O Cálice do Diabo: A figura de Satã nas mulheres medievais europeias.In:Anais do II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba.

September 19, 2017 | Autor: Lucas Fernandes | Categoria: Medieval History, Women's History, Devil
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA reitor RÔMULO SOARES POLARI vice-reitora MARIA YARA CAMPOS MATOS CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTE diretor ARIOSVALDO DA SILVA DINIS vice-diretora MÔNICA NÓBREGA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS coordenadora SANDRA LUNA vice-coordenadora LUCIANA ELEONORA DE F. CALADO DEPLAGNE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES coordenadora FERNANDA LEMOS vice-coordenadora MARIA LUCIA ABAURRE GNERRE EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Paulo Aldemir Delfino Lopes CAPA, WEB, ARTE: François Deplagne (Designer gráfico) Imagem de Joana D´Arc, miniatura, pergaminho do Século XV

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II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba - Sábias, Guerreiras e místicas: Homenagem aos 600 anos de Joana D´arc – ANAIS / Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne, Fabrício Possebon (Organizadores). - João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2012. 451p. ISBN: 978-85-237-0603-6 1.Literatura. 2.Estudos Medievais. I. Deplagne, Luciana Eleonora de F. Calado. II. Possebon, Fabrício.

UFPB/BC

CDU: 82.091

Editora Universitária João Pessoa - PB 2012

II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS Homenagem aos 600 anos de Joana D´arc

ANAIS João Pessoa - PB 11 a 13 de junho de 2012

PROMOÇÃO GIEM- Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais (CNPq/PPGL/CCHLA/UFPB Grupo Crenças (PPGCR/CE/UFPB)

APOIO CAPES PPGL CCHLA PPGCR ABREM USINA CULTURAL ENERGISA

ORGANIZAÇÃO Profª. Drª. Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne – (ABREM/Coordenadora do GIEM – PPGL – UFPB) Prof. Dr. Fabrício Possebon – (ABREM/PGCR- PPGL-UFPB) Prof. Dr. Anderson D´Arc Ferreira (PPGFIL/ABREM) Profª. Drª. Sandra Luna (Coordenadora do PPGL- UFPB) Profª. Drª. Cláudia Brochado (UnB/ ABREM/GIEM) Profª. Drª. Suelma de Sousa Moraes (PPGCR-UFPB)º Profª. Drª Beliza Áurea (ABREM/PROLIN-UFPB)

SIMPÓSIOS TEMÁTICOS ST1: O sagrado e o profano no Teatro Medieval ST2: Cristianismo na Idade Média ST3: Guerreiras Medievais ST4: Santas e feiticeiras nas novelas de Cavalaria ST5: Mulheres escritoras da Idade Média ST6: Interface do Sagrado com a Filosofia e a Literatura na Mística Medieval ST7: Faces do medievo nas Literaturas de Língua portuguesa ST8: A Letra e a voz: música e poesia

EQUIPE DE TRABALHO (Coordenadores e monitores) Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne (GIEM/PPGL) Fabrício Possebon (PPGCR /PPGL) Suelma de Sousa Moraes (PPGCR) Beliza Áurea (PROLIN) Sandra Luna (PPGL) André Sérgio Trigueiro (PIBIC/CNPq) Frederico Lima (GIEM) Danyele Almeida (GIEM) Maria do Rosário Leite (PPGL) Gilberto Lucena (GIEM/PPGL) Siméia de Castro (GIEM) Anderson D´Arc Ferreira (PPGFIL/ABREM)

COMITÊ CIENTÍFICO ST1: Sandra Luna ST2: Fabrício Possebon ST3: Luciana Campos ST4: Adriana Zierer ST5: Cláudia Brochado ST6: Suelma de Sousa / Anderson D´Arc Ferreira ST7: Elizabeth Dias Martins ST8: Beliza Áurea

APRESENTAÇÃO II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc O Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais (PPGL/UFPB) e o Grupo Crenças (PPGCR/UFPB) têm o prazer de apresentar-lhes os anais da segunda edição do Seminário de Estudos Medievais da Paraíba. O evento teve o intuito de estimular o debate entre pesquisadores, professores, estudantes de diversas áreas sobre temas relacionados ao medievo, em particular, enfocando temas pouco divulgados da Idade Média, como a produção literária feminina, o lugar dos movimentos hereges e populares, a partir do estudo e tradução de obras importantes que ofereçam um novo olhar sobre esse período da História. Nessa perspectiva, o tema proposto para o II Seminário foi: Sábias, Guerreiras e Místicas e homenageou os 600 anos de Joana D´Arc, uma das figuras mais emblemáticas da Baixa Idade Média no Ocidente. O evento contou com pesquisadores de renome nacional e internacional na área de Estudos Medievais, que participaram como conferencistas, palestrantes e ministrantes de mini-cursos. Foram organizadas ainda sessões de comunicação com a participação de pesquisadores e estudantes da graduação à pós-graduação que puderam apresentar pesquisas em andamento, assim como resultados de pesquisas desenvolvidas em programas de PósGraduação de diversas áreas. Neste sentido, o evento cumpriu um dos seus principais objetivos: estimular o interesse pelos estudos medievais nos cursos de graduação, motivando os graduandos a apresentarem e discutirem suas pesquisas iniciais a especialistas da área, vindos de várias regiões do Brasil. Aproveitamos a ocasião para manifestar nosso agradecimento aos pesquisadores de diversas instituições brasileiras e estrangeiras que contribuíram a dar mais vitalidade ao Seminário através de trocas acadêmicas e de laços interinstitucionais fomentados a partir dessa reunião em torno dos estudos medievais. Além da Paraíba, estiveram presentes pesquisadores de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Maranhão, Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo, Brasília, assim como do outros países: Argentina e Holanda. Agradecemos também à Fundação CAPES pelo apoio financeiro concedido, viabilizando a vinda de grande parte dos professores convidados e possibilitando ainda as publicações dos trabalhos resultantes das discussões ocorridas no Seminário. Os textos reunidos nesses Anais refletem a pluralidade de temas e abordagens que foram apresentados no II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba. Os anais estão divididos em quatro sessões: Conferências, Palestras, Mesas-redondas e Comunicação. Ao final das sessões disponibilizamos os trabalhos apresentados na primeira edição do evento. Feita a apresentação, desejamos a todo(a)s uma boa leitura e até o próximo Seminário! Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne Fabrício Possebon Organizadores 6

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 6 Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne ................................................................................. 6 Fabrício Possebon ...................................................................................................................... 6 CONFERÊNCIAS .................................................................................................................. 13 UNA TIPOLOGÍA DE LAS MUJERES SABIAS EN LA LITERATURA ESPAÑOLA MEDIEVAL ............................................................................................................................ 13 Alicia Esther Ramadori ............................................................................................................ 13 MÍSTICA FEMININA NA IDADE MÉDIA HISTORIOGRAFIA FEMINISTA E DESCOLONIZAÇÃO DAS PAISAGENS MEDIEVAIS ................................................... 27 Lieve Troch ............................................................................................................................... 27 PALESTRAS........................................................................................................................... 40 A MULHER EM CARMINA BURANA .............................................................................. 40 Eduardo Hoornaert .................................................................................................................. 40 MESAS-REDONDAS............................................................................................................. 47 O MOVIMENTO DAS BEGUINAS: INTERFACES E RESSONÂNCIAS EM EXPERIÊNCIAS SÓCIO-RELIGIOSAS FEMININAS DO PRESENTE ....................... 47 Alder Júlio Ferreira Calado ..................................................................................................... 47 LINGUAGEM MÍSTICA ERÓTICA MEDIEVAL: ASPECTOS PROPEDÊUTICOS 59 Anderson D’Arc Ferreira ......................................................................................................... 59 POSSIBILIDADES DE UMA LEITURA HERMENÊUTICA DAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO DE HIPONA: A FILOSOFIA RICOEURIANA COMO VIA PARA REINTRODUÇÃO DO SAGRADO NA LEITURA FILOSÓFICA DAS CONFISSÕES75 Andrés Bruzzone ....................................................................................................................... 75 HELOISA E ABELARDO..................................................................................................... 82 Eduardo Hoornaert .................................................................................................................. 82 RUY GONÇALVES E A DISCUSSÃO DO FEMININO NA REGÊNCIA DE D. CATARINA DE ÁUSTRIA ................................................................................................... 85 Eduardo José de Azevedo Charters Fuentes Morais................................................................ 85 Luisa Stella de Oliveira Coutinho Silva ................................................................................... 85 A INFIDELIDADE DO CORPO FEMININO: IMAGENS DA JUSTIÇA E DA VIOLÊNCIA NO TEXTO POPULAR IBÉRICO .............................................................. 93 Hermano de França Rodrigues ................................................................................................ 93

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O HOMEM INTERIOR E O DESPRENDIMENTO NA MÍSTICA DE MEISTER ECKHART ............................................................................................................................ 105 Carlos Bezerra de Lima Júnior .............................................................................................. 105 VOZES ENTRECRUZADAS: MEDIUNIDADE, HERESIA E SANTIDADE EM JOANA D’ARC .................................................................................................................... 113 Iracilda Cavalcante de Freitas Gonçalves ............................................................................. 113 “OS CARMINA BURANA: ENTRE O CÂNTICO DOS CÂNTICOS DE SALOMÃO E A CANTATA DE CARL ORFF” ........................................................................................ 120 Maria da Conceição Oliveira Guimarães .............................................................................. 120 ESPELHO DA LITERATURA, REFLEXO DO SAGRADO – REFLEXÕES FILOSÓFICAS SOBRE A MÍSTICA DE MARGUERITE PORETE ........................... 127 Maria Simone Marinho Nogueira .......................................................................................... 127 ASPECTOS RELIGIOSOS DO AMOR CONJUGAL NA OBRA "JÚLIA OU A NOVA HELOÍSA" DE ROUSSEAU: UM RETORNO À IDADE MÉDIA? .............................. 136 Otacílio Gomes da Silva Neto ................................................................................................ 136 A POBREZA COMO EXPRESSÃO MÁXIMA DA VITA VERA APOSTOLICA NOS ESCRITOS DE CLARA DE ASSIS ................................................................................... 143 Valéria Fernandes da Silva .................................................................................................... 143 IDEIAS RELIGIOSAS NO CRISTIANISMO PRIMITIVO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO PROTO-EVANGELHO DE TIAGO ................................................. 152 Valmir Nascimento de Moura ................................................................................................ 152 Fabricio Possebon .................................................................................................................. 152 ECOS DA FÁBULA E DO BESTIÁRIO MEDIEVAL EM “CONVERSA DE BOIS”, DE GUIMARÃES ROSA..................................................................................................... 160 Gilberto de Sousa Lucena ...................................................................................................... 160 INÊS DE CASTRO: A FACE FEMININA DO AMOR MEDIEVAL EM PORTUGAL172 Aldinida Medeiros .................................................................................................................. 172 SESSÕES DE COMUNICAÇÕES ..................................................................................... 180 JOANA D'ARC E BRANCA DIAS - PERSONAGENS DA INQUISIÇÃO: DIÁLOGO ENTRE MÁRTIRES ............................................................................................................ 180 Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos ............................................................................... 180 Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne .................................................................... 180 ÉOWYN OU DERNHELM. UMA ANALISE DO ESTEREÓTIPOS DA MULHER GUERREIRA NAS OBRAS DE J. R. R. TOLKIEN ........................................................ 187 Adhemar Correa Neto ............................................................................................................ 187 Alessandro Lima Moraes ........................................................................................................ 187

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RED SONJA: A MULHER GUERREIRA NA ERA HIBORIANA ............................... 194 Adriano Everton ..................................................................................................................... 194 Luciana Campos ..................................................................................................................... 194 A INTERPRETAÇÃO DA ÁRVORE DE JESSÉ NA IDADE MÉDIA ......................... 200 Ana Caroline dos Santos ........................................................................................................ 200 Jôkarlla Kataryne Oliveira Alcântara.................................................................................... 200 MORTE CRISTÃ DO MEDIEVO: UMA FORMA DE REPENSAR O CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO DIANTE DA MORTE ................................... 207 Ana Cândida Vieira Henriques .............................................................................................. 207 Viviane Cristina Cândido ....................................................................................................... 207 O LIRISMO E O MISTICISMO MEDIEVAL EM ADÉLIA PRADO .......................... 214 André Sérgio Soares Guedes Trigueiro .................................................................................. 214 Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne .................................................................... 214 A MULHER E SEU PAPEL NA LITERATURA TROVADORESCA .......................... 224 Alba Caldeira Mello ............................................................................................................... 224 O CONTRASTE ENTRE A MULHER RELIGIOSA E A FEITICEIRA EM MEMORIAL DO CONVENTO ............................................................................................ 229 Ana Flávia da Silva Oliveira .................................................................................................. 229 Aldinida Medeiros .................................................................................................................. 229 NO DIA QUE ROLAND FALOU COM SOTAQUE NORDESTINO............................ 238 Caroline Sandrise dos Santos Maia ....................................................................................... 238 Nilma Barros Silva ................................................................................................................. 238 Wanderson Diego Gomes Ferreira ........................................................................................ 238 Beliza Áurea ........................................................................................................................... 238 IMAGENS DO FOL AMOR DE LANCELOT E GENEVRA D’ A DEMANDA DO SANTO GRAAL: DELÍRIOS DE AMOR E VISÕES DE TERROR............................... 243 Elenilda do Rosário Costa...................................................................................................... 243 Alessandra F. Conde da Silva ................................................................................................ 243 HELGA E HONI: A FORÇA FEMININA NOS QUADRINHOS DE “HÄGAR, O HORRÍVEL” ........................................................................................................................ 252 Elvio Franklin Menezes Teles Filho ....................................................................................... 252 POÉTICA MEDIEVAL E ICONOGRAFIA MODERNA: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DO CARMINA BURANA E OS CAPRICHOS, DE GOYA ............... 258 Fernanda Alves de Morais ..................................................................................................... 258 Wilder Kleber Fernandes Santana ......................................................................................... 258

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UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA FEMININA NAS GUERRAS GERMÂNICAS DO IMPÉRIO ROMANO À ERA VIKING ............................................................................. 266 Gustavo Braga Santos ............................................................................................................ 266 AS VALQUÍRIAS NO IMAGINÁRIO VIKING .............................................................. 272 João Paulo Garcia Teixeira ................................................................................................... 272 ENTRE A AGULHA E A ESPADA: AS MULHERES GUERREIRAS NAS CRÔNICAS DE GELO E FOGO ............................................................................................................... 280 Jackson Franco de Sá Monteiro ............................................................................................. 280 Johnni Langer ......................................................................................................................... 280 Luciana Campos ..................................................................................................................... 280 O CÁLICE DO DIABO: A FIGURA DE SATÃ NAS MULHERES MEDIVAIS EUROPEIAS ......................................................................................................................... 289 José Lucas Cordeiro Fernandes ............................................................................................. 289 AMOR E TRANSGRESSÃO: UMA LEITURA COMPARATIVA DAS CARTAS DE SOROR MARIANA ALCOFORADO E DE HELOÍSA .................................................. 297 Késia Mota.............................................................................................................................. 297 Leonardo Barbosa .................................................................................................................. 297 Luciana E. de F. Calado Deplagne ........................................................................................ 297 SUBJETIVIDADE DO HOMEM MEDIEVAL: AÇÃO E INTENÇÃO DO HOMEM NAS OBRAS DE AGOSTINHO E TOMÁS DE AQUINO .............................................. 304 Khayles N. P. Alves ................................................................................................................ 304 REPRESENTAÇÕES DAS AMAZONAS NA IDADE MÉDIA...................................... 310 Marília Colins ........................................................................................................................ 310 Luciana Campos ..................................................................................................................... 310 FEIA, FORTE E BOA DE BRIGA: AS REPRESENTAÇÕES DE BRITES DE ALMEIDA, A VALENTE PADEIRA DE ALJUBARROTA, NO IMAGINÁRIO PORTUGUÊS ....................................................................................................................... 315 Michel Roger Boaes Ferreira ................................................................................................. 315 Luciana Campos ..................................................................................................................... 315 MALDITA SEJA A BELDADE DE ISEU: FEITIÇARIA E IMAGEM ........................ 320 Pâmela Paula Souza Neri ....................................................................................................... 320 O CONVENTO COMO ESPAÇO DE EMANCIPAÇÃO FEMININA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVII ............................................................................................................... 328 Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais Cunha .............................................................. 328

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NAS BRUMAS DE AVALON: UMA LEITURA DO IMAGINÁRIO SIMBÓLICO DA MULHER/BRUXA NO FILME AS BRUMAS DE AVALON ........................................ 336 Kelliane Felix Gonçalves........................................................................................................ 336 Maylla Rolim de Sousa Araujo ............................................................................................... 336 Rafael Francisco Braz ............................................................................................................ 336 UMA FLOR DE ALTURA? PERFIL IGNORADO DE LEONOR TELES EM UM ROMANCE DE ANTÓNIO CANDIDO FRANCO .......................................................... 343 Larícia Pinheiro Silva ............................................................................................................ 343 Aldinida Medeiros .................................................................................................................. 343 SUTIÃ DE AÇO: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER GUERREIRA NO FILME COMO TREINAR SEU DRAGÃO .................................................................................... 351 Ricardo Wagner Menezes de Oliveira .................................................................................... 351 O EROTISMO MÍSTICO NA POESIA DE TERESA DE JESUS: ANIQUILAMENTO E ÊXTASE NA BUSCA DO ABSOLUTO ......................................................................... 359 Maria Graciele de Lima ......................................................................................................... 359 FACES DO MEDIEVO NO ‘RETÁBULO DE SANTA JOANA CAROLINA’, DE OSMAN LINS ....................................................................................................................... 368 Rosana Maria Teles Gomes .................................................................................................... 368 INTRODUÇÃO À TEORIA DOS VÍCIOS EM TOMÁS DE AQUINO ........................ 377 Sebastiana Inácio da Silva ..................................................................................................... 377 Maria Simone Marinho Nogueira .......................................................................................... 377 ANAIS DO I SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS NA PARAÍBA ..................... 386 ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE LES SERMENTS DE STRASBOURG .................. 386 Ana Cristina Bezerril Cardoso ............................................................................................... 386 A TRADUÇÃO DA DIDAQUÊ (CATECISMO CRISTÃO DO II SÉC.) ...................... 396 Fabricio Possebon .................................................................................................................. 396 MEDIEVALISMO E MODERNIDADE EM MAURICE VAN WOENSEL ................. 401 Francisco José Gomes Correia (Chico Viana) ...................................................................... 401 A POESIA FEMININA DE AL-ANDALUS NO SÉCULO XII ...................................... 407 Iranice Gonçalves Muniz ........................................................................................................ 407 ANÁLISE SEMIÓTICA DO POEMA CANTAR DE AMOR ........................................... 416 Maria Elizabeth Baltar Carneiro de Albuquerque ................................................................. 416 Maria Nazareth de Lima Arrais ............................................................................................. 416 A DEMANDA DO SANTO GRAAL: UMA PROSA MEDIEVAL NA LITERATURA DE CORDEL ........................................................................................................................ 426 Maria Nelcimá de Morais Santos ........................................................................................... 426

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"ROSVITA DE GANDERHEIM E LOURDES RAMALHO: O FEMININO NA DRAMATURGIA OCIDENTAL" ..................................................................................... 436 Petra Ramalho Souto .............................................................................................................. 436 O IMAGINÁRIO MEDIEVAL NOS FOLHETOS DE CORDEL: O PECADO COMO ETHOS CONTROLADOR ................................................................................................. 444 Renata de Oliveira Pinto ........................................................................................................ 444

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CONFERÊNCIAS UNA TIPOLOGÍA DE LAS MUJERES SABIAS EN LA LITERATURA ESPAÑOLA MEDIEVAL Alicia Esther Ramadori Universidad Nacional del Sur Sociedad Argentina de Estudios Medievales [email protected] La representación de mujeres sabias aparece tempranamente en la literatura española medieval. Desde los primeros testimonios en el siglo XIII hasta la culminación del siglo XV, encontramos una y otra vez manifestaciones de la sabiduría femenina que va adquiriendo diversas configuraciones en correlación a las variables socioculturales, ideológicas y discursivas imperantes en los distintos momentos históricos. Así en el siglo XIII encontramos el modelo de la doncella sabia en el mester de clerecía y en la literatura sapiencial de procedencia árabe. En relatos caballerescos y ejemplares del siglo XIV, el personaje se transforma en reinas y damas que aconsejan con sabiduría y prudencia. En el siglo siguiente, encarna en ancianas que saben condensar sus experiencias de vida en expresiones proverbiales, las cuales merecen ser compiladas en refraneros o son incluidas en nuevos géneros discursivos. Propongo, por lo tanto, un recorrido por textos literarios de la Castilla medieval para mostrar los varios tipos de mujeres sabias que van apareciendo a lo largo de los siglos XIII al XV, de acuerdo a determinados condicionantes culturales y como resultado de la interacción entre tendencias tradicionales y nuevas ideologías emergentes. Una vez descriptos los diferentes paradigmas, estaremos en condiciones de interpretar las valoraciones inherentes a la condición de “mujer sabia”. Intentaremos responder cuestiones tales como: ¿Cuál es el sentido de la exaltación de la sabiduría femenina? ¿Tiende hacia una equiparación con el hombre? ¿Significa realmente una visión positiva de la mujer o, por el contrario, encubre una intrínseca actitud misógina? 1. La sabia erudita y cortesana La primera mitad del siglo XIII vio surgir en Castilla un movimiento de renovación cultural que trajo como consecuencia un nuevo concepto de sabiduría caracterizado por la confianza en la razón y en la experiencia y por una insaciable apetencia de saber. Como correlato de esta situación surge un nuevo estamento social: los clérigos o intelectuales, cuya principal función dentro de la sociedad consistirá en la adquisición y transmisión del saber. Las universidades, nacidas como corporaciones de maestros y estudiantes, serán el centro de su actividad. (Le Goff, 1965). Una renovación similar alcanza al ámbito literario, en el que se inicia la tendencia innovadora denominada por sus primeros cultores la “nueva maestría” o “mester de clerecía”, aludiendo a su novedad y carácter culto. Los textos del mester de 13

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clerecía son poemas narrativos que comparten una misma configuración discursiva encauzada en la estrofa de la cuaderna vía (cuartetas de versos de catorce sílabas monorrimos y consonantes). Se inspiran en fuentes escritas, preferentemente latinas, y han sido concebidos con sentido artístico así como elaborados retóricamente. Al mismo tiempo, canalizan las aspiraciones intelectuales de un grupo social que busca imponer paulatinamente sus ideales y modelos culturales. Uno de los medios de hacerlo es a través de la creación de un nuevo arquetipo heroico en el que la destreza física y la valentía guerrera han sido reemplazadas por cualidades más espirituales. (Ramadori, 2001 y 2011). El protagonista del Libro de Apolonio –poema perteneciente al mester de clerecíaconstituye un acabado ejemplo del nuevo ideal de rey sabio en que las virtudes intelectuales están íntimamente vinculadas a su cortesía y bondad. El mundo en que se mueve el héroe es una sociedad refinada y culta, regida por códigos corteses que valoran las buenas maneras, el cultivo intelectual y artístico, la instrucción escolar. Pero la novedad mayor que aporta el Libro de Apolonio radica en la plasmación femenina de este modelo sapiencial, representada por Luciana, esposa de Apolonio, y por su hija Tarsiana. En la corte del rey Architrastes hace su aparición por primera vez Luciana, hija del mencionado rey. La joven se destaca por su belleza, discreción y buenas maneras; el poeta la llama “bien enseñada” (163b). Luciana es encarnación de una sociedad culta, similar a la creada por la novela cortesana del siglo XII. En este mundo, alejado tanto del campo de batalla de los cantares de gesta como del ascetismo de la literatura religiosa, sólo cabe el brillo de la persona cultivada. La intelectualidad de los personajes queda así relacionada estrechamente con su cortesía. En esta escena de la primera presentación, la música es el vehículo para la manifestación de la sabiduría de los personajes. Aguisósse la dueña, fiziéronle logar; tempró bien la vihuela en un son natural; dexó cayer el manto, parós’ en un brial: començó una laude, homne no vïo tal. Faziá fermosos sones, fermosas deballadas, quedaba a sabiendas la voz a las vegadas; faziá a la vihuela dezir puntos ortados, semejaban que eran palabras afirmadas. Los altos e los baxos, todos d’ella dizién: - “¡La dueña e la vihuela tan bien se avinién!” Lo tenién a fazaña cuantos lo veyén. Faziá otros depuertos que mucho más valién. Alabábanla todos, Apolonio callaba […] (est.178-181a)

La ejecución instrumental de Luciana es ponderada por la corte, sin embargo, merece las críticas de Apolonio, quien luego se convertirá en su maestro al demostrar que es “músico acabado”. La superioridad de Apolonio se confirma con la posterior exhibición de su propia maestría musical que tiene como consecuencia despertar el amor en Luciana y el reconocimiento unánime de toda la corte.

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Fue levantando ‘l rey unos tan dulces sones, doblas e deballadas, temblantes semitones; a todos alegraba la voz los corazones; fue la dueña tocada de malos aguijones. Todos por una boca dizién e afirmaban que Apolo ni Orfeo mejor non violaban; el cantar de la dueña, que mucho alababan, contra el d’ Apolonio nada non lo preciaban. (est.189-190)

En la detallada pintura de la interpretación de ambos personajes y en sus palabras se trasluce la concepción medieval de la música que valora el conocimiento teórico, la destreza en la ejecución del instrumento y la capacidad crítica de juzgar en otros esos conocimientos y habilidades. (Devoto, 1972). Tarsiana heredará las virtudes intelectuales y la destreza musical de sus padres. A diferencia de Apolonio cuya instrucción se deduce de sus palabras y hechos, se menciona la educación recibida por Tarsiana desde sus primeros años. Ésta concuerda con la institución medieval de los Estudios Generales que se organizaban en dos ciclos correspondientes al Trivium y al Quadrivium. El poeta destaca el aprendizaje de dos disciplinas representativas de cada uno de ellos: gramática y música. La elección metonímica de estos saberes se justifica por la significación que ambos tuvieron en la Edad Media. Recordemos que la gramática se consideraba el principio y fundamento de las otras artes e integraba tanto el estudio de la lengua como de la literatura. La música, como ciencia, abarcaba el conocimiento de toda armonía: la del universo, la del hombre como microcosmos, la del mundo sensible, la de las matemáticas. (Curtius, 1955). El desarrollo de la trama justifica, asimismo, el énfasis puesto en estas disciplinas pues gracias a su práctica, Tarsiana conserva su vida y virginidad. Una detenida lectura de los discursos con que la joven convence a sus interlocutores revela también la eficaz aplicación de sus recursos retóricos y su sagacidad dialéctica: primero, suscita cierta piedad en Téofilo, encargado de matarla, que posibilita la salvación de su vida (est.378-379); luego, logra con sus prudentes palabras que Antinágoras y los demás hombres respeten su virginidad (est.407409); y finalmente obtiene autorización del dueño del burdel para cambiar su oficio por el de juglaresa (est.422-425). Sus conocimientos musicales son precisamente, los que le permiten este cambio con el que conseguirá mantener su pureza. A diferencia de Luciana, Apolonio reconocerá los méritos de la ejecución musical de su hija, que combina la destreza en el instrumento con el dominio de la teoría: “hobist’ en tu dotrina maestro bien letrado” (496d). Pero además, en el propósito de salvaguardar su castidad, utilizando sus conocimientos escolares para ganar dinero, Tarsiana ejemplifica, de manera bastante particular, la posibilidad de una aplicación pragmática del estudio que permite un ejercicio lucrativo del saber. Una situación parecida se da en la Historia de la donzella Teodor. El relato, cuyo origen se remonta hasta un cuento de Las mil y una noches, se difunde en España en el contexto de las traducciones de colecciones de sentencias y cuentos de procedencia árabe y del surgimiento de una importante literatura sapiencial compuesta en castellano, que se produce en la segunda mitad del siglo XIII bajo los auspicios de Alfonso X el sabio. Desde 15

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entonces, ha tenido una enorme divulgación en todo el ámbito ibérico, llegando hasta la literatura de cordel brasilera, como lo prueba el conocido folheto “A Donzela Teodora” de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), el poeta de Paraíba, autor de una recreación poética de la versión portuguesa en prosa (traducción, a su vez, de un pliego suelto español). La capacidad de adaptarse a todo tipo de entornos y la extensa pervivencia literaria particularizan, entonces, a esta obra (Baranda-Infantes, 1995). Básicamente, constituye una disputa de carácter enciclopédico, pues admite la exposición de toda clase de conocimientos, entre una joven esclava cristiana y tres sabios de la corte del rey Almanzor. Sin embargo, su principal atracción quizá se deba al marco narrativo que introduce la materia sapiencial. En él cobra vida una de las más exquisitas representaciones de la sabiduría femenina. La Historia de la doncella Teodor comienza con la compra de la joven por un mercader, quien al ver su hermosura y gentil disposición decide darle una esmerada educación: En los reinos de Tunez ouo vn mercader natural de Vngria, el qual entre los mercaderes era el mas rico que en el mundo se fallasse. E vn dia pasando por la plaça, vido vender vna donzella christiana que era de las partes de España. Y viéndola ser muy hermosa, compróla al moro que la traýa. E conociendo en su gentil disposición e criança que deuía ser fijadalgo, hízole mostrar a leer y escreuir e todas las sciencias que deprender pudiesse. La qual se dio tanto a la virtud y estudio que sobrepujo a todos los hombres e mugeres que en aquel tiempo fuesen, assi en sciencia como en música y otras infinitas maneras de artes. (p.103)

Más allá de la coincidencia anecdótica de la venta en el mercado de esclavos, resulta evidente que Teodor y Tarsiana comparten en grado superlativo las mismas virtudes, educación y dedicación al estudio. En ambas se destaca su pericia musical y las dos exponen sus conocimientos en contiendas que, a través del juego de preguntas y respuestas, permiten develar un saber presentado como enigmático. En el caso de Tarsiana, la resolución de adivinanzas tiene como fin inmediato alegrar a Apolonio pero, en realidad, sirven para la anagnórisis entre padre e hija, resaltando la filiación también por la posesión de cualidades intelectuales semejantes. En la historia de Teodor, cumplen una función más axial porque, cuando el mercador se encuentra arruinado y la venta de la doncella es el único medio para recuperarse, la sabiduría de la joven será examinada por los sabios de Almanzor para justificar el alto precio pedido. El triunfo de Teodor sobre los doctos hombres provoca el merecido reconocimiento de toda la corte y la obtención de beneficios materiales con lo que evita la no deseada venta. Nuevamente estamos ante una aplicación práctica del saber que acarrea una mejora pecuniaria. Aunque los asuntos propuestos en el debate varían en las distintas versiones de su extensa transmisión, el marco narrativo permanece estable en sus principales puntos. Sucede así porque la valoración y exaltación de la sabiduría de la doncella es tan importante como la enseñanza de determinados conocimientos. Ella vence no sólo por tener un caudal mayor de saberes, sino porque su educación le ha proporcionado un perfeccionamiento interior contra el que no podrán los sabios del rey. Contrariamente a lo esperado, la joven probará el insuficiente grado de sabiduría de ese espacio cortesano (Gómez Redondo, 1999: I). Obligada 16

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a medir sus conocimientos con los hombres, que se muestran como poseedores exclusivos del patrimonio del saber, supera airosa también el examen iniciático que la introduce en el reducido círculo de los sapientes. (Goldberg, 1982). Por eso, su último contendiente que se había manifestado como el más agresivo y soberbio, termina reconociendo: “Yo os digo, señor, ciertamente que esta doncella sabe mas que yo; e desde aquí os digo que ella es bastante de disputar con todo el mundo e quedar vencedora, e que vuestra Alteza le deue dar señaladas mercedes e mucha honrra” […] E vista por el rey la peticion que la buena e discreta donzella le fazía, e conosciendo su alteza la razon e justicia que para ello tenía […] mando al sabio por sentencia que luego en esse punto se desnudasse de todos sus paños e los diesse e entregasse a la donzella. (pp. 130-131)

En cuanto la contienda implica la transferencia de poder del que interroga al que contesta acertadamente, en el relato se materializa este traspaso en las recompensas que recibe Teodor y en la penalidad de la desnudez que corresponde a su vencido contrincante. Otra doncella sabia que también resulta examinada aparece en un relato ejemplar intercalado en el Libro del caballero Zifar. En medio de un episodio maravilloso protagonizado por un Caballero Atrevido, el narrador introduce una digresión moralizadora contra las mujeres que aman a muchos hombres, ilustrada con un exemplum atribuido a San Jerónimo sobre las preguntas que hizo un padre a su hija sobre los amores de las mujeres. Interesa aquí destacar tanto el aprecio que reciben las dotes intelectuales de la joven, como el papel de examinador que asume el padre al dudar de la verdad de sus saberes. E dize asy: que vn ome bueno auía vna fija muy fermosa e muy leyda e de buena palabra e de buen resçebir, e plaziale mucho de dezir e de oyr, e por todas razones era muy visitada, e era familiar de muchas dueñas quando yuan a los santuarios en romeria, por muchas plazenterias que les sabia dezir. E porende quiso el ome bueno saber de estos amores que su fija mostraua a todos, sy eran verdaderos; e dixole: “Ya mia fija mucho amada e muy visitada e muy entendida en muchos bienes, dezidora de buenas cosas e plazenteras, queriades que feziesemos vos e yo vn trebejo de preguntas e de respuestas, en que tomasemos algunt plazer?”. Respondio la fija: “Ya mi padre e mi señor, sabet que todo aquello que a vos plaze plaze a mi, e sabe dios que muy grant deseo auia de ser conbusco en algunt solas, porque viesesdes sy era en mi algunt buen entendimiento”. “Fija amiga”, dixo el padre, “decirme hedes verdat a las preguntas que vos feziere?”. “Çertas, sy dire”, dixo la fija, “segunt el entendimiento que en mi ouiere, e non vos encubriré ninguna cosa, maguer que algunas de las palabras que yo dixiere sean contra mi”. (pp. 246-247).

