédulo no que ouve pela ou da mídia; eles são impelidos pelas circunstâncias, mas ao final se sublevam, como é o caso de: - Terê, a jovem pobre que trabalha na loja de discos “O Divino Inferno do Som”, que conheceu Sissi, ou a vidente M. Jan, que lhe previu o dia da chegada do libertador, levando Terê a liderar, meio inconsciente, uma marcha revolucionário-libertária que culminará em sua morte pelas mãos de Tyrone Power; - Silvinha, que acompanha seu velho pai que está à morte no saguão do Palácio de Cristal e que procura a filha, Conceição, que fugiu de casa quando jovem. Após a morte do pai (cap.15 da 4ª parte), Silvinha toma as metralhadoras que estão esparramadas pelo saguão do Palácio de Cristal, que se tornou um campo de guerra, e atira contra os soldados; a Revolução da Alegria transforma-se ao longo do romance em uma revolução sangrenta; - e ainda Elisa, ou Magrinha, a jogadora de volei da seleção brasileira que se apaixona pelo ex-guerrilheiro do Araguaia; Mãe Olga de Alaketo, baiana, mãe de santo, criada pela cadela Mãe Celeste e que tem como responsabilidade fazer baixar o espírito de Juscelino Kubitschek no General Presidente do Brasil, mas que falha em sua missão, embebeda-se de champagne Möet Chandon e vai ao encontro da fome do povo brasileiro. Outro elemento narrativo que reforça o domínio do consumo sobre a população é o uso de orações/rezas para Santa Helena Rubinstein, feitas por Terê, ou para a Santa Coca-Cola, feitas por Vera Cruz Brasil16. Vera Cruz Brasil ou Julie Joy, a dupla e conflitante identidade marcada pelos dois nomes, indica a submissão do Brasil aos Estados Unidos enquanto colônia cultural e, sobretudo, ao capitalismo selvagem. Julie Joy, mulata fichada no DOI-COD, que está prestes a parir, sonha na fila do Brazil Follies em ir para os Estados Unidos da América e ser “babá de velho rico”, para ser

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Referência mais que óbvia aos nomes recebidos pelo nosso país desde o descobrimento e que marcam sua condição de colônia e submissão à Metrópole.

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aceita no continente americano; não vai mais à praia, sua paixão, e nem toma sol, buscando o embranquecimento da pele. Após seu encontro com o Urso17, ela entra em trabalho de parto e é auxiliada por ele. No momento do parto, Julie Joy renega o espírito americano e volta a ser Vera Cruz, gritando repetidas vezes “Meu nome é Vera!”, tal qual Gal Costa na música: “Meu Nome é Gal!”, de Roberto e Erasmo Carlos 18, enquanto em sua dor ouve o poeta Vinícius de Moraes declamar ao seu ouvido o poema Patria Minha (1980, p.279282),que explora todos os contrastes do Brasil e do povo brasileiro – espelho de Vera Cruz. As músicas, as mais variadas, são utilizadas em diversos capítulos e acompanham os personagens em suas rápidas aparições. Destaque para as letras misturadas e alteradas de marchinhas carnavalescas da década de 1930, que o General Presidente ouve em sua alucinação, fazendo-o voltar ao tempo de alferes, por exemplo, Se a canoa não virar é mesclada à Vou me acabar: “É hoje que eu vou me acabar amanhã eu não sei se eu chego lá...” (1980, p.23)

tornando-se uma confusa lembrança para o leitor, assim como o é para o General Presidente. Há também os sambas enredo, os boleros, os tangos e as canções entoadas durante a marcha de Terê, que vão desde sucessos da Jovem Gaurda: Jesus Cristo, de Roberto Carlos, a Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, amalgamando o desejo de revolução com o salvacionista.

A (anti) pausa que refresca

Dentro do caleidoscópio Pop montado por Drummond, deve-se ainda ressaltar a repetição da estrutura de abertura para as demais partes, na qual consta um sub-título: A pausa que refresca, comum à 2ª, 3ª e 4ª partes, mas com complementos diversos; a 2ª e 17

O Urso é um personagem surreal, que surge como produto da mídia, misto de boato e realidade, é ao mesmo tempo o salvador e uma representação do povo brasileiro, enjaulado e desprovido de sua propria persoanlidade, e com qual o Camaleão será confundido ao final e morto. 18 A ambiguidade narrativa se faz presente novamente, pois o que parece ser a tomada de consciência de Julie Joy está vinculada à música de compositores alinhados com o governo militar e a repressão no Brasil.