Si bien el interrogatorio se desarrolla en un clima cordial y la joven lo acepta con buena predisposición, el propósito del diálogo, además de censurar los amores femeninos, muestra un cuestionamiento de la sabiduría y la inclinación hacia la verdad por parte de las mujeres. Sin embargo, la joven sale bien librada de la situación y sus respuestas satisfacen plenamente al padre. Esta doncella no es la única representación de la mujer sabia que nos ofrece el Libro del caballero Zifar: encontramos también el tipo de la sabia prudente y consejera. 17

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2. La sabia prudente y consejera El Libro del caballero Zifar, relato caballeresco de la primera mitad del siglo XIV, muestra una complejidad compositiva propia de la época medieval, resultado de la sumatoria de una estructura de entrelazado que combina distintas historias narradas, la confluencia de diversos géneros discursivos y la reelaboración de diferentes fuentes. Sin embargo, hay un principio de unidad que organiza el texto tanto a nivel narrativo como ideológico. Así se presenta la historia de la recuperación de un linaje, primero, por obra de Zifar que asciende de esforzado caballero a rey de Mentón; a continuación, por Roboán, el hijo menor que, también por sus méritos, alcanza la dignidad de emperador y corona el ascenso de su familia. Se reviste a la aventura caballeresca de altos valores ético-políticos y se le adjudica una nueva proyección en el ámbito social, en consonancia con el contexto de producción de la obra. Más allá del debate sobre la fecha de composición –ya sea en los primeros años del siglo XIV o entre las décadas de 1320 a 1330- no puede negarse su vinculación con un entorno políticocultural dominado por la figura y pensamiento de la reina María de Molina, esposa de Sancho IV y dos veces regente durante las minoridades de Fernando IV y Alfonso XI. Frente a los ideales de la clerecía formada en las universidades y partícipe del proyecto ecuménico y cientificista de Alfonso X, la pareja regia tuvo que construir un nuevo entramado ideológico, asociado a la escuela catedralicia de Toledo. Así, la concepción de un saber concebido como una totalidad a la que se puede acceder a través de la razón y el estudio científico, se sustituye por la idea de que la sabiduría y el entendimiento del hombre provienen de Dios. La influencia eclesiástica en el dominio sapiencial también se observa en la subordinación del conocimiento a la ejecución de las buenas obras, que sólo pueden acabarse con la ayuda de Dios. (Gómez Redondo, 1999: II). El protagonismo histórico de doña María en la defensa de este ideario y su proyección política puede verse reflejado en los personajes femeninos del Caballero Zifar, especialmente las reinas prudentes que saben aconsejar con discreción y sensatez. Ilustraré este nuevo tipo de mujer sabia con dos ejemplos que aparecen en distintos momentos y niveles de la narración. En primer lugar, con Grima la mujer de Zifar, apenas iniciada la historia y luego, con la reina consejera del exemplum contado por Roboán al conde de Turbia. En los prolegómenos de la narración sobre Zifar, el primer personaje del que se habla es su esposa Grima. Al referir el sumario de la historia, se describen las cualidades de la mujer antes de la presentación del héroe y se la considera igualmente merecedora de los premios con que Dios los compensa por las vicisitudes y los obstáculos que deben superar en sus aventuras. Cuenta la estoria que este cauallero auia vna dueña por mujer que auia nombre Grima e fue muy buena dueña e de buena vida e muy mandada a su marido e mantenedora e guardadora de la su casa; pero atan fuerte fue la fortuna del marido que non podia mucho adelantar en su casa asy commo ella auia mester. E ouieron dos fijuelos que se vieron en muy grandes peligros, asy commo oyeredes adelante, tan bien commo el padre e la madre. E el mayor auia nombre Garfin e el menor Roboan. Pero Dios, por la su piedat, que es endereçador de todas las cosas, veyendo el buen propósito del cauallero e la esperança que en el auia, nunca desesperando de la su merçed,

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e veyendo la matenençia de la buena dueña, e quan obediente era a su marido e quan buena criança fazia en sus fijuelos e quan buenos castigos les daua, mudoles la fortuna que auian en el mayor e mejor estado que vn cauallero e vna dueña podrían auer, pasando primeramente por muy grandes trabajos e grandes peligros. (p.73)

La figura de Grima, enaltecida con virtudes éticas que refieren la benevolencia de su carácter y sus buenas costumbres, se muestra entonces asociada a su marido y se prepara así la función de consejera que inmediatamente cumplirá. En las palabras que dirige a Zifar cuando lo escucha en oración lamentándose de su situación, revela su prudencia y sensatez, al mismo tiempo que lo persuade de la conveniencia de recibir los consejos de los amigos, desempeñando simultáneamente ese papel de consejera. “Amigo señor”, dixo ella, “si pesar es que remedio ninguno non puede ome auer, dexalo oluidar; ca en los males que por ninguna manera no se pueden esquiuar, no ay otro remedio sino es dexarlo oluidar e non pensar en ello, e dexarlo pasar por su ventura. Mas sy cosa es en que algunt buen pensamiento puede aprouechar, deue ome partir el cuidado con sus amigos, ca mas pueden pensar e cuidar muchos que vno, e mas ayna pueden açertar en lo mejor. E non deue ome enfiuzar en su buen entendimiento solo, commoquier que Dios le de buen seso natural; ca do ay buen seso ay otro mejor. E porende todo ome que alguna grant cosa quiere començar e fazer, deue lo fazer con consejo de aquellos de quien es seguro quel consejaran bien. (pp.79-80)

Zifar, consolado con las palabras de Grima, accede a contar sus preocupaciones, pero antes se asegura de que su esposa guarde el secreto con el relato de dos cuentos sobre la amistad. En la moralización que extrae de las narraciones, el caballero distingue a Grima entre todas las mujeres – que según la común creencia son incapaces de mantener secretos- con la enumeración de las mismas virtudes con la caracterizó el narrador al comienzo del libro, destacándose especialmente su sensatez y obediencia. (Ver p.92). Con la separación de los esposos e hijos, no disminuirá la importancia de la figura de Grima, que continuará destacándose por su conducta regida por la bondad y la prudencia. Incluso en la dramática circunstancia del reencuentro con Zifar, su actitud estará determinada por la misma discreción y lealtad al marido. En la aventura que Roboán lleva a cabo en el condado de Turbia se ve precisado de modificar la conducta injusta del conde hacia sus vasallos con el relato de un conocido cuento, cuyo origen puede remontarse hasta una obra de Séneca, De Clementia. (Rossaroli, 1990). En el relato inserto aparece una reina que, angustiada por la vida pesarosa que lleva su esposo, le solicita que comparta con ella los motivos por los que siempre está armado y en continua vigilancia. El rey se niega porque considera que la mujer no puede aconsejarle ninguna solución a su problema. La respuesta de la reina muestra una discreción de la que carece su marido: “Señor, non dezides bien”, dixo la reyna, “ca non ha cosa en el mundo por desesperado que sea, que Dios non puede poner remedio.” (p.393). Al igual que Grima, resalta el valor del consejo y logra persuadir al rey para que acepte el suyo. Las sensatas palabras de la mujer inducen al rey a confesar que teme la represalia de sus vasallos porque ha 19

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sido cruel e injusto con ellos. La reina no duda en dar su consejo al monarca a través de una analogía con los tratamientos médicos de la enfermedad: “Señor”, dixo la reyna, “por el mio consejo vos faredes commo fazen los buenos físicos a los dolientes que tienen en guarda … E a las vegadas con el contrario guarescen los enfermos de las enfermedades grandes que han. E pues este vuestro mal e vuestro reçelo tan grande e tan desesperado es que non cuydades ende ser guarido en ningunt tiempo, tengo que vos conuiene de fazer el contrario de lo que fezistes fasta aquí, e por auentura que seres librado deste reçelo, queriendo vos Dios fazer merçed”. (pp.393-394)

La consejera no se limita a decir qué hacer sino que a continuación detalla los pasos que debe seguir para obtener el perdón de sus súbditos: convocar a sus vasallos, reconocer los males y desafueros cometidos contra ellos y pedirles perdón mostrando que le pesa profundamente el mal que les ha ocasionado. Se advierte claramente la correspondencia con los pasos que deben seguirse en el sacramento de la confesión. (Rossaroli, 1990). Los prudentes consejos de la mujer no provienen sólo de una sagacidad innata sino también, del conocimiento y la práctica de principios cristianos. Vemos así encarnado el ideal de sabiduría que sostiene que el entendimiento en cuanto don divino debe aplicarse para la consecución de las buenas obras, que sólo con la ayuda de Dios pueden alcanzarse. El mismo modelo de mujer prudente encontramos en otro relato que integra la colección de El Conde Lucanor de Don Juan Manuel, el noble escritor cercano también al entorno ideológico del molinismo. El exemplo L contiene la historia del amor de Saladino por la mujer de un vasallo, la cual logra rechazarlo con agudeza e ingenio. Ante el requerimiento amoroso del rey, la dueña “commo era muy buena et de muy buen entendimiento” le propone un enigma a modo de prueba: “cuál era la mejor cosa que omne podía aver en sí, et era madre et cabeça de todas las bondades” (p.208). Ante su incapacidad y la de los sabios para dar la respuesta correcta, Saladino comienza un extenso peregrinaje motivado, ya no por la pasión hacia la mujer sino, por un alto sentido del honor que le exige acabar lo comenzado. Finalmente obtiene la respuesta acertada de un anciano caballero: ésta es la vergüenza. Cuando reclama a la mujer la satisfacción de sus deseos como recompensa a la solución lograda, nuevamente se observa la discreción de la dama que consigue que el soberano se avergüence de su lujuria: Cuando Saladín todas estas buenas razones oyó et entendió cómo aquella buena dueña, con la su bondat et con el su buen entendimiento, sopiera aguisar que fuesse él guardado de grand yerro, gradesciólo mucho a Dios. (p.213)

La mujer del vasallo emplea su prudencia e inteligencia para salir con éxito de una situación complicada; otra vez son las adivinanzas el recurso elegido para sortear la dificultad e imponer una prueba. Paralelamente actúa como una buena consejera al corregir el mal comportamiento del rey. En este papel, por un lado, se opone al mal consejero del inicio del cuento, que avaló la conducta deshonrosa del monarca al estimular su lujuria y, por otro, se alinea entre los de buen entendimiento, tal como el mismo Patronio es caracterizado por el conde Lucanor en el marco narrativo. 20

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Cualquier panorama literario sobre el siglo XIV estaría incompleto sin alguna mención al Libro de buen amor, obra del mester de clerecía de Juan Ruiz, Arcipreste de Hita. Es un texto poético que se distingue por su pluralidad connotativa y el acentuado sentido estético, resultado de la habilidad artística del autor que adapta la tan diversificada materia a una intencionalidad regida por la ambigüedad y la ironía. Está constituido como una serie de episodios amorosos articulados por la presencia de un narrador protagonista, que se identifica con el Arcipreste de Hita. El relato de las aventuras amorosas se alterna con abundantes disquisiciones doctrinales y digresiones narrativas, en correspondencia con la continua fluctuación entre lo serio y lo jocoso, el tono admonitorio y la ironía burlesca. En este contexto, toda la responsabilidad interpretativa se deriva al lector: “Entiende bien mis dichos e piensa la sentencia” (46a), recomienda el narrador, para insistir a continuación: La del buen amor son razones encubiertas: trabaja do fallares las sus señales çiertas; si la razón entiendes o en el sesso açiertas, non dirás mal del libro que agora refiertas. (est.68)

La particularidad del Libro de buen amor radica en que extiende al lector las cualidades intelectuales que, en el mester de clerecía del siglo XIII, se reservaban a los poetas y a los personajes modélicos. Aunque la principal nota distintiva está dada por la ambigüedad intencional y la ironía como principal estrategia discursiva, que afectan también la apreciación de los paradigmas sapienciales; sin embargo, encontramos algunas damas que se caracterizan por su sensatez y cordura, especialmente al rechazar los requerimientos amorosos del Arcipreste. En la primera aventura amorosa la mujer se presenta como una “dueña guardada” (est.78), “de buenas costumbres” (est.79), que sabe aconsejarse a sí misma y refutar a la mensajera argumentando con exempla y proverbios, valorándose además de sus cualidades intelectuales, su erudición: Como la buena dueña era mucho letrada, sotil e entendida, cuerda e bien messurada, dixo a la mi vieja, que le avia enbiada, esta fabla conpuesta, de Isopete sacada. (96)

La tercera aventura amorosa repite un esquema semejante y la dueña encerrada que la protagoniza se reviste de las mismas virtudes intelectuales, combinadas con cualidades sociales y atributos físicos (est.167-169). A pesar de que el equívoco subyace en toda la obra, no se percibe vacilación en el tratamiento de estas mujeres cuerdas que rehúsan el amor. El aprecio por este tipo de la dueña prudente que sabe aconsejarse puede ponerse en correlación con los constantes avisos de aplicar el buen entendimiento para la correcta comprensión del libro y para el buen obrar. En este sentido, también el Libro de buen amor queda enlazado con la corriente ideológica que nace del molinismo.

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3. La sabia experimentada y paremióloga Entre la complejidad discursiva e intencional del Libro de buen amor, emerge el tercer tipo de mujer sabia que reconocemos: la vieja que aúna la sabiduría de la experiencia de vida y la capacidad de transmitirla condensándola en expresiones proverbiales. Esta figura de la anciana que compendia un conocimiento vital, adquirido a lo largo de la propia existencia, se transforma en fuente de cognición para su comunidad y, al mismo tiempo, se integra en el “conjunto venerable receptor de una sabiduría antigua”. (Bizzarri, 2004). Esta idea es la base de la recopilación del Seniloquium, o Refranes de los viejos, compilación manuscrita del siglo XV que combina refranes castellanos con glosas latinas, las cuales interpretan los proverbios desde una perspectiva jurídica: “En primer lugar afirmo que los proverbios se llaman ley antigua, pues se suele decir «es un antiguo proverbio»… En segundo lugar mantengo que la vejez o antigüedad debe venerarse o reverenciarse, porque, aquello que los antiguos dicen debe considerarse como Derecho…” (p.47). En Seniloquium se proclama la identidad de los ancianos con la sabiduría y la prudencia, equiparando su autoridad con la Sagrada Escritura y llamando al viejo “maestro de doctrina y testigo de vida”. Anteriormente las mismas nociones habían sido incluidas en el Libro de buen amor (en el episodio de doña Endrina, basado en la comedia latina Pamphilus) Esta en los antiguos seso e sabiençia; es en el mucho tiempo, el saber e la çiençia, la mi vieja maestra ovo ya conçiencia, e dio en este pleito una buena sentencia (886)

En distintos lugares del Libro de buen amor aparecen referencias a la vieja como productora de proverbios populares o refranes, que en la literatura medieval castellana reciben diversos nombres: fabla, fablilla, pastraña, parlilla, vieso o verso, palabra, retraire, ejemplo, proverbio, fazaña, conseja, vulgar, brocárdico. (O’Kane, 1950). La primera mención muestra la sagacidad de las ancianas en una paremia que se reproduce para autorizar las advertencias del Arcipreste sobre la correcta comprensión del libro, después del relato del exemplum de los griegos y los romanos: Por esto diz’ la pastraña de la vieja ardida: “Non ha mala palabra si non es a mal tenida” (64ab)

Luego vuelve aparecer en el ámbito de lo real y cotidiano, que constituye el contexto en el que surgen y se transmiten los proverbios; en este caso, en relación a una de las tareas habituales que tipifica a la vieja decidora de refranes: el hilado. Commo dize la vieja, quando beve su madexa, “Comadre, quien más non puede, amidos morir se dexa” (957ab)

Mientras que realiza su labor, rodeada de otras mujeres, la vieja se constituye en la voz de la experiencia que comenta y enjuicia a través de la generalización que le provee la paremia, aplicándola a una situación específica. 22

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En la descripción del mes de noviembre, referida a las actividades propias de esa época invernal del año, el Arcipreste introduce la otra característica estereotípica de esta vieja formuladora de refranes: “tras el fuego”. Comía nuezes primeras e asava las castañas; mandava senbrar trigo e cortar las montañas, matar los gordos puercos e desfazer las cabañas; las viejas tras el fuego ya dizen las pastrañas (1273)

Ya tenemos completo el proceso configurador de la imagen de la vieja como el tipo de sabia experimentada y paremióloga que consagrará el primer refranero impreso bajo el nombre del Marqués de Santillana: Iñigo López de Mendoça a ruego del rrey don Juan ordenó estos refranes que dizen las viejas tras el fuego y van ordenados por el [orden del] a.b.c.

Como prueba el epígrafe, este refranero se compuso para el entorno cortesano del rey. De esta manera, la vieja decidora de refranes se aleja de su propio ámbito popular y cotidiano para entrar de lleno en la esfera aristocrática de la cultura cortesana. Pero aunque trascienda este contexto, la sabiduría que transmiten los refranes adscriptos a las viejas, continúa constituyendo una intelectualización de experiencias vitales y un código ético por el que se rige una comunidad específica. Con los Refranes que dizen las viejas tras el fuego, la sabiduría femenina se ve nuevamente obligada a competir en el círculo cerrado del conocimiento de los hombres. Sin embargo, en esta última contienda, el conocimiento de las mujeres no podrá pasar triunfante la prueba: el saber proverbial de las ancianas es cuestionado en su verdad y la vieja se transforma en una mediadora de engaños. Paradójicamente (o no) el primer embate proviene del Libro de buen amor. Si parienta non tienes atal, toma [de unas] viejas que andan las iglesias e saben las callejas, grandes cuentas al cuel[l]o, saben muchas consejas; con lágrimas de Moisén escantan las orejas (438) La dueña dixo: “Vieja, mañana madrugueste a dezirme pastrañas de lo que ayer me fablaste (1410ab)

Trotaconventos, la vieja alcahueta del Arcipreste, preanuncia los nuevos rasgos que asume el paradigma al encarnarse en la protagonista de La Celestina. Esta célebre obra testimonia las grandes trasformaciones culturales y económicas producidas a fines del siglo XV que provocan la fuerte impronta materialista de la sociedad urbana, nuevo ámbito en donde se desenvuelve el tipo de la sabia experimentada y paremióloga. El primer cambio significativo se produce cuando la sabiduría de la vieja deja de funcionar como código ético para guiar la conducta correcta y se transforma en instrumento de persuasión y manipulación. Celestina siempre tiene presto un proverbio con que autorizar sus interesadas razones, incluso en sus soliloquios utiliza los refranes para autoconvencerse de su accionar: 23

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¡Oh buena fortuna, cómo ayudas a los osados y a los tímidos eres contraria. Nunca huyendo huye la muerte al cobarde! ¡O cuántas erraran en lo que yo he acertado! ¿Qué hizieran en tan fuerte estrecho estas nuevas maestras de mi officio sino responder algo a Melibea por donde se perdiera quanto yo con buen callar he ganado? Por esto dizen quien las sabe las tañe, y que es más cierto médico el sperimentado que el letrado, y la experiencia y escarmiento haze a los hombres arteros, y la vieja, como yo, que alce sus haldas al pasar del vado, como maestra. (V, pp.171-172)

A través del enhebrado de paremias sostiene la idea de la pericia que da la experiencia por sobre el mismo estudio. También Celestina enuncia el argumento de la sabiduría que da la vejez, cuando quiere persuadir a los jóvenes para que actúen según su conveniencia: “Óyeme si no me has oýdo, y mira que soy vieja y el buen consejo mora en los viejos y de los mancebos es propio el deleite” (VII, p.192). Sin embargo, antes la misma Celestina había denostado la vejez por sus males, aunque reconociendo que todos quieren vivir con la cita de un refrán: “Porque, como dizen, biva la gallina con su pepita” (V, p.155). (Bizzarri, 2004). El tipo de la sabia experimentada y paremióloga, encarnado en la mujer anciana, sufre un segundo cambio cuando se la despoja de su sabiduría expresada mediante paremias y se la degrada a ser una simple transmisora de patrañas, dándole a éstas el único sentido de ficciones vanas, pues no se procura sacar de ellas ningún buen consejo. En voz de las viejas ya no están los proverbios, sino sólo triviales consejas. Otros textos se sumarán al desprestigio de la sabiduría de las viejas decidoras de refranes. Así en el Arcipreste de Talavera (1438), tratado que cuestiona el amor mundano y satiriza las mujeres con la descripción pintoresca de sus vicios y costumbres, se reducirán sus saberes a “consejuelas de viejas, pastrañas o… fablillas” (p.204). (Rodríguez Valle, 2008). Ya es momento de detenernos en este intenso recorrido que emprendimos por la literatura medieval española tras los pasos de las mujeres sabias y retomar las preguntas que planteábamos al inicio: ¿Cuál es el sentido de la exaltación de la sabiduría femenina? ¿Tiende hacia una equiparación con el hombre? ¿Significa realmente una visión positiva de la mujer o, por el contrario, encubre una intrínseca actitud misógina? En primer lugar, hemos de destacar lo obvio que fuimos señalando: la apreciación de la sabiduría de la mujer varía y está condicionada por factores socioculturales e ideológicos propios de cada momento. En las obras del mester de clerecía y la literatura sapiencial del siglo XIII, representadas por el Libro de Apolonio y la Historia de la doncella Teodor, la caracterización de las protagonistas como sabias refleja los ideales culturales de los autores, especialmente en lo que respeta a la educación y al estudio como factores de superación espiritual y material. No se establecen grandes diferencias con el modelo masculino, aunque se asienta la superioridad del hombre sobre la mujer y se suma la castidad como virtud inherente de la condición femenina. Los relatos caballerescos y ejemplares del siglo XIV, ilustrados con el Libro del caballero Zifar y El Conde Lucanor, muestran la superación de esta ideología racionalista y ecuménica sostenida por Alfonso X por un nuevo ideario propiciado por la prolongada participación política de la reina María de Molina. Las mujeres sabias se distinguirán por poseer el don divino del entendimiento que aplicarán con prudencia en la función de consejeras y en la consecución de buenas obras. Tanto Grima, la mujer de Zifar, y la reina del exemplum de Roboán, como la esposa del vasallo de Saladino en el relato 24

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de El Conde Lucanor comparten las mismas virtudes de discreción y lealtad, que ponen al servicio del honor y bienestar de sus maridos. Incluso en un texto ambiguo y polivalente como el Libro de buen amor también puede encontrarse la exaltación de la sensatez y la cordura en damas que obran correctamente aconsejándose con su buen entendimiento. En esta obra comienza a gestarse el tercer tipo de mujer sabia que se identifica con la vieja experimentada y formuladora de proverbios. Al igual que los otros modelos sapienciales, prevalece la misma valoración positiva propia de la presentación paradigmática que suponen todos. Sin embargo, la común subordinación a la figura masculina que de una u otra forma se desliza en cada uno de ellos, en este caso provoca una devaluación del modelo. En La Celestina la protagonista es una vieja experimentada y hábil manipuladora del discurso paremiológico que emplea en beneficio propio, en un mundo femenino que se presenta independizado de la tutela del hombre. Quizá porque el saber proverbial y la experiencia de vida de la vieja no puedan someterse a la autoridad varonil ni servir exclusivamente a los intereses masculinos, terminarán siendo descalificados y ridiculizados. En los siglos siguientes, la estimación del saber proverbial quedará confinada a la jurisdicción del hombre, única voz acreditada para proclamarlo. La representación de la sabiduría femenina subordinada al dominio del hombre ha llevado a pensar que los textos protagonizados por mujeres sabias no se alejan tanto de la corriente misógina, de la que son sólo una variante singular. Si bien estos personajes constituyen una excepción del preconcepto generalizado que considera a la mujer como simple y necia, las propias palabras de algunas protagonistas como Teodor reforzarían la perspectiva antifemenina. (Lacarra, 1993). Sin negar la cuota de certeza que subyace en las inferencias señaladas, hay que recordar que estos textos medievales están concebidos de acuerdo a una visión masculina de la cuestión. No podemos esperar una formulación feminista o simplemente femenina del asunto porque las obras literarias responden a los condicionantes culturales e ideológicos de los contextos de producción y difusión originales, dominados por los hombres. No obstante, considero que en general las figuraciones de la mujer sabia en la literatura española medieval muestran una valoración positiva de estos paradigmas femeninos y, consecuentemente, de la mujer. Ediciones Don Juan Manuel. El conde Lucanor. Edición, estudio y notas de Guillermo Serés. Prólogo de Germán Orduna. Barcelona, Crítica, 1994. García de Castro Diego, Seniloquium. Traducción y edición crítica de Fernando Cantalapiedra Erostarbe y Juan Moreno Uclés. Universitat de Valencia, PUV, 2006. Historia de la Donzella Teodor. Edición de Walter Mettmann. Weisbaden, Akademie der Wessenschaften und der Literatur, 1962. Libro de Apolonio. Introducción, edición y notas de Manuel Alvar. Barcelona, Planeta, 1984. Libro del Caballero Zifar. Edición de Cristina González. Madrid, Cátedra, 1998. López de Mendoza Iñigo. Marqués de Santillana. Refranes que dizen las viejas tras el fuego. Edición y estudio de Hugo O. Bizzarri. Kasel, Edition Reichenberger, 1995. Rojas Fernando de. La Celestina. Edición de Dorothy Severin. Madrid, Cátedra, 1998. 25

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Ruiz Juan, Arcipreste de Hita. Libro de buen amor. Edición de Alberto Blecua. Madrid, Cátedra, 1996. REFERÊNCIAS Baranda Nieves y Víctor Infantes. 1995. Narrativa popular de la Edad Media. Madrid, Akal. Bizzarri Hugo O. 2004. El refranero castellano en la Edad Media. Madrid, Laberinto. Curtius Ernest. 1955. Literatura europea y Edad Media latina. Trad. M. y A.Alatorre. México, FCE. Devoto Daniel. 1972. “Dos notas sobre el Libro de Apolonio”. Bulletin Hispanique, LXXIV, pp.291-330. Goldberg Harriet. 1982. “Riddles and Enigmas in Medieval Castalian Literature”. Romance Philology, XXXVI, pp. 209-221. Gómez Redondo Fernando. 1999. Historia de la prosa medieval castellana. Madrid, Cátedra. Vol. I y II. Lacarra María Jesús. 1993. “El arquetipo de la mujer sabia en la literatura española”. La mujer en la literatura hispánica de la Edad Media y el Siglo de Oro. Amsterdam/Atlanta, Rodopi, pp.11-21. Le Goff Jacques. 1965. Los intelectuales en la Edad Media. Trad. Marco A.Galmarini. Bs.As., Eudeba. O’Kane Eleanor. 1950. “On the name of the refrán”. Hispanic Review, 18, pp.1-14. Ramadori Alicia E. 2001. Literatura sapiencial hispánica del siglo XIII. Bahía Blanca, Ediuns. Ramadori Alicia E. 2011. “Acerca de los géneros didácticos en la literatura española medieval” en Gerardo Rodríguez (Dir.), Cuestiones de Historia Medieval, Vol.2, Bs.As, Editorial Universidad Católica Argentina, pp.9-32. Rodríguez Valle Nieves. 2008. “Las viejas tras el fuego hilando en sus ruecas ¿sabios refranes o vanas consejas?”. Congreso Internacional XII Jornadas Medievales. Proyecto Medievalia. UNAM, El Colegio de México, UAM. México. Rossaroli de Brevedan Graciela. 1990. “La aventura de Roboán en el condado de Turbia”. Studia Hispanica Medievalia II. Editoras Rosa E.Penna y María A.Rosarossa. UCA. Bs.As., pp.49-57.

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MÍSTICA FEMININA NA IDADE MÉDIA HISTORIOGRAFIA FEMINISTA E DESCOLONIZAÇÃO DAS PAISAGENS MEDIEVAIS Lieve Troch1 Introdução Este artigo é uma tentativa de análise de algumas linhas importantes no interior da mística feminina entre os séculos XI e XV. A perspectiva adotada focalizará – de forma crítica – as contribuições destas mulheres na área da teologia e, mais parcialmente, também na área política e econômica. O texto não pretende oferecer uma descrição histórica em geral; antes, propõe uma aproximação ecléctica e prototípica, em especial, ao atentar para o olhar feminista: é preciso levar em conta (ainda?) a pesquisa de como estas mulheres contribuiram para com a construção da história. Um olhar feminista significa, neste domínio científico e em primeiro lugar, o uso de uma hermenêutica de suspeita para com as fontes, os autores e a história. Para esta suspeita, utilizarei publicações 'críticas' sobre a mística feminina das últimas quatro décadas. Essa hermenêutica de suspeita nos levará a questionar, sobretudo, o lugar ‘dócil’ em que a Idade Média é usualmente alocada na historiografia. Ocupados com o passado como passado – em uma busca do proprium medieval – ou com o passado como presente – em busca de raízes medievais, historiadores deixaram por vezes de perceber o efeito da modernidade ocidental sobre nossas representações. A medievalística parece ter funcionado, nesse ínterim, como uma espécie de ‘orientalismo’ a la Said: a Idade Média importa na medida em que constitui (na negação ou na afirmação) a identidade do Ocidente Moderno Imperial (Kinoshita). É preciso estabelecer, pois, uma nova gramática do tempo para delinearmos um futuro diferente para a Idade Média. Eis algumas agendas que se impõem nesse contexto de suspeita: a desestabilização de identidades hegemônicas, o deslocamento do Cristianismo e a própria descentralização da Europa (Cohen, 6-7). Como se nota, ainda acreditando na força pedagógica da História, argumento que é urgente reavaliar a teoria da história da modernidade, bem como reconstruir novas imagens ‘medievais’ perpassadas por uma energia emancipatória. Necessitamos “escovar a História à contrapelo”, segundo aquelas palavras incisivas de Walter Benjamin. Sem perder de vista tal agenda interpretativa abrangente para a Idade Média, o artigo aborda três temas mais específicos: (i) no início defino alguns termos para (ii) depois tecer alguns comentários gerais sobre a hermenêutica do material histórico e do papel das mulheres no mundo medieval. Por fim, (iii) elaborarei quatro manifestações típicas da mística feminina no periodo histórico que se estende do século XI até o século XV.

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Docente da Radboud Universiteit Nijmegen- Holanda e da Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP.

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1. Definições e contexto: Idade Média na Europa Ocidental e a Mística feminina Antes de fornecer uma definição geral de palavras e conceitos, talvez uma rápida observação possa contribuir para com o desenvolvimento de uma ciência mais intercontinental. A história europeia parece até hoje intrigante para os historiadores e os cientistas das ciências humanas no Brasil. Por um lado, no campo econômico e social, há uma grande suspeita e distância em relação ao que poderíamos chamar de ‘patrimônio europeu imperialista’. Por outro lado, nas ciências como a história, teologia, antropologia, filosofia e ciências da religião, os clássicos europeus são constantemente invocados e, curiosamente, apenas uma menor atenção está voltada aos recursos intelectuais – e místicos – em seu próprio continente e de outros continentes como África e Ásia. Interligar pesquisas de diversos continentes seria, ao que parece, uma tarefa que contribuiria enormemente para a construção de uma ciência situada para além da ocupação colonial das mentes. Idade Média e mulheres A historiografia clássica se utiliza de uma periodização que compreende a Idade Média como o período que abrange os anos 330 até cerca de 1500 na Europa Ocidental. Entretanto, os desenvolvimentos dos últimos 40 anos no estudo do período medieval, especialmente aqueles realizados por mulheres, chamam atenção para a definição do termo "Idade Média" como uma conotação negativa, ao questionar a periodização convencional da história da Europa ocidental. Olhando para o período antes de 330 e depois de 1500, a “Idade Média” na Europa Ocidental se coloca entre o ‘declínio’ do Império Romano, por um lado, e a forte emergência dos Estados europeus imperiais e seu retorno filosófico para os clássicos, por outro lado. A Idade Média abrange, deste modo, o período de transição entre duas manifestações de dominação imperialista patriarcal e colonial. Tal verificação é importante, na medida em que aponta para as linhas imperiais mantidas no traçar da historiografia medieval. Descolonizar a Idade Média de tais linhas é tarefa urgente e acredito que um estudo sobre suas mulheres místicas pode-nos ser de grande valia neste aspecto. Quanto à posição das mulheres, podemos destacar dois aspectos notáveis: sabemos que no tempo da Roma Antiga, o “pater famílias” possuía o direito de matar filhas e também filhos com deficiência e abortar crianças que não eram desejadas. Sabemos igualmente que o período do Renascimento e o final da Idade Média, são caracterizados por um massacre organizado de grandes grupos de mulheres caracaterizadas como bruxas, em uma combinação de poder religioso e político, juntamente com uma colonização sangrenta da Europa continental. Além disso, as universidades – redutos de homens – propagaram uma certa forma de conhecimento e desenvolveram, desta forma, um grande poder político. Se este intervalo é chamado de Idade Média, é evidente que a periodização da história da Europa Ocidental é um resultado de uma definição patriarcal e imperialista. Nos últimos 40 anos, há uma publicação ampla sobre o período de 330-1500, especialmente por mulheres cientistas, a partir de uma perspectiva feminista. Elas mostraram que a influência das 28

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mulheres na vida social, política, religiosa e econômica nesse período foi bastante forte. Desde o século XI, mulheres se distinguiram pela auto-definição, auto-representação e autoautorização, incluindo a esfera religiosa, e se definiram como parceiras em posição equivalente a dos líderes poderosos do sexo masculino no campo político e religioso (Lerner, 46-64). Todavia, como diria Brecht, ‘a história é principalmente a história dos vencedores’: para a historiografia tradicional, estes séculos após a queda do Império Romano não foram considerados importantes pelo poder masculino. Desde o início da Idade Média, percebemos um poder político crescente das mulheres nas grandes decisões e disputas sobre terras, fronteiras e poder religioso. Por um lado, as mulheres da nobreza emergiram no campo político: muitas mulheres de diferentes estratos sociais possuíam um papel importante na cultura, na economia, educação e religião (Bynum). Efetivamente, por volta do século XI até do século XII, as mulheres preenchem os papéis que tradicionalmente foram atribuídos aos homens na história. As mulheres eram pregadoras e professoras, um papel assumido mais tarde pelo clero. Elas estavam na liderança de grandes mosteiros de poder religioso e político (Lerner, 99). Além disso, as mulheres lêem mais que os homens na Idade Média: leitura e escrita foram quase exclusivamente realizadas por mulheres. Como agora se sabe, a maioria dos homens eram analfabetos (Pernoud, 49). Em contrapartida, mulheres ensinaram meninas e meninos nos mosteiros. No período medieval, as mulheres ainda detinham uma grande potência econômica – possuíam cervejarias, fábricas, moinhos, empresas têxteis – e isso estava, em certas situações, relacionado com o seu poder religioso. Só aos poucos este poder vai desmoronar-se, já por volta do século XIV. As universidades que se iniciaram no final do chamado período medieval entraram em conflito com as mulheres. Em um constante exercício hierárquico de condenação, o conhecimento das mulheres não foi mais levado a sério, ao ser empurrado para fora do pensamento intelectual. Seu principal corolário é a vasta perseguição às assim chamadas 'bruxas' (ver Margarete Porete, Joana d'Arc e milhares de outras mulheres). A 'Mística feminina’ A palavra 'mística' na historiografia da Europa Ocidental se refere imediatamente a um grande número de nomes de mulheres e apenas a três notáveis nomes do sexo masculino (Ruysbroeck, Eckhart e João da Cruz). Isto torna evidente a importância das mulheres para a reavaliação e definição da vida religiosa nesse período. As mulheres místicas desempenharam um papel importante neste período em que o poder masculino na igreja foi devastado por conflitos internos e movimentos alternativos emergentes que foram considerados hereges. Nesse contexto conturbado, muitas mulheres levantaram sua voz e, portanto, possuem uma influência político-religiosa importante. Várias destas mulheres postulam-se como profetisas e fazem notáveis afirmações teológicas. Curiosamente, entretanto, o que elas proclamam não é geralmente definido como teologia, mas como mística. As mulheres desejam afirmar, com seu estilo próprio de falar, uma maneira distinta da religião proveniente da teologia clássica e querem dar a sua opinião em discussões teológicas. No entanto, os homens – para garantir a 29

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sua própria definição teológica – classificam estereotipadamente a teologia das mulheres como ‘mística’. A "mística", tal como é praticada por mulheres, é caracterizada por uma linguagem alegórica, uma linguagem de visões, uma linguagem poética, um modo de vida e espiritualidade, mas também por uma reformulação teológica da divindade. 2. As fontes e suas interpretações As fontes A origem do material sobre a ‘mística’ das mulheres é muito diversificado: muitos materiais são registrados por confessores e padres que investigavam se as mulheres em questão eram ortodoxas ou heréticas. É claro que há textos das próprias mulheres ou em seus contratos escritos. Esse material, contudo, é possível apenas para as esferas sociais mais altas. Existem também muitos arquivos de movimentos locais em diferentes cidades da Europa que não foram ainda pesquisados porque, afinal, estudar mulheres no período da Idade Média não é geralmente uma prioridade. A interpretação Existem diversas interpretações do fenômeno da mística feminina dependentes dos interesses ou da perspectiva dos investigadores. Estudos feministas das últimas décadas estão focados em uma abordagem crítica, tanto da perspectiva diacrônica quanto sincrônica do fenômeno medieval. Ciências humanas, de fato, nunca são objetivas e como aponta o paradigma hermenêutico, essas ciências são afetadas pelo olhar do pesquisador através dos séculos e da situação atual. Sendo assim, as definições sucessivas e a hermenêutica das fontes devem ser constantemente examinadas criticamente. É possível verificar, por exemplo, como os movimentos sociais, a busca atual pela espiritualidade e a teologia contemporânea estão mais do que nunca interessados na mística feminina. Esses lugares sociais da produção histórica pode levar, em muitos casos, a uma romantização de determinados dados. A forma do material A definição de ‘mística’ é dada usualmente a uma determinada forma e estilo de textos históricos, a saber, aqueles que compreendem visões, alegorias, metafóras e poesia em uma relação específica com o corpo. Centenas de mulheres entre os séculos XI e XV falam ou escrevem em forma de alegorias e discutem suas experiências visionárias. Por vezes, tais debates giram em torno até mesmo de visões que receberam numa idade muito jovem (cerca de 5 anos). Isso significa que esta forma literária foi considerada obviamente verdadeira em círculos cristãos, a fim de comunicar algo sobre o divino. Visões geralmente foram consideradas mensagens 30

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provenientes de Deus. Quando são inescrutáveis, a pessoa que recebe a visão é que deverá interpretá-la. As visões – compreendidas como contato imediato com o divino – são um meio, um estilo, uma forma para aumentar a importância do conteúdo. Não chega a ser surpreendente que as mulheres façam uso desta forma literária, afinal, no campo teológico, os homens normalmente eram aqueles que determinavam ‘a verdade’. Para as mulheres ratificarem e afirmarem a importância de sua voz, precisaram articular seus conteúdos dizendo que a palavra provinha diretamente de Deus. A visão, portanto, é um conceito estratégico para garantir à voz teológica feminina uma dimensão divina e, consequentemente, sua autoridade. As mulheres querem afirmar que sua voz não é o resultado de uma emoção descontrolada, mas que vem do próprio Deus. Trata-se, pois, de uma maneira de contestar a voz dominante. A hermenêutica da mística, a meu ver, deve decifrar precisamente estes códigos de modo que se faça justiça às mulheres místicas que, ao encontrarem uma audaciosa forma de expressão teológica, abriram uma possibilidade de influência na igreja e no mundo (Lerner). As alegorias e a poesia fornecem, ao mesmo tempo, chances para (i) experiências pessoais, bem como (ii) para uma multiplicidade de interpretações. Também é, por vezes, um modo de não precisar ser muito cauteloso para falar com clareza a respeito de posições políticas e religiosas. Com efeito, místicas femininas exercitaram de forma muito inteligente um poder dentro dos limites do que era possível para pessoas ‘de natureza feminina’. Nesse sentido, a mística é muito diversificada e não pode ser captada a partir de dados únicos. Há diferentes ênfases em estratégia e local: as manifestações e organizações diferem na Europa meridional e ocidental. A maioria das mulheres construíram círculos em torno delas que, ao longo do tempo, cresceram e deram-lhes acesso a indivíduos poderosos. Isso geralmente ocorreu, ainda que cautelosamente, através de confessores ou a partir do poder de seu mosteiro. 3. Mulheres místicas, seu contexto e sua influência entre os séculos XI e XV Nos últimos anos muitas pesquisas foram publicadas na área da mística feminina no período medieval. Seguindo tais estudos, é possível dizer que as mulheres místicas medievais tiveram um papel importante na vida eclesiástica, religiosa e também política e econômica. As mulheres se relacionaram com papas, bispos, teólogos e líderes políticos poderosos. Algumas, inclusive, fizeram isto numa idade muito jovem. Há vários escritos sobre a vida dessas mulheres, tecidos por suas próprias mãos ou por biógrafos de seu tempo, atraídos pelas próprias mulheres e a quem elas contaram suas visões. Não só medievalistas estão interessados na investigação do conteúdo de seus escritos. Também teólogos e teólogas, voltaram-se para as místicas devido as implicações teológicas de muitas de suas afirmações. Nas palavras teológicas dessas mulheres do passado, vemos linhas desenvolvidas por teólogas feministas do presente e, igualmente, por vários teólogos do sexo masculino: redefinição do divino, relação entre divindade e ecologia, a importância do corpo na relação com o divino. Muitas das declarações teológicas místicas que estão sendo trabalhadas de forma paralela por teólogos contemporâneos nos fornecem aberturas para um 31

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diálogo mais amplo com outras religiões e filosofias como o Hinduísmo e o Budismo. As ideias das mulheres místicas possuem, deste modo, um significado muito contemporâneo. Se neste artigo enfatizarei apenas quatro mulheres místicas (no interior de uma longa fila que haveria de ser considerada com mais detalhe), isso se deve precisamente pelos diferentes contextos em que elas funcionam enquanto protótipo. Portanto, o contexto social e econômico preciso em que cada mulher vai operar é de fundamental interesse. Seria, pois, equivocado tratar essas mulheres apenas como indivíduos ou exceções. Em outros termos: tais mulheres não são arquétipos, mas protótipos de diferentes contextos em que uma mística poderia ser ouvida e criada. Vivem em mosteiros, em beguinarias, em ordens terciárias. Vivem sozinhas, como leigas, viúvas ou, ainda, como mulheres casadas. Dependendo do contexto, pois, é de se esperar que tais mulheres praticaram várias estratégias para a sua própria auto-representação e auto-autorização. Vale ressaltar, assim, que essas mulheres são apenas a ponta de um iceberg, em uma ampla gama de possibilidades dentro da qual elas se manifestam. As mulheres eram líderes, profetisas, pregadoras, responsáveis da pastoral litúrgica, escritoras, teólogas. Todas essas funções estão encapsuladas pelo termo ‘mística’. Passemos a articular essa atuação contextual das mulheres a partir de suas múltiplas posicionalidades ou territorialidades: o mosteiro com Hildegard van Bingen; as beguinarias com Hadewijch de Antuérpia e Margareta Porete; as ordens terciárias e a prática de jejum com Catarina de Siena; a mulher intelectual leiga com C. De Pisan. Hildegard de Bingen2 (1098-1179): contexto do mosteiro Hildegard já ‘recebia’ visões na idade de 3-5 anos. Ao que parece, era uma mulher com problemas de saúde, mas que viveu 81 anos. Ela se apresentou na idade de 8 anos em um convento localizado próximo a um mosteiro beneditino de homens. Sua tia Jutta, era a líder do mosteiro feminino e introduziu Hildegard na música e na língua latina. Provavelmente, Hildegard trabalhou muito no jardim. Após a morte de sua tia Jutta, Hildegard foi eleita abadessa da parte feminina do mosteiro beneditino. Entretanto, após um tempo ela desejava operar de forma mais independente e assim decidiu criar, com suas irmãs, seu próprio convento em Bingen. Antes da difícil decisão – dada a resistência do abade do sexo masculino – Hildegard estava assustada e doente. Este padrão de doença em situações de temor já aparecera algumas vezes em sua vida (Lerner, 57). Não por acaso, ela censura a si mesma às vezes, quando acha que não poderia sustentar as críticas (Lerner, 51). Quando fundou o seu próprio mosteiro, muitos adentram ao conselho: Hildegard começa a desempenhar um papel importante na política e na igreja. Ela, então, escreve extensivamente em várias áreas: música (lembremo-nos de que ela foi uma compositora muito famosa!), textos sobre botânica, belos desenhos, tratados teológicos, visões, textos cosmológicos, interpretações da Bíblia. Ela se destacou por conta de sua erudição. Não por acaso, ela é a mística mais conhecida do século XII. Sua fama é tão grande que em 1918 seu

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Em 09 de maio de 2012 foi canonizada como santa e em 07 de outubro de 2012 como doctor ecclesiae.

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nome foi dado a uma estrela: asteróide 898 Hildegard, devido à importância cosmológica de seus textos. Além do reconhecimento de suas visões, ela indaga ao teólogo Bernardo de Clervaux quanto ao seu reconhecimento enquanto profetisa. A música que compôs está preservada e disponível até hoje, inclusive, em CD. Eis um pequeno exemplo de um de seus poemas: “Seja sol através de seu aprendizado Seja lua através de sua adaptabilidade Seja vento através de sua direção rigorosa Seja ar através de sua suavidade Seja fogo através da beleza de seu ensino.”

Como já dito, Hildegard era uma abadessa e abadessas tinham um grande poder no período medieval. Era até comum para algumas mulheres jovens serem líderes de um convento de freiras e homens, os chamados mosteiros duplos. Sabemos que no século XII, uma mulher de 26 anos, foi abadessa de um mosteiro duplo na França e recebeu o papa durante uma visita. Uma certa abadessa esteve a cargo de mais de 5000 homens e mulheres em um mosteiro duplo na França. Os membros do mosteiro declararam seus votos de obediência nas mãos dessa mulher (Pernoud, 94). Até o século XVI, as mulheres eram importantes para a compra e a venda de terras e propriedades, bem como para o fechamento de contratos. E esse dado vale tanto para mulheres comuns quanto para abadessas. A partir do século XVI, contudo, as mulheres deixaram de ser vistas como capazes de competência jurídica (Pernoud, 136). Hadewijch de Antuérpia (1200-1260) e Margarete Porete (1250-1310): contexto da beguinaria Um segundo grupo de místicas não está ligado aos mosteiros, mas às beguinarias (Begijnhof). Este fenômeno muito difundido em algumas partes da Europa Ocidental não é tão conhecido em outros países ou, por vezes, é mal interpretado. Duas mulheres beguinas bem conhecidas como místicas são Hadewijch de Antuérpia (1200-1260) e Margarete Porete (1250-1310). Elas fazem parte de um grande movimento leigo de mulheres que se desenvolveram desde o século XII nas cidades e no campo. Elas se chamavam Beguinas. Elas não viviam em mosteiros, mas individualmente viajaram por diversos países, ou viveram em comunidades e beguinárias. Até o século XVI na Europa Ocidental, este foi um movimento muito influente no âmbito religioso. Com as beguinarias, as mulheres criaram uma espécie de cidade dentro da cidade. A maioria das casas foram construídas em círculo com um grande pátio e apenas uma única porta de entrada para esta ‘pequena cidade’. Em seu interior, cada mulher tinha sua própria casa. As primeiras beguinas, muito provavelmente, eram mulheres ricas que não desejavam se casar e nem queriam uma vida monástica. Mais tarde vemos que há beguinarias com mulheres de todas as camadas sociais. Cada beguinaria era diferente. Existem, contudo, algumas características comuns: cada beguina trabalhou por seu próprio sustento; o grupo possuia estruturas sociais e democráticas; as mulheres eram economicamente independentes, autônomas e não vinculadas por regras 33

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religiosas. Havia uma senhora eleita que coordenava a beguinaria por um certo tempo e, assim, representava as mulheres no município. A Beguina se comprometia apenas em não se casar e ela poderia a qualquer momento sair da comunidade. Além disso, a comunidade nomeava ou expulsava os membros do clero com quem elas desejavam negociar. Beguinas traduziram a Bíblia e outros textos religiosos, lecionaram, cuidaram de doentes, venderam os seus talentos, tais como contabilidade, leitura e escrita. A mais antiga beguinaria está em Aachen, Alemanha (1230). A beguinaria de Breda, nos Países Baixos, data de 1254. Em relação ao clero, as beguinas tinham tanto aliados como inimigos. Desde seu início no século 13, elas foram perseguidas em muitos lugares. Em 1311, o Papa condenou as Beguinas, mas o movimento floresceu ainda mais. Há vereditos do Papa Clemente XI, em que a música é proibida para as mulheres porque ela prejudicaria sua ‘modéstia natural’. Beguinas foram proprietárias e tinham seus próprios negócios: indústria têxtil, padarias próprias, fábricas e cervejarias. Esses bens e alimentos foram repetidamente redistribuídos entre os pobres da cidade. Deste movimento, encontramos ainda resquícios, especialmente na Bélgica, Alemanha, França e Países Baixos. No século XVI, mais e mais restrições foram feitas para as beguinarias em relação à sua atividade econômica e cada vez mais passaram para o controle da igreja. Algumas mulheres beguinas foram queimadas na fogueira (como por exemplo, Margarete Porete). Hadewijch de Antuérpia é uma grande poetisa e mística do século XIII. Supõe-se que ela – e Margarete Porete – pertencia a este movimento religioso de Beguinas, mas na verdade ela foi uma beguina viajante. Hadewijch escreveu muitas cartas de amor, poemas e visões. Ela fala sobre o amor que é livre e orgulhoso e que cria autonomia e auto-consciência. Ela conectou canções religiosas com poesia dos trovadores daquela época. Ela se vê como uma noiva e amante de Deus, e descreve uma relação muito pessoal de amor com Deus que a leva a uma situação de libertade e auto-estima. Ela discute seus textos com 'amigas' que estavam em sua volta e que ela visitava em suas viagens. Sua viagens foram, provavelmente, de uma beguinaria à outra. Ela escreveu no flamengo antigo, mas é claro a partir de seus escritos que ela domina o latim e o francês e estava familiarizada com os escritos de muitos eruditos de seu tempo. Ela é uma inspiração importante para Ruysbroeck e Eckhart, dois importantes místicos do sexo masculino. Margarete Porete também escreveu alegorias sobre o amor e a razão. Seus livros foram lidos em muitos lugares. Depois de algum tempo, eles foram proibidos e Margarete Porete terminou na fogeira, sob pressão da universidade de Paris. Milhares de mulheres pertenciaram ao movimento de beguinas no período da Idade Média e há provas, em muitos arquivos, que foram uma séria ameaça para o clero do sexo masculino. Em muitas cidades da Bélgica e dos Países Baixos existem arquivos sobre este fenômeno importante, mas que ainda não estão pesquisados e analisados.

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Catarina de Siena (1347-1380): contexto das ordens terciárias No sul de Europa viveram mulheres místicas de uma maneira totalmente diferente. Na Itália, o movimento de Beguinas não era conhecido. As mulheres deste contexto são principalmente membros de ordens terciárias: trata-se de um movimento de leigos que está ligado a um movimento de mosteiro como beneditinos, agostinianos, franciscanos, dominicanos. Os/as terciários/as, no entanto, viviam em casa e não se deixavam enclausurar, ainda que usassem o hábito. Tais mulheres fizeram esta opção pela mesma razão que as beguinas: elas não quiseram se casar e, ao mesmo tempo, não desejaram as trancas de um mosteiro mesmo que mantivessem relações com este. Uma importante mística terciária foi Catarina de Siena no século XIV: ela é bem conhecida por sua firme vontade, sua liderança, sua forma extrema do jejum e a influência que tinha sobre o papado. O clero a chamava de arrogante. Nos textos que sobreviveram, podemos ler que ela até mesmo chama Deus a prestar contas, por não estar de pleno acordo com alguns ocorridos da época. Efetivamente, Catarina de Siena começava o jejum sempre que as coisas não aconteciam como ela esperava. Com seu corpo e a estrategia de jejum forçava imediatamente seu direito (Lerner, 57-58). O historiador Rudolph Bell realizou um estudo da vida de 261 mulheres místicas na Itália entre 1200 e 1800 que foram reconhecidas como santas pela Igreja Católica (Bell, 1990). Nessa sua pequisa, Bell conclui que 170 delas apresentaram sinais de anorexia. Uma dúzia dos casos são muito bem documentados e esta doença aparece de modo muito claro. As mulheres, de alguma forma, usaram a estratégia do jejum a fim de alcançarem seus direitos. Bell chama esse fenômeno de “sancta anorexia”: essas mulheres não possuem outra opção para se manifestar além de empobrecer seus próprios corpos. Elas vivem do pão e do vinho, especialmente o pão consagrado, a hóstia. É depois deste ‘santo consumo’ que as mulheres atingem visões. Curiosamente, esta situação foi vista como prova de santidade e suas visões foram consideradas divinas. Esta estratégia de empobrecimento do corpo se encaixa na preocupação medieval com alimentos. Carolyn Walker Bynum, em dois estudos convincentes, mostra que o alimento em seus extremos de festas e de jejum é um tema muito importante na religiosidade medieval. Catarina de Siena usou regularmente esta estratégia de jejum: para não se casar, para ser capaz de juntar-se a ordem terciária, para desafiar o Papa. Catarina de Siena tinha, por assim dizer, uma cabeça dura e não quis obedecer a ninguém. Ela foi depois canonizada, chamada professora de Igreja e Padroeira da Europa, as mais altas condecorações cristãs para se obter. Esta teimosia e estratégia de jejum usada por Catarina de Siena tem sido um modelo para as mulheres durante dois séculos. Na concentração do jejum foi focada a hóstia (Bell, 45). Jejum era uma maneira de levantar-se contra a posição social de obediência a fim de recuperar a independência (Bell, 80). A família observava o comportamento, por vezes bizarro, como algo não imediatamente sagrado. Assim sendo, muitas dessas mulheres foram queimadas na fogueira, porque as vezes não foram suficientemente inteligentes para agir de uma maneira correta em sua estratégia. Em outros termos, essas mulheres não estabeleceram a paz entre a alma e o corpo (Bell, 136). Portanto, anorexia é, nesse aspecto, também uma expressão de impotência feminina dentro de 35

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uma constelação sociocultural determinada. Mas apesar de tal impossibilidade no âmbito sociocultural, as mulheres desejaram controlar o próprio corpo e impor sua autoridade (Bell, 36). Algumas faziam jejum até que a morte chegasse; outras se curaram com a ajuda de suas irmãs companheiras. No fenômeno contemporâneo de anorexia nervosa, reconhecemos situações paralelas: controle sobre o próprio corpo, por vezes a partir do não aceitar seu corpo ou a partir da raiva. Pode-se perceber desde o estudo de Bell que muitas dessas mulheres místicas foram vítimas de violência doméstica ou violência sexual e de lá projetaram fantasias corporais em um pacote religioso: elas se identificaram com Jesus na cruz e com seu sofrimento, falaram sobre relacionamento amoroso com Jesus em termos sexuais (Bell, 146-150), sobre Jesus como noivo. Na confissão, elas usavam uma discussão teológica para lidar com o confessor. Algumas dessas mulheres comiam pouco para manter suas cabeças mais leves (Bell, 133). O sofrimento de Jesus é uma categoria central neste grupo de místicas. Catarina de Siena vê sua própria dieta como um desempenho heróico (Bell, 49). Ela responde principalmente à obediência e à disciplina que se espera dela e constrói um mosteiro nela mesma (Bell, 64-69). Algumas mulheres receberam permissão de papas e bispos para longos períodos de jejum (Bell, 109). Christine de Pisan (1363-1430): contexto da intelectual leiga Finalmente, quero destacar uma quarta linha de místicas em mais um contexto diferente. Como protótipo, refiro-me a Christine de Pisan. Na década de oitenta do século XX, o livro de Christine de Pisan – A cidade de mulheres – foi redescoberto na Europa e amplamente lido por mulheres cientistas, autores seculares, grupos de movimentos sociais e teólogas. Christine de Pisan ocupa um lugar especial na transição do final da Idade Média para o início do Renascimento. Ela é um protótipo de mulheres leigas que escrevem. Mulheres autoras na Baixa Idade Média, tinham que provar-se em três níveis: (i) o escrito é seu próprio trabalho; (ii) elas tinham direito ao seu próprio pensamento; (iii) seu pensamento está enraizado em uma forma diferente de conhecimento. Apesar disso, elas eram, por vezes, vítima de auto-subestimação e auto-censura (Lerner, 47-49). Christine de Pisan é vista por muitos como a primeira mulher na Europa que pôde sobreviver com as receitas de sua escrita. Ela representa, por assim dizer, o ponto culminante da escrita mais intelectual que foi usada por Hildegard de Bingen no século XII. Várias mulheres já tinham escrito, mas muitos textos foram escritos também por padres e confessores. Christine de Pisan é uma mulher casada que à primeira vista se apresenta não como mística. Alguns pesquisadores não reconhecem ela como mística porque ela foi paga por seus escritos. Ela mesma tinha tomado a decisão de sustentar a família com seus escritos e conseguiu atingir tal feito. Tal como Hildegard de Bingen, ela tem um estilo múltiplo: um número muito grande de poemas em diferentes formas, especialmente uma boa parte de baladas. Além disso, escreveu muitas obras em prosa. Ela participou de várias disputas intelectuais, particularmente a controvérsia em torno do Roman de la Rose, em que ela se ressentia da maneira humilhante com que mulheres foram retratadas. Nessas disputas, não 36

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evitava contestar lideres públicos. Muitas de suas obras são de natureza didática, dirigida aos príncipes com instruções sobre como governar para manter a paz. Ela também recebeu comissões para escrever obras históricas. Alocar Christine de Pisan no grupo de mulheres místicas se deve a três elementos: - Seus vários escritos se dão a partir de suas próprias experiências e expressam muitos dos seus sentimentos. Ela própria é a fonte de sua escrita. Isto é particularmente evidente nos poemas. Esta é uma característica de todas as místicas. - Christine de Pisan escreve em um estilo visionário, um estilo que é muito característico da mística feminina. Ela mesma esclarece a decodificação desse estilo estratégico. Diz ela: “estou sonhando, mas eu estou acordada!” - Ela também se aventura em debates explicitamente teológicos. Seu livro mais famoso – O Livro da Cidade de Mulheres – remete claramente sua inspiração no título do livro de Agostinho, A Cidade de Deus. Christine de Pisan resiste contra os duplos padrões, critica a igreja que perde a sua santidade pelo acúmulo de grande riqueza e outros excessos, e ela chama a responsabilidade dos titulares eclesiásticos a se comportarem melhor. Christine de Pisan interpreta de uma maneira nova e autónoma os dados bíblicos e os mitos gregos. Ela reage contra a misoginia e os estereótipos das mulheres divulgado por homens de seu tempo. Proclama três virtudes divinas – Direito, Justiça e Razão. Estas três virtudes femininas fornecem a ela o contrato para construir uma cidade onde as mulheres vivem de forma segura e estarão protegidas contra as alegações de homens. As virtudes fornecem respostas às suas questões e cada resposta é um bloco de construção para a cidade de mulheres. É um livro fascinante com ideias ainda muito atuais. Em nenhum lugar Christine de Pisan fala sobre o típico de uma natureza feminina: ela argumenta que as mulheres são iguais aos homens e como tal devem ser valorizadas. Apresenta-se claramente como uma leiga, uma mulher fora dos muros do mosteiro e das ordens terciárias. Christine de Pisan é uma grande admiradora de Joana d'Arc, embora intelectualmente se situem em pólos opostos. De Pisan depositava grandes expectativas em Joana d’Arc, considerando esta última como um instrumento de Deus. Ambas estão sob ataque dos intelectuais da universidade de Paris que tentavam eliminar a influência dessas mulheres, bem como as próprias mulheres. Christine de Pisan pode ser vista, como as outras mulheres mencionadas, um protótipo de grupos de mulheres que trabalharam de maneira semelhante e que moldaram sua resistência contra as visões predominantes de homens. Algumas conclusões A luta das místicas femininas acontece dentro ou na fronteira das instituições eclesiásticas em diferentes contextos. Um paralelo entre as mulheres nesses diferentes contextos é o apelo ético e teológico para uma forma de olhar diferente o mundo, a ética e a língua divina. Paixão de e por Cristo é o enfoque principal, mas, além disso podemos ver novas imagens da divindade. Algumas imagens utilizadas são muito reconhecíveis nos novos desenvolvimentos teológicos dos últimos trinta anos: um discurso metafórico no qual Deus é 37

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classificado como uma mulher, como amante, como mãe; uma maneira muito aberta de falar sobre o corpo sexual para aumentar a relação com o divino. Igualmente, há uma grande atenção à Trindade em que a relação entre as pessoas divinas são estados centrais e distantes das idéias da teologia clássica. Fala-se de um papel feminino na salvação e mesmo Jesus é muitas vezes retratado como mãe (Lerner, 90-91). É justamente esta criatividade teológica que vai ser penalizada nos séculos seguintes. A mística feminina e os conceitos estratégicos das mulheres no final da Idade Média – como visões, lidar com seus corpos, o uso de seu intelecto, seu próprio poder e auto-confiança para dar forma para sua própria vida – não serão mais possíveis a partir do século XV. De fato, uma forte ofensiva se inicia sob dois ângulos nos séculos XV e XVI: a partir da igreja e a partir das cidades em crescimento e dos estados. A ofensiva da igreja é dupla: por um lado, as mulheres que se unem em grupos são colocadas sob controle do clero: terciárias e beguinas são controladas e limitadas em seu comportamento. Por outro lado, há uma ‘purificação’ crescente e o clero mantêm um olho afiado para discernir se as mulheres são sólidas na doutrina ou precisam ser condenadas como bruxas ou hereges. Milhares de mulheres, então, morrem nas piras funerárias. Há aldeias na Alemanha onde, depois de uma purificação, só 1 entre 10 mulheres sobreviveram. Há também uma ofensiva contra a posição das mulheres a partir da sociedade em transformação: o poder das universidades está crescendo e as universidades exercem uma grande influência na vida política. O surgimento das universidades mantêm o conhecimento sob controle. Nesse ínterim, o conhecimento trazido pelas mulheres é visto como perigoso e o controle das mulheres aumenta. A igreja apoia temporariamente as universidades como um meio de manter a fé. Este foi realmente o caso, porque o objetivo principal das universidades no século XV não residia na aquisição de novos conhecimentos, mas na preservação do conhecimento existente e das doutrinas da igreja. As universidades tiveram muitos privilégios e poderiam funcionar como um Estado dentro do Estado. No tumulto da colonização e de cidades e estados emergentes, da Reforma e da Contra-Reforma, as mulheres foram mutiladas. A voz das mulheres não aparece mais tão claramente. Engenharia e racionalidade assumem o poder, visões se tornam perigosas ... Na Idade Média e no início do Renascimento, o contexto social e cultural determinará se os esforços das mulheres para adquirir auto-controle sobre sua própria vida e espiritualidade serão avaliados como sagrado ou histérico (Bell, 38). Quão lamentável seria se a historiografia aceitasse facilmente a determinação histérica. Referências Bell, Rudolph M. Sancta Anorexia. Vrouwelijke wegen naar heiligheid, Italië 1200-1800. Amsterdam: Wereldbibliotheek, 1990, 300p. Bynum, Carolyn Walker. Holy Feast and Holy Fast. The Religious Significance of Food to Medieval Women. Berkeley: University of California Press, 1987, 444p. Bynum, Carolyn Walker. Fragmentation and Redemption. Essays on Gender and the Human Body in Medieval Religion. Nova York: Zone Books, 1992, 426p. 38

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Cohen, Jeffrey Jerome. “Introduction – Midcolonial”. In: Jeffrey Jerome Cohen (ed.). The Postcolonial Middle Ages. Nova York: Palgrave, 2000, p.1-17. Dickens, Andrea Janelle. The Female Mystic: Great Women Thinkers of the Middle Ages. Nova York: Tauris, 2009, 248p. Furlong, Monika. Visions and Longings: Medieval Women Mystics. Nova York: Mowbray, 1996, 248p. Kinoshita, Sharon. “Deprovincializing the Middle Ages”. In: Rob Wilson & Christopher Leigh Connery (eds.). The Worlding Project: Doing Cultural Studies in the Era of Globalization. Berkeley: North Atlantic Books, 2007, p.61-75. Lerner, Gerda. The Creation of Feminist Consciousness. From the Middle Ages to Eighteenseventy. Oxford: Oxford University Press, 1993, 395p. Pernoud, Regine. Vrouwen in de Middeleeuwen, haar politieke en sociale betekenis. Baarn: Ambo, 1986, 224p. Petroff, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on Medieval women and Mysticism. Oxford: Oxford University Press, 1994, 235p. Pisan, Christine de. Het boek van de stad der vrouwen. Amsterdam: Feministische uitgeverij Sara, 1984, 262p. Wiethaus, Ulrike (ed.). Maps of Flesh and Light: The Religious Experience of Medieval Women Mystics. Syracuse: Syracuse university Press, 1993, 206p.

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PALESTRAS A MULHER EM CARMINA BURANA Eduardo Hoornaert (UFBa) 1. Acerca da Idade Média 2. Acerca dos goliardos 3. Acerca da mulher na Idade Média 4. A mulher em Carmina Burana 5. Abrindo um espaço maior. 1. Acerca da Idade Média Existem muitos preconceitos acerca da Idade Média. - O primeiro está na própria denominação. A Idade Media aparece como um tempo intermediário entre duas grandes épocas: o império romano e a modernidade. O termo aparece pela primeira vez em 1469, num escrito do bibliotecário do papa. Empolgado pela ideia da renascença, ele vê o período anterior como um túnel escuro entre duas eras resplandecentes, a antiguidade (Grécia, Roma, mas também a bíblia) e renascença (tempos modernos, ou seja, de renovação). Para ele, a renascença é uma revolução cultural. O termo Idade Média até hoje serve como saco de pancada dos progressistas. Fala-se em ‘obscurantismo medieval’, ‘atraso medieval’, decadência, trevas. Num flagrante erro de perspectiva, atribui-se à Idade Média a inquisição (que se desenvolve na idade moderna), a caça às bruxas (que vitimou 100.000 mulheres entre os séculos XVI e XVIII), o puritanismo (fenômeno da modernidade) e a repressão da sexualidade. - O segundo preconceito consiste em pensar que somos mais ‘avançados’ que os medievais. Fizemos enormes progressos em termos materiais e tecnológicos, mas a impressão que tenho é que perdemos em comunicação. Nasci numa cidade medieval (Bruges, conservada por ter ficado pobre no início da época industrial) e confesso que me sinto bem quando ando por essas ruelas estreitas, em que as pessoas devem ter vivido muito próximas uma das outras. Penso que não adianta fazer esse tipo de comparação. Melhor colocar simplesmente os medievais ao lado dos modernos, nem em baixo nem em cima (como fazem certos saudosistas). Um exemplo flagrante de nossa arrogância pode ser visto na urbanização do centro de Paris, onde a linda cidade medieval foi substituída por construções horrorosas, prepotentes e insípidas. Só se conservou a Notre Dame e a Sainte Chapelle. Isso é um exemplo que mostra onde estamos hoje em termos de cultura. - Um terceiro preconceito consiste em dizer que o Brasil é uma formação moderna e não medieval. Isso é verdade em termos cronológicos, não culturais. O professor Maurice lutou arduamente contra esse preconceito, e sempre repetia: temos de ativar ‘o intercâmbio literário medievo-moderno’. 40

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- Talvez a vida na Idade Media tenha sido mais alegre que na idade moderna. Insistimos demais no ‘cérebro calculador’, em detrimento do ‘cérebro sensível’. O riso medieval até hoje nos dá inveja. É o riso dos goliardos. 2. Acerca dos goliardos No início do século XIII surge, no cenário católico, uma estranha ‘ordem religiosa’, que venera Golias como patrono, como nos lembra o professor Maurice, que escreve que o nome teria vindo de Abelardo, um verdadeiro Golias da ciência livre a desafiar o Davi da ciência presa, professada pela igreja. Abelardo elabora ao mesmo tempo excelente teologia e canções amorosas. Ele é um estudioso sério e namora uma aluna. Abelardo é um paradigma trágico, pois não encontra um caminho dentro do labirinto eclesiástico. O século XIII é o tempo do florescimento de ordens religiosas. Nisso, a ‘ordo vagorum’ ao mesmo tempo destoa, problematiza e aponta para questões fundamentais. A igreja não entende essa ‘ordem’ e toma o caminho mais fácil, o de reprimir. A luta começa em 1231 e dura séculos. O clérigo vagante é banido do clero. Ele tem de raspar a cabeça para fazer desaparecer a tonsura. Ele não pode mais entrar nos conventos e desse modo vive ao longo dos caminhos, ‘fora da lei’ e livre que nem um pássaro no ar. Essa liberdade traz a pobreza, O goliardo aproxima-se dos saltimbancos, prestidigitadores, charlatões, acrobatas, adestradores de macacos ou ursos, bobos e cômicos, vive em tabernas e prostíbulos e tem contacto com mulheres da vida livre. No final do século XIV, goliardo significa dono de prostíbulo. Mas o pior castigo é a fome. Será por acaso que ele gosta de dormir em forno de padaria? Mas, por que tanto sofrimento? É que o goliardo é fascinado pela ciência. A ciência é um paraíso de liberdade e grandeza humana, contra o acanhamento da teologia dos conventos. Ele sabe que a ciência traz liberdade, mas encontra poucos professores livres. Então esse clérigo deixa o convento e anda pelo mundo à procura da ciência, ou seja, atrás de bons professores, que são inevitavelmente clérigos. Na época, todos os cientistas são clérigos, e eles enfrentam o problema do celibato. Mas o goliardo é teimoso, ele ousa mexer com as leis canônicas que proíbem o amor livre, uma das questões mais espinhosas do direito canônico. O celibato é protegido pela tonsura e pelo habito, mas muitos tonsurados andam pelo mundo sem exercer nenhuma função pastoral. Pois, na época, ser clérigo é ser alguém, é ser considerado culto e inteligente. A roupa de estudante é roupa de clérigo. Mas os bons professores são raros. Nem todos são como Abelardo. Ulrich von Hütten foge do mosteiro de Fulda, aparece em Colônia, Erfurt, Frankfurt e Bolonha, sempre à procura da ciência. Em 1348, o papa dá licença de sair do mosteiro por três anos para estudar. Aí muitos viajam a Roma e povoam as tabernas ao longo dos caminhos. A ‘libertas evagandi’ traz o problema da vida sexual e o problema da pobreza. Pois o monge fujão vai ao mesmo tempo atrás da ciência e atrás do evangelho. Ele diz: não me procure entre prelados nos palácios. Estou no caminho de Jericó, deitado ao lado da estrada, esperando o bom samaritano. O goliardo exerce um fascínio sobre os conventos e mosteiros. Os monges gostam quando um goliardo canta e dança no refeitório da abadia depois da janta. O abade fica revoltado, mas os monges se sentem atraídos. Mesmo prelados se sentem seduzidos. ‘In 41

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palatio ubique ressonat cantus’. O goliardo é uma presença trágico-cômica. Ele sabe cantar, ou seja, domina uma das fundamentais funções eclesiásticas, fundamento da liturgia: cantar. Sabe rir e exerce a irresistível atração da liberdade. As virtudes do goliardo contrastam com as virtudes cultivadas nos mosteiros, onde se valorizam as virtudes feudais: fidelidade (os fiéis), lealdade, voto perpétuo (juramento), exaltação da autoridade (abade), voluntarismo. O mosteiro exalta o ideal do homem controlado, discreto e afastado do mundo. Ele se prepara para enfrentar o sofrimento, não o prazer, fica mais ocupado com afazeres intelectuais e espirituais do que com os carnais. Na opinião do mosteiro, o goliardo é vagus, cupidus, amator, venustus, instabilis. Exatamente o contrário do mosteiro. O goliardo canta: Nunca erit habilis Qui non est instabilis

Por sua maneira de viver, o goliardo mostra que o convento é uma prisão: chato, hipócrita, falso, submisso, ignorante, parado. A vagância traz liberdade, novidade, alegria, ciência. Muitos entram nos mosteiros e depois se decepcionam. Eles têm e interromper o sono no meio da noite, o que é uma estupidez (o tema volta repetidamente em Carmina Burana). As vigílias, os jejuns, a rotina, a conformidade, a comida sem gosto, tudo é triste, monótono, permeado de hipocrisia. Mas para os eclesiásticos, os goliardos têm a marca de Caim na testa. A condenação eclesiástica, imprimida pelos bispos, os persegue o tempo todo. Rejeitado na portaria do mosteiro por ser ‘scolaris pauper et vagus’, o goliardo é visto como um morcego, rejeitado pelos bichos. (veja o morcego no bestiário editado por professor Maurice). Diante de tanta repressão, o goliardo provoca. Percebamos o tom provocativo na canção ‘in taberna quando sumus’ (CD 12). Ao mesmo tempo, ele cria uma capa dura de tenacidade na resistência. O goliardo diz que perdeu todos os livros nas tabernas, em ‘remissionem’ de comida e vinho. Perdeu também a espiritualidade. Trata-se de uma poesia ácida, dura, persistente. Qualificar essa poesia de paródia é dizer pouco. O goliardo não admite sentimentalismo e persiste até o fim, como se verifica num precioso documento da época. A última confissão de um goliardo (Waddell, ed. 1986, 183). O confessor diz que basta repetir as palavras do Credo e dizer algo acerca de cada ponto. Eis a resposta do penitente moribundo: Credo: no dado (do jogo) In Deum: nunca vi Patrem: já tive, mas perdi Creatorem: estou no poder dele Coeli: nunca pensei no céu, só penso em vinho Et terrae: aí está minha alegria Christum filium eius: gosto mais da taberna Unicum: os vinhos de Orléans, Rochelle e Auxerre são únicos Descendit ad ínferos: nunca vi Ad caelos: Sedit: ao lado de uma menina, pois é melhor na taberna do que ad dexteram patris.

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Venturi: aí eu gostaria de voltar. Em Paris há meninas bonitas. Credo: no vinho Spiritum sanctum: não conheço Ecclesiam sanctam: nunca vi Remissionem: sim, eu troco vinho por chapéu ou capa Et corporis: os prazeres do corpo eu adoro. No final, o moribundo acrescenta: O que mais me angustia, padre, é a vitam aeternam. Ela não tem o menor valor. Peço a Deus que me poupe da ressurrectionem. Vitam aeternam. Então me perdoe. Amén. Padre, terminou tudo. Reze por mim. (editado por Barbazon-Meón, iv, Paris, 1808).

3. Acerca da mulher na IM A Idade Média cultiva menos o pudor que a idade moderna. O historiador Norbert Elias mostra como os corpos ficam mais expostos, com menos privaticidade, na Idade Média (Elias, O processo civilizador, 1, 73 e 169). Não há ‘close’, não há ‘water close’ (WC). Não há lenço. O escarro, vômito, gordura da carne, a nudez e o sexo são mais expostos. Nos ritos do casamento, os noivos são levados até a cama nupcial e entram na cama na presença dos familiares e testemunhas. Ainda no século XVI (1530), Erasmo escreve um livro educativo para crianças de 8 a 10 anos (De civilitate morum puerilium), que traz uma conversa entre um rapaz e uma prostituta. O rapaz ‘educado’ aconselha a mulher a deixar a vida desregrada. Um texto como esse foi lido durante séculos, aparentemente sem provocar reações. A vergonha é um produto cultural dos últimos séculos, típico de nosso ‘processo civilizador’ (Norbert Elias). O puritanismo afasta os corpos. Os europeus diante do ‘abraço brasileiro’. Uma segunda observação: é difícil saber como a mulher se sente na sociedade medieval, pois só possuímos pouquíssimos textos escritos por ela. Os letrados são quase exclusivamente homens. Só conhecemos a mulher por meio de um discurso indireto. Como lembra o professor Alder Calado em seu trabalho sobre as beguinas, há distorções na documentação. Por sua simples presença, a mulher lembra que a humanidade é composta de dois gêneros, algo que o discurso masculino costuma esconder. O homem consegue escrever longos tratados em que a realidade dos gêneros não aparece. A mulher lembra que somos sexuados. Uma terceira observação: o panorama medieval feminina, tal qual aparece nos textos, é dominado por princesas e freiras. Só elas aparecem. A maioria das santas é da nobreza ou dos conventos, ou então ligadas a congregações masculinas (OSB). Aparecem as abadessas, pessoas poderosas. Algumas mulheres escapam, como Hildegarde de Bingen (faleceu em 1179), que escreve tão bem que se torna profetisa da igreja, ou Julian de Norwich (13431416) que se esconde sob um nome masculino e é uma mística de grande qualidade. Há ainda Matilde de Magdeburgo, Catarina de Siena, e poucas outras. Mas, para a mulher, é perigoso aparecer. Em 1310, Marguerite Porete escreve ‘Le miroir des simples âmes’, em que critica o comportamento masculino. Ela é excomungada e queimada. Igualmente vergonhoso (ainda para hoje) o destino dado a Joana d`Arc, que salvou a realeza francesa e lhe deu dignidade. Ela também acaba queimada sob a alegação que se veste em homem e ocupa um lugar 43

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reservado aos homens. Joana entrou no universo masculino e com isso ameaçou derrubar, sem o saber, uma série de leis que colocavam a mulher no seu ‘devido lugar’, como a lei da inferioridade jurídica, a falta de acesso ao patrimônio, a dificuldade de se ‘arranjar’ um casamento. O debate em torno do ‘Roman de la Rose’ (1230-1275), de 22.000 versos, uma das obras mais lidas e copiadas da literatura (200 manuscritos) ajuda a compreender a posição da mulher na ideologia medieval dominante. Nesse ‘romance’, principalmente na parte redigida por Jean de Meung, o encontro entre homem e mulher acontece dentro de um jardim fechado e altamente privatizado, um paraíso de prazer, com música e comidas oferecidas, fechado aos de fora. Dentro reina o amor, fora a vida cotidiana. O romance mantém silêncio sobre a casa, a cozinha, a lavagem de roupa etc. A dona de casa não aparece, nem as beguinas (professor Alder Calado), nem as beatas do Brasil. A luta pela sobrevivência não existe dentro do jardim das delícias do amor. É uma imagem aristocrática, em que a mulher funciona como ‘rosa a ser deflorada’. Há um fato estranho na história desse importante documento, um dos mais importantes de toda a literatura francesa: a igreja, tão ciosa em defender os bons costumes e a moral, nunca se pronunciou a respeito do ‘roman de la rose’ (passar a gravura do jardim das delícias). Mas esse romance não passa sem contestação. Em 1399 (mais de 100 anos depois da publicação do romance), se inicia a ‘querelle de la Rose’ com o ‘Épître au Dieu d’ amour’ de Cristina de Pizan (1364-1431). Trata-se da ‘primeira voz de mulher’ na literatura francesa (Simone de Beauvoir). Mais, estamos diante da primeira disputa escrita na literatura francesa. Cristina de Pizan se revolta exatamente contra a imagem da mulher como ‘uma rosa a ser deflorada’, uma flor intacta da primavera (virgindade). Isso nos leva ao tema seguinte. 4. A mulher em Carmina Burana Será que os clérigos vagantes quebram o imaginário do ‘roman de la rose’? O professor Maurice publicou 39 canções de Beuern. A grande maioria trata do amor, recorrendo a imagens que lembram o famoso romance: primavera, natureza intacta, flores (floret silva nobilis), tílias ao longo das alamedas, campos, prados, roupas brancas e imaculadas, lábios róseos, pele alva. O rapaz é um caçador na selva, ele penetra de espada em riste, procura ‘colher a rosa’ e deflorar as pétalas. A moça entra no campo deserto, na floresta escura, impelida pelo ócio. Ela é inocente, fica muito admirada quando aparece de repente o caçador. Ela é pastora inocente. Nas 39 canções só consegui encontrar uma (n. 16), em que parece que a mulher fala. Ela chora ‘me miseram’. Está grávida e não pode mais aparecer em canto nenhum, pois todos observam que tem o ventre crescido. Os pais mandaram o jovem para a França e ele tem de ficar em casa, lamentando o ‘pecado’ e chorando. ‘Ai de mim, que tristeza’. Ela se sente acanhada. Há ainda a canção 33 (Virgo dum florebam) que aparentemente expressa o pensamento de uma mulher, mas o tema me parece forçado. Ela penetrou só na floresta, fica sentada na beira de uma alameda de tílias e de repente aparece o caçador que a desnuda e deflora.