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a 3ª partes possuem uma pergunta cada uma, seguida de uma epígrafe de Maiakovsky19; já a 4ª e última parte possui, no lugar da pergunta, uma afirmação, também seguida por epígrafe do mesmo poeta. Todas elas abrem com um capítulo, não numerado, no qual Elisa e o guerrilheiro urbano conversam sobre o passado, para depois sugir o primeiro capítulo numerado. Na 2ª parte, após o sub-título, A pausa que refresca, há a seguinte pergunta: “o que você estava fazendo no 1º de abril de 1964?” e a epígrafe de Maiakovsky é O meu coração nunca chegou a Maio na vida vivida nunca passou de Abril. (1980, p.101)

Na 3ª parte, a pergunta é “Qual é o seu último desejo?” e a epígrafe: Olhem – decapiaram mais estrelas ensanguentaram o céu como um matadouro. (Ibidem, p.193)

Na 4ª parte, a pergunta é substituída pela afirmação: “O que a lua viu” e segue a epígrafe, teu corpo cuidarei e amarei como o soldado mutilado de guerra, inútil e sem dono, cuida da única perna. (ibidem, p.287)

O uso do mesmo sub-título aludindo simultaneamente à propaganda da CocaCola e a um intervalo do programa/ação principal cria novo conflito de olhares. Primeiro, porque é falso e irônico: nem há pausa alguma na ação dos personagens, nem a tensão é diminuida; ao contrário, se na primeira parte havia a alegria contagiante da Revolução do 1º de Abril, com a presença da Borboleta Verde e o cheiro de lançaperfume, nas seguintes o cheiro se torna incômodo, aumentando de intensidade e levando os personagens a “delírios”/lembranças mais fortes, as ações convergem em ritmo acelerado para seus desfechos trágicos (a guerra civil instaurada no Brasil e sua repressão violenta), prenunciados pelas duas perguntas colocadas no início de cada 19

Maiakovsky foi um poeta russo de esquerda, fundador de um grupo cubo-futurista, e que, segundo as fontes oficiais do governo, suicidou-se em 14 de abril de 1930 com um tiro, mas há indícios de que foi forjado o seu suicídio, ele teria sido eliminado pelo governo da época.

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parte, uma ligada ao que parece ser um interrogatório policial e a outra à condenação irremediável dos personagens. As epígrafes de Maiakovsky confirmam isso, a primeira indicando um prenúncio de morte e falsidade (retomando o 1º de abril), confirmada pela segunda. A sutileza entre elas é que a primeira epígrafe é de “foro pessoal”, quase um lamento pela vida não vivida, a segunda abrange todo o universo, é comum a todos; o que era um espaço de sonho (céu) transforma-se em matadouro. Na 4ª parte, a frase utilizada como sub-título revela a finalização das ações, os assassinatos cometidos: morte do Camaleão Amarelo, do Homem do Sapato Amarelo, de Terê – todas marcadas para após o nascimento da lua; o desterro do General Presidente e a tomada de poder pelo Cavalo Albany, seu braço direito. Ações que deixam o país enlutado e mutilado como na epígrafe que lhe corresponde. Não sem ironia, o autor escolhe a lua cheia, símbolo de amor e sensualidade em nossa cultura, para marcar os assassinatos e demais desfechos da história. As epígrafes da 2ª, 3ª e 4ª parte também funcionam como entradas para o assunto discutido entre Elisa e o guerrilheiro: na 2ª parte, falam do passado, da infância, ele já engajado na esquerda, ela muito jovem e alienada; na 3ª parte ele conta das toruturas que sofreu e viu outros sofrerem, enquanto ela jogava vôlei; na 4ª parte, após tentarem fazer sexo, ele se descobre impotente em função da tortura e Elisa declara-se pronta a segui-lo por onde ele for. O casal é um símbolo das vidas alteradas e do sofrimento causado ao povo pela ditadura militar após o fim do AI5 e do regime militar, um capítulo a parte, que aponta para o pessoal, o íntimo e do qual pouco se falou no país. O romance termina com o desespero e arrependimento do piloto do helicóptero nº3 após ter matado o Homem do Sapato Amarelo. Ao descer do aparelho, para ver se HSA ainda está vivo, o piloto chama-o de “irmãozinho”; pelo diálogo travado entre ele e o sargento Garcia sabemos que o piloto está em prantos, incontrolável. O Sargento tenta convencê-lo de que o Homem do Sapato Amarelo era um inimigo da pátria, mas o outro rejeita a possibilidade; enjoado pela ação e sem saber o que fazer, recebe, do sargento, a prescrissão: - Então o que eu faço, sargento? - Olha, caramba, você toma dois comprimidos de Engov, caramba! Você vai numa farmácia e compra um envelope com quatro comprimidos de Engov, caramba! Você toma dois Engov agora e daqui a

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quatro horas você toma mais dois, está ouvindo? E eu quero ser mico de circo se daqui a pouco você não estiver pronto para outra... - Engov é bom mesmo, sargento? - É o mais santo remédio que eu conheço, caramba, quando a gente mata! Experimenta e depois você me fala... Caramba! - Mas eu fico vendo ele na minha frente, sargento. Fico vendo ele sorrindo pra mim. Ele morto e sorrindo... - Toma o Engov caramba, depois você me fala. Vai na primeira farmácia que você achar por aí. Fecha bem o helicóptero nº3 e vai tomar o Engov... (1980, 332)

O consumo e a ironia se fundem no texto, o valor da vida humana e da consciência é substituído por quatro comprimidos de Engov, enquanto o narrador sugere que a Borboleta Verde da Felicidade é Erika Sommer, “que voa indiferente à ordem de prisão, viva ou morta, decretada contra ela pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República” (Ibidem, p.333). Fusão de crítica política, social, cultural, o pastiche drummoniano apresenta um retrato do Brasil o qual joga com a combinação de elementos criativos contrapostos a detalhes figurativos. Os capítulos, tal como quadros, surgem no decurso de movimentos e de cruzamentos compositivos – elípticos – criando uma espécie de caos no qual as ações se desenrolam em diversas direções e com diferentes centros e pontos culminantes, como o explorado na Pop Art.