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Hoy e toe! Maledicantur tiliae Iuxta viam positae.

Ela lamenta: o jogo acabou (ludus completur) e curte a decepção. Parece-me um texto forjado. Talvez a canção 34 (Estuans interius) explica melhor o sentimento do goliardo, inclusive em relação à mulher. Essa canção apresenta muito bem uma filosofia da provisoriedade e do prazer passageiro, contra os temas de eternidade e espiritualidade vigentes nos mosteiros e na casa do bispo. Aí aparece o tema de Vênus: ‘onde Vênus impera, o labor é suave’, e ainda ‘todos os caminhos levam à câmara de Vênus’. A impressão que se tem é que os Carmina burana seguem o imaginário do ‘roman de la rose’. Não se fala em cuidados maternos, educação de crianças, cozinha, limpeza da casa, lavagem da roupa. Nada disso aparece nas canções. Os goliardos, enfim, permanecem clérigos, são da classe alta, mesmo vivendo como pobres. 5. Abrindo um espaço maior Tanto a dura experiência dos goliardos como os limites de seu comportamento diante das mulheres apelam para considerações mais amplas. Há quem diga que a experiência goliarda teria sido apenas uma aventura passageira, hoje desde muito varrida pelos ventos da história e que pode interessar como ‘divertimento’. Enfim, será que o movimento dos goliardo tem algo a nos dizer hoje? O mesmo se diga da ‘querelle des femmes’, que começa no século XIV e dura muitos séculos. Será que ela ainda significa algo hoje? Fica claro que a história dos vagantes nos obriga a estudar uma outra história da Idade Média. Com ela estamos diante do ‘reverso’ da história. Abandonamos a história de papas, bispos, abades, mosteiros, obediência, celibato, monaquismo, virtude, santidade, segurança, para estudar o outro lado: liberdade, procura do conhecimento, arte, música, sexualidade, insegurança, provisoriedade, pobreza, precariedade, tenacidade, sustento de cada dia. A relação entre homem e mulher está na mesma linha da relação do ser humano com a natureza em geral. Desse modo, o capitalismo entra no campo da visão. O homem tem de aprender a se aproximar da mulher, não numa perspectiva de exploração, mas numa linha de amizade, respeito. O encontro humano faz parte de inúmeros encontros que temos continuamente com a natureza. Como nos comportamos diante da natureza? Mulher e homem são chamados à simbiose, à relacionalidade, como diria Ivone Gebara. Na relação entre um goliardo e sua namorada na taberna persiste no fundo uma relação de classe. O goliardo, mesmo estando na taberna com uma mulher, permanece clérigo e tem comportamento de classe aristocrática. Isso se revela nas canções. Ao goliardo falta fundamentalmente o respeito pela natureza da mulher. Nesse sentido se pode dizer que o comportamento do goliardo, por contestador que seja, de certa forma já prepara o capitalismo. Ele demonstra, sem o explicitar, uma mentalidade desstruidora da natureza: a mulher é uma rosa a ser deflorada. O goliardo que se ‘aproveita’ da mulher na taberna é o antecessor daquele que, séculos depois, vai explorar o trabalho escravo dos índios e dos negros, matar e destruir. A razão é que ele só encara a natureza como fornecedora de bemestar e lucro para si. É importante falar claro: o erro do goliardo não consiste na relação sexual em si, mas na maneira em que se pratica essa 45

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relação. O pecado não está na relação com a mulher, mas na falta de uma redefinição dessa relação numa linha de respeito pela ‘natureza’. Eis, no fundo, a queixa de Heloisa a Abelardo: ‘você tirou proveito de mim, você me abusou’. Não se pode deixar de perceber a amargura da queixa da mulher grávida na canção 16. Penso que vale a pena relacionar o ‘erro’ do amor goliardo com o erro do atual capitalismo. São duas expressões do mesmo erro, que consiste em tentar ‘dominar’ a natureza em proveito próprio. Se o capitalismo provoca uma ruptura na troca material entre a natureza e a satisfação das necessidades humanas, o mesmo acontece com o encontro entre homem e mulher exaltado no ‘roman de la Rose’ e, afinal, no amor goliardo. O namoro goliardo não tem nada de inocente. Não é um passatempo fútil. Há de haver, em todos os relacionamentos entre homem e natureza, o que Marx chama ‘metabolismo’, Gebara ‘relacionalidade’, Heloisa ‘amizade’. Afinal, essas pessoas tão diversas entre si dizem a mesma coisa. Marx, Gebara e Heloisa dizem a mesma coisa. Eis o sentido do que a mulher revela nos versos dos Carmina Burana. Ela merece ser ouvida, mesmo nos dias de hoje. O estudo dessas canções apela para um fato novo na consciência coletiva, que ainda está longe de ser compartilhado por todos. Paradoxalmente, se pode dizer que figuras como Heloisa e as mulheres queixosas dos Carmina Burana preparam o socialismo do século XXI, que deverá integrar a relacionalidade entre homem em mulher da mesma forma em que integra a relacionalidade entre homem e natureza em geral. 6. Maurice Agradeço esta oportunidade para me encontrar com a memória do professor Maurice, meu amigo de longa data. Como escreveu o professor Chico Viana, ele tinha ‘uma alma goliarda’. Sem aparentar, Maurice era ‘um monumento de inventiva e erudição’, nas palavras do mesmo amigo Viana. Ele tinha a vocação de um ‘eterno pesquisador’, como sua esposa bem sabe. Seus quatro trabalhos são fundamentais, como comprova este seminário. Eles resistirão ao tempo, caso continuarmos a comentá-los. Maurice tinha intuição. Em seu livro ‘poesia medieval ontem e hoje’ (1998), ele demonstrou que a Idade Média vive na poesia popular de nossos dias. Há muito mais Idade Media no Brasil do que diz a vã filosofia. Maurice percebeu que vivemos em tempos de futilidades e ele repetia: temos de ‘promover o intercâmbio literário medievo-moderno enquanto é tempo’. Nisso ele lutou até o fim.

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MESAS-REDONDAS O MOVIMENTO DAS BEGUINAS: INTERFACES E RESSONÂNCIAS EM EXPERIÊNCIAS SÓCIO-RELIGIOSAS FEMININAS DO PRESENTE Alder Júlio Ferreira Calado (UFPB) [email protected] Introdução Como em outras incursões precedentes, também nesta, tratamos de revisitar o passado, a partir dos desafios do presente, e de olho no que o passado tem a dizer também ao futuro, como também costuma lembrar Eduardo Galeano. Nosso propósito de reavivar traços do Movimento das Beguinas surge da observação de impetuosas experiências sócio-religiosas protagonizadas, em distintas partes do mundo atual, por mulheres que se organizam em comunidades, em grupos, em movimentos, movidas pela sua fé cristã e pela sua vocação cidadã, numa perspectiva libertária. Referimo-nos a, por exemplo, desde experiências de religiosas inseridas no meio popular, no Nordeste brasileiro, sobretudo nos anos 70 e 801, ao não menos impetuoso movimento protagonizado pelas Religiosas dos Estados Unidos, organizadas sob a sigla LCWR (Leadership Conference of Women Religious).2 Nesse movimento relacional entre passado, presente e futuro, importa assinalar, pelo menos, um aspecto que só reforçou em nós o propósito de ensaiar uma analogia entre o Movimento das Beguinas e algumas experiências sócio-religiosas contemporâneas de missionárias, espalhadas pelo mundo. É bem o que nos ocorre a partir de um ponto extraído de um resumo cronológico feito por Katharina Wieacker, relativo a uma influente Beguina do século XIII, Mechthild von Magdeburg (1207-1282), onde se lê: 1260/1261 En un Sínodo diocesano el clero de Magdeburgo retiró el derecho de autoadministración y autodeterminación en cuestiones eclesiásticas a las beguinas en Magdeburgo y por lo tanto impedió la influencia de los dominicos y las subordinaron al clero parroquial. Era un intento de separar 3 espiritualmente a las beguinas del movimiento de pobreza.

Quem vem acompanhando experiências sócio-religiosas femininas contemporâneas, individuais (as investidas de silenciamento pelo Vaticano em relação, por ex., à religiosa e teóloga ecofeminista Ivone Gebara) e coletivas (sendo a mais recente e impactante a tentativa de enquadramento pelo mesmo Vaticano das atividades missionárias da principal organização 1

Cf. cf. por ex., REZENDE, M. Valéria. Vidas rompendo muros: pequenas comunidades religiosas inseridas no meio popular no Nordeste. Dissertação de Mestrado, João Pessoa, UFPB/PPGL, 1999. 2 Vide “website”: www.lcwr.org/ 3 Cf. WIEACKER, Katharina, in http://mechthild-von-magdeburg.de/spanisch/biographie.htm, Acesso em: 04/06/2012.

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das Religiosas dos Estados Unidos, afiliadas à Leadership Conference of Women Religious). há de perceber semelhanças significativas, guardadas as circunstâncias histórico-contextuais, entre tais experiências da atualidade e aquelas protagonizadas pelas Beguinas da Idade Média. Neste e noutros casos de experiências contemporâneas similares, observam-se, com efeito, traços comuns, tais como: a busca de pronunciar sua palavra, seja diante de uma Igreja controlada exclusivamente por uma pequena cúpula de homens (a hierarquia eclesiástica, a começar pelo Vaticano), seja frente aos poderes civis; traços comuns em relação ao empenho em buscar caminhos de autonomia; sua luta pela construção de outro mundo, possível e necessário, a partir do protagonismo dos “de baixo”, isto é, a partir dos excluídos, seja nas relações de espacialidade, de gênero, de etnia, de geração, etc., seja ao interno dos espaços eclesiásticos, seja no âmbito macro-social, em oposição ao controle das instâncias oficiais, civis ou eclesiásticas. A observação desses e de outros traços nessas e noutras iniciativas protagonizadas pelas mulheres de hoje, é que nos fez evocar traços vivenciados no e pelo Movimento das Beguinas. Haveria, mesmo, aí algum tipo de afinidade? Que outros traços comuns entre esses movimentos atuais e o das Beguinas é possível assinalar? Eis o que buscamos desenvolver, a seguir, começando por reavivar aspectos históricos do período em foco (séc. XII a séc. XV). Em seguida, cuidamos de recuperar ou de reavivar alguns elementos característicos do Movimento das Beguinas, alguns elementos históricos, principais características, suas figuras proeminentes, sua contribuição, também no âmbito macro-social, para além da esfera estritamente eclesiástica. No tópico seguinte, tratamos de, em meio a uma pluralidade de experiências femininas contemporâneas, animadas pela fé cristã, descrever aspectos emblemáticos de duas experiências densas na contemporaneidade: a das Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular (PCIs), no Nordeste do Brasil, sobretudo nos anos 70 e 80, e a experiência corrente vivida pelas Religiosas nos Estados Unidos, organizadas na LCWR. Por último, tecemos algumas considerações sobre eventuais afinidades entre as experiências de hoje e as do Movimento das Beguinas, não sem deixar de também reconhecer suas descontinuidades. 1. Baixa Idade Média: uma era grávida de alternatividade Ainda hoje ressoam, embora em menor grau, traços do injusto rótulo por vezes atribuído à Idade Média como uma era estritamente obscurantista – a famigerada “noite de mil anos”... Pesquisas históricas mais recentes vêm ajudando a desconstruir e a reparar esse viés reducionista. Com efeito, notadamente os últimos séculos da Idade Média – a chamada baixa Idade Média – se apresentam, antes, como um tempo “novidoso”, grávido de alternatividade; comportam traços surpreendentes, no que diz respeito ao multiforme protagonismo e inventividade então testemunhados por diferentes sujeitos (coletivos e individuais), dentre os quais aqui sublinhamos o protagonismo das mulheres orientadas por sua fé libertária. Um olhar crítico sobre os últimos séculos da Idade Média haverá, por conseguinte, de ensejar impactantes achados, inclusive a experimentados pesquisadores e pesquisadoras. Aqui 48

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evocamos aquela imagem bíblica do velho baú, do qual, a cada visita, se recolhem coisas velhas e novas. Isto para quem tem olhos para ver... Diante de um cenário hegemonizado, durante séculos, pela instituição eclesiástica e seus aterrorizantes aparelhos de opressão e repressão sobre os excluídos desse sistema – os pobres, as mulheres, os grupos, organizações, movimentos e figuras individuais que aspiram à liberdade, que não aceitam um sistema de subordinação nas relações humanas e sociais, no seu empenho em resistirem à bitola ou à régua evocando a imagem do aterrador leito do Procusto eclesiástico, por não corresponderem às medidas de sua régua, tornando-se assim alvo sistemático de suspeição, de perseguições, de condenações sumárias, como sucedeu durante o tenebroso período da Inquisição. A baixa Idade Média apresenta-se, pois, como um período de grande impulso renovador. Nele podemos perceber a presença de elementos que se antecipam a períodos posteriores. Séculos de reconhecida inventividade, fazendo aparecer fatos e situações que precedem, em séculos, a irrupção da Reforma e de outros traços caracaterísticos da Modernidade. Assim aconteceu em relação, por exemplo, a diversos movimentos pauperísticos – os Cátaros, os Valdenses, os Franciscanos radicais, os Fraticelli, os Goliardos (alvo predileto de um notável pesquisador da UFPB, o saudoso Prof. Maurice Van Woensel, bem como um tema de a ser abordado, neste evento, pelo historiador Eduardo Hoornaert, que coordena esta Mesa), etc.. Movimentos pauperísticos protagonizados, portanto, por vastas massas do povo dos pobres, animadas por lideranças proféticas a buscarem afirmar sua fé cristã por horizonte e caminhos opostos aos seguidos e impostos pela religião eclesiástica, tão distante do espírito do Evangelho. À riqueza e ao luxo da alta hierarquia eclesiástica e da nobreza, os movimentos pauperísticos opunham sua vida de simplicidade e de pobreza; aos complicados códigos canônicos, preferiam a transparência do Evangelho; à voracidade e avidez pelo acúmulo de bens materiais, preferiam a partiha fraterna dos bens e de sua própria vida em mutirão; aos lugares de honra e aos privilégios do poder, empenhavam-se no serviço fraterno das pessoas e grupos socialmente marginalizados; em vez de uma organização imperial de feição piramidal, como o Império Romano e outros impérios, lutavam por uma organização horizontal de sua vida social, econômica, política, cultural e religiosa. Sobre tais movimentos há uma relativamente vasta literatura.4 Os séculos característicos da baixa Idade Média constituem, com efeito, uma era de precursores e precursoras relevantes, especialmente do ponto de vista de sua criatividade cultural-religiosa, do que pode ser mencionado como um exemplo as interpretações formuladas por Joaquim de Fiore, quanto à idade do Espírito, e que tiveram ampla e duradoura influência entre os movimentos reformadores da época. No que tange à grade de valores, por exemplo, esses séculos comportam traços marcantes de inovação e de antecipação à Idade Moderna. Como ignorar sua ânsia de liberdade, de autonomia, de protagonismo, de autogestão, de valorização do vernáculo, e 4

Ver, por ex. algumas referências bibliográficas em CALADO, Alder Júlio F. Memória Histórica e Movimentos Sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa: Idéia, 1999).

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sobretudo de afirmação das mulheres como sujeitos históricos? Muito lhe tem a dever a Modernidade, sob distintos aspectos. Muito lhe deve o Movimento de Reforma cujas raízes estão fortemente fincadas nesse período. 2. Que traços mais fortes marcavam o perfil das Beguinas? Conforme o acima prometido desde o título, aqui tomamos como alvo de nossa reflexão apenas o Movimentos das Beguinas, também desse mesmo período. As Beguinas se apresentam, ao mesmo tempo, como resultado, expressão e protagonistas desse período histórico. Trata-se de um movimento impetuoso que se dá justamente numa atmosfera de adversidades aparentemente intransponíveis para os excluídos de então, ao ponto de se produzir em meio a uma sociedade que tinha ares de misoginia aí reinante. Impacta-nos, com efeito, a extrema capacidade de resistência das mulheres a um contexto tão adverso. Resistência por elas exercitada por diferentes vias, seja pelas veredas de sua inventividade cultural (as sábias), seja pela sua espiritualidade leiga (as místicas), seja pela sua capacidade de resistência material (por seu trabalho manual de auto-manutenção (as militantes, as guerreiras). Dessas formas de resistência, aqui nos limitamos à que combina o exercício de uma espiritualidade leiga com a sua capacidade de organização autogestionária a serviço dos excluídos daquela época (os pobres, os doentes, as mulheres abandonadas). As Beguinas constituem uma página relevante da história das experiências religiosas marcadas por uma espiritualidade vivida no feminino, em pequenas comunidades chamadas “Begijnhof”, “Béguinages”, conforme a região de sua atuação (Flandres, Liège, Bruges, Antuérpia, etc.), animadas por mulheres jovens e adultas, celibatárias, viúvas, algumas casadas, que, organizadas, sobretudo em meio urbano, combinavam uma vida de oração, de trabalho autogestionário com o serviço aos pobres, doentes e pessoas marginalizadas da época, alimentadas por uma espiritualidade singular, de caráter leigo. Há referências associando as origens das Beguinas a Lambert le Bègue, figura a quem também se atribui a fundação do Movimento dos Begardos, uma versão masculina de semelhante experiência, formada por pregadores errantes, no século XII, na Bélgica, a denunciarem profeticamente os desmandos do clero, e pregando uma conversão ao Evangelho e ao estilo de vida das comunidades cristãs primitivas. Há, contudo, quem entenda diversamente, as origens das Beguinas, a exemplo de Alain de Libera, que situa o início do Movimento das Beguinas, nos arredores de Liège (Bélgica), por volta de 1210. Segundo este mesmo autor, o Movimento das Beguinas tinha suas singularidades, tais como: não tinha um santo fundador, não buscava autorização da hierarquia eclesiástica, não tinha uma constituição ou regulamento, não fazia votos públicos, “seus votos eram uma declaração de intenção, não um comprometimento irreversível a uma disciplina imposta pela autoridade, e seus membros podiam continuar suas atividades normais no mundo”. O Movimento das Beguinas respondia a um forte anseio de seus membros: tendo em vista as relações então dominantes, nas esfera sócio-política, no terreno das relações de gênero, nas relações de vida religiosa, em todas sentindo-se sufocada pela dominação masculina, as Beguinas procuravam, explicitamente ou não, um estilo de vida que lhes 50

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permitisse uma múltipla autonomia: em relação a um marido, em relação ao patrão, em relação à autoridade oficial, em relação à autoridade eclesiástica, em todas essas esferas, reinando a figura masculina... Tendo origem na Bélgica, as Beguinas foram expandindo-se pelos Países Baixos, por áreas da Alemanha e da França, preferindo atuar no meio urbano, onde respiravam um ar de relativa liberdade (em comparação com o meio rural daquela época). José Comblin assim a elas assim se refere: As “beguinas” eram moças que não queriam entrar no mosteiro, queriam dedicar sua vida ao serviço de Deus e do próximo. Até os 30 anos de idade viviam na casa de uma “beguina” mais velha. Ao completarem 30 anos, passavam a viver sozinhas numa casinha. Dedicavam a vida ao trabalho e ao serviço dos pobres, doentes ou anciãos. Realizavam exercícios de piedade em conjunto, mas cada uma tinha sua vida independente. Formavam às vezes ruas inteiras de casinhas semelhantes. Em certas cidades formavam como que uma cidade dentro da cidade (“Begijnhof”, “Béguinage”).5

Este mesmo autor aí faz também referência a estimativas quanto ao número de beguinas. Por essa região elas foram espalhando-se, aos milhares, havendo quem estime terem alcançado uma população de 200.000 beguinas, num universo estimado à época em torno de 20 milhões de habitantes. Eram mulheres que, não preferindo contrair laços institucionais orgânicos com a Igreja institucional, nem professar votos formais e definitivos – algumas o faziam a título particular, sem torná-los públicos - desenvolviam atividades sócio-religiosas, formavam uma espécie de leigas consagradas, como se diz hoje. Combinavam atividades devocionais com trabalhos manuais e, sobretudo, o cuidado com os pobres e os doentes, os rejeitados daquela sociedade. Chama a atenção o fato de que, nos primeiros tempos, as Beguinas ressoavam para as forças dominantes apenas como uma experiência beneficente e útil, ao alcance de seus olhos inquisitoriais. À medida, porém, que as Beguinas vão se consolidando organicamente, trabalhando sua identidade de mulheres livres – em relação ao machismo familiar, ao machismo clerical e ao machismo de outras instâncias oficiais -, passaram a sofrer leituras pejorativas até começarem a ser perseguidas pela instituição eclesiástica, ao ponto de, em 1311, terem sido condenadas como hereges, no Concílio de Viena (1311). Aí tiveram lugar as famosas “Clementinas”, como ficaram conhecidas as condenações feitas pelo Papa Clemente V contra as Beguinas e contra os Begardos, em cima de elementos aludidos em seus dois Decretos “Ad nostrum” e “Cum de quibusdam mulieribus”. Em ambos, o Papa Clemente V buscava lançar suspeitas em relação às Beguinas (donde a expressão “de quibusdam mulieribus” – “sobre certas mulheres”...) e aos Begardos, olhos fitos no conjunto dos movimentos pauperísticos. O Papa Clemente V temia tais movimentos precursores da Reforma, inspirados que eram em figuras proféticas como Joaquim de Fiore, que, em sua teologia, sustentava a famosa interpretação das três idades, na história do Povo de Deus, ao deduzir da sucessão das 42 gerações citadas no relato bíblico da genealogia de Jesus (cf. Mt 1) três épocas distintas: a idade do Pai, a idade do Filho e a idade do Espírito Santo, 5

COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998, p. 126

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correspondendo esta a um tempo de liberdade. Justamente um valor a ser reprimido, ante os olhos dos hierarcas. Não é por acaso que, numa carta enviada ao bispo de Cremona, o Papa Clemente V expunha sua veemente oposição contra “os que desejam introduzir na Igreja um tipo de vida abominável que eles chamam de liberdade do espírito”... Daí para a oficialização de uma caça às bruxas foi um passo, culminando nos processos mais aviltantes da condição humana, protagonizados pela tenebrosa Inquisição. Inclusive várias figuras beguinas, entre as quais Margarida de Porète. Além desta, são várias as figuras de Beguinas: desde a precursora Hildegard de Bingen, passando por Matilde de Magdeburgo, por Gertrude de Hefta, Marie d´Oignie, Matilde de Hackeborn, Beatriz de Nazareth, até Hadewijch de Antuérpia e a própria Marguéritte de Porète, de algumas das quais nos ocuparemos, a seguir, de modo a destacar aspectos de seu respectivo legado. (cf. COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998: p. 125-129). Começamos pela figura de Hildegard de Bingen (Alemanha) uma beneditina que viveu entre 1098 e 1179, considerada uma precursora das Beguinas, ao menos no que toca ao reconhecido potencial intelectual, como escritora, como compositora, como filósofa e como mística. Como abadessa beneditina, Hildegard de Bingen foi também fundadora de alguns mosteiros. Como compositora, é de sua autoria um dos mais antigos drama litúrgico, “Ordo Virtutum”, além de mais de 70 poemas e cantos litúrgicos Escritora prolífica, escreveu obras teológicas e textos de temas medicinais e de Botânica. A ela é atribuída um número expressivo de cartas. Fala-se em três centenas! Fato curioso e atual é o anúncio pelo Papa Bento XVI de que, ainda este ano, Santa Hildegard de Bingen será proclamada Doutora da Igreja... (cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Hildegard_of_Bingen). Notícia que reforça suas multifacetadas potencialidades, que atraíam, em seu tempo, a admiração de papas, de bispos, de príncipes... Uma segunda figura de beguina – esta já não uma precursora, mas, antes, uma beguina propriamente dita – diz respeito ao nome de Matilde de Magdesburgo. Também alemã, nascida em Magdesburg, que viveu entre 1207 e 1282. Sua biografia resultou fundamentalmente de seu famoso livro A Luz Resplandecente da Divindade, (em alemão, “Das flissende Licht des Gottheit”), cujo manuscrito foi encontrado no século XIV, escrito num Alemão popular da época, e não em Latim, como era o hábito das escritas eclesiásticas. Um escrito que ela vai compondo, a partir de suas visões, que ela começa a registrar, já à altura dos seus 43 anos, por recomendação de seu confessor. Diferentemente do estilo convencional, o seu se acha bastante inspirado no que caracteriza o Cântico dos Cânticos, o que provoca escândalo ao clero e à alta hierarquia de então, não bastasse o fato de tratar-se de uma mulher. (cf. www.europsy.org/marc-alain) Nascida quase meio século depois, merece igualmente destaque a beguina Marguerite Porète (1260-1310), por seu precioso legado de mística, de perfil profético e de mártir. Sua prematura condenação à fogueira – aos cinqüenta anos! – não é algo casual. Um testemunho eloqüente de seu perfil místico e profético pode ser encontrado por meio de sua obra Le miroir des âmes simples et annéanties. Um exemplar desta obra secretamente guardado por séculos, foi recentemente (1945), num mosteiro de Monte Cassino.6 6

Cf. www.europsy.org/marc-alain

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Hadewijch de Antuérpia, outra beguina que se tornou célebre, sobretudo graças à sua capacidade intelectual. Foi desbravadura no uso vernáculo em que produziu textos de reconhecido valor, tendo sido, não por acaso, considerada uma das fundadoras da íngua flemenga, uma das primeiras referências no cultivo da língua. Característica que cultivou conscientemente, ao empreender vários textos no vernáculo, diferentemente da tendência da época, sempre mais aberta ao Latim enquanto língua oficial. Não correspondia ao propósito de Hadewjich, que preferia comunicar-se na língua de sua gente, por meio da qual socializava sua produção. Não menos importante foi a contribuição – talvez a que mais devamos destacar, dentre todas, ainda que todas devam ser entendidas de modo entrelaçad0 – das Beguinas no campo da experiência mística. Área em que também foram profundamente emblemáticas, sobretudo graças à vivência de uma nova espiritualidade, profundamente marcada por um estilo leigo. Não por acaso, foi no campo dos leigos e das leigas, que mais influência exerceram as Beguinas. Assim a elas se refere uma analista; Dans la spiritualité féminine, une évolution bien plus étonnante au cours de la seconde moitié du XIIe. siècle permet aux femmes d'échapper à la négation et au silence.Des groupes de béguines se constituent aux PaysBas,se consacrant au travail et à la prière ; le phénomène alla de Rhénanie en Italie, avec des formes diverses. La prédication franciscaine s'adressait délibérément aux laïcs,et les femmes font nombre,dans un climat d'exaltation qui va parfois jusqu'au paroxysme. C'est dans ce domain, très largement, que la parole des femmes va désormais se situer.

Forte, também, durante longo período, a influência recíproca entre a mística vivida pelas Beguinas e a exercida pelo dominicano Mestre Eckhart (1269-13), dominicano que ensinou na Universidade de Paris, por dois períodos. Isto se deu seja em razão do perfil de pregador de Mestre Eckhart que se dirigia aos leigos, seja também pelo fato de um enorme contingente de mulheres, em razão das massivas mortes dos homens envolvidos em guerras, em cruzadas, etc. Este e outros detalhes e circunstâncias é que ajudam a melhor compreender o perfil da proposta do Movimento das Beguinas, em especial seu propósito alternativo, razão por que, como lembra Régine Pernoud, “Le mouvement des béguine séduit parce qu´il propose aux femmes d´exister n´étant ni épouse, ni moniales, affranchie de toute domination masculine”.7 Com efeito, há quem sustente que as Beguinas não tinham propriamente uma “Madre Superiora”, preferindo uma “Grande Dame”, eleita para alguns anos. Cada comunidade de Beguina define seu próprio estilo de vida. Cultivavam um especial apreço ao trabalho como um meio de sua emancipação econômica. Cultivam os saberes médicos bem como as artes. De um número considerável de beguinas que se tornaram mais conhecidas, aqui nos limitamos a apenas esses nomes, com o propósito de destacar-lhes as principais contribuições, tanto as de caráter mais diretamente eclesial, quanto as de um alcance social mais pronunciado. 7

Régine PERNOUD. La Vierge et les saints au Moyen Âge

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Comecemos por estas últimas – as de caráter sócio-histórico. O Movimento das Beguinas constitui um marco relevante histórico-social, podendo ser destacados, de passagens, os seguintes pontos, neste âmbito: - seu aporte inventivo como sujeitos históricos (individuais e coletivos) numa época marcadamente recheada de prevenções de caráter machista; - seu lugar de protagonistas relevantes nos processos de mudança, no que se refere a sua contribuição no mundo das letras; - seu respeitável aporte no que tange a suscitação de valores alternativos á grade de valores então hegemônica, seja na esfera social, seja no âmbito econômico, seja na esfera político-cultural: compromisso com a causa libertária dos excluídos, autonomia, liberdade, autogestão, alternatividade quanto ao uso do vernáculo, entre outros valores. No caso específico do âmbito econômico, importa tomar em consideração elementos relevantes ligados à sua automanutenção. Trabalhavam em atividades diversas, tendo suas próprias oficinas de tecelagem; cerâmica, copistas (num tempo em que, não havendo imprensa, tinhase que copiar os livros) Não menos relevante foi seu papel instituinte no tocante às suas atividades, do ponto de vista cristão, razão por que aqui destacamos algumas de suas contribuições: - no questionamento profético (explícito e implícito) em relação ao monopólio teológico-pastoral da alta hierarquia eclesiástica MASCULINA; - sua escolha estratégica de inserção religiosa fora do controle institucional eclesiástico; - sua postura de priorização do espírito do Evangelho e do Seguimento de Jesus, à luz de um Francisco de Assis, de uma Clara, etc.; - sua dedicação à causa libertadora dos excluídos do seu tempo; - seu estilo “novidoso” de articular espaços de individualidade e espaços comunitários, como sendo ambos fundamentais à formação humana e cristã; - seu empenho formativo, numa perspectiva de alternatividade, implicando no exercício de uma espiritualidade leiga. Não é por acaso que a hierarquia eclesiástica vê com desconfiança e desconforto o Movimento das Beguinas, pelo fato de esse movimento aprsentar claros traços de autonomia, seja do ponto de vista social (organização em pequenas comunidades fora do cotrole eclesiástico), seja do ponto de vista econômico (organização pelo trabalho autogestionário), seja do ponto religioso (não pertencer a conventos nem a congregações) Apesar de, e para além das perseguições, as Beguinas sobrevivem, até hoje, não sem fazerem concessões, passando a serem aceitas como pessoas que cuidavam de asilos de moças pobres. Donde ainda hoje a presença de várias experiências de “Béguinage”, na Bélgica, por exemplo. 3. Experiências sócio-religiosas contemporâneas, protagonizadas por Mulheres Em todas as épocas, sempre é possível observar-se comportamentos individuais e coletivos de transgressão ao establishment, por mais ocultos e invisibilizados que se pretenda mantê-los. Onde há regras estabelecidas, há também transgressão a essas regras. Onde há 54

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dominação, sob diferentes formas, também há resistência, também sob diferentes formas. “Pensamento único” absoluto desponta como algo impossível. Sempre há quem, de algum modo, a ele escape. Assim, no caso da dominação reinante na baixa Idade Média, assim também no caso das formas de resitência opostas pelos movimentos pauperísticos e pelo Movimento das Beguinas. De modo semelhante, nos dias de hoje. Ao “pensamento único” civil-eclesiástico escapam iniciativas libertárias, seja no campo macro-social, seja ao interno dos espaços eclesiásticos. Na contemporaneidade, há um leque de casos ilustrativos de tal resistência. Também no caso das Mulheres organizadas em grupos e associações de caráter religioso. Incontáveis são as formas de resistência ao monopólio clerical ainda reinante na Igreja Católica. Há relatos de experiências múltiplas, tanto no plano individual quanto na esfera mais coletiva. Desde as formas moleculares de resistência – inclusive aquelas tendo lugar ao interno mesmo de mosteiros e conventos femininos, até as formas de resistência mais visíveis e coletivamente assumidas. Durante os anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II (1962-1965), em especial na América Latina, sob a influência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Teologia da Libertação – duas experiências fortemente latino-americanas -, tiveram lugar relevante experiências significativas de alternatividade ao modelo eclesiológico dominante. O processo de construção e de acompanhamento da Conferências Episcopais LatinoAmericanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979) propiciaram um importante reviravolta de expressivas forças eclesiais, conhecidas ora como “Igreja dos Pobres”, ora como “Igreja na Base”, entre outras. Tratava-se, então, de buscar vivenciar o espírito do Concílio Vaticano II, bem expresso por pontos tais como o esforço de renovação das estruturas eclesiásticas, o protagonismo do Povo de Deus (ao qual deve estar suboridanada a hierarquia – é esse o sentido da Colegialidade!), a abertura da Igreja ao mundo moderno, a outros sujeitos históricos – o diálogo fraterno com os demais cristãos de outras denominações, com os não cristãos (Ecumenismo e diálogo inter-religioso). Abertura da Igreja ao diálogo com as ciências humanas e sociais, a renovação litúrgica, inclusive da adoção do vernáculo, o retorno às fontes de nossa Fé, donde a importância da Sagrada Escritura, bem como outros pontos. Ocorre que, mesmo ao interno de respeitáveis referêncais da Teologia da Libertação, a percepção das mulheres (na Igreja e na sociedade) era pouco ou nada existente. Nelas até se falva, mas não se trata propriamente de uma palavra de Mulher, sem contar o enorme risco de outros sujeitos pretenderem falar pelas Mulheres, tornando algo dispensável sua própria palavra. No caso das CEBs e das PCIs (Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular, isto representou – e segue representando! – um enorme desafio, por diversas razões: - Se o Concílio Vaticano II apresentava, antes da hierarquia, o Povo de Deus como principal protagoista da caminhada da Igreja, como entender que tão pouca ou nenhuma mudança concreta se tenha passado, a não ser como exceções, em função da boa vontade e do compromisso de algumas figuras de bispos e de padres mais próximos do povo dos pobres? - Em especial na América Latina, quase todas as experiências pastorais mais representativas do espírito do Vaticano II, de Medellín e de Puebla eram protagonizadas, em 55

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grande maioria, pelas mulheres (estas, nas CEBs, chegavam constituir, em diversos casos, em torno de 80|% de seus membros), por que então dos processos de decisão elas estão fora? - Se os novos tempos apontavam para uma presença mais concreta entre os pobres, por força inclusive da evangélica opção pelos pobres, quem eram esses fundamentalmente, senão as mulheres, em sua maioria? - No n. 30 do Documento de Puebla, estão elencados os traços mais tocantes do rosto dos excluídos da América Latina, dentre os quais: os pobres, os índios, os negros, os camponeses, os operários, os jovens... Aguçando o nosso olhar sobre esse quadro, percebemos que, nesses e noutros segmentos, as mulheres formam a maioria. O compromisso com a causa libertadora dos pobres passa, sobretudo, pelo assumir das lutas libertadoras das mulheres, dentro e fora dos espaços eclesiais. À medida que uma parte das religiosas e de leigas iam participando dessas trincheiras, ligadas à “Igreja na Base” – nas Comunidades Eclesiais de Base, as Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular, no Conselho Indigenista Missionário, na Pastoral da Terra, na Pastoral Operária, na Açõ dos Cristãos no Meio Rural, na Ação Católica Operária, na Pastoral de Juventude do Meio Popular, na Pastoral dos Migrantes, na Pastoral da Mulher Marginalizada, na Pastoral dos Pescadores, nos Centros de Defesa dos Direitos Humanos, na Comissão de Justiça e Paz, no Cenrro Ecumênico de Estudos Bíblicos, e em outras atividades semelhantes, referenciadas pela Teologia da Libertação -, passavam a compreender, a partir de sua prática, que não podiam silenciar as injustiças, sob pena de cumplicidade, partissem elas das autoridades do mundo civil ou da hierarquia eclesiástica. Não se tratava apenas de denunciar tais injustiças de que cotidianamente eram – e seguem sendo – as mulheres, dentro e fora da Igreja. Urgia avançar para ousar dar passos concretos na direção de sua superação. Sempre a partir do denso aprendizado experimentado em sua prática pastoral junto com o povo dos pobres, em especial as mulheres, passaram a entender a necessidade de irem construindo alternativas moleculares a esse modelo. Nesse sentido, passaram a investir mais e melhor em sua formação permanente, assumindo um olhar crítico em relação às instâncias e métodos de formação propostos pela instituição eclesiástica, em seu atual modelo. Ao mesmo tempo, cuidaram de assegurar tal investimento formativo quanto às instâncias civis oficiais. Outro passo relevante nesse processo de formação contínua foi o de investirem fortemente em sua organização em rede. Já não se querem pessoas conscientes, mas isoladas, nem grupos bem preparados atuando às soltas. Percebem que é de seu esforço organizativo em rede que resulta a força de sua união e de sua capacidade transformadora, tanto dentro quanto fora dos espaços eclesiais. É assim que passaram a agir, ainda que de forma bem incipiente, nos anos 70 e 80, as religiosas participantes das Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular. Estas eram formadas por religiosas de diferentes congregações que, ousando romper os muros de suas respectivas instituições, tiveram a coragem de passar a morar na zona rural ou nas periferias urbanas, em meio ao povo dos pobres, passando a assumir um estilo de vida simples, buscando manter-se pelo próprio trabalho. Algumas seguiram aceitando ajuda de suas congregações. Outras ousaram dispensá-la. 56

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Outra característica importante das PCIs era o fato de priorizarem as atividades diretas junto com o povo dos pobres, inclusive aquelas e aqueles que não costumavam frequentar os templos. Embora prestando eventuais serviços à Paróquia, esta não constituía sua prioridade, o que lhes permitia mais liberdade de ação, e menos controle clerical. Se já era forte a resistência ao espírito do Concílio Vaticano II, por parte das forças conservadoras, tal resistência se fortaleceu de modo crescente, a partir do pontificado do Papa João Paulo II. Com a contribuição efetiva da Cúria Romana, em especial da contribuição do então Cardeal Ratzinger, arquitetou-se um verdadeiro desmonte das forças progressistas da Igreja Católica, do que se chama “Igreja dos Pobres” ou “Igreja na Base”, recorrendo-se a uma série de medidas punitivas, restritivas e de evidente controle de caráter conservador, tais como: - silenciamento e outras medidas punitivas contra os teólogos da libertação; - inibição das atribuições das conferências nacionais e continentais de bispos; - intervenção em organizações autônomas da vida religiosa; - advertência aos bispos simpáticos da Teologia da Libertação; - monitoramento, fiscalização, enquadramento ou fechamento de institutos de formação na linha da Teologia da Libertação (o fechamento do ITER, em Recife, foi um caso emblemático); - política ultra-seletiva de nomeação e transferência de bispos; - apoio aberto a movimentos reacionários e conservadores (Opus Dei, Legionários de Cristo, etc.); - reforma do Código de Direito Canônico e superdimensionamento do Catecismo da Igreja Católica. A despeito de toda essa estratégia de desmonte, cumpre reconhecer, de um lado, os limites daí resultantes para as forças eclesiais identificadas com a “Igreja na Base”, inclusive as PCIs e grupos similares, e, por outro, da capacidade de resistência de outras forças, a exemplo de parte considerável das Religiosas dos Estados Unidos, afiliadas à Conferência da Liderança das Religiosas (LCWR), que reúne milhares de religiosas, atualmente sendo alvo de perseguição pelo Vaticano. 3. Interfaces e ressonâncias do Movimento das Beguinas em experiências sócio-religiosas femininas do presente Não se poderia esperar – e não o prometemos – a verificação apenas de meras afinidades entre organizações atuando em espaços e tempos remontando a séculos. Cada época comporta características singulares. Ao mesmo tempo, também pode comportar um certo grau de afinidades, de interfaces e de ressonâncias, sob alguma perspectiva. Quanto às dissemelhanças, além dos respectivos contextos históricos, convém destacar, o perfil mais agressivo das forças hostis de então, sua abrangência aterradora. Mais: não dá para minimizar o poder tenebroso da forte carga de misoginia com a qual as mulheres, em especial o Movimento das Beguinas, tinham que lidar. Com relação a semelhanças, a interfaces e possíveis ressonâncias de uns sobre os outros sujeitos históricos aqui cotejados, teríamos a destacar os seguintes traços agrupáveis 57

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em três eixos: um referente às suas formas de organização; outro mais ligado ao lugar em todos é assugarado ao processo formativo; e um terceiro, mais atinente às suas atividades de visibilização e enfrentamento ante as forças hegemônicas, em cada uma das épocas contempladas. Com relação ao eixo organizativo, podemos destacar os seguintes pontos comuns tanto ao Movimento das Beguinas quanto a experiências sócio-religiosas femininas do presente; - opção por critérios próprios de iniciativa relativamente autônoma de organização, de modo a livrar-se das amarras institucionais dominantes; - preferência por organizar-se em pequenas comunidades no meio popular; - adoção de um estilo simples de vida, mais próximo do modo de vida dos pobres; - investimento em sua automanutenção (sempre que possível), por meio de trabalhos manuais e artísticos, evitando assim laços de dependência econômica. - vivência de critérios horizontais de tomada de decisões, pela via de deliberações colegiadas, em vez de decisões verticalizadas; - atuação em rede, em vez de limitar-se cada grupo apenas a si mesmo. Quanto ao eixo formativo, há claros sinais de alternatividade em relação à formação convencional assegurada pelas instâncias eclesiásticas oficiais. Deste eixo vale destacar, por exemplo: - empreender um processo formativo que parta das experiências concretas da vida cotidiana, em suas mais diferentes dimensões, em vez de superestimar-se ou limitar-se aos conhecimentos acabados, vindos de cima para baixo ou de fora para dentro; - exercitar uma formação que se aplique a conectar constantemente a Palavra de Deus e a realidade concreta do dia-a-dia; - superar o hiato formativo convencional entre pensar e agir, buscando conectar, na experiência da vida, as dimensões afetivas, a cognição, a dimensão da vontade e a dimensão da prática; - priorização do esforço criativo, de mudança contínua, em vez de mera acomodação ao já estabelecido, para o que vão encontrar nas artes um elemento impulsionador extraordinário; - aplicação ao conhecimento dos instrumentos de dominação das forças adversas: a familiarização tática com estatutos, códigos, linguagens, idiomas, como ferramenta de contraposição e de superação do establishment. No tocante ao eixo de sua visibilização e mobilização frente às forças adversas, vale destacar, por exemplo: - profunda inserção no meio dos pobres, não apenas como tática, mas como convicção de que eles constituem seus verdadeiros aliados, inclusive em momentos de tensão; - notável discernimento quanto aos momentos de avançar e de recuar, a depender da correlação de forças domomento; - potencialização de suas estratégias por meio de encontros periódicos de avaliação e de planejamento. João Pessoa, junho de 2012. 58

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LINGUAGEM MÍSTICA ERÓTICA MEDIEVAL: ASPECTOS PROPEDÊUTICOS Anderson D’Arc Ferreira (PPGF- UFPB)1 [email protected] I. Introdução “pictura est laicorum literatura” (O Nome da Rosa, Primeiro Dia, sexta)

Durante alguns anos de minha vida essa frase de Umberto Eco passou despercebida. Quando de meus contatos com as Igrejas Históricas de Ouro Preto e Mariana, no Estado de Minas Gerais, estudando elementos de Arte Sacra, pude entender o real significado das imagens, pinturas, esculturas, enfim, dos elementos pictográficos no imaginário das pessoas que se adentravam nos ambientes sacros. Somente depois desse impacto estético e imagético violento com relação ao Barroco Mineiro é que as imagens iconográficas começaram a se tornar foco de certa atenção em meu cotidiano. Contudo, esse interesse era meramente pessoal e descompromissado com a academia, suas regras e estruturas. Mais de vinte anos depois desse primeiro impacto com o Barroco Mineiro, através de conversas com as Professoras Suelma de Sousa Moraes, Maria Simone Marinho Nogueira e Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne, colegas com as quais tenho travado debates muito frutíferos acerca do medievo, fui provocado a repensar alguns elementos estéticos dentro da Idade Média e me deparei com a necessidade de pesquisar de forma mais detalhada a Mística Medieval. Duas esculturas vieram-me de imediato à mente e foram o ponto de partida para esse trabalho: a escultura da Beata Ludovica Alberoni, feita por Gianlorenzo Bernini, que se encontra em Roma na Cappella Altieri (San Francesco a Ripa), feita por volta de 1671-74; a escultura de Santa Teresa d’Ávila, uma escultura de Bernini feita por volta de 1645 a 1652, que se encontra na capela Cornaro, na Igreja de Santa Maria Vitória, em Roma. A primeira nos mostra a Beata Ludovica deitada em um leito, em estado de êxtase. Seu corpo se posiciona meio de lado no leito, sua cabeça se reclina no encosto do leito e suas pernas apresentam-se meio dobradas. Seu rosto modificado, parecendo estar ofegante, e sua boca entreaberta nos apresentam um semblante transfigurado pelo prazer. Sua mão direita acaricia seu seio como se estivesse vivenciando um gozo, um orgasmo. A segunda imagem a de Santa Teresa, nos apresenta a Santa da Igreja apoiada em uma pedra mediante o apoio de sua mão esquerda, as pernas suspensas, o corpo meio arqueado, a cabeça pendendo para o lado esquerdo, o rosto com semblante altivo, jovial, sua boca entreaberta. A sensação é a de que a Santa está sendo consumida por um gozo ininterrupto que lhe consome todas as forças e a envolve por completo. Ambas as imagens, hodiernamente, poderiam ser enquadradas dentro de um conjunto de imagens extremamente eróticas, isso se as mesmas não estivessem narrando um momento íntimo de cada uma dessas religiosas com o Divino. Efetivamente, a 1

Anderson D’Arc Ferreira é Doutor em Filosofia, Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba e suas pesquisas centram-se nos estudos relativos à Filosofia Medieval.

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forma com que cada uma dessas religiosas descreveu em seus escritos seus contatos míticos com a divindade se assemelham às reações carnais do gozo quando ocorre o encontro entre a amante e amado. Isso não seria de todo diverso e estranho para os observadores atuais caso o amado descrito pelas religiosas não fosse Deus. Foi Teresa d’Ávila, foi uma mística cristã do século XVI, quem nos diz acerca de seus anseios: “toda a miséria do presente é suportável pela esperança do beijo divino”. Através das discussões com as professoras acima mencionadas algumas perguntas se apresentaram como inquietações contundentes à minha mente: Como a expressão de contato com o divino pode ser descrita em uma linguagem erótica? Como podemos narrar as experiências subjetivas que temos com o sagrado mediante o uso das expressões que usamos para descrever o prazer que sentimos quando chegamos ao ápice de uma relação carnal? Qual é a relação entre o amor e a carne quando efetivamente se pretende dar conta de expressar o contato mais íntimo de nossa alma com a divindade? Qual é o limiar que me diferencia o gozo do êxtase? Nosso presente trabalho não pretende dar conta de responder a todos esses questionamentos, mesmo porque alguns deles ainda se constituem de fortes indagações presentes em minhas indagações. O que iremos desenvolver aqui é tão somente o início de uma investigação que pretende, de forma mais apurada e sistemática, dar conta de responder aos questionamentos acima descritos. Para que isso possa ocorrer entendemos ser de fundamental importância compreender o que significa uma linguagem mística erótica e como ela se insere no medievo cristão. Para tanto nossa reflexão terá de partir de um breve delineamento do que seja a mística cristã, como ela se estrutura no medievo e como ela se estrutura como uma linguagem usada pelas religiosas desse período. Iniciemos nossas pesquisas. II. Caracterizações Propedêuticas da Mística Cristã Medieval Para que compreendamos o lócus no qual se insere a linguagem mística erótica do medievo é necessário estabelecer a compreensão de certos elementos basilares do que seja a mística, especificamente daquilo que devemos entender por mística no contexto cristão do medievo. Dentro da tradição dos primeiros padres do cristianismo o termo ‘mística’ está inserido dentro do movimento iniciado por Fílon de Alexandria o qual se denomina de ‘gnose’ 2. Esse 2

Fílon de Alexandria é um filósofo judeu-helenístico nascido por volta do ano 20 a.C. e falecido no ano 50 d.C. Dentre sua imensa contribuição para o cristianismo patrístico e a formação da doxologia cristã primitiva está o fato de que ele é iniciador do movimento exegético que será adotado pela Escola de Alexandria, mas especificamente aquilo que foi desenvolvido por Orígenes. Sua maior contribuição está na tentativa de harmonizar a filosofia grega com os dados da revelação hebraica. Suas influências filosóficas perpassam o platonismo tardio, o estoicismo, o neoaristotelismo e o neopitagorismo. Sua interpretação exegética permite a instanciação do método alegórico. Esse método busca aquilo que está oculto nas escrituras sagradas, ou seja, busca símbolos e conceitos de verdades morais, espirituais e metafísicas que estão implícitas no texto literal. Assim se instancia seu movimento denominado de gnose, uma aproximação da revelação judaica com concepção da teoria das ideias de Platão, cujo objetivo era levar os homens a uma verdadeira realidade acessível somente através do contato direto da alma humana com a emanação divina. O objetivo da gnose é fazer com que o homem possa voltar-se para a dimensão superior e divina que transcende sua própria alma. Esses movimentos

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movimento foi caracterizado pela mescla de aspectos filosóficos, de herança grega, com elementos religiosos, de herança hebraica. Contudo, a linha da qual irá derivar o maior peso semântico na extensão do conceito de mística no medievo é a herança grega. O termo mística, dentro do contexto cristão, na literatura medieva, foi primeiramente usado por Pseudo-Dionísio Areopagita. O contexto de surgimento desse termo ocorre quando o referido autor fala do conceito de ‘teologia mística’. Em suas palavras, a respeito do que seria essa ‘teologia mística’: “perfeito conhecimento de Deus que se obtém através da ignorância, em virtude de uma união incompreensível” (De div. Nom. VIII, 3). Mesmo dentro desse contexto cristão onde o termo é usado pela primeira vez, observamos várias relações derivadas do conceito grego. O termo ‘mística’ usado no âmbito reflexivo do medievo é derivado do termo grego ‘mystérion’, que em sua tradução para a língua portuguesa torna-se a palavra ‘mistério’, que quer significar certa cerimônia religiosa secreta. Mas a esse conceito temos a junção de outro, o termo grego ‘mystikós’, que em sua tradução para a língua portuguesa torna-se a palavra ‘místico’, ou seja, aquilo que é relativo aos mistérios, culminando na noção de que esses conceitos nos remetem a um significado de algo que ocorre ‘escondido’ ou mesmo que seja algo ‘secreto’. Tal derivação e junção conceitual nos permite inferir que oo termo ‘mistério’ associa a noção de ‘mística’ a algo considerado como obscuro, algo que é impenetrável pelas faculdades cognitivas humanas, algo que o intelecto humano não tem a capacidade de conceber, quer esse movimento ocorra no mundo natural, quer no mundo sobrenatural. Se seguirmos o percurso que até o momento delineamos podemos entender que o conceito de ‘misticismo’ está ligado à certa noção de uma experiência mística. Essa noção dentro do ambiente critão também pode ser entendida como sendo oriundo de uma experiência religiosa. Essa realidade de uma experiência religiosa de contato da alma humana com certa emanação divina pressupõe que algumas palavras devam ser usadas usadas para tentar dizer algo em relação à vivência dessa experiência mística, por exemplo, os conceitos de felicidade, gozo, fruição, salvação, iluminação, êxtase, transbordamento do coração, retorno ao ser, esvaziamento, arrebatamento, consciência do todo, etc. É nesse contexto que devemos entender que, em muitos casos, a noção de ‘misticismo’ irá tentar explicar a conduta humana antes e depois desse contato de nossa alma com o inefável, com a divindade. Na literatura mística cristã raramente podemos ver uma descrição de como se obter esse contato místico, essa fruição, felicidade ou gozo que relata o encontro de nossa alma com a divindade, mas, efetivamente, temos inúmeros relatos do momento e dos sentimentos vividos por essas almas que se encontraram com os influzos da emanação divina. O que efetivamente o fenômeno místico cristão quer significar é, primeiramente, um movimento da alma para um objeto que está além dos limites da experiência empírica. Dentro são possíveis mediante, por exemplo, a junção da noção do Logos Divino hebraico com a noção do Mundo das Ideias de Platão, ou, de outra forma, a junção dos dados da Revelação com as ideias acerca da alma, sua origem e movimentos expressas no livro Timeu de Platão. Irineu de Lião será um dos responsáveis pela importação da noção de gnose para o ambiente cristão. Nesse momento o cristianismo irá reivindicar para si o título de verdadeira gnose. A busca por esse sentido oculto, mas correspondente à verdade, e, por conseguinte, emanado do contato da alma humana com as emanações divinas, estará expresso em todos os movimentos cristãos e heréticos expressos desde os padres do período apostólico até as formulações de consolidação da dogmática cristã, como podemos observar no sistema de Agostinho de Hipona.

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do modelo do cristianismo a mística se enquadra dentro da relação com o “mistério” de Cristo, ou seja, ela busca a relação, conforme nos é relatado no Novo Testamento, com o desígnio divino “de reunir todas as coisas em Cristo” (Ef. 1,9-10; Cl 1,20-27). Vejamos a primeira dessas passagens: “9dando-nos a conhecer seu desígnio secreto, estabelecido de antemão por sua decisão, 10que haveria de se realizar em Cristo ao cumprir-se o tempo: Que o universo, o celeste e o terrestre, alcançassem sua unidade em Cristo.” (Efésios 1,9-10)3. A dimensão mística do cristianismo acontece em geral na comunhão, ou seja, na experiência onde o homem põe dentro de si o corpo de Cristo, mediante a ação do espírito Santo, para poder ir de encontro ao Pai. Nesse sentido a experiência mística do cristianismo é um caminho para a união da criatura com o Criador. Essa união acontece mediante uma experiência religiosa, mística. É aqui que devemos entender a mística como sendo o caminho para com a união com Deus, o caminho da salvação que, na ética cristã, e mediante uma prática austera, cultiva-se a presença e a pertença na e da união com o Divino. A vivência da experiência mística cristã é uma experiência de cunho contemplativo frente à beatitude na medida em que estar com a divindade significa a posse direta dos atributos divinos, como o belo, o verdadeiro, o absoluto. A vivência da experiência mística nesse ambiente específico pode ser entendida como uma postura, como uma busca, como um estudo, como uma atitude. Todas essas posturas se enquadram dentro daquilo que o mundo cristão comumente denomina de ‘mística’. Segundo Smith, a noção de mística cristã: é para ser descrita mais como uma atitude da mente, uma tendência inata da alma humana, que busca transcender a razão e atingir uma experiência direta de Deus, e que acredita que é possível para a alma humana estar unida com a Realidade Última, quando ‘Deus deixa de ser um objeto e se torna uma experiência’. Misticismo tem sido definido como ‘o sentimento imediato da unidade do eu com Deus (...) é o esforço para estabelecer a imediaticidade da vida em Deus como tal – nesta embriaguez-de-Deus, em que o eu e o mundo são igualmente esquecidos, o sujeito conhece a si mesmo para estar na posse da maior e mais completa verdade.4

O perfil dessa mística cristã, entretanto, não deve ser considerado como um movimento único e uniforme. No período patrístico, onde a mística surge no contexto supracitado de cunho neoplatônico, oriundo da tradição da gnose de Fílon de Alexandria, teremos, nos relatos produzidos pelos Padres cristãos, uma tríplice acepção do termo: bíblica, litúrgica e espiritual. Passemos, brevemente, a esboçar alguns elementos dessa tradição relevantes para nossa pesquisa atual. 2.1. Elementos propedêuticos da acepção de ‘Mística’ no período Patrístico Na mística do período patrístico evocavam-se alguns aspectos centrais, a saber: o mistério da Escritura, a mística litúrgica, a visão espiritual da totalidade do existente, a mística da luz e a mística das trevas. Por mistério da Escritura devemos entender todo o movimento 3

Todas as citações bíblicas que trazemos nesse trabalho foram obtidas mediante a versão da Bíblia da edição da Bíblia Peregrino, Editora Paulus. 4 SMITH, 1980.

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que narra que a Bíblia é, por essência, mística, portanto, misteriosa. Dessa noção surge a característica de meditação acerca da Palavra Divina, ou seja, a necessidade da busca do escondido/misterioso que se encontra sob o texto sacro. Essa prática de alguns padres do período apostólico e do início das Escolas Catequéticas faz nascer a noção de ‘interior’, visto como subjetividade, e de uma contemplação adorante. Um exemplo claro dessa vertente pode ser visto na herança textual e interpretativa do método da Escola de Alexandria, mais especificamente nos textos, traduções e comentários realizados por Orígenes. A mística litúrgica desenvolveu uma linha um pouco diversa. Nela existe uma dicotomia em relação às concepções gregas e cristãs. A contraposição que se instaura ocorre no choque da noção cíclica do tempo grego com a noção cristã que cria uma visão da temporalidade mediante a instanciação da história no tempo, associando, contudo, a essa noção, a dimensão da eternidade. O mistério está em entender a contraposição entre a eternidade e a finitude. Os ritos que começam a ser desenvolvidos darão ênfase a como o eterno se torna finito sem perder sua eternidade, ou seja, darão ênfase ao mistério da encarnação de Cristo. Outro elemento a ser considerado para o período é o da visão espiritual da totalidade do existente. No cristianismo que se figura desde o início das comunidades cristãs percebemos as influências da noção de theoria platônica. A filosofia grega impactava o ambiente místico e religioso de todo o Império Romano, e com os cristãos primitivos isso não foi diferente. Desde a formação das comunidades cristãs depois da morte dos discípulos, os cristãos viram-se diante da pergunta de qual seria o locus da experiência com o divino: intelectual, conceitual, imagética, mediada ou direta? Diante das várias respostas um aspecto irá se perpetuar: a noção de ruptura do véu da realidade que dará acesso à ‘totalidade do ser’. Essa noção tomada pelos cristãos fará com que se rompa com a união intelectiva grega e instaure-se a união com uma realidade ‘espiritual’, misteriosa, que ultrapassa a condição de descrição da racionalidade, portanto, uma visão mística. As sucessivas visões de como se poderia viver a relação com a divindade não pararam nas supracitadas descrições. O adensamento da relação do humano com o divino propicia o surgimento de uma mística da luz e de uma mística das trevas. A mística da “luz” deve ser vista como a revelação cristã que ocorre através da noção do Espírito e dos vários graus em que ela pode ocorrer. Nesse sentido essa revelação ocorre tendo em vista a suspensão das faculdades humanas, das mais simples até o esvaziamento total de todas as faculdades humanas, quer sensoriais, quer intelectivas. Essa noção de tomada completa do humano pelo contato com o divino, com suspensão de suas faculdades, será instanciada pelo conceito de êxtase. Essa noção está intimamente ligada à gnose neoplatônica e pode ser vista nos diálogos dos padres do deserto ou nas conversões de vários dos membros mais ativos das Igrejas Orientais. Já a mística das “trevas” deve ser vista como um novo grau em relação ao anterior, conforme o que nos é descrito por Gregório de Nissa, autor que nos relata tal mística mediante a descrição de três graus de subida em direção a Deus: 1) a luz que nos dá a purificação para que possamos estar diante de Deus; 2) uma contemplação dos inteligíveis que transcende os sentidos e aquilo que podemos apreender; 3) mediante as trevas é introduzia outra via, a via do amor, ou seja, o verdadeiro abandono dos parâmetros intelectivos e a busca da fruição junto a Deus. 63

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Podemos entender esses dados descritos até aqui como sendo o primeiro momento de busca da identidade do cristianismo. As reflexões e discussões que perpassaram esse período demonstram que mediante a origem do cristianismo narra a vivência de homens e mulheres que buscavam um encontro com o Cristo, ou seja, buscavam ter uma experiência íntima de Deus. Essa experiência de Deus deve ser entendida como a busca de uma síntese entre uma percepção humana, de um lado, e uma fé que avança exponencialmente para além dessa percepção sensível, de outro. Diante disso o que temos que observar é que essa experiência de Deus não é um sentimento simples ou mesmo o conjunto de sentimentos que se poderia ter mediante a presença de Jesus. O que essa experiência íntima, mística, reflete, efetivamente, é a síntese de todas as faculdades humanas, todos os sentimentos humanos com a fé cristã, a pertença a Deus. Diante do exposto podemos estabelecer que a forma da cristandade entender a possível experiência com Deus ocorre sempre de forma indireta, ou seja, essa experiência é transmitida através de sacramentos, de sinais que são interpretados na e através da fé. Essa será a herança da mística patrística para a mística na Idade Média. Se essa herança da mística patrística oriunda do cristianismo primevo pode ser sentida na mística desenvolvida na Idade Média, ainda nos restam alguns elementos fulcrais para entendermos o que ocorria no medievo. Para que isso ocorra é necessário compreender a relação dicotômica entre a noção de interior e a noção de exterior. 2.2. Elementos primevos da dicotomia interior versus exterior na mística cristã medieval No âmago da cristandade a voz de São Jerônimo nos coloca a seguinte questão: “à pergunta sobre o que é mais importante para que haja um ser humano, Platão responde que é o cérebro; Cristo, que é o coração”. Por mais que tal indagação possa nos parecer distante da realidade hodierna, seus ecos podem ser ouvidos numa frase que nos parece esclarecedora acerca da importância do interior e de sua primazia no âmbito da mística cristã desenvolvida na Idade Média, a saber: “Agostinho estabeleceu, frente ao ceticismo antigo, a absoluta realidade da experiência interior (na sua prefiguração do cartesiano cogito, ergo, sum). Mas imediatamente tem lugar a volta para a metafísica: as veritates aeternae são as ideias na consciência absoluta de Deus.”5. Quando pensamos no centro da experiência mística cristã pensamos na dualidade ‘eu’ versus ‘mundo’. O que a experiência mística quer provar é justamente o oposto, ou seja, ela pretende dar conta de suprimir essa dualidade (eu x mundo). O que deve estar presente em nossa mente é que a noção cristã da experiência mística é algo que ocorre quando é extinta a separação das coisas, ou seja, quando a alma humana se une a Deus. Essa união com Deus possibilita uma compreensão da realidade como sendo única, una. A vivência da experiência mística é imediata, ela nos dá a união com essa alteridade e nos transforma em uma única coisa junto a Deus. O grande problema então é coadunar nossa forma de pensar com essa experiência uma vez que o pensamento humano sempre busca diferenciar as coisas (‘a’ é diferente de ‘não-a’). A experiência mística rompe com os limites da linguagem e do pensamento humano na medida em que pretende eliminar o distanciamento entre o homem e 5

HEIDEGGER, 1999.

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Deus. Assim devemos entender que a felicidade, o gozo máximo, o êxtase, somente serão alcançados quando existir a união do homem com a Divindade. A experiência mística vislumbra o arrebatamento dos sentidos transportando o homem para uma experiência que é indescritível, um momento em que se têm um turbilhão de sensações que transcendem todas as faculdades intelectivas e comunicativas humanas levando a um desvelamento inabalável da verdade acerca do mundo. Essa experiência é imediata, assim, ela elimina toda forma de dualismo e dá lugar à unidade, ao acesso à verdade absoluta e à comunhão para com Deus. Nas palavras de Smith: “O objetivo dos místicos, então, é estabelecer uma relação consciente com o Absoluto, na qual eles encontram o objeto pessoal de vida. (...) Essa união que eles procuram é ‘a união da vontade humana com o Divino’.”6 O interessante de se observar é que a mudança almejada pela mística não é algo que ocorre como a transmutação de fatos fenomênicos, não é efetivamente a mudança da estrutura da realidade. A mudança na forma com que se apreende a alteridade se dá no homem, na sua interioridade, na sua relação para com Deus. Na medida em que o homem se liberta da imediaticidade do mundo fenomênico, não dependendo mais das coisas que estão no mundo, ele se une a Deus e tudo é significado de outra forma. O que ocorre com a experiência mística é uma libertação, por parte do humano, da experiência com os dados sensoriais do mundo fenomênico. É o rompimento das experiências mediadas e a afirmação da imediaticidade das coisas. Nas palavras de Bento Silva Santos: “o homem é uma alma que, voltada para o exterior, anima seu corpo no espaço e no tempo, na região múltipla do dessemelhante e que, voltada para o interior, atinge o fundo incriado no qual Deus penetra e habita em sentido próprio.”7 O que temos de dar relevância para o atual estado de nossa pesquisa é que a mística pretende romper com as divisões entre o interior e o exterior pois busca algo imediato, uma experiência da unidade com a divindade. Nas palavras de Leonardo Boff: Se a mística é uma experiência imediata de Deus, então não poderia ser expressa por nenhuma mediação, nem palavras, nem símbolos, nem gestos. Efetivamente a maioria dos místicos nada diz. Vive, vê, contempla, goza, sofre, participa. Para que dizer se ele é um com o Uno? Quem sabe não diz; só quem não sabe diz. Mas como o Uno se dá também na palavra, alguns místicos falaram e nos legaram escritos seus.8

A passagem supracitada nos coloca diante do último elemento de nossa reflexão nesse ponto, a necessidade de refletir acerca dos limites da linguagem na descrição dessa experiência mística que une o humano e o sagrado. 2.3. A mística medieval e o limite da linguagem e das expressões humanas A linguagem humana não é capaz de suportar o fim da dualidade acima descrita, a saber, o fim da dualidade ‘eu’ versus ‘mundo’. Nossa estrutura linguística trabalha com 6

SMITH, 1980. SANTOS, 2012. 8 BOFF, 1991, p. 20. 7

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proposições expressas mediante um sujeito e o predicado que lhe corresponde. Como a experiência mística descreve justamente a união do sagrado com o humano, não existe como estabelecer as relações proposicionais entre sujeito e predicado pois quando isso ocorre esse elemento instancia uma alteridade e, dessa forma, não há a possibilidade da linguagem alcançar ou expressar Deus e muito menos narrar o encontro com Ele. As relações que a linguagem usa são relações de significados, não relações de estados. Embora a linguagem não nos leve ao estado de contemplação, o uso da linguagem pode despertar em nós o anseio da busca por tal estado. Os influxos da inteligência humana expressos em forma linguística podem nos levar a busca de novos significados, de novas experiências, dentre elas a experiência mística. Mas vale salientar que as palavras não nos levam à experiência mística, elas apenas nos incitam o desejo de buscar por tal experiência. O que devemos compreender a essa altura de nossa incursão é que a mística faz uso da linguagem e das estruturas linguísticas à media em que ela usa a capacidade humana de transmitir as impressões que se tem ou se vive. Nas belíssimas palavras de Boff: A linguagem da mística do desnudamento se recolhe no silêncio sacrossanto. Tudo o que se disser é tagarelice. A experiência não se diz, vive-se. (...) a linguagem da mística se reveste de paradoxos: Deus é tudo e Deus é nada. O mundo é infinito e o mundo é finito. As trevas sapo luminosas e a luz é tenebrosa. O grande saber é não saber e o absoluto saber consiste em não saber que não se sabe. A questão da dialética nos encaminha assim para o problema da linguagem própria da mística.9

O que o trecho de Boff tenta salientar é que sempre que a linguagem tenta expressar a totalidade da experiência mística ela falha. Mesmo podendo somente ativar o caráter imaginativo da descrição, a linguagem não exprime a experiência mística, ela exprime somente a alteridade, não aquilo que foi vivenciado pela experiência mística, ou seja, a unidade com Deus. Por mais que a linguagem tente, ela somente tangencia a experiência mística, ela nunca consegue atingi-la ou descrevê-la. A esse respeito Malherbe assevera: “Finalmente, através de todas as formas de que ela poder revestir-se, essa experiência é única: a verdadeira libertação do humano em Deus. Mas a experiência é incomunicável em sua pureza, em sua singularidade, em sua intensidade.”10 Ainda, na mesma direção, Boff afirma, frente à impotência da linguagem em exprimir a experiência mística, que os místicos: “Apesar de sentirem um com a palavra, sentem que a palavra não constitui a realidade fundamental e una. Ela tenta balbuciar a experiência da unidade, mas não produz a unidade; pode, no máximo, evocá-la e despertar em nós o desejo de busca.”11 Apesar dessa limitação, os místicos, ao tentarem transmitir suas experiências, se utilizam de artifícios linguísticos muito variados para que tal experiência possa ser apreendida. É nesse sentido que veremos neologismos, metáforas, analogias e vários outros artifícios que tentarão demonstrar o que foi essa vivência da experiência mística de retorno ao criador.

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BOFF, 1991, p. 16. MALHERBE, 2006. 11 BOFF, 1991, p. 20. 10

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Nesse contexto riquíssimo do cristianismo medieval, onde se pretende dar conta de narrar aquilo que foi vivenciado por uma experiência mística, observamos o surgimento de uma linguagem mística erótica. Essa linguagem, em sua maioria, foi produzida pelas narrativas das vivências místicas das monjas do medievo. Cada uma delas se expressa de uma forma, mas um elemento se torna central em suas narrativas: a vivência de uma relação de intimidade para com a divindade, relação essa descrita mediante uma linguagem amorosa onde a amante e o amado se tornam unos. Passemos, pois, a investigar alguns dos elementos fulcrais que permeiam tais narrativas. III. Aspectos introdutórios da Mística erótica no medievo cristão Uma das imagens mais instigantes acerca de monjas medievais a que tive acesso foi a iluminura de Santa Gertrudes12. Nela temos dois planos: o superior onde aparece um fogo saindo de seu coração e formando outro coração com as inscrições que remetem às iniciais da cruz de Jesus; o plano inferior onde aparece a figura da monja ajoelhada diante de um altar que dá sustentação a um crucifixo com a imagem de Cristo, onde vemos a emanação de uma luz que sai do peito de Cristo e se dirigi ao coração da Santa. Em amplos os planos temos a mesma motivação: a tentativa de expressar a relação entre o coração da Monja e o coração de Cristo, portanto, uma tentativa de ilustrar uma relação amorosa entre o humano e o divino. Essa imagem instancia aspectos simbólicos daquilo que é visto como uma espécie de linguagem amorosa dentro da mística. Essa linguagem é fundamental para entendermos os padrões do que é a mística erótica no medievo. A linguagem na mística, como vimos anteriormente, narra uma experiência. A linguagem amorosa é muito usada na mística na medida em que manifesta a relação amorosa entre a criatura e o criador. Ao assumir tal característica a linguagem mística amorosa tenta explicitar a grande paixão ou gozo que é provocado pela posse do amado. Vejamos uma passagem de Nicolau de Cusa: Por isso, és o amor infinito que, sem o amante, o amável e o nexo de ambos, não pode ser visto por mim como amor perfeito e natural. Com efeito, como posso conceber o amor sumamente perfeito e natural sem o amável e a união de ambos? No amor contraído experiencio que o fato de o amor ser o amante, o amável e a união de ambos deriva da essência do amor perfeito. Mas aquilo que pertence à essência do amor perfeito contraído não pode faltar ao amor absoluto do qual o amor contraído recebe o que de perfeição comporta. Mas, quanto mais simples o amor tanto mais perfeito. [...] Aquelas coisas que ocorrem como sendo três, ou seja, o amante, o amável e o nexo, são a essência mais simples absoluta. Por isso não são três, mas uma só.13

12

Santa Gertrudes, monja do Mosteiro de Helfta, perto de Eisleben, na Saxônia, Alemanha, nasceu em 1256 e iniciou sua vida monástica aos 5 anos, tendo por mestra Santa Matilde de Hackeborn. Ela é considerada uma das maiores místicas medievais. Morreu ainda jovem aos 33 anos de idade. 13 NICOLAU DE CUSA. De visione dei, h VI, Cap. XVII, 72: 1-10 e 73: 1-3, p. 198.

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Em outra passagem o cusano ainda assevera: “Revelam-se mutuamente os seus segredos os espíritos cheios de amor. E com isso aumenta o conhecimento do amado, o desejo dele e inflama-se a doçura da alegria.”14 Um exemplo eloquente da linguagem do amor, no que se refere ás místicas medievais, é a narrativa de Beatriz de Nazaret15, no manuscrito intitulado de Os sete graus (modos) do amor. No manuscrito citado acima a mística medieval assim nos relata cada um dos sete graus ou modos do amor: 1) o primeiro grau é o de um amor associado ao desejo ativo do amor; 2) o segundo grau é o de um amor descrito como serviço gratuito em prol de Deus; 3) o terceiro grau é aquele onde se insere um amor entendido como a busca de saciação do amor mediante a honra, o serviço, a obediência e a submissão; 4) o quarto grau apresenta um amor que se manifesta na perenidade que se torna desperta na alma e conduz os sentidos e a vontade ao amor de tal modo que se perde o uso dos membros e dos sentidos; 5) o quinto grau que instancia o amor visto como uma explosão do amor, como uma tempestade que toma de assalto a alma enamorada e a faz perder-se pelo amor, aspecto narrado como sendo uma torrente avassaladora que consome, e justamente pelo fato de consumir traz o sofrimento nos momentos em que ele cessa; 6) o sexto grau que apresenta uma descrição de um amor mais ponderado, como o da esposa santa em relação ao marido, amor esse que conduz a um conhecimento mais íntimo e elevado; 7) o sétimo e último grau que postula um amor sublime que ocorre somente no interior da alma superando toda a humanidade e colocando em união o amante com a eternidade do amor e o amor eterno, elemento de união que ocorre na inteligibilidade e nas alturas inacessíveis do abismo da Deidade. Contudo, comumente, essa linguagem amorosa assumia aspectos próprios da carnalidade. Aqui um fato é digno de nota: toda a mística recusa a carne pois ela leva a um movimento que ultrapassa o corpo como símbolo da materialidade e, por isso, tende a romper definitivamente com essa ‘prisão’ corporal. Contudo, levando-se em conta a união mística vislumbrada pela linguagem amorosa que ela implica, em relação às pulsões eróticas, o que ela conduz refere-se à uma sublimação da carne. Entrementes, ao mesmo temo em que essa linguagem e experiência mística nega a carnalidade, ela retorna à carne, mas a noção a que ela alude é a uma noção de carnalidade transcendente. O que temos nesse movimento, portanto, é o uso de uma linguagem que se apresenta como erótica pois sempre traz os dados e as inferências da carnalidade, ou por recusa, ou por aceitação, via uma noção de sublimação transcendente. A linguagem mística amorosa desenvolve todo um vocabulário que comporta um grande pathos, ou seja, um afeto exagerado que se mescla com os elementos da cotidianeidade. Essa dinâmica sempre narrará um fogo e um ardor extraordinário que tomam conta do intelecto, da alma ou do espírito. E é justamente aqui que teremos o influxo do elemento ‘erótico’.

14

NICOLAU DE CUSA. De visione dei, h VI, Cap. XXV, 117: 7-9, p. 237. Nascida na cidade de Tirlemont, Bélgica, por volta de 1200, ela morre em 1269. Beatriz de Nazaret foi monja cisterciense e ingressou no convento com 17 anos de idade. Ela foi canonizada pela Igreja e sua iconografia apresenta uma imagem de uma monja com uma flecha transpassando seu coração e uma pena sendo segurada por sua mão. 15

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Durante a Idade Média percebemos que a mística foi usada para tentar descrever a relação do fiel para com Deus, ou seja, ela buscava desvendar a relação amorosa entre ambas as partes. Essa tentativa de descrição, em muitos discursos, principalmente nos discursos das místicas medievais, assume uma linguagem sensual, erótica, principalmente quando a narrativa descreve a relação amorosa e de fruição de uma mística com Deus. Essa linguagem de cunho erótico tinha como objetivo a descrição da relação afetiva do amor do fiel para com Deus. Ora ela se apresenta de forma implícita, ora de explícita. Um exemplo desses elementos que acabamos de mencionar pode ser notado nas entrelinhas das palavras de Santa Teresa de Jesus, comumente conhecida como Santa Teresa d’Ávila, a saber: Via um anjo ao pé de mim, ao lado esquerdo, em forma corporal [...] Não era grande, antes pequeno, muito belo, e o rosto tão incendido, que parecia ser dos anjos mais elevados – desses que parecem abrasar-se todos [...] Vi-lhe nas mãos um grande dardo de ouro, e na ponta da arma pareceu-me ver um pouco de fogo. E parecia que mo enfiava pelo coração algumas vezes e me chegava até as entranhas. Ao tirá-lo, cuidava eu que as levava consigo e me deixava toda abrasada num grande amor de Deus. A dor era tão forte que me fazia soltar gemidos; e tão excessiva a suavidade que me deixava aquela dor infinita, que não se podia desejar que me deixasse nem se contenta a alma com menos do que Deus. Não é dor corporal, mas espiritual, embora o corpo não deixe de ter participação e grande. É um trato de amor tão suave que passa entre Deus e a alma que, suplico eu à sua bondade, faça-o gozar a quem pensar que estou mentindo.16

Em outra passagem de sua biografia, ela afirma: Via-lhe nas mãos um comprido dardo de ouro. Na ponta de ferro julguei haver um pouco de fogo. Parecia algumas vezes metê-lo pelo meu coração a dentro, de modo que chegava às entranhas. Ao tirá-lo tinha eu a impressão de que as levava consigo, deixando-me toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que me fazia dar os gemidos de que falei. Essa dor imensa produz tão excessiva suavidade que não se deseja o seu fim, nem a alma se contenta com menos do que com Deus.17

O uso da linguagem amorosa e mística não ocorre somente nas narrativas das místicas cristãs. João Crisóstomo (350-407), um dos mais importantes religiosos da Patrística Cristã, em uma de suas homilias narra que Deus era não somente o esposo ideal das virgens como, também, apresentava-se como um amante mais ardente do que qualquer homem poderia ser. Alguns exemplos dessa noção de amante ardente estabelecidas por místicas medievais serão bem elucidativos para nosso objetivo. Santa Tereza era sempre facilmente transportada para seus encontros com Jesus de tal forma que um padre chegou a lhe proibir que orasse, mesmo que mentalmente. Ao padre, Tereza não confessou que tinha ciúmes de Maria Madalena. Mas 16

LEÓN, 1998, p. 171. Caso a narrativa ainda não seja suficiente para a compreensão a que nos referimos seria interessante observar a narrativa da escultura de Santa Teresa, descrita no terceiro parágrafo de nossa introdução, local onde associamos a escultura da Santa em todas as expressões que ela demonstra aos sinais de um gozo carnal. 17 LEÓN, 1998.

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confessou seu ciúme a Jesus, e Ele a tranquilizou dizendo que preferia Tereza a Maria Madalena e que, sempre que Tereza estivesse com ele, ela seria a única 18. Catarina de Siena (1347-1380) num dos seus frequentes momentos de êxtase diz que recebeu das mãos de Jesus o seu prepúcio para que ela se tornasse sua esposa. Ela narra o seguinte: “não com um anel de prata, mas com uma aliança feita de sua própria carne sagrada, pois quando lhe circuncidaram esse aro foi retirado do seu corpo sagrado”19. Angela de Foligno (1248-1309), ainda casada, teve visões de Jesus em que mantinha relações amorosas com Ele e, para isso, diante do crucifixo, quando iria orar, tirava toda a sua roupa20. Já Catarina de Gênova (1447-1510) afirmava que Jesus lhe beijava a boca21. Para finalizar esses breves exemplos queremos trazer à baila uma escultura da Beata Ludovica. Torna-se digno de nota que Ludovica conhecia o prazer sexual pois já fora casada. Na escultura da beata Ludovica exposta na Capela Altieri da igreja de Francisco a Ripa Grande a imagem nos relata a beata deitada numa cama, retorcida em uma espécie de espasmo, as mãos sobre os seios, a cabeça reclinada, os olhos e a boca entreabertos. Ela se apresenta toda coberta em suas vestes e deitada sobre um leito de mármore. A escultura nitidamente nos mostra uma mulher que sofre fisicamente todos os sinais de um gozo carnal. A noção do erotismo que observamos ao deter o olhar na referida escultura pode ser extraída na medida em que o prazer pode ser interpretado na seguinte sequencia de detalhes explícitos: as pontas dos dedos da mão direita tocando o seio direito e a mão esquerda pressionando o abdômen; a cabeça voltada para trás, e para o lado, com a boca permanecendo ligeiramente entreaberta; os olhos serrados. Consideramos, todavia, que esses exemplos se constituem de fontes secundárias das narrativas das místicas medievais e somente nos colocam diante da existência dessas narrativas. De forma mais detalhada veremos os influxos da monja beguina Hadewijch de Amberes22 através de alguns trechos selecionados de suas narrativas. Cremos que com esses exemplos iremos lapidar as noções que até o momento demos daquilo que pode ser descrito como sendo constitutivo de uma mística erótica no medievo. O primeiro trecho, extraído de suas cartas, nos relata a posição de abandono do eu e perda da identidade pessoal diante do contato com o divino. Ela nos diz: “Minha única satisfação seria pensar que, sendo eu humana, experimentava o amor em meu coração amante e que, sendo Deus tão grande, eu com a privação de toda satisfação podia com minha humanidade alcançar a divindade (...).” (Hadewijch de Amberes, Cartas, 29). Em outra passagem ela esboça alguns elementos que demonstram a impossibilidade de respostas intelectivas para as perguntas suscitadas frente ao encontro com a divindade e o caráter de carência que a falta do amado traz ao amante: “Como se unem estas duas metades da alma? Esta pergunta nos levaria muito longe e não ouso dizer mais. Por outra parte, é demasiado o que me falta para satisfazer ao amor, mas também temo que gente estrangeira venha a semear 18

Livre narrativa da biografia de Tereza apresentada por Guido Ceronetti, L'Occhiale Malinconico. Trecho citado por Diane Ackerman na obra Le livre de l'amour. 20 Trecho extraído das narrativas de Adolf Holl na Obra A mão esquerda de Deus: Uma biografia do Espírito Santo. 21 Trecho extraído das narrativas de Cioran na obra Précis de décomposition. 22 Nasceu no final do século XII em Amberes, região de Brabante, hoje Bélgica. Sua morte é datada em 1260, em Nivelles. Seus escritos datam da janela de 1235 a 1244. Pertenceu a uma comunidade de mulheres católicas laicas conhecidas como beguinas. 19

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urtigas ali onde deveriam florescer rosas.” (Hadewijch de Amberes, Cartas, 19). A certeza de que a linguagem é limitada e que nunca conseguirá exprimir a totalidade da experiência mística pode ser atestada na seguinte passagem: faz quatro anos na festa da Ascensão por Deus Pai em pessoa no momento em que seu Filho descia sobre o altar. Ao descer ele me beijou e com este signo fiquei marcada. E passei a ser uma com ele na presença de seu Pai, que me recebeu em seu Filho e o recebeu a ele em mim. Recebida na unidade fui iluminada de tal forma que compreendi esta essência e dela tive conhecimento mais claro do que se pode ter com palavras ou com razões ou visões, tratando-se de coisas desta terra, [...] isto poderia passar por maravilha. Mas embora quando confesso que parecem maravilhas, estou segura de que não te assombrarás, sabendo que a linguagem celestial supera a compreensão terrena. Para todo o terreno se encontram palavras e se pode dizer em neerlandês, mas aqui não me serve o neerlandês nem tampouco palavras. Apesar de que conheço a língua mais a fundo que se pode, não me serve para o que acabo de mencionar e não conheço meio de expressá-lo. (Hadewijch de Amberes, Cartas, 17)

Em um de seus poemas a monja trata dos nomes do amor. Nele temos sete níveis. Acerca do sétimo ela assevera: O sétimo nome é Inferno deste amor do que experimento o tormento, pois não existe nada que o amor engula e danifique. E nada que nele cai e que ele apanha pode livrar-se, pois não acorda graça alguma. E como o Inferno todo o arruína, não se alcança no amor outra coisa que tortura sem piedade, nem um instante de repouso, sempre um novo assalto, perseguição nova, ser devorado por completo, engolido em sua essência abismal, encontrar-se incessantemente no calor e no frio, na profunda e alta treva do Amor. Isto supera os tormentos do Inferno. Ele que tem conhecido ao Amor e suas idas e vindas, tem experimentado e pode entender porque é verdadeiramente apropriado que Inferno seja o mais alto dos nomes do Amor. (Hadewijch de Amberes, Poemas de rima mixta, 16, lín. 149-168)

Na obra que relata suas visões ele descreve o que Jesus quer dela, o que ele a instrui a fazer e pensar. Ele a ensina a se tornar um verdadeira amante do amor divino e de sua fruição. Na narrativa da monja: Eu, segui dizendo, me darei a ti secretamente, minha mais amada, quando desejes possuir-me, pois não desejas que ter consolem nem te conheçam estranhos. Te darei a compreensão de minha vontade e a arte do verdadeiro Amor e de sentir-te unida a mim, às vezes, nas tormentas do Amor, nos

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momentos nos quais não poderias sustentar-te sem sentir-me, e nos que tua carga se faz demasiada pesada. Com esta compreensão, transmitirás sabiamente minha vontade a quantos necessitam conhecê-la através de ti. Jamais até hoje falaste nada, nem o falarás até o dia em que eu te diga: ‘teu trabalho já foi cumprido’. Com Amor tens de viver, perseverar e cumprir minha secreta vontade pois que me pertence e eu te pertenço. E sentir-te em mim tem de bastar-te, e tu me bastarás a mim. Assim age minha vontade com a compreensão, minha mais amada amante. Assim gozarás de mim. Esta é a arvore descrita pelas palavras que te tenho revelado: o chamado conhecimento do Amor. E pois te tem predicado tantas coisas que te oprimem até o inferior, quero mostrar-te eu mesmo o que quero de ti. Deves regressar tranquilamente e fazer o que te tenho recomendado. Se assim o queres, toma folhas desta árvore: é o conhecimento de minha vontade. E se te sentes afligida toma uma rosa da copa e da roa uma pétala, é Amor. E se sentes que não podes sustentar-te toma da rosa o centro, que significa o dom que te concedo de sentir minha proximidade. Terás sempre o conhecimento de minha vontade e a experiência de Amor, e na necessidade me sentirás em fruição. Assim age meu pai comigo, embora seja seu filho. Me desejou na aflição mas não me abandonou. O sentia na fruição e servia àqueles aos que me havia enviado. O coração que se fala no centro da rosa é a fruição de Amor nos sentidos. Ajuda, amada minha, a quantos estão aflitos, fazem o bem ou o mal contigo, o Amor te confere as forças para isso. Dá tudo, pois tudo é teu. (Hadewijch de Amberes, Visiones, 1, lin. 383-427)

No que se refere ao desejo de se entregar nos braços do Amado e de sentir-se completa por ele temos: Por isso só quero dizer isso: Desejava a plena fruição de meu Amado, conhecê-lo e saboreá-lo plenamente, com tudo o que o pertence; desejava gozar em sua totalidade de sua humanidade unida com a minha e que a minha, alicerçada na sua, fosse mais forte e ganhasse firmeza e possuísse firmeza, pureza e unidade suficiente para satisfazê-lo plenamente em toda virtude. Para isso desejava que ele me satisfizesse interiormente com sua Divindade, em unidade de espírito, e que fosse em mim total e integralmente o que Ele é, sem restar nada. Pois dentro todos os dons que tenha desejado, escolho este: satisfazê-lo em todos os grandes sofrimentos. Pois a mais perfeita satisfação é crescer para ser Deus com Deus, mas isto requer sofrer penas, dor e exílio e viver sempre em renovados pesares, mas desejando que tudo chegue e passe sem sofrer e experimentar assim nada mais que o doce amor, as carícias e os beijos. Assim desejava eu que Deus se me entregasse e poder dar-lhe satisfação. (Hadewijch de Amberes, Visiones, 7, lin. 21-41)

Tal desejo de entrega também tem o lado da falta, do abandono quando não é possível estar nessa união. Para ela: O desejo de Amor me atormentava tão terrível e penosamente que cada um dos meus membros parecia quebra-se e todas minhas veias se achavam em violento esforço. O anseio no qual me encontrava não pode ser expresso em nenhuma língua e por nenhuma pessoa que o conheça, e quanto puder dizer dele será inaudível para todos aqueles que nunca tenham experimentado o Amor nas obras do desejo e aos que o Amor nunca tenha reconhecido como seus. (Hadewijch de Amberes, Visiones, 7, lin. 1-20)

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Se o primeiro momento é marcado pelo sofrimento da falta, quando a presença D’Ele se torna efetiva é possível saboreá-lo e vivenciá-lo. Ela nos relata esse momento de saciação da seguinte forma: Depois disso veio a mim, me tomou por completo em seus braços e me apertou contra ele; e todos meus membros sentiram os seus em uma felicidade plena; de acordo com o desejo de meu coração, de acordo com minha humanidade. Deste modo fui saciada de forma plena e perfeita exteriormente. Durante um tempo tive forças para suportá-lo; mas em seguida, depois de muito pouco, perdi ao esplêndido homem em sua forma externa, o vi desaparecer, desvanecer e dissolver-se por completo na unidade, de forma que não poderia reconhecê-lo ou percebê-lo fora de mim e já não poderia distingui-lo de mim mesma. Me parecia como se fôssemos Um sem diferença. Quer dizer: exteriormente a vista, o gosto, o tato eram como quando alguém saboreia, vê e sente ao Receber o Sacramento a partir do exterior. De forma que a amada se une com o amado em plenitude perfeita da vista e do ouvido, e se perde em um e no outro. (Hadewijch de Amberes, Visiones, 7, lin. 42-93)

Por fim, como um exemplo da paixão arrebatadora que desnuda a alma e da união amorosa que a experiência visionária da mística funda em relação à união do interior e exterior, temos: fora de meu espírito, de mim mesma e de quanto havia visto n’Ele, e perdida por completo, caí no seio da fruição de sua natureza de Amor. Ali permaneci perdida e aterrada sem compreensão nem conhecimento nem visão nem outro entendimento espiritual que o de ser uma com Ele e gozar dessa fruição23. [...] Então caí em um abismo sem fundo e saí de meu espírito nessa hora em que nada podia dizer24; [...] depois, permaneci perdida em meu Amado, e me fundi nele de maneira que nada restou de mim25.

IV. Considerações Finais No presente trabalho procuramos mostrar alguns dos elementos que estamos investigando em nossas pesquisas atuais relativas à Mística no Medievo, especificamente a linguagem erótica e sensual da mística amorosa. Sabemos que os elementos que levantamos nesse trabalho são elementos apenas propedêuticos. Contudo, vale salientar que esse texto demonstra somente um aspecto introdutório de nossas pesquisas, e que, longe de pretender exaurir o tema, o que pretendemos é compartilhar o sentimento de curiosidade e busca que esses textos nos infundem. Durante muito tempo as pesquisas relativas à mística deixaram de frequentar o ambiente acadêmico brasileiro. Durante muitos anos a mística cristã, principalmente a medieval, foi vista pelos acadêmicos brasileiros como uma linguagem ideológica que levava o povo ao vício, à alienação. Tais elementos desenvolveram, mesmo no seio da formação eclesiástica das dioceses brasileiras, certa repulsa aos místicos, aos místicos medievais e, 23

Hadewijch de Amberes, Visiones, 6, lin. 82-88. Hadewijch de Amberes, Visiones, 13, lin. 255-258. 25 Hadewijch de Amberes, Visiones, 7, lin. 94-97. 24

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principalmente, às místicas da Idade Média. Entrementes, nos últimos anos, essa realidade está mudando. O presente trabalho pretende tão somente mostrar aos pesquisadores acadêmicos, aos religiosos e aos curiosos em geral que a Idade Média não foi um período de trevas onde a mística alienava as pessoas. Por detrás da linguagem mística encontramos implicações morais, epistêmicas, ontológicas, metafísicas e dogmáticas de altíssimo nível. Por isso entendemos que seria de grande ajuda despertar o interesse dos estudantes em ver, textualmente, como essa linguagem se instaura, se exprime e ainda é muito atual. Esse foi o foco de nosso trabalho e é a pretensão que almejamos alcançar. As conversas com as Professoras Maria Simone, Suelma e Luciana, mencionadas em nossa introdução, ainda darão muitos trabalhos em conjunto com interfaces dentro dos textos produzidos pelas místicas medievais. A elas segue o meu agradecimento pela possibilidade de reorganizar minhas pesquisas e voltar a um tema que ficou em segundo plano durante muitos anos de meus estudos acerca do medievo. O que podemos dizer com certeza é que a linguagem envolvente e sensual usada pela mística amorosa e erótica do medievo envolve elementos muito complexos que de certo deixam os leitores inebriados. É uma linguagem que une o mundo humano ao divino mediante a vivência concreta e real da presença e pertença do sagrado no humano. Para finalizar cito uma passagem de um cardeal da Igreja que viveu a transição do fim da Idade Média e o início do Renascimento: “pela fé o intelecto aproxima-se do verbo, pelo amor unese a ele.” (NICOLAU DE CUSA. De visione dei, h VI, Cap. XXIV, 113: 7-8, p. 233.) V. Referências BOFF, L. Introdução. In.: ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1991. HEIDEGGER, Martin. Estudios sobre mística medieval. Trad. de Jacobo Muñoz. 2ª ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1999. LEÓN, Luiz (Edit). Vida de Santa Teresa de Jesus escrita por ela mesma. Tradução de Rachel de Queiroz. São Paulo: Loyola, 1998. MALHERBE, J. Sofrer Deus: a pregação de Mestre Eckhart. Aparecida: Editora Santuário, 2006. CUSA, Nicolau de. A visão de Deus. 3ª ed. Trad. de João Maria André. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. SANTOS, Bento Silva. O Gottesgeburtszyklus de Meister Eckhart: a mística fundamental do “nascimento de Deus na alma” (Sermões 101 a 104). In.: Revista Mirabilia. nº 14: Mística e Milenarismo na Idade Média, Jan-Jun de 2012, p. 124-134. SMITH, M. The nature and meaning of mysticism. In.: WOODS, R. Understanding mysticism. Garden City: Image Books, 1980.

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POSSIBILIDADES DE UMA LEITURA HERMENÊUTICA DAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO DE HIPONA: A FILOSOFIA RICOEURIANA COMO VIA PARA REINTRODUÇÃO DO SAGRADO NA LEITURA FILOSÓFICA DAS CONFISSÕES Andrés Bruzzone (USP) [email protected] Poucas obras tão lidas, comentadas e interpretadas, desde solos tão diferentes, como as Confissões de Agostinho de Hipona. Poucas obras foram apropriadas com sentidos tão diversos, muitas vezes desde filosofias franca e irreconciliavelmente opostas. Poucas obras geraram e geram tantas interpretações “definitivas” que, contudo, nunca conseguem dar conta do conjunto sem que algo fique sobrando ou faltando. É livro que nos interpela desde antes da leitura: nos questiona sobre nossa situação como leitores. Com efeito, como lemos as Confissões de Agostinho no século XXI, nós que carregamos uma história da filosofia onde não é possível ignorar a Aufklärung, onde não podemos abrir mão da interdição kantiana que nos impede colocar no terreno da crítica as questões vinculadas com Deus? Está claro que filosofia e fé têm discursos autónomos e que não cabe à primeira se ocupar da segunda. Mas Agostinho nos coloca um problema sério, que Jean-Luc Marion define muito bem no seu Au lieu de soi – l’approche de Saint Augustin: se lermos como filósofo, estaremos deixando de fora aquilo que há de mais importante para o próprio Agostinho, que é a busca de Deus. E se lermos como teólogo, estaremos abdicando da filosofia. Marion entende que não se pode depurar Agostinho, extirpando a fé de seu texto, retirando o pensamento filosófico do seu ambiente bíblico e purgando suas implicações teológicas. Propõe o que ele chama de leitura não-metafísica, sem com isso fazer leitura teológica, que seria tão imprópria como uma leitura filosófica. Assim, sugere evitar importar em Agostinho os conceitos e o léxico da metafísica. O soi que resulta desta leitura é um soi afastado, divorciado do ego: um soi que se define pelo desejo de beatitude, uma beatitude que o ego não pode alcançar por si, menos ainda ter em si. Um ego sem essência que “performa, conhece e se apropria da sua existência, mas para perder seu si” Não é essa a leitura costumeira nas faculdades de filosofia, onde Agostinho é tratado como filósofo. “Como se fosse” texto filosófico, tomando para isso a dimensão filosófica que também está nele, e para isso prescindindo da dimensão querigmática, sem a qual o texto já não é o mesmo texto. Mas o Agostinho que resulta destas leituras é um Agostinho amputado, desnaturado. O cientista estuda o funcionamento do corpo a partir de órgãos mortos, mas o faz sabendo que a vida que lhes falta é o que lhes da sentido. Sem Deus, sem Palavra revelada, sem absoluto e sem conversão, o que sobra de Agostinho não é menos corpo morto. Uma alternativa é a leitura que faz recurso à filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur, especialmente a noção de identidade narrativa. Bochet, Alici, Moraes e outros têm desenvolvido essa via de interpretação, mostrando como deixa em evidência aspectos do texto agostiniano que outras ferramentas ocultam. 75

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Na possibilidade de reinstalar a o sagrado na leitura das Confissões, sem sair do campo filosófico, é onde o encontro de Agostinho com Ricoeur se faz mais rico. Para avançar com esse argumento será necessário apresentar as definições de identidade narrativa, de ipse e idem e de caráter, próprios da filosofia de Ricoeur. Identidade narrativa ricoeuriana A identidade pessoal é o lugar privilegiado da confrontação entre dois usos maiores do conceito de identidade: idem e ipse”, diz Ricoeur introduzindo, assim, a questão em Soi-même comme un autre. De um lado, identidade como mesmidade (mêmeté), idem em latim, sameness em inglês, Gleichheit em alemão; do outro, a identidade como ipseidade: ipse em latim, selfhood em inglês, Selbeist em alemão. O mesmo e o si-mesmo. Mesmidade é um conceito de relação e uma relação de relações. Em primeiro lugar, a identidade numérica: duas ocorrências de uma mesma coisa designada pelo mesmo nome não formam duas coisas diferentes, mas uma mesma coisa. A isto corresponde a identificação como reidentificação do mesmo, o conhecer como reconhecer. Em segundo lugar, a identidade qualitativa, a semelhança extrema: duas pessoas levam o mesmo vestido, isto é, roupagens tão semelhantes entre si que são intercambiáveis. A isto corresponde a substituição sem perda semântica. A diferença aparece como problema somente quando se introduz a questão da temporalidade. Ambos componentes da identidade são irredutíveis entre si, mas não são estrangeiros um do outro. É na medida em que o tempo é implicado nas ocorrências de uma mesma coisa que a reidentificação do mesmo pode gerar dúvida ou contestação, e é quando entra em jogo a semelhança extrema entre duas ou mais ocorrências, como critério indireto para reforçar a presunção de identidade numérica. Isto pode não apresentar problemas num curto tempo, mas quando a distância entre ocorrências se faz grande, a certeza diminui, e Ricoeur evoca processos criminais e, particularmente, os referidos a crimes de guerra. Aparece então o terceiro componente da identidade, o da continuidade ininterrompida entre estados de desenvolvimento do que se considera um mesmo indivíduo: crescimento, envelhecimento, certo, mas também a mudança que ocorre num carvalho, da semente à arvore, e num animal, do nascimento à morte. E a mesma coisa para um homem. A demonstração desta continuidade funciona como critério “anexo ou substitutivo” da semelhança, e repousa sobre a colocação em série ordenada de mudanças menores que, tomadas uma a uma, ameaçam a semelhança sem destruí-la. O tempo é, claramente, fator de dessemelhança, de distanciamento, de diferença, e, por isso, um princípio de permanência no tempo conjura a ameaça que ele representa. Este princípio pode ser a estrutura de um útil do qual se trocam as peças, mas continua o mesmo, ou o código genético de um indivíduo biológico: uma ideia de estrutura, a organização de um sistema, por oposição a um evento, responde a este critério de identidade e confirma o caráter relacional da identidade.

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Este caráter relacional da identidade está presente em Kant, que classifica a categoria de substância entre as categorias de relação como condição de possibilidade de pensar a mudança. Ricoeur se pergunta se a ipseidade do si pode ser pensada em termos de uma forma de permanência no tempo que não implique a determinação de um substrato, mesmo no sentido relacional kantiano. Uma forma de permanência vinculada à pergunta pelo “quem?”, irredutível ao “quê?”. Há dois modelos de permanência no tempo disponíveis para falar de nós mesmos: o caráter e a palavra mantida. Entre ambos reconhecemos uma permanência que dizemos ser “de nós mesmos”, e Ricoeur entende que a polaridade dos dois modelos resulta do recobrimento quase total entre as problemáticas do idem e do ipse, enquanto a fidelidade a si na palavra mantida marca o afastamento extremo entre a permanência do si e a do mesmo, atestando a irredutibilidade entre elas. Caráter é o conjunto das marcas distintivas que permitem reidentificar um indivíduo humano como o mesmo: acumula a identidade numérica e qualitativa, a continuidade ininterrupta e a permanência. É por isso que o caráter pode constituir o “ponto limite” em que ipse e idem se aproximam e se recobrem. Neste sentido, o aspecto temporal da disposição colocará o caráter na via da narrativização da identidade pessoal. Em primeiro lugar, à noção de disposição se vincula a de hábito, como hábito que está sendo e que já foi adquirido. O hábito da uma história ao caráter, mas uma história onde a sedimentação recobre ou até mesmo abole a inovação que a precedera. Cada hábito adquirido e transformado em disposição se faz traço do caráter – mais um desses traços que, somados, constituem o caráter. O segundo elemento que se vincula à disposição são as identificações adquiridas, pelas quais o outro entra na composição do mesmo. A identidade de uma pessoa ou de uma comunidade se faz a partir de identificações a valores, normas, ideais, modelos, heróis, nos quais a pessoa ou a comunidade se reconhecem. Reconhecer-se em e reconhecer-se a: há uma alteridade assumida, manifesta nas figuras heróicas, mas é uma alteridade que já está latente na identificação a valores que faz com que se possa colocar uma causa por sobre a própria vida. Assim, se incorpora ao caráter um elemento de lealdade, fazendo-o se voltar à fidelidade e ao mantenimento do si. A pessoa é irredutível ao conceito de idem, mesmo quando ipse e idem se confundem, quando chegam a se tornar indiscerníveis: o caráter guarda sempre uma história e um fundo de responsabilidade ética dado pela escolha dos valores de identificação. O caráter ganha assim identidade numérica, identidade qualitativa, continuidade ininterrompida na mudança e permanência no tempo, e o faz a partir da estabilidade emprestada aos hábitos e às identificações adquiridas ou disposições. Há, destaca Ricoeur, “uma certa adesão do que ao quem” na identidade do caráter ou, dito de outra maneira, “o caráter é o que do quem”, por um recobrimento do quem pelo que, que provoca um deslocamento da pergunta “quem sou eu?” para “o que eu sou?”. Mas não deve se deixar de diferenciar ipse de idem. Na noção de palavra mantida (parole tenue), Ricoeur encontra o polo oposto à identidade do caráter: uma manutenção de si (maintien de soi) que não cabe no conceito de 77

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coisa em geral, senão somente no de quem?, como a constância na amizade. Manter uma promessa parece um desafio ao tempo, uma negação da mudança: ainda que meu desejo mude, ainda que eu mude de opinião ou de inclinação, eu manterei a minha palavra. Um “intervalo de sentido” se abre entre a oposição entre a mesmidade do caráter e a manutenção de si mesmo na promessa, entre dois modelos de permanência no tempo. A mediação deve ser procurada na temporalidade, e é aqui que se situa a identidade narrativa, que oscila entre dois limites: o limite inferior onde idem e ipse se confundem, e um limite superior onde o ipse coloca a questão da sua identidade sem o suporte do idem. Identidade narrativa nas Confissões Não são raras as referências às Confissões como uma autobiografia; às vezes se fala de “autobiografia espiritual”. Mas há um elemento formal que incomoda de maneira muito evidente esta abordagem: a quebra da narração a partir dos livros IX e X. Com efeito, o Livro IX é o último a relatar fatos passados da vida do autor; começa falando da decisão de Agostinho de se afastar do ensino para dedicar sua vida à reflexão religiosa e dedica a segunda metade à mãe, Mônica, e à sua morte. Mas, a rigor, a suposta quebra, o que incomoda o leitor contemporâneo à busca de uma autobiografia, dá-se nos três últimos Livros, própria e declaradamente exegéticos. É nesta seção final das Confissões que seu autor procura elucidar o sentido de mistérios como o tempo, da expressão “céu e terra” e a Criação – sem que seja dado qualquer elemento de ligação aparente com a narração que antecedera. Como dissemos, alguns autores propõem ler as Confissões com a chave da identidade narrativa ricoeuriana, e a leitura funciona muito bem. Mas estas leituras, de maneira geral, colocam a ênfase ou se limitam à noção de ipseidade. Os nove primeiros Livros, aqueles em que Agostinho fala sobre si, são, assim, entendidos como uma busca da identidade (ipse) pela narração. Agostinho narra os fatos da sua vida no esforço por reunir, pela força de uma trama coerente, o disperso, um esforço por dar coerência àquilo que aparece como caótico, multiforme e vário. Mas a identidade narrativa entendida em termos de ipse não tem como dar conta dos livros exegéticos e, assim, é necessário mudar de ferramenta de leitura quando se trata de encarar os três Livros finais. Com tudo o que a abordagem pela via da identidade narrativa tem de interessante, ela fica estreita ao deixar de fora estes os Livros finais das Confissões. É mais uma leitura que, de certa maneira, pressupõe uma quebra na obra. Mas isso não acontece se for incorporada a noção de idem que, como vimos, faz parte da teoria da identidade narrativa. Ponto de partida para esta abordagem é o “eu interrogativo” que aparece nas Confissões: muito distante do sujeito moderno, autofundado e autosuficiente, ele é um problema que deve ser endereçado. E Agostinho se interroga: 1. Senhor, eu me atormento com esse problema, um problema que está dentro de mim; para mim mesmo tornei-me terreno de difícil e cansativa lavra. Não se trata de perscrutar as regiões do céu, nem de medir as distâncias dos astros, nem de buscar o equilíbrio terrestre; sou eu que me lembro; de mim é que me lembro; de mim, que sou espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo que eu não sou. Pois que há de mais perto de mim, que eu mesmo? Não entanto, nem sequer chego a

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compreender a faculdade da memória, sem a qual não poderia pronunciar meu próprio nome. (Confissões, X, xv, 25)

O eu preserva um fundo que permanece além da capacidade de compreensão, o autoconhecimento mostra seu limite intransponível. Agostinho tinha já se perguntado “quem eu sou?” e respondido “um homem”, e estamos aqui ainda no terreno das consequências dessa resposta. Um homem, corpo e alma, sendo a alma o superior e o mais próximo desse eu, respondera, e aqui aparece que essa alma, que é o que mais parece com o que ele próprio é, está fora da sua capacidade de conhecer. Esta descoberta levará a uma torção da pergunta: ele não mais perguntará “quem eu sou?”, mas “o que eu sou?”. Isto é: a pergunta “quem eu sou?” é anterior a “o que eu sou?”, que ficara sem resposta. Isso é o que a nossa leitura busca relacionar com as noções ricoeurianas de ipse e de idem. Dire l’identité d’un individu ou d’une communauté, c’est répondre à la question: qui a fait telle action? qui est l’agent, l’auteur? Il est d’abord répondu à cette question en nommant quelqu’un, c’est-à-dire en le désignant par un nom propre. Mais quelle est le support de la permanence du nom propre? Qu’est-ce qui justifie qu’on tienne le sujet de l’action, ainsi désigné par son nom, pour le même tout au long d’une vie qui s’étire de la naissance à la mort? La réponse ne peut être que narrative. Répondre à la question “qui?”, comme l’avait fortement dit Hannah Arendt, c’est raconter l’histoire d’une vie. L’histoire racontée dit le qui de l’action. L’identité du qui n’est donc elle-même qu’une identité narrative. (RICOEUR, 1985, pp. 442-443)

Por esta via podemos interpretar o esforço agostiniano nas Confissões como uma tarefa de explicitação da aporia do uno e do diverso da identidade e a solução (ainda parcial) pela narração. Ou, como diz Ricoeur, para resolver a antinomia sem solução entre a postulação de um sujeito idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados, de um lado, e a ideia de que este sujeito idêntico nada é senão uma ilusão substancialista, do outro. A identidade que Agostinho procura será, em certo sentido, identidade idem: a identidade daquilo que não muda, aquilo que é sempre idêntico a si mesmo, que não é em uma hora isso, em uma outra aquilo -a forma de identidade do Idipsum. Mas há, no processo de aproximação às condições que permitirão atingir esse estado do ser, uma identidade ipse em jogo: é a identidade daquele que percorre com a memória o fio de sua vida, ciente de ser ele um mesmo, mas confrontado com a mudança, a multiplicidade, a fragmentação. Trata-se de uma identidade fraturada, que carrega aporias e carências. Há uma busca da identidade que se dá na passagem do movimento a um repouso somente atingível num plano de transcendência. Com efeito, fica claro ao leitor das Confissões que uma identidade perfeita não pode ser atingida no plano mortal. Identidade daquilo que é igual a si mesmo, que não muda nem deixa de ser, encontra-se somente na Trindade, no Idipsum. Ao homem cabe a busca da identidade como imagem, e como tal ele não pode abandonar certo estado de provisoriedade, a imperfeição da criatura temporal, mutável. Deus é a possibilidade de eliminar as contradições que o tempo impõe, única saída para as aporias que restam no final do Livro X, quando o percurso narrativo foi completado e aquilo que a narração podia organizar foi organizado, aquilo que podia ser reinterpretado à luz do texto sagrado já faz parte de uma história de vida. 79

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A solução narrativa é suficiente no que diz respeito ao plano temporal, da identidade ipse: é dada a resposta à pergunta “quem sou?”, e esta resposta chega pela narração dos fatos de uma vida, iluminados pela palavra sagrada da Escritura. Mas a identidade idem, vinculada à pergunta “o que eu sou”, continua assombrando Agostinho: não há repouso enquanto não tiver alcançado a sua forma verdadeira, estável e una, imutável. Para isso, a narração não basta: precisa do recurso à palavra revelada. Agostinho recorre ao mediador entre Deus, que é uno, e ele próprio, criatura, temporal, que é “muitos, em muitas coisas e através de muitas coisas” (XI, xxix, 39), a fim de alcançar Deus e ser reconstituído. Se propõe seguir somente Deus, “esquecido do passado e não distraído, mas atraído, não para aquelas coisas que hão de vir e passar, mas para aquelas coisas que estão adiante de mim, não com a dispersão, mas com atenção” (idem). O prêmio será contemplar as delícias divinas, “que não vêm nem passam” (idem). Ele se lamenta porque seus anos decorrem entre gemidos, porque está disperso no tempo “cuja ordem ignoro”, porque seus pensamentos, “as entranhas mais íntimas da alma” são “dilaceradas por tumultuosas vicissitudes” (idem), busca se unir a esse Deus que invoca, que chama para dentro de si. O recurso à eternidade, por via da mediação crística, é a única esperança de solução para a dispersão, que é fruto da condição temporal enquanto tal. Como criatura jogada no tempo, o homem está condenado à dispersão, pois ser no tempo é ser disperso, e isso é algo que o ordenamento dos fatos, a organização narrativa, não pode resolver. Agostinho narra a história de uma conversão e sua busca de uma transcendência que exige ele buscar Deus. Faz esta busca no mundo das criaturas, às que interroga, e voltando-se para si como mais uma criatura, buscando na memória e se deparando com aquilo que é mais interior que o próprio interior. E é esta busca o que o leva a se interrogar por aquilo que é distintivo da criatura, isto é, a condição temporal. Explicitada esta questão, resta encaminhar a via da mediação, e o texto se volta para a leitura das Escrituras. É a estabilidade do idem o que o narrador das Confissões busca. O objetivo é uma reforma do caráter, no sentido ricoeuriano. Lembremos que no caráter repousam a identidade numérica, a identidade qualitativa, a continuidade no tempo e o princípio de permanência no tempo, tudo por meio da ideia de traço distintivo. E o que Agostinho procura é, justamente, uma mudança substancial: quer que aqueles traços distintivos deixem de ser os que o caracterizavam, que sejam substituídos por outros, novos. Dar conta da identidade como idem e como ipse aparece, então, como a tarefa agostiniana nas Confissões. O ipse é apresentado nos nove Livros iniciais, enquanto o idem permanece no horizonte da investigação como promessa. Se o texto pode dar conta do ipse, é a tarefa do texto, o esforço da reforma, o que põe Agostinho a caminho desse idem que se busca, será o fruto do exercício espiritual. O ipse opera no texto, o idem no autor e no leitor, no qual ainda se faz a fusão entre ambos. A solução agostiniana busca aproximar as duas formas da identidade: o ipse e o idem. Agostinho, que se pergunta “o que eu sou?” e “quem eu sou?”, não deixa uma pergunta de lado em benefício da outra, mas busca a conciliação de ambas no encontro com Deus. Somente olhando com Deus e como Deus, isto é, toda a vida num olhar só, sem antes nem 80

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depois, é que ipse e idem se recobrem perfeitamente, se fundem, se fazem uma coisa só. Identidade.

Conclusões Dissemos que procurávamos na filosofia hermenêutica ricoeuriana, mais especificamente na noção de identidade narrativa, uma via que nos permitisse a reinserção do sagrado na leitura das Confissões de Agostinho, sem abandonar o campo da filosofia filha da Aufklärung. Entendemos que o caminho está traçado e que a proposta funciona. Na nossa leitura, que toma como chave de interpretação a identidade narrativa desenvolvida por Paul Ricoeur em Soi-même comme un autre, com as noções de ipse, idem e caráter, as Confissões recuperam a integridade harmónica das partes na argumentação que outras abordagens retiram. Uma busca da identidade que se dá em dois planos, o plano temporal, do homem, nos Livros onde Agostinho fala sobre si, e o plano transcendente, da Palavra revelada, nos três Livros finais, exegêticos, funciona como fio condutor. Fé e filosofia são par para nós, mas não são um par para o autor das Confissões. A hermenêutica abriu uma via que, talvez, pode nos permitir preservar a autonomia dos discursos sem amputar a obra nem abrir mão da filosofia. O exercício se mostra, assim, profícuo e enriquecedor. Referências AGOSTINHO, S. Confissões. Trad. de João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004 ALICI, L. L’altro nell’io – in dialogo con Agostino. Roma: Città Nuova, 19994 BOCHET, I. Le firmament de l’Écriture, l’herméneutique augustinienne, Paris: Institut d’Études Augustiniennes, 2004 BOCHET, I. Augustin dans la pensée de Paul Ricoeur, Paris: Editions facultés jésuites de Paris, 2004 MARION, J-L. Au lieu de soi – l’approche de Saint Augustin. Paris: PUF, 2008.2 MORAES, S. A dialética entre o conhecimento de si e o conhecimento de Deus no livro X das Confissões de Santo Agostinho. João Pessoa: Editorial Universitária UFPB, 2011. RICOEUR, P. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990 RICOEUR, P. Temps et récit, III. Le temps raconté, Paris : Seuil (Poche), 1985, pp. 442-443.

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HELOISA E ABELARDO Eduardo Hoornaert (UFBa) 1. O estereótipo ocidental. 2. Abelardo 3. Heloisa. 4. A vitória aparente de Abelardo 5. A luta de Heloisa continua. 1. O estereótipo ocidental Desde Agostinho, impera no Ocidente um estereótipo: a perfeição consiste em lutar contra a natureza. O famoso teólogo enfia a espada da culpabilidade, fundo na consciência cristã. Ele afirma que a humanidade é uma ‘massa damnata’, marcada pelo ‘pecado original’, que a natureza é corrompida e que nós temos de nos salvar por meio de nossa força de vontade, apoiada pela graça de Deus. Esse estereótipo tem longa vida e se difunde de mil maneiras. Entre elas destaca-se uma imagem da mulher copiada da imagem de Maria virgem e mãe, nunca mulher sexuada. Maria não combina com Vênus. Por isso, a mulher decente anda com véu na cabeça, com roupa digna, vai à igreja e só pratica sexo dentro do casamento. O amor livre é proibido. Isso costuma se exemplificar por meio de casos de convivência ‘pura’ entre homem e mulher que a história do cristianismo registra. Temos os casos de Jesus e Maria Madalena (a novidade é Dan Brown), Bento e Escolástica, Agostinho e sua santa mãe Mônica (que o converte), Crisóstomo e Olímpia, Francisco e Clara de Assis (Leonardo Boff), Francisco de Sales e Jeanne de Chantal; João da Cruz e Teresa de Ávila. Convivências espirituais, sem encontros sexuais propriamente ditas. Virgens consagradas, diaconisas, freiras. Bernardo de Clairvaux, que é contemporâneo de Abelardo (e discorda dele), é símbolo desse estereótipo: ele ama Maria com um amor todo espiritual. 2. Abelardo Contra esse pano de fundo destaca-se a história de Heloisa e Abelardo. Ele é professor brilhante na universidade de Paris. Tem uns 40 anos e tem de observar o celibato, pois só clérigos celibatários podem ensinar. Aparece uma aluna muito inteligente, de 17 anos, que mora na casa de seu tio, o cônego Fulbert e Abelardo, que sente atração por ela, consegue hospedagem na casa do cônego que, não desconfiando de nada, lhe confia a sobrinha para que ele a forme na ciência. Na realidade, os dois namoram e, como não pode deixar de ser, nasce um filho (Astrolábio). Apavorado, Abelardo manda Heloisa para a casa de sua irmã na Bretanha e pensa arreglar a coisa propondo um casamento secreto. Assim ele pensa continuar a ensinar (publicamente continuaria celibatário) e dar satisfação ao cônego que não entende amor fora do casamento. Mas a artimanha pega mal. O cônego manda castrar o teólogo, que 82

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se refugia num convento e manda Heloisa também para o convento. Mas os estudantes pressionam Abelardo para que ele volte a ensinar e assim ele volta a Paris. Heloisa percebe que Abelardo, no fundo, só pensa em carreira e quer guardá-la como esposa escondida sob a capa religiosa. Ela não aceita a situação, quer ser amiga, não ‘esposa’ refugiada em convento. Certo dia, para consolar um amigo que passa por desavenças semelhantes, Abelardo escreve a ‘história de minhas desventuras’. O texto cai nas mãos de Heloisa no convento e ela começa mandando cartas para ele. Aí nasce uma das mais extraordinárias correspondências de que se tem conhecimento na história da literatura mundial. 3. Heloisa O valor dessa correspondência está na sinceridade desconcertante de Heloisa. Ela age por amor e o critica abertamente, escrevendo sem rodeios que ele teve relações com ela ‘mais por concupiscência que por afeição verdadeira’ e que ele a procurou ‘pelo gosto do prazer, mais do que pelo amor’. Ela não aceita o argumento falso de que o amor a Deus seja superior ao amor por seu homem. Na carta 3, ela escreve uma das frases mais desconcertantes da história do cristianismo, que copio aqui em latim: In omni autem – Deus scit – vitae meae statu, te magis offendere quam Deum vereor, tibi placere amplius quam Ipsi appeto. ‘Receio mais ofender a ti que a Deus, quero mais agradar a ti que a Deus’. Heloisa desmascara o ‘amor a Deus’, ela compreende que Deus funciona, no discurso de Abelardo, como subterfúgio do amor à carreira, à glória, ao status. Eis o Deus da igreja e da hipocrisia clerical. Heloisa constata que Abelardo está preso, não está livre, ou seja, não consegue ou não quer se livrar. Ela prefere o nome de amiga, mesmo de concubina ou prostituta, ao falso nome de ‘esposa’. ‘Não é o amor a Deus que me levou ao convento...Eu não tenho vocação religiosa’. Mesmo assim (e isso caracteriza as condições da vida naquele tempo) ela continua abadessa até sua morte aos 63 anos. Mas não hesita escreve que pensa o tempo todo em Abelardo, na hora das rezas e dos ofícios no mosteiro. É por amos que ele resolve não falar mais do assunto (a partir da quinta carta) por sentir que Abelardo não tem condições de falar com franqueza sobre o assunto. O resto da correspondência trata de questões ligadas à disciplina interna no mosteiro do Paráclito, onde ela é abadessa. Ela respeita a fragilidade de Abelardo, É por isso que fica no mosteiro, sem ter vocação para tanto. Sua vida é um longo grito de amor ferido, de amor ardente, de fidelidade na ternura, é uma expressão pura de ‘natureza’ ofendida, mas não traída. Ela não aceita Deus como fuga da verdade. Abelardo está todo quebrado por dentro. Ele navega entre o sucesso como professor e o fracasso como amante. Isso faz toda a diferença com Heloisa, que fica forte no sofrimento. Ela rejeita o dilema: ou ‘esposa de Cristo’ ou ‘porta do diabo’. 4. A vitória aparente de Abelardo Como escrevi cima, a partir da quinta carta Heloisa não trata mais do amor, ela acolhe os conselhos dados por Abelardo para o bom andamento da vida no mosteiro do Paracleto. Fica calada a respeito de seus sentimentos. Abelardo morre aos 63 anos, socorrido pelos monges de Cluny. Se nome funciona em todos os livros de teologia medieval e o ‘caso’ com 83

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Heloisa aparece como um ‘pecado de juventude’. A ideia do pecado aumenta ainda a autoridade da igreja e é desse modo que a igreja costuma apresentar a história de Heloisa e Abelardo, como uma história picante, um ‘divertimento’ erótico. 5. A luta de Heloisa continua Na realidade, a luta de Heloisa é fundamental. Ela coloca o amor acima da carreira, da vocação religiosa, da aceitação na sociedade. Afinal, ela diz a quem quiser ouvir: ‘Eu amo e ponto final’. Não me venha com uma conversa sobre o amor de Deus, que é (nesse caso) símbolo de uma vida contra a natureza. Se Heloisa concorda em não comentar mais o amor a partir da quinta carta, não é por submissão, mas por respeito a Abelardo em sua fragilidade. Ele sabe disso. Hoje, Heloisa sai do enquadramento medieval e se torna símbolo da atual luta a favor do respeito pela natureza. Ela defende a natureza sexual do ser humano, ela fala como mulher, simplesmente. Não entra no dilema Eva-Maria, mas unifica as imagens de Maria e de Vênus. Afinal, Vênus é imagem de uma força da natureza. Com pessoas como Heloisa, Vênus faz sua entrada no recinto cristão e declara: a mulher não é só virgem e mãe (Maria), ela é igualmente natureza sexuada (Vênus). Heloisa não é a ‘rosa a ser deflorada’ do Roman de la Rose. Quando ela diz a Abelardo:’Eu te amo, ponto final’, não é por submissão, mas pelo princípio do amor. Heloisa abandona a culpabilização do corpo humano e, por sua atitude, rejeita a castração praticada por seu tio cônego e tudo que essa castração simboliza. No fim da vida, ela pede ao abade de Cluny (que socorreu Abelardo no final da vida) uma ajuda para seu filho Astrolábio que passa por dificuldades financeiras. Aí se revela mãe.

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RUY GONÇALVES E A DISCUSSÃO DO FEMININO NA REGÊNCIA DE D. CATARINA DE ÁUSTRIA Eduardo José de Azevedo Charters Fuentes Morais (UFPB) [email protected] Luisa Stella de Oliveira Coutinho Silva (Universidade de Lisboa) [email protected]

Introdução Na Idade Média podemos considerar a presença de dois principais poderes na política: o poder eclesiástico, concentrado nas mãos do Papa e o poder secular, nas mãos dos reis e dos senhores feudais. Após a reforma religiosa realizada por Gregório VII, em função da simonia e do nicolaísmo (TOUCHARD, 1991), a Igreja Católica passou a discutir a relação da Igreja e o Estado, tendendo pela defesa da superioridade do papa sobre o rei. Dessa forma, o debate político nesse período suscitava discussões em função da verdadeira origem do poder. As afirmações do Papa Gregório VII pela Carta de Hermann de Metz sobre a supremacia divina, supostamente dada por Deus ao seu escolhido desde o original Pedro, levou a diversos conflitos com o poder real de vários países da Europa, tendo culminar importância na construção do pensamento político europeu, como os problemas políticos decorrentes dos modelos do reinado de Henrique VIII na Inglaterra, das insurreições de Lutero e especificamente as ideias de William de Occam e Marsílio de Pádua. É no tempo da reforma gregoriana que surgiram os primeiros teóricos da monarquia (TOUCHARD, 1991): na França podemos citar Abbon de Fleury no século X (MOSTERT, 1987) e Ivo de Chartres no século XI; em Inglaterra citamos John de Salisbury, que acreditava que o poder papal é sempre maior do que o real, diminuindo a dignidade do rei. Portanto, há de se observar que há uma fundamentação por parte do clero na justificação de um poder real, assim como o clero manteve as suas manifestações dirigidas ao rei e aos príncipes. Ademais, houve em função dos monarcas um grande apoio no pensamento político por parte dos legistas e canonistas. A teoria dos canonistas baseia-se na lei justa, feita pelo ministro de deus (rei) para o bem comum. Com o renascimento urbano, formaram-se as primeiras reuniões urbanas sociais. Essas podem ser politicamente classificadas, segundo a carta que lhe eram outorgadas, como comuna, cidades livres ou regime consular (TOUCHARD, 1991). Esse reflorescimento urbano trouxe muitas mudanças. Agora, já não era a fidelidade pessoal, base do sistema feudal, que garantia a coesão do grupo, mas o juramento coletivo. Essa mudança aconteceu ao mesmo tempo em que engendrou uma laicização da sociedade Diz Jean Touchard (1991) que não se pode negar que nasceu, assim, uma nova ideologia, nos meios urbanos, no final do século XIII, a qual se opunha à ordem feudal e a 85

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tudo o que esta implicava. Caracterizava-se por certa liberdade de espírito, por certo relativismo, certo cepticismo; o ideal do homem honesto tendia a substituir o do cavaleiro. Acompanhando esse desenvolvimento das ideias na História, há de se notar que o poderio intelectual que deriva ao político prático não para com a atuação de Gregório VII. Após sua morte, sucedeu uma grande movimentação intelectual, como Higo de S. Vítor, Bernardo de Lervaux... Vamos entrando, aos poucos, no Renascimento. E é nesse declínio1 dos ideais que continuou o movimento da “laicização sem equilíbrio”, nas palavras de Jean Touchard (1991, p. 224). Nesse momento político que surgem as opiniões de William de Occam e Marsílio de Pádua, para assegurar o direito de Luís da Baviera. Em Portugal, essas mudanças aconteceram de forma muito diferente e, de forma relativamente mais lenta do que nos outros períodos. É nesse período de profundas mudanças na Europa e, especificamente, em Portugal que a discussão sobre o feminino e o papel social da mulher vai se movimentar de forma cada vez mais efervescente na vida cotidiana pública. A exemplo, podemos citar as obras publicadas O "Espelho de Cristina", de Cristina de Pisan (1987); o "Tratado em Loor de las Mugeres, y de la Ca∫tidad, One∫tidad, Con∫tancia, silencio, Iu∫ticia: Com Otras muchas Particularidades, y varias Hi∫torias", de Christoval Africano (1592); o "Espelho de Casados", de João de Barros; entre muitos outros. Entretanto, vamos ressaltar, em especial, uma obra publicada e dedicada ao reinado de uma mulher, a rainha portuguesa D. Catarina de Áustria, qual seja, "Dos Privilegios & Praerogativas q ho Genero Feminino tẽ por Direito Comữ & Ordenações do Reyno mais que ho Genero Masculino", do jurista português Ruy Gonçalves (1992), publicada no ano de 1557. 1. O Renascimento em Portugal Ao contrário do que se passava em vários países, Portugal ia ao inverso das posições mais avançadas: progressivamente as ideias “heréticas” foram afastadas do reino, enquanto que a tendência a um posicionamento católico e inquisitorial foi se desenvolvendo com perseverança. Nesse espírito, o Tribunal da Inquisição foi estabelecido em Portugal em 1536, no reinado de D. João III e D. Catarina de Áustria, através da Bula Cum ad nihil magis, assinada pelo Papa em 23 de maio. Nela, nomeavam-se como inquisidores: os bispos de Lamego, Ceuta e Coimbra, e concedia a D. João III a possibilidade de nomear um quarto inquisidorgeral. A cerimônia de publicação da bula realizou-se em 22 de outubro na igreja catedral na presença do rei, cardeal, o cabido, o inquisidor-geral, o clero e o povo (BETHENCOURT, 1996). Assim, o rei D. João III esteve envolvido desde o início na criação do Tribunal da Inquisição, fazendo questão de estar presente na cerimônia inaugural, junto da sua rainha, e fundamentando a necessidade da existência da Inquisição em função da difusão do judaísmo. O primeiro auto de fé em Lisboa ocorreu no Paço da Ribeira em 1540. Foi a própria Coroa 1

Declínio no sentido de fim, e não de perda de importância.

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que se encarregou da apresentação da bula citada e criou as condições de sua execução. O próprio irmão do rei veio a ser inquisidor-geral em 1539, o cardeal D. Henrique. O Renascimento parecia estar diferente nesse país. Concorda Teófilo Braga (2009, p. 264) que: O acordar da intelligencia e o acordar da consciencia. O retemperar-se a alma humana nas fontes vivas da natureza! o triumpho do senso commum sobre todos os erros e extorsões seculares, eis a grande revolução moral completada no século XVI, resumida nas duas palavras: Renascença e Reforma. Reflectiu-se a revolução em todos os factos da ordem social, e particularmente na esphera do sentimento, no domínio das creações artisticas. O estudo da influencia da Renascença e da Reforma nas literaturas da Europa está feito; de Portugal nada se sabe; parece que o ruído da tempestade não chegou cá, e muito menos, que nenhuma acção externa exercem nas manifestações do génio nacional. Repugna à rasão este silencio. (…) Alguma causa poderosa abafava esse movimento? Era o catholicismo intolerante, que se levantava contra a tendencia critica da rasão.

Para completar essa fixação no catolicismo, juntamos um dos grandes acontecimentos católicos: o Concílio de Trento, ocorrido entre 1545 e 1563. Portugal participou ativamente desse encontro, enviando representantes e pondo em prática as disposições desse grande encontro anti-reforma. Os seus representantes foram: Frei Baltazar Limpo, da ordem do Carmo, bispo do Porto; padre Frei Jorge de Santiago, da ordem dos Pregadores; padre Frei Jerónimo d’Azambuja, também da ordem dos Pregadores; padre Frei Gaspar dos Reis, da ordem dos Pregadores, entre outros prelados que enviaram seus mandados (no pontificado de Paulo III) (CASTRO, 1944). Logo que o bispo do Porto retornou, D. João III mandou que o mesmo se reunisse com letrados para estudarem maneiras de pôr em prática os objetivos do Concílio. Não é de se estranhar que a regência da rainha D. Catarina, a seguir ao reinado de D. João III e representando seu neto D. Sebastião na menoridade, seja uma continuação de intransigência, censura e perseguição a todas as manifestações culturais, espirituais e religiosas suspeitas de poderem abrir caminho a infiltração e aos desvios da ortodoxia católica (CRUZ, 2006). Tal repressão também foi levada para o ultramar, pois o Brasil foi reprimido através do governador Mem de Sá, sob suas ordens, inclusive, proibindo as práticas sociais e religiosas índias. E assim, Portugal ia ao avesso das modernas ideias renascentistas, e já no século XVI havia uma grande “limpeza” de erasmistas, espiritualistas ou homens da cultura 2. O humanismo em Portugal teve que andar por muito tempo em lentos passos.

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Só para ilustrar, podemos citar o processo contra os professores do Colégio das Artes e concentrou em acusações sobre humanistas de destaque internacional como Diogo de Teive e George Buchanan, que “apenas” perderam seus cargos, enquanto o Frei Valentim da Luz foi queimado.

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2. A publicação de "Dos privilegios & praerogativas q ho genero feminino tẽ por direito comữ & ordenações do reyno mais que ho genero masculino" durante a regência de D. Catarina de Áustria É no reinado de D. Catarina de Áustria que foi publicada uma obra que veio a ser considerada posteriormente, por alguns, como o primeiro livro “feminista” português (PINHO, 1986 e SILVA, 2002). Trata-se da citada obra escrita em 1557 pelo aluno de Coimbra e advogado da Casa de Suplicação no âmbito da Corte Rui Gonçalves, Dos Privilegios & Praerogativas q ho Genero Feminino tẽ por Direito Comữ & Ordenações do Reyno mais que ho Genero Masculino (Gonçalves, 1992). A obra foi dedicada a D. Catarina de Áustria, com os detalhes que podemos ver no seu prólogo, que diz: Muyto alta e muyto Podero∫a Raynha no∫∫ a Senhora. (...) porque a∫∫i como ha muitas cou∫as em que os homẽs ∫am de milhor condiçam, a∫∫i outras muytas tem as molheres mayores, & mais ∫upremas prerogatiuas que os homẽs, pelo que me pareceo curio∫idade jindigna de reprehen∫am, ajuntar algữas virtudes em que as molheres forão jguaes & precederam aos homẽs, & algữs Priuilegios & Prerogatiuas com que ∫am mais priuilegiadas & fauorecidas em dereito (cou∫a mais trabalho∫a que ...), tratando ∫omente do que acho ∫cripto em ∫eu louuor & vtilidade, pois há tantos que e∫creueram ho contrario. A qual jnuençam & trabalho me na atreuo defender dos graues & excellentes auctores que e∫creueram a contraria opiniam, ∫enam e∫perando que V. A. (∫ereni∫sima ∫enhora) por me fazer mercê, & dar atruimento pera e∫creuer outras cou∫as mais jmportantes aa ∫ua Republica, ho aceite em ∫eruiço, & aproue cõ a ∫ombra de ∫ua real proteiçam, de que nacera ou∫ar e∫ta obra ∫ahir em publico, e ficar tam ∫egura & ∫em receo, que nam temeraa reprehen∫am algữa humana, & a V. A. como aa mais excellẽte & ∫uprema Prince∫a & ∫enhora do mữdo, conuẽ defender & aprouar tudo ho que ∫e escreuer em louuor do gênero feminino, pera que outros de mais erudiçã & doctrina po∫∫am dar fim & perfeiçam a e∫tes meus princípios & cometimentos, que nam ∫am mais que as amo∫tras do muyto que podem e∫creuer ne∫ta materia. (GONÇALVES, 1992, p. 4).

Na época, estava no início da regência do reino, enquanto, como dito, da menoridade de seu neto, D. Sebastião. A própria obra é precedida, na capa, do brasão das armas reais portuguesas e castelhanas da rainha D. Catarina (SILVA, 1906). Talvez não seja por acaso que o livro veio à tona no exato ano do início da regência da rainha, pois doutra maneira, como poderia o autor pedir a rainha aprovação e patrocínio para a sua defesa do gênero feminino, num reinado de homens? O livro está dividido em duas partes. Na reabilitação da mulher devido ao pensamento misógino predominante na época, traz a primeira parte, através de categorias de virtudes, exemplos de mulheres que podem ser colocadas no mesmo nível dos homens, ou até possuírem mais virtude que esses. Sobre esse momento diz Pinho (1986, p. 209): "(...) pretende Rui Gonçalves reabilitar e dignificar a figura da mulher, erguendo-a ao justo nível do prestígio do homem neste pequeno tratado dos privilégios e prerrogativas do sexo feminino (...)". 88

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Para cada virtude, de um rol não taxativo, que passa por Doctrina e ∫aber, Con∫elho, Fortaleza e magninimidade, Deuação & temor de Deos, Liberalidade e Magnificẽcia, Clemencia & mi∫ericordia, Ca∫tidade, Amor conjugal e Ouçio∫idade, ele exemplifica com inúmeras mulheres ilustres da História Mundial, detentoras dessas virtudes e muito mais e em algumas até inclui o exemplo de D. Catarina, como acontece na categoria do Conselho. Vejamos: pre∫ente a todos os cõ∫elhos & de∫pachos jmportanti∫simos a ∫ua Republica, & dahi vẽ ∫erẽ ∫eus Reynos e ∫enhorios gouerna dos pelo real juyzo Del Rey no∫∫o ∫eñor, juntamẽte com o de V. A. em tatá ju∫tiça, paz, & a∫∫o∫∫ego & tranqüilidade, q todas as nações alheas de ∫eu jmperio tẽ muyta razam dauer enueja a va∫allos ∫ubjeitos a ∫eñores, por cujo ∫aber, cõ∫elho & prudência, quando ho mữdo ∫e abra∫a em discen∫ões & guerras, elle ∫oos gozão da que todas as outras nações carecem. (GONÇALVES, 1992, p. 14).

Não deixa passar sem mencionar, novamente, D. Catarina quando discorre sobre Doctrina e ∫aber. Em suas palavras diz que sobre todas as princesas e excelentes mulheres que menciona todos naturais do Império e do mundo podem observar e ter memória do excelente governo e real cuidado que a Rainha tem em seus reinos e senhorios. Enfatiza as atuações da rainha, desde que vem ajudando a el Rey no∫∫o ∫eñor em todos os de∫pachos, a∫∫inando os perdões & outras cou∫as jmportantes a admini∫traçã da ju∫tiça, & cõi∫∫o fica a ∫ua A. mais tempo pera acudir aas guerras q cõtinuamente traz Africa, e A∫ia, & ao grade zelo q tem de mãdar enfinar & doctrinar a fee de no∫∫o Senhor Ie∫u Chri∫to, & ho culto diuino em ∫eus Reynos e ∫enhorios, & em outras partes remoti∫simas, & muyto jncognitas, & bárbaras. (GONÇALVES, 1992).

Não há dúvidas, assim e mais uma vez, da grande influência exercida por D. Catarina nos assuntos de política junto ao seu marido, o rei. Na segunda parte, diferente da inicial, aparece-nos o autor “falando como juri∫ta”. Organizando alfabeticamente, “Os quaes priuilegios & benefícios do gênero feminino vão ne∫ta parte po∫tos pela ordem do A B. C. Quanto aos vocábulos de latim pera ∫e poderem leeer & achar com mais facilidade & menos cofu∫ao” (GONÇALVES, 1992, p. 35) mostra na legislação portuguesa benefícios que favoreciam o sexo feminino, embora Pinho (1986, p. 214) defenda que “as prerrogativas dessa parte por um lado mostram “pelo reverso da medalha” a inferioridade situacional das mulheres, pois as estruturas sociais não permitiam que usufruíssem dos mesmos direitos que os homens – fragilidade que simulavam proteger concedendo falsas regalias”. Nessa parte, os privilégios ou direitos que as mulheres possuem a mais do que os homens são demonstrados sobre os mais diversos aspectos, no direito de propriedade, de testar... São algumas situações em que as mulheres aparentemente são privilegiadas em certas situações jurídicas, como, por exemplo, comentários à regra jurídica de como as mulheres honradas e que vivem honestamente não poderem ser presas por dívidas de coisa civil.

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O que nessa passagem é encarado como privilégio pode ser visto também, hoje em dia, como um instrumento de subordinação da mulher ao homem, porque é dessa forma que o modelo da mulher desejada pelo homem era privilegiado, pois diz Clement (1993): From these few examples, it should be evident that while Gonçalves defends the superiority of women in Part I, the Law that he describes in Part II circunscribes women as much as it protects them, linking and subordinating them to the men in their lives and basing its positions implicity on that it perceives to be women’s moral and physical inferiority.

Notemos que, as mulheres consideradas desonestas não eram merecedoras de tal privilégio, pois defende Ruy Gonçalves (1992, p. 52) que: e∫ta prerogatiua & priuilegio pertence aa molher quando he hone∫ta, & continente, & viue pudica, & ca∫tamente, porq ∫e for jnhone∫ta & viuer de∫one∫tamente em tal ca∫o ∫era pre∫a por diuida ciuil ∫em gozar do beneficio do gênero feminino ∫egundo afirmam os doctores comữmente.

Mas a ideia de uma introdução portuguesa do feminismo com o livro de Rui Gonçalves não é pacífica. Há quem defenda o contrário (HESPANHA, 1995), que Gonçalves apenas escreveu tal obra com o intuito de aceder ao favor real da rainha. Do que não há dúvidas, afinal, e concordamos com Cordeiro de Almeida (2005), é que a obra de Gonçalves permitia uma nova discussão sobre a condição feminina no século XVI. Conclusão Portugal, ao contrário da Europa, em geral, passou por um processo lento, misturado na passagem da Idade Média para o Renascimento. O poder e forte repressão da igreja em oposição à reforma, materializou-se em Portugal sob o poder régio, através do poder das justiças eclesiástica e inquisitorial. O reinado de D. Catarina de Áustria, a filha de Joana a Louca e neta dos Reis Católicos, mostra bem a forte maneira de pensar do medievo, movimento já ultrapassado em vários outros períodos da história ocidental europeia, o que ilustra a sua subordinação às doutrinas do catolicismo. Por outro lado, o enfoque deste artigo coloca em discussão a pertinência de se poder intitular 'Dos Privilegios & Praerogativas q ho Genero Feminino tẽ por Direito Comữ & Ordenações do Reyno mais que ho Genero Masculino' como uma obra essencialmente feminista, já que a modernidade também ressalta a posição da mulher na sociedade e discute, na literatura, sobre o seus comportamentos. A mulher portuguesa do século XVI não pode ser comparada com a mulher do século XXI. A sua posição pode ser caracterizada, hoje, como inferior, silenciosa e subordinada ao poder do pai e do marido. Exemplos não faltam (SILVA, 2012). Ademais, o assunto suscita discussões sobre gênero que até hoje ainda não foram pacificadas; mas dessa movimentação dos discursos e através de sua publicidade tem servido como instrumento de atuação no mundo, através, por exemplo, de políticas públicas3.

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No Brasil, por exemplo, podemos citar a lei Maria da Penha (LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.

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A subordinação das mulheres no período seiscentista sugeridas através das observações de Pinho (1986) e de Clement (1993), entretanto, colocam-nos num debate de gênero de outra natureza. No auge de um ataque à Igreja Católica, o reforço do poder moral da igreja, através da inquisição e do favorecimento das prerrogativas de Ruy Gonçalves são muito bem-vindas à consolidação do poder regente de D. Catarina, pois se afigura mulher virtuosa e católica, que auxiliou em muito o seu marido, o rei D. João III. A tarefa real não poderia ser mais subversiva, mostrando em duas faces a poderosa mão da igreja católica. Portanto, uma das possibilidade hermenêuticas da obra em estudo é que ela teria sido, não fundamentalmente uma apologia ao feminino, mas um instrumento de manipulação no cenário político. Ademais, Portugal era fortemente dominado por representações do feminino de inspirações religiosas judaico-cristãs, o que nos permite questionar, ou vislumbrar o poder, ou influência de ideias e práticas circulantes como a do culto mariano, o que materializa a justificação e força das normas em vigor, que subjugam a mulher a um mesmo ideal, ou representação, com, por exemplo, o arquétipo da santa-mãezinha, entre outros (SILVA, 2008), todos marcantes para a constituição da mulher brasileira, herdeira em terça parte da cultura portuguesa. Referências AFRICANO, Christoval Acosta. Tratado em Loor de las Mugeres, y de la Ca∫tidad, One∫tidad, Con∫tancia, silencio, Iu∫ticia: Com Otras muchas Particularidades, y varias Hi∫torias. Veneza: Presso Giacomo Cornetti, 1592. ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. O Sexo Devoto: Normatização e Resistência Feminina no Império Português XVI-XVIII. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005. BARROS, João. Espelho de Casados. Porto: Imprensa Portugueza, 1874. BRAGA, Teófilo. Historia Da Litteratura Portugueza. Charleton: Bibliolife, 2009, vol 19. CASTRO, José de. Portugal no Concílio de Trento. Lisboa: União Grafica, 1944. CLEMENT, Alice R. Rui Gonçalves: an Early Portuguese Jurist and the Status of Women. In: MLN. Vol. 108, nº 2, Hispanic Issue (Mar. 1993). CRUZ, Maria Augusta Lima. D. Sebastião. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2006. GONÇALVES, Rui. Dos Privilegios & Praerogativas q ho Genero Feminino tẽ por Direito Comữ & Ordenações do Reyno mais que ho Genero Masculino. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1992. HESPANHA, Manuel Antonio. O Estatuto Jurídico da Mulher na Época da Expansão. In: MOURA, Vasco Graça (dir.). Oceanos: Mulheres no Mar Salgado. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Nº 21. Jan – Mar 1995. MOSTERT, Marco. The Political Theology of Abbo of Fleury: a Study of the Ideas about Society and Law of the Tenth-Century Monastic Reform Movement. Hilversum: Verloren, 1987. PINHO, Sebastião Tavares. O Primeiro Livro “Feminista” Português (Séc. XVI). In: A mulher na sociedade portuguesa : visão histórica e perspectivas actuais / actas do colóquio. Coimbra : Instituto de História Económica e Social, 1986, vol. II. 91

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PISAN, Cristina. O espelho de Cristina. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1987. SILVA, Innocencio Francisco. Diccionario Bibliographico Portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1906, tomo 14, P – R. SILVA, Luisa Stella de Oliveira Coutinho Silva. As Primeiras Mulheres da Capitania da Paraíba: História e Direito no Brasil Colonial. 2012. Inédito. _____. Mulher Idealizada: O arquétipo da santa-mãezinha das Ordenações Filipinas. João Pessoa: Monografia (Curso de Ciências Jurídicas) - Centro Universitário de João Pessoa, 2008. SILVA, Maria Regina Tavares. Feminismo em Portugal. Lisboa: Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, 2002. TOUCHARD, Jean. História das Idéias Políticas da Grécia ao fim da Idade Média. Sintra, Portugal: Europa-América, 1991, vol. I.

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A INFIDELIDADE DO CORPO FEMININO: IMAGENS DA JUSTIÇA E DA VIOLÊNCIA NO TEXTO POPULAR IBÉRICO Hermano de França Rodrigues (UFPB/PPLP) [email protected] O artefato romanesco Brancalinda narra a trajetória de uma mulher cujo comportamento, moralmente reprovável, conspurca os preceitos ordenadores de um universo social construído sob a ótica masculina. A personagem, também denominada Claralinda, é uma jovem casada, de beleza abissal, que ignora, sem melindres, os preceitos matrimoniais de fidelidade. Ardilosamente, aproveita a ausência do marido para ceder às investidas de um cavalheiro que, embevecido por sua formosura, almeja possuí-la sexualmente. Sem nenhum pundonor, a ignominiosa esposa arquiteta, juntamente com o seu apreciador, o ato de adultério. É ela, inclusive, que fornece as diretrizes para a realização do ritual de perfídia. Surpreendentemente, a participação do amante é desvanecida na sedução que a astúcia feminina institui. Somos induzidos a enxergar o homem como uma pobre vítima que não conseguiu esquivar-se dos encantos atrativos de uma arrebatadora mulher. Observemos o seguinte excerto: _Clarinda, linda Clara, tu és linda como o sol Eu quero ficar contigonas pontas do teu lençol _Nas pontas de meu lençol, hoje sim, amanhã não; Meu marido não está em casa, foi p’ra feira d’Ascensão.

Reside, já na denominação que recebe, a idealização que torna a personagem principal um ser sedutor. Seu nome é construído mediante a união de elementos adjetivais, branca (clara) e linda, que passam a caracterizá-la fisicamente. É um ente majestoso que, metaforicamente, detém a claridade (ou brancura) suntuosa do astro solar. Esse estereótipo ecoa de uma formação discursiva, presente no imaginário do século XVIII, que tangenciou os ideais da escola romântica. Foi em plena efervescência do Romantismo português que muitos escritores e poetas, como Almeida Garrett, por exemplo, se voltaram à coleta e produção de textos populares. Em muitos deles, introjetaram tortuosamente os princípios estéticos que circulavam na época. Entre eles, a divinização da mulher, descrita sempre em sua beleza esplendorosa e acentuada brancura. Esse último atributo está ligado a um ponto de vista étnico. Tanto no texto em questão, como no simulacro cultural que dele emana, a cor é um traço fustigador da individualidade social do homem. As mulheres brancas eram aquelas que se mostravam dignas de encômios por representarem o padrão europeu, além de figurarem nas camadas mais “consideradas” da sociedade. Seria conveniente, aqui, um questionamento acerca da conduta feminina. Não estaria a mulher, num patamar superior, visto que ludibria um ente, legitimado pelas leis naturais, como seu dono? No universo semiótico e semiológico da narrativa, irrompe-se um arquétipo feminino que vaticina a esse sexo a necessidade de adaptar-se a determinados paradigmas, ideologicamente desenhados, peremptórios para sua aceitação e participação numa esfera 93

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institucional que nega as diferenças includentes entre os gêneros. Ao assumir o status angariado pelo vínculo conjugal, a mulher reserva para si comportamentos éticos que devem ser mantidos e reverenciados em favor, não de seu bem-estar e satisfação, mas em prol da dignidade masculina. Caso venha a violar um modelo de comportamento instituído como indispensável e identificador da boa índole, o olhar que o corpo social lhe encaminhará será contornado por repulsa e reprovação. No romance, a conduta desrespeitosa de Claralinda põe em declínio a sua virtuosidade. Ela burla todos os preceitos religiosos que prescrevem a fidelidade da esposa para com o marido. Desonra-o insidiosamente enquanto este se encontra apartado do lar, em virtude do exercício de atividades laborais, atreladas à caça ou ao comércio, a depender da versão examinada. Numa ótica argumentativa, a imagem de um homem trabalhador constitui um forte argumento em prol da desaprovação da mulher. Acentua a natureza pérfida daquela que, impregnada de ingratidão, despreza as virtudes de um cônjuge dedicado à provisão da família. Na balança social, a transgressão às leis da honestidade e do pudor desequilibra as relações entre homem e mulher. O brio daquele sobrepuja a falta de caráter desta. Observemos a diagramação:

A crueldade da protagonista é tamanha que, em alguns textos, o plano elaborado por ela para a efetivação de seus desejos carnais aparece circunscrito num terreno de imprecação ao consorte distante. Na intenção de que a relação extraconjugal se efetive sem empecilhos, chega a praguejar a morte do companheiro, desejando que raios iníquos caiam sobre ele, partindo-lhe a língua, e que uma faca perfure o seu coração. Tal atitude, além de corroborar a vileza da infiel mulher, deixa latente o temor que alimenta em ser descoberta em sua transgressão. Isso porque a traição, nesse âmbito, não denota uma autonomia ou sublevação do eu feminino, mas simplesmente traduz uma subserviência a um parâmetro social que determina o pensar e o agir do indivíduo conforme o papel desempenhado. O medo ergue-se, assim, como o estágio de consciência do erro, ou melhor, demarca o reconhecimento de que uma sanção se fará necessária, se o desvio vier à tona. Atentemos para os fragmentos seguintes: 94

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_Uma noite não é nada Se não fosse pelo medo O meu marido foi p’r’à caça Más raios lhe parta a língua,

para eu estar contigo, que eu tenho de meu marido p’r’à caça de Aragão um cutelo o coração

Numa leitura menos tímida, poderíamos dizer que, inconscientemente, a mulher anseia atingir, no homem, aquilo que denota, nela, índices da deficiência, da falta. A língua remete ao domínio da expressão, do discernimento, da fala crível e descomedida. O coração, por sua vez, contém-se na simbologia do acolhimento e da união. Na condição de traidora, Brancalinda perde os signos da decência e suas palavras, consequentemente, infundem o desasseio moral, sinalizando para si mesma o seu erro. Esse conflito interno, talvez explique o desejo de que forças danosas da natureza extraíam a língua do marido, cujas palavras ainda se mantêm sóbrias e abstêmias de engodos. Os sentimentos do parceiro conservam os afetos que resguardam a relação conjugal. Seu coração permanece intacto, firme e incorruptível. Essa imagem de excelência social humana, possivelmente, se institui como reflexo especular por meio do qual a esposa desleal se vê em sua essência adversa. O coração feminino, nesse caso, revela-se condescendente à desavença matrimonial. O amante não adentra no universo de conspiração, instaurado pela esposa infiel, imbuído de coragem e destemor. Ele também receia pelo desvelamento do adultério, certamente, devido ao fato de sua participação, no crime contra a honra de um bom homem, exigir uma punição tão severa quanto aquela dirigida à fêmea traidora, ou seja, a morte. Ao declarar à Claralinda a veleidade de tê-la durante uma noite serena e tranquila, sem a iminência de um flagrante, o cauteloso rapaz já antevê os riscos que um relacionamento com uma mulher maritalmente comprometida pode trazer. A expressão qualificativa sem temor, associada ao vocábulo noite, encerra uma informação pressuposta que sustenta nossas inferências. Essa estrutura conduz-nos à constatação de que o amante já tinha conhecimento de que a mulher, objeto de sua cobiça, fruía de ocasiões favoráveis à quebra da fidelidade conjugal. Supunha, certamente, que esses momentos se prestavam a encontros furtivos, sem sustos e sobressaltos. É por conhecer tais indicações que o astuto comparsa expõe a sua cúmplice a ânsia de tê-la, sexualmente, numa ocasião em que a escuridão lhes fosse generosa e não, denunciante. A intimidade como a interpela, denominando-a de meu amor sem ser repreendido, alude a uma traição que já se processava através de gestos, olhares e complacências. Observemos os seguintes versos: _Brancalinda, Brancalinda quem me dera estar contigo

Brancalinda, meu amor; uma noite sem temor!

Chegada a noite do tão esperado encontro, a falsa esposa abriga o amásio sob os tão desejados lençóis. As horas passam e, à meia-noite, a tranqüilidade dos algozes é interrompida pela presença imponente do marido que, inesperadamente, bate à porta. Um dado que nos chama atenção, aqui, é a referência cronológica meia-noite. É sabido que as forças sobrenaturais caminham junto às camadas populares desde a Antiguidade. Tornaram-se mais sólidas e mais fantásticas na Idade Média quando o maniqueísmo cristão passou a influenciá-las diretamente. Os eventos naturais, biológicos, culturais, econômicos foram obrigados a ocupar dois polos: o do bem e o do mal. Quanto mais abstruso o elemento, mais 95

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superstições o envolviam. Uma delas, por exemplo, recai sobre o caráter místico de determinadas horas ou frações do dia. O folclore reserva para as doze horas às insígnias da revelação, da intervenção divina, do aparecimento das entidades sobre-humanas. Provavelmente, a incorporação desse elemento temporal esteja relacionada à aparição imprevista do marido. É como se forças sobre-humanas se colocassem como coadjuvantes na tentativa de levá-lo a descobrir o ato desonroso: Onze horas, meia-noite Bateu uma, bateu duas,

marido à porta bateu; Claralinda não falou

As insistentes investidas do esposo contra a porta despertam, inicialmente, o silêncio dos que se encontram, em conduta libidinosa, dentro do recinto. Essa ausência de ruídos é duplamente significativa: para os que transgridem a moralidade, sinaliza a aflição, o desespero para elaborar evasivas, o prenúncio da descoberta; para o fiel marido pode ser um sinal de que algum mal acomete a estimada esposa ou um indício de uma possível traição. Institui-se, a partir de então, um jogo em que fatos e mentiras se digladiam. Observe o trecho que se segue: _Claralinda está doente, ou tem lá outros amores; ando à procura das chaves para abrir os corredores

O primeiro subterfúgio da mulher desleal é tentar justificar a delonga em atender aquele a quem deve, numa postura transigente, explicações de seus atos. A escapatória utilizada é a declaração de que perdera as chaves e, portanto, necessitara de tempo para procurá-las. O astucioso esposo refuta a desculpa ardilosa da indigna companheira, colocando em relevo o valor atribuído por ela ao simples objeto. Apregoa, com severidade, que as chaves, se feitas de ouro ou prata, são provenientes do dinheiro que ele detém e, por isso, o esforço descomedido em encontrá-las não tem fundamento. Essa fala coloca em cena um instrumento dominatório de natureza estritamente masculina. Como a narrativa incorpora traços identitários de uma sociedade patriarcal, o homem se ergue como o detentor dos bens, o provedor da esposa, o fundador da instituição familiar. A mulher, reclusa ao lar e, por isso, impossibilitada de exercer atividades laborais fora do ambiente doméstico, deixa-se submeter à proeminência econômica do homem, passando a concebê-la, socialmente, como fator de sobrevivência e dignidade. O intento do implacável marido é anular, por intermédio da constatação de sua posição abastada, a argumento inconsistente de seu cônjuge. Recuperemos os versos seguintes: Pois se elas eram de prata, meu dinheiro me custou; Se elas eram de ouro meu dinheiro as pagou

Outros vestígios da infidelidade da esposa são duramente contestados pelo desconfiado esposo. De imediato, interroga-a sobre a presença de um cavalo em seus domínios. Como réplica, recebe da oprobriosa mulher uma fala envolta, mais uma vez, em esquivas. Ela, habilmente, afirma que o estranho animal consiste num presente dirigido a ele por seu sogro. Dentro do lar inóspito, depara-se com um casaco, alheio a seu uso, que incita 96

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sua curiosidade e suspeita. Prontamente, pede a companheira explicações sobre a vestimenta. O inocente homem é agraciado com a resposta de que aquele indumento, concluído naquele instante, é um regalo produzido por sua gentil e abnegada mulher. Chega, também, a questioná-la sobre um chapéu, enfeitado a galão, que lhe chama visivelmente a atenção. No intuito de deixar latente sua condição de boa esposa, assevera ser, este, mais um mimo engendrado por suas próprias mãos para o saudoso esposo: _De quem é aquele cavalo _É para ti, meu marido, _De quem é aquele casaco _É para ti, meu marido _De quem é aquele chapéu _É para ti, meu marido,

que na minha loja guinchou? que meu pai te comprou. qu’está ali dependurado? mesmo agora acabado enfeitado a galão? feito pelas minhas mãos

Em todas as versões analisadas, os falsos “presentes” conduzidos ao marido traído procedem, inventivamente, dos familiares de sua estimada mulher, geralmente o pai e irmão, por se tratarem de instrumentos circunscritos ao universo masculino e que, logicamente, não poderiam ser produzidos por uma frágil esposa: cavalo, armas, espadas. Além disso, a inserção dos atores familiares se revela congruente ao período sócio-histórico, altamente conservador, que tangencia o romance. Seria execrável que uma mulher, legitimamente casada, recebesse visitas de outros homens na ausência do marido. Tal conduta poderia macular fortemente a sua honra, levando-a a uma reprovação social. Somente parentes poderiam fazê-lo e, com isso, salvaguardar a reputação requerida pelo status feminino. Observemos o trecho abaixo: De quem é aquele cavalo branco que na minha estrebaria entrou? _É vosso, meu D. Alberto, que meu pai vo-lo mandou. De quem é aquelas armas que no meu cabinete estão? _São vossas, meu D. Alberto, que vos manda meu irmão

Enquanto os sinais se situaram na ordem do material, do inanimado, a ardilosa esposa conseguiu, com argúcia, se esquivar. Todavia, o marido, falto de confiança, surpreende-se com mais um elemento: uma respiração mais prolongada que advém de seu quarto. Ao indagá-la quem estaria a suspirar em seu leito, a ignominiosa companheira, tomada pelo temor, perde o ânimo e desfalece, esmorecendo-se ao chão. O marido, então, tem a comprovação do adultério. Há versões em que o amante é flagrado e a mulher, diante do ocorrido, confessa seu ato vergonhoso, assumindo toda responsabilidade pela traição e rogando, humildemente, que ela seja punida, com a morte, em vez do desonroso cavaleiro com quem manteve relações extra-matrimoniais: De quem é aquele suspiro que no meu leito suspirou? Claralinda não falou, caiu no chão e desmaiou. _Quem é aquele cavaleiro Diz-me tu, ó Brancalinda, _Não mates o cavaleiro, Antes mate Brancalinda,

que no meu quarto suspirou? como para aqui entrou que não tem culpa de nada; que traição te tem armada

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Como se percebe, nos fragmentos acima, a mulher não demonstra ter o menor respeito ou apreço para com o marido. Não há preocupação, por parte dela, de tentar justificar seu grave desvio de conduta. Coloca-se, aliás, em defesa da vida do amante e ignora completamente o valor de sua existência. Em termos humanos, tal comportamento pode parecer enobrecedor uma vez que uma vida é dada em prol de outra. Entretanto, no que diz respeito às conformações sociais, o gesto ratifica o caráter pérfido da esposa, visto que trai duplamente o seu cônjuge: desonra-o em sua ausência e, o mais estarrecedor, envergonha-o diante de seus olhos. A punição dirigida aos algozes varia de texto para texto. Em algumas peças, o bondoso esposo atende a súplica da desonesta mulher e decide não matar o inescrupuloso cavaleiro. Entretanto, prenuncia ao traidor um castigo: será alvo de igual falsidade. Vivendo ao lado de uma adúltera, resta-lhe apenas a surpresa de encontrar, sob os seus lençóis, um ignóbil estrangeiro. Sofrerá, portanto, a mesma ação ignominiosa que praticou. É preciso não deixar de falar que o amante, a depender do texto, ostenta o papel temático de amigo. Não é a esmo que detinha informações sobre o cotidiano do casal. Sabia, inclusive, que a bela Claralinda passava noites sem a companhia do marido. Esses subsídios discursivos dão relevo ao deslustre e infâmia dos companheiros que se deixaram levar pelo prazer carnal e suplantaram a lealdade do casamento e a concórdia da amizade. A nobreza de caráter reside naquele que rebaixa a dignidade e eleva os sentimentos, salvaguardando a vida de um ser movido pelo fingimento e abjeção. Vejamos os seguintes versos: _Eu não mato o cavaleiro, ele que coma o seu pão; Nem te mato, Brancalinda, sempre te tive afeição E quem é aquele homem que na minha cama está? _É vosso amigo seu, qu’aqui o veio visitar.

Deixá-la a mercê do olhar reprovador da família constitui a sanção mais recorrente. É uma forma de marcá-la negativamente no seio social, de oprimi-la perante os seus e, com isso, torná-la paradigma do que deveria ser impraticável. Em algumas narrativas, o austero marido lança-a ante o ser paterno para que este tome conhecimento da vida licenciosa da filha, cujo comportamento, assaz questionável, avilta a sociedade. Com isso, o enunciador nega a hombridade da figura do pai que se vê, nesse momento, em presença do fracasso de seus valores e princípios. A educação que dirigiu aos descendentes se mostrou, então, ineficiente e debilitada. Notemos os seguintes versos: Hei-de-t’ir levar a teu pai, e hei-de-lhe dizer assim: Aqui tem a sua filha, que não me quer só a mim.

Os consanguíneos de uma adúltera também padecem de uma forte estigmatização social. Em determinadas comunidades, prevalece a ideologia da corrupção do sangue, ou seja, se uma mulher envereda pelo caminho da libertinagem e infidelidade conjugal, toda a genealogia feminina, a qual ela pertence, será considerada “degenerada”, pervertida, propensa ao vício e à insídia. Para amainar o repúdio externo, a transgressão deve ser incisivamente 98

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rebatida e a infratora deve receber, com severidade, a punição que lhe cabe. Somente assim, o fato servirá como exemplo para todas aquelas que estiverem religiosamente comprometidas com um homem. No romance, acontece algo análogo. O marido almeja exterminar a desleal esposa diante das irmãs dela, a fim de que estas, ao presenciarem o castigo, temam fazer o mesmo com os seus cônjuges: _Vai chamar as tuas manas, que te despeçam p’ra o fim; Que não sejam p’ra’os seus maridos como tu fostes p’ra mim

A performance dos atores, no enunciado, simula o drama da contrafação conjugal sob uma projeção locucionária em primeira pessoa. Os actantes discursivos se apropriam da expressão narratológica e, na condição aparente de enunciadores, conduzem os acontecimentos numa perspectiva marcadamente subjetiva. O resultado é um espetáculo social que escapa à exterioridade do mundo e adquire, na enunciação, um revestimento ideológico específico. A moral, a ética e a condescendência humanas passam a endossar os conceitos institucionais de uma sociedade regida pelas leis culturais que determinam direitos aos homens e deveres às mulheres. A embreagem, linguisticamente marcada, afugenta os atores para uma zona antrópica identitária onde o engodo feminino impõe-lhes uma aproximação que define a direção discursiva de seus enunciados. A plateia antropológica assiste, assim, a uma encenação que se desenvolve a partir de seus reclamos e protestos. Não há um distanciamento manifesto entre a instância do dito actancial e as vozes portadoras dos dizeres sociais, projetadas pelos entes enunciantes. Com isso, o adultério, altercação temática da narrativa, transita de sua existência testemunhal para o palco da vivência imediata. O conluio entre a mulher infida e seu comparte situa-se num patamar enunciativo onde as falam seguem o percurso incongruente dos desejos. As paixões trazem à tona a preleção proibida através da qual o marido (homem vitimado pelos interesses escusos) faz-se presente, embora esteja fisicamente afastado desse círculo confabulatório. O receio, a apreensão e o medo presentificam-no, conceitualmente, nas falas que instauram a trama atroz. Como contrapeso, assim que envereda pelo caminho da revelação, promove uma ruptura na vicissitude dos acontecimentos, fundando uma enunciação, assenhorada por julgamentos e suposições, que impele vítima e traidores para uma mesma zona de confronto e identificação. Os pais, o irmão e as irmãs de Brancalinda não apresentam um trajeto narrativo explícito e autônomo. Apresentam-se como seres desprovidos de faculdade elocutiva, cuja existência depende da expressão delineada pelos atores-enunciadores que os instituem, discursivamente, como enunciatários. Em termos persuasivos, exercem a função de foro directivo, conduzindo os pontos de vista dos sujeitos enunciantes para uma “jurisdição” instauradora de uma dada verdade. Os familiares masculinos são colocados, estrategicamente, como vozes de apoio. Eles fundamentam uma enunciação, erguida sobre alicerces fraudulentos, que carece, portanto, de argumentos “apropriados” para que o engodo se mantenha. Culturalmente, não obtemperam as insígnias que a eles são atribuídas. O cavalo, as espadas, o capote e o chapéu fundam um campo semântico que gira em torno do ser homem. Como meio de torná-las espacialmente válidas, a adúltera encaminha essas “provas” para os 99

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únicos indivíduos socialmente aptos a visitá-la na ausência de seu senhor. É uma solução bastante sagaz. O companheiro traído designa a figura do sogro e das cunhadas como vozes de contestação e anseio de consciência. Ao materializá-las em seu discurso, intenta negar a nobreza de caráter de toda uma linhagem, em cujo receptáculo reside um membro corrompido e infeccioso, capaz de fazer propagar o ato vergonhoso. Concorre para os pais a função de estabelecer os limites comportamentais dos que estão sob os seus cuidados e compete, especificamente, aos filhos mais velhos o exemplo para os mais jovens. No texto, esses encargos sociais são claramente contestados quando a mulher infiel é exposta aos olhos da censura e exprobração de seus familiares. Diante de tal acontecimento, os progenitores consignam o seu malogro enquanto instrutores e as irmãs se veem destituídas de sua compostura e alinho moral. Observemos os excertos abaixo: _Meu sogro e minha sogra, Qu’eu não a mandei matar

aí têm sua filha, pelo bem qu’eu le queria.

_Vai chamar as tuas manas, que te despeçam p’ra’o fim; Que não sejam p’ra’os seus maridos como tu fostes p’ra mim.

Um texto, em particular, registra uma informação bastante curiosa. A mulher, prestes a ser extirpada pelo crime que cometera, manifesta o seu status elevado como forma de aplacar a ira do rigoroso marido. Talvez, para ela, a procedência privilegiada (filha de um doutor) configure um instrumento angariador de respeito e clemência. Além disso, para reforçar o clima de comoção, alia a posição social à jovialidade da qual desfruta. Consequentemente, projeta-se como uma mulher socialmente merecedora de indulto e portadora de uma ingenuidade que a impulsiona ao pecado. Argumentativamente, exime-se de qualquer culpabilidade “intencional”. A pouca idade constitui, nesse prisma, o fator determinante para que ceda à tentação do espírito e aos desejos da carne. Constatemos os versos que se seguem: _Nós éramos três irmãs, Eu por ser a mais novinha

todas filhas dum doutor; é que caí neste clamor.

O romance detém um revestimento espacial nada anódino. Os espaços aprisionam as vozes que confirmam aquilo que as palavras, em sua superficialidade concreta, escondem. A primeira orientação locativa que nos chama a atenção é a feira de Ascensão. O evento faz parte das comemorações que integram a Quinta-feira de Ascensão, um rito religioso católico, preservado em território português, que celebra a elevação de Jesus Cristo aos Céus, depois de quarenta dias de sua ressurreição. No calendário lusitano, a solenidade ocorre trinta e nove dias após o domingo da Páscoa e tem, como atrativo maior, uma feira onde a população estabelece atividades comerciais dos mais variados tipos. Prolonga-se por vários dias e perdura a noite toda. Esses designativos são de extrema importância para compreendermos os motivos que, na narrativa, levam o cônjuge a afastar-se de seu lar. Provavelmente, dirige-se à festividade para instituir, aí, um fazer laboral, o que justificaria sua longa ausência do corpo familiar e explicaria, sobretudo, o fato de a esposa permanecer restrita ao ambiente doméstico. Na linha histórica que se irrompe no texto, a participação de uma mulher casada em cerimônia 100

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pública, sem o acompanhamento do esposo, constituiria uma grave violação do protocolo social. Por edificar-se, preponderantemente, como referência religiosa, o local atribui ao homem traído uma semântica cultural positiva. Embreado nesse topos, passa a compartilhar dos valores ideológicos que nele circulam. O enunciador constrói, assim, a imagem de um indivíduo laborioso e detentor de devoção e fé. Tais atributos situam-se, naturalmente, como signos de pertença e aceitação. Aqueles que não reverenciam os costumes sagrados conservam-se, portanto, distantes desse espaço. É o caso dos pícaros amantes que, enunciativamente, posicionam-se numa debreagem, tanto em relação ao ambiente físico (a feira), quanto aos ensinamentos sacros que dele emanam. Em dadas versões, a ancoragem espacial feira de Ascensão cede lugar para campos de Aragão. Com isso, a peça restaura seu pacto discursivo com a Idade Média. O reino de Aragão foi um dos territórios cristãos erigidos na Península Ibérica, durante a longa batalha pela expulsão dos mouros. Anexado ao Estado de Pamplona em 925, conseguiu sua independência apenas em 1305. Seu último rei, Fernando de Aragão II, mediante himeneu com Isabel de Castela, unificou os reinos numa monarquia centralizadora que deu origem à moderna nação espanhola. O enunciador funda esse locus como uma região onde o espírito de caça é revivido. É bom lembrar que príncipes e nobres feudais consideravam a prática de perseguição aos animais selvagens um esporte de diversão e confraternização entre os seus. A depender do animal a ser capturado, os fidalgos-caçadores passavam horas e, mesmo dias, embrenhados nas florestas, buscando aprisionar ou exterminar a presa selecionada. No romance, D. Alberto (em outras compilações, Conde Alberto), homem marcado pela desonra matrimonial, dedica-se a tal oficio. Aliás, arreda-se de sua esposa e de sua casa para executálo. O título honorífico que carrega, Dom ou Conde, coloca-o entre os membros de uma classe social abastada e, nessa condição, como já fizemos questão de assinalar, usufrui da caça como ocupação ligeira e agradável. Nas versões onde a nomeação não é registrada, possivelmente, o caçador encalce os animais para a provisão da família. É uma leitura que não pode ser descartada, dado o itinerário temporal e espacial do romance. Seja um ilustre fidalgo ou um simples “plebeu”, o marido de Brancalinda extrai dos campos de Aragão, locação onde se encontra culturalmente embreado, atributos que o engrandecem em força física e brio. A ação que perpetra acentua seu ânimo, virilidade e coragem, tornando-o um personagem completamente indômito. Não é por acaso que o adultério é tramado sob a luz da apreensão, do receio e do medo, em tal grau que os traidores temem por suas próprias vidas. Em relação a estes, Aragão se ergue como uma referência tópica que separa radicalmente a intrepidez e a covardia, o duelo físico e o combate conspirativo, a probidade e a depravação. Dele debreados, os atores aleivosos consideram-se livres para cometer o ato repulsivo e infame. A habitação do casal, representada em seus cômodos constituintes, como portas, estrebaria, gabinete, corredores e leito, figura como um metaespaço onde os actantes do enunciado, antes dispostos em dois pólos locativos distintos, passam a partilhar de uma mesma zona de embate e subversão de valores. É nesse ambiente que se dá a falência da lealdade matrimonial. Ironicamente, o espaço instituído pelos parâmetros religiosos como recinto da decência, da educação e da instrução, subleva-se como lugar de corrupção, dolo e 101

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fraude. Aquela responsável por preservá-lo, sustê-lo em bases morais sólidas, desencadeia uma ação que o faz desmoronar, em termos éticos. Na verdade, encontramo-nos diante de uma instituição que falha, de forma retumbante, em sua função corretiva, seja em relação à eliminação dos maus costumes, seja no que diz respeito à infusão de conceitos sãos. É bom observar que, em cada compartimento desse macro espaço, há um vestígio que compõe o ritual espúrio. O amante deixa o cavalo na estrebaria, adentra na casa da mulher desejada, percorre o corredor e, aí, despe-se do casaco. Dirige ao gabinete e espolia-se de seus expedientes bélicos. Ao chegar à alcova, entrega-se ao ato sexual. A exata localização dessas insígnias projeta um percurso já previsto e conveniente àquele que, habitualmente, se ausenta de seu lar. Usando-se de uma lógica cultural, espera-se que o marido, ao introduzir-se em seus domínios, restitua o animal de montaria à cocheira e, de ímpeto, penetre em sua morada. Se ele retorna de um trabalho fatigante ou de uma caça exaurível, o mais provável é que se prive das pesadas vestimentas e deposite suas armas no lugar apropriado. A saudade da esposa o conduzirá, precisamente, ao leito e, lá, saciará suas vontades. Dessa forma, constatamos uma simetria que põe esposo e amante em posições semelhantes. Quiçá seja essa relação que promova e sustente o estado de desconfiança que culmina na comprovação do adultério. Vejamos a ilustração que se segue: Percurso “pressuposto” do marido

Percurso do amante

A fixação do tempo, no romance Brancalinda, submete-se às forças incoativas da ação dramática. O fluxo dialógico confere uma circunstancialidade contígua que reflete à própria interação do homem com o meio físico, histórico e social. Os atores se contendem num espetáculo, automatizado pelo concurso falsamente espontâneo de suas vozes, onde a objetividade dos atos e dos estados se desfaz no caráter estacionário e confinante do presente. A encenação transita, pois, ancorada no palco do agora, condensando os espaços, travestindo os sujeitos e recompondo uma realidade que se sujeita à morte para, assim, ressurgir, majestosamente, em outro ambiente. À semelhança de uma prática antropofágica, o mundo enunciativo alimenta-se do passado ideológico, para dele extrair os conceitos que, numa posterioridade, serão convertidos em acontecimentos coevos. O tempo, da forma como se apresenta na narrativa, permite que os fatos estejam, ilusoriamente, localizados numa zona de identificação passional entre enunciador e enunciatário. 102

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Estruturalmente organizada como uma peça para fins representativos, a narrativa desenvolve-se mediante falas e réplicas que incorrem dos personagens atuantes no enunciado. A teatralidade, sob o estatuto preponderante do presente do indicativo, urde um cosmos no qual a vida se refaz conjuntamente com a linguagem. A enunciação revela, aí, o seu lado mais antropológico. O curso conversacional imprime uma verdade que está em conformidade com a exterioridade do mundo. Em alguns momentos, porém, esse movimento formal de vozes é interrompido por uma entidade enunciante/narratológica que, embreada na cena mas debreada de sua cronologia, promove uma erupção textual marcada por uma visão onipresente e sequenciadora dos eventos. Estes aparecem materializados em terceira pessoa e comportam ações que se desenvolvem no pretérito perfeito. Essa peculiaridade recupera um traço característico do gênero. O romance popular, em sua funcionalidade social, prestava-se verdadeiramente a rústicas representações teatrais. Nelas, havia um sujeito responsável por demarcar a progressão vocal dos atores e introduzir comentários acerca de determinados episódios a fim de assegurar a compreensão do público. Vejamos alguns versos: Onze horas, meia noite, Bateu uma, bateu duas,

marido à porta bateu; Claralinda não falou

Claralinda, linda clara,

caiu no chão, desmaiou

A utilização do pretérito perfeito, além de recompor as circunstâncias fenofísicas da narrativa, ampara uma noção semântica de distanciamento veridictório que afiança a ubiquidade discursiva do enunciador/narrador. Espacialmente conscrito numa instância antrópica de identificação, intervém com uma fala distal que encadeia o acabado e legítimo ao progressivo e parcial. As referências temporais que esboça são aquelas incompatíveis à consciência dos atores. O marido desonrado e a mulher adúltera alimentam-se do inesperado, do improvável e do duvidoso. Qualquer indício de fidúcia em suas falas afetaria a coerência temática que, isotopicamente, mantém a linha lógica da narrativa. As informações dissonantes ao diálogo actorial constituem coordenadas axiológicas que revelam a posição do enunciatário sobre o evento em discussão. Correspondem a pontos de vista que excedem a mera constatação ou comprovação factual, projetando sobres os enunciados uma orientação argumentativa a favor daquele que se apresenta como vítima de um ato torpe. Uma estrutura crônica reentrante nas versões examinadas é a oposição entre o hoje e o amanhã. A primeira grandeza sustém a acessão da formosa mulher ao apetite amoroso de seu admirador. Traduz a permissividade, o oportuno, o favorável, isto é, satisfaz as condições requeridas para a ligação azáfama entre os amantes. Ao dia seguinte – o amanhã – agregam-se os semas da negação, da recusa, do interditado. Encerra uma significação que comporta a consciência e culpabilidade feminina ante um circunspecto desvio de conduta. Como sabemos, o ato de libertinagem é idealizado pelo homem desejoso, mas a consumação é aquiescida pela mulher que se compraz com os elogios que recebe.

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Considerações Finais A literatura oral, produto de uma reconstrução coletiva e, por isso, arquetípica, manifesta uma instabilidade, quer estrutural, quer conceitual, desencadeadora de uma identidade linguística, antropológica e, sobretudo, histórica. Os gêneros que a transigem partilham diferenças e similitudes que se desvelam, subitamente, na interação interlocutiva dos sujeitos responsáveis por sua manifestação. A enunciação assume, simbolicamente, a função de áugure cujos devaneios trazem as insígnias que nos elevam ao reconhecimento daquilo que, conscientemente ou não, produzimos. Em termos conceptuais, a narrativa examinada sustenta uma axiologia puramente tradicional, decorrente dos valores culturais preservados pelos grupos que dela fazem uso. Comporta em seu cerne, os princípios ordenadores de uma sociedade pautada em posições, radicalmente, religiosas, econômicas e morais. A ética é vislumbrada a partir da corrupção da mulher. O ato de adultério assinala a decomposição de sua índole. Ao marido traído, revestido em hombridade e bom caráter, é dado o poder se subjugá-la segundo sua vontade. A lei social prescreve tal soberania. Referências BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. A tradição ibérica no romanceiro paraibano. João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 2000. _______. O romanceiro tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem semiótica. Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Linguística. São Paulo: USP, 1999. GREIMAS, A. J. Os Atuantes, os Atores e as Figuras. In: Semiótica Narrativa e Textual. São Paulo: Cultrix, 1977. RODRIGUES, Hermano de França. Da singularidade do homem à multiplicidade do eu: Enunciação e Subjetividade no texto literário de expressão popular. Tese de Doutorado UFPB. João Pessoa, 2010.

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O HOMEM INTERIOR E O DESPRENDIMENTO NA MÍSTICA DE MEISTER ECKHART Carlos Bezerra de Lima Júnior (UFPB) [email protected] Eckhart foi um místico que nasceu em 1260, em Thüringen. Fundador dos Gottesfreunde, representado principalmente por Heinrich Seuse, Johannes Tauler, seus discípulos, e por escritos anônimos alemães. Todos esses nomes se empenhavam em desenvolver uma mística especulativa, como pouco se fez anteriormente na história do pensamento humano. Meister Eckhart morreu em 1328, dias antes de ser condenado por heresia pela igreja. Seus ensinamentos ecoaram através do vulgo e de monges e monjas, para quem pregou, através de terras germânicas, chegando até mais tarde a Nicolaus Cusanus, Agrippa von Nettesheim, Paracelsus, Valentin Weigel, Jacob Böhme, entre outros. Eckhart é, portanto, uma peça importante para que seja montada uma história da mística renascentista. A mística pode ser considerada uma postura, uma busca, um estudo, um saber, uma atitude etc. que visa à experiência mística. Logo, a depender da concepção, a mística coincidiria com uma ética: é o que se considera majoritariamente. Uma rápida definição que sozinha compreende em si noções fulcrais para o entendimento da mística em sentido geral de forma muito sucinta é a de Smith (1980, p. 19), que diz que a mística é para ser descrita mais como uma atitude da mente, uma tendência inata da alma humana, que busca transcender a razão e atingir uma experiência direta de Deus, e que acredita que é possível para a alma humana estar unida com a Realidade Última, quando ‘Deus deixa de ser um objeto e se torna uma experiência’. Misticismo tem sido definido como ‘o sentimento imediato da unidade do eu com Deus (...) é o esforço para estabelecer a imediatidade1 da vida em Deus como tal - nesta embriaguez-de-Deus, em que o eu e o mundo são igualmente esquecidos, o sujeito conhece a si mesmo para estar na posse da maior e mais completa verdade.

Quando se fala que “o eu e o mundo são esquecidos”, Smith toca em um ponto de extrema importância, a saber, a extinção das dualidades. A experiência mística é algo que se dá quando é extinta a separação das coisas, pois que a alma se une a deus e a realidade é compreendida como uma única unidade, por isso é imediata, pois a união é a formação de uma única coisa, de maneira tal que não há mais dois elementos para serem ligados por outra coisa. Essa extinção das dualidades gera discussões problemáticas quando se entende que todas as formas de pensar sempre compreendem uma relação de dois elementos, e em conformidades à linguagem moderna, sujeito com objeto, ou eu com não-eu; porque o que é levado ao entendimento é que essa dualidade é o problema do homem, pois, se a extinção dela é a experiência mística, que é a felicidade e a realização do objetivo do homem, então a

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A palavra “immediateness” não encontra um correspondente direto no português. Aqui foi utilizado “imediatidade”, mas talvez possa ser traduzido como “imediação” ou até “imediatismo”.

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dualidade é o oposto, é a causa do distanciamento do homem com Deus, é o pecado, o sofrimento. As dimensões éticas, epistemológicas e ontológicas de qualquer filosofia se estabelecem através de discursos aparentemente distintos. Por exemplo, quando se fala de ética, procura-se discutir em quê consiste a bondade, o que é certo ou errado na vida, a virtude etc. Quando se fala de metafísica, busca-se uma clareza conceitual do ser, ou da consistência da realidade. Entretanto, em Meister Eckhart, todas essas supostas disciplinas da filosofia têm um ponto em comum no qual se tornam uma única coisa, um único discurso, sustentado por um único ponto, que dele e para ele confluem necessariamente. Esse ponto é o desprendimento, que talvez deva ser interpretado muito mais como um estado que como uma ação. Dessa forma, a partir desse estado, um discurso sobre ética necessariamente seria a mesma coisa que um discurso sobre metafísica, sobre conhecimento, sobre deus. Concorda Giachini (2006, p. 20) a dizer: Dividir o pensamento eckhartiano em temas tais como ética, ontologia, antropologia e outros é uma arbitrariedade. Em Eckhart, cada sermão busca atingir sempre o todo, fazer com que e deixar que Deus seja gerado na alma humana. Em cada sermão, o pensamento especulativo de Eckhart parte e desemboca na unidade, no Um.

Essa unidade é a representação do fim das tensões, do discurso. É o silêncio. Para Eckhart, a verdade paira sobre o silêncio. Então, para o homem chegar ao silêncio absoluto, precisa aprender a calar-se: isso significa na filosofia do mestre que ele precisa aprender a calar a criatura. Veja-se que enquanto místico, Meister Eckhart tem preocupação com a experiência mística, que é, para ele, a união do homem com deus. Nela, é gerado na alma o próprio deus, com a dissolução da individualidade do homem. Essa geração de deus na alma é exatamente o desprendimento: o ponto mais fulcral da filosofia de Meister Eckhart. É efetivamente um esvaziamento absoluto do homem, quando ele se livra dos pensamentos, das emoções, enfim, de tudo o que faz dele criatura, separando-o de deus. É preciso entender que em Eckhart há uma clara distinção entre o homem interior e o homem exterior2. O homem exterior é aquele que está preso às criaturas. É a criação. Esse homem é privado da verdade, e está imerso em um mundo no qual tudo é relativo. O homem exterior está limitado pelos seus sentidos e, por onde for, encontrará apenas sofrimento. Igualmente é preso ao tempo, é preso na duração. O exterior é o homem servido de seus sentidos, ou seja, entregue e em relação objetiva com o mundo. O outro homem é o interior: aquele voltado à austeridade, a deus. O homem interior trava uma intensa luta contra o exterior, em função de chegar a deus. Esse objetivo do homem se dá através do desprendimento. O ser humano interior é aquele que não se entrega às sensações, a não ser quando as usa com algo que tenha como finalidade fortalecer esse próprio lado do ser humano interior. Em justificativa a isso que foi dito, exprime o próprio Meister Eckhart (2005, p. 116-117):

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Nas palavras do mestre, der inner mensche e der üzer mensche.

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os senhores dizem-nos que em cada homem, existem dois tipos de homens. O primeiro é chamado o homem exterior, isto é, a sensibilidade. Este homem é servido pelos cinco sentidos (...). O segundo homem é chamado o homem interior, que é a parte mais íntima do homem. Agora você deve saber que um homem religioso que ama a Deus usa os poderes da alma no homem exterior não mais do que os cinco sentidos requerem como uma questão de necessidade. E o homem interior não foca sua atenção aos cinco sentidos, exceto na medida em que ele é seu guia e líder. Ele cuida para que eles não se voltem ao seu objeto de forma bestial, como fazem algumas pessoas que vivem de acordo com os desejos da carne, os quais são mais apropriadamente descritos como animais do que como seres humanos.

Dessa forma, o uso dos sentidos a ter como fins a si próprios, ou seja, a ter como fim sensações ou relações que dependem delas, é o fortalecimento do ser humano exterior. Os sentidos devem servir ao homem como meios para que ele fortaleça seu lado interior, pois. Para Eckhart, Deus se une ao homem quando o ser humano interior suprime totalmente o exterior. Então quando o homem vive nesse âmbito relacional do ser humano exterior, tendo seu lado interior obstruído pelos sentidos, ele se distancia de Deus, pois que Deus se realiza no ser humano interior. A natureza exterior retira o homem dele mesmo, animalizando-o. Então o que há é um jogo em que o ser humano exterior fica cada vez mais escravo da exterioridade e o interior fica cada vez mais impulsionado para seu interior, na medida em que são exercitados. Como diz Meister Eckhart (2005, p. 123), “Nunca pode haver qualquer alegria física ou carnal sem perda espiritual, pois a carne cobiça contra o Espírito e o Espírito contra a carne”. De maneira muito elucidativa, podem-se explicar melhor esses tipos através das palavras de Malherbe (2006, p. 21): O homem exterior é o homem introduzido em sua rede de relações, em sua vida social, em sua função ou em sua atribuição particular. E o homem em sua existência mundana é o homem que age, persegue objetivo, realiza uma obra