O humor e a crítica na Literatura Pop de Drummond

A posição assumida por Drummond, diante dos fatos históricos e das relações sociais expostas em seu romance, pode ser entendida a partir da afirmação de Larrosa (2000:153): “Frente à linguagem direta, em relação dialógica com ela, está a linguagem indireta, figurada, a linguagem paródica, irônica, a que se utiliza de uma máscara, sabendo-se que é uma máscara”. Este é um dos pontos chave na obra drummoniana: o saber-se máscara e o explicitar ao leitor este procedimento, chamando a atenção para o enfoque artificial, não natural, dado à ação, à sua ambientação, aos personagens e ao próprio ato narrativo. Ao abrir espaço para o conceito de diferenças, Drummond permite uma descentralização e uma ruptura com a ideologia do passado, obrigando o leitor a reconhecer a necessidade de repensar e problematizar tudo, até mesmo sua própria identidade. Tal posicionamento implica o reconhecimento do status provisório das

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múltiplas posições em que o leito é colocado em função das constantes mudanças discursivas que constitui o texto, ou seja, o jogo de “esconde-esconde” travado entre autor, personagens e leitor implica o surgimento subversivo da ironia, da paródia e do humor como contestação das pretensões universalizantes da arte „séria‟, da tradição moderna fundada no Iluminismo, com suas idéias de razão, progresso e ciência, tão caras ao Governo Militar e à sociedade em geral. Própria do Pós-Modernismo e da obra em questão, a intertextualidade, ou mais especificamente, o discurso parodístico leva a uma autocrítica da palavra, e em decorrência disso à ironia e ao riso, desmascarando o convencionalismo existente em todas as relações humanas. Segundo Larossa (2000, p.136) [...] o riso destrói as certezas. E especialmente aquela certeza que constitui a consciência enclausurada; a certeza de si. Mas só na perda de certeza, no permanente questionamento da certeza, na distância irônica da certeza, está a possibilidade do devir. [...]. A história deve tentar, em primeiro lugar, salvar o esquecido e o reprimido na história monumental do reconhecimento, na história dos vencedores, e construir-se num tipo de contra-memória. Para que essa experiência do passado seja possível, o sujeito da experiência – o historiador ou o leitor – deve ser um sujeito desconforme e inquieto.

Sangue de Coca-Cola busca exatamente esta inquietação, esse questionamento das certezas históricas do país, dos valores culturais, sociais do mundo globalizado e consumista, mas o faz de forma oblíqua, não objetiva ou linear, deixando pairar a dúvida sobre o real posicionamento do autor e seus personagens - se é denunciar a alienação contemporânea ou fazer parte desse mundo de aparências e consumismo. Roberto Drummond assume sua máscara pós-moderna, confirmando a definição de sujeito pós século XX dada por Hall (2002, p.13): O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.

Seus personagens, marginais e/ou vencidos pela engrenagem da política e do consumo, são incoerentes e contraditórios ao longo da narrativa, despertando no leitor ora empatia ora antipatia. Marcado pelo descentramento, pois opera uma inversão e um deslocamento assimétrico na representação do fato/ação, o texto de Drummond desvela o discurso oficial, tradicional, dando-lhe uma nova roupagem ideológica. Dessa forma, o passado é

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incorporado e modificado, desestabilizando as convenções sociais, históricas e literárias, criando, a partir desta intertextualidade, o humor e a ironia. A obra de Drummond torna-se, portanto, um retrato Pop e paródico do Brasil pós AI5, caracterizado pela subversão, ruptura, insubordinação, ambiguidade, transgressão e revelação da relação dialógica pretendida entre a identificação e a distância, apropriando-se da história, da cultura, dos mitos nacionais e dessacralizandoos, ao transformá-los por meio de uma colagem satírica, de cores cítricas e crítica ácida.

BIBLIOGRAFIA ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M.. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In:___. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 113- 156. DRUMMOND, R. O confinado. Minas Gerais. Belo Horizonte. 07 nov. 1970. Suplemento literário. p. 1-3. DRUMMOND, R. Sangue de Coca-Cola. São Paulo: Geração Editoria, 1980. GUMBRECHT, H. Entrevista. 34 letras, Rio de Janeiro, n.2, 97 – 115, 1998 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo – História teoria ficção. Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago. 1995 LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. LARROSA, J. Pedagogia Profana, Danças, Piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. LIMA, L. C. “O cão pop e a alegoria cobradora” in Dispersa demanda – Ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p. 144-158. Mc CARTHY, David. Arte pop (Col. Movimentos da arte moderna). São Paulo: Cosac & Naify, 2002. MORAES, V. Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, pág. 383. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia: ou Helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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Jacir

J.

Cônicas

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Disponível

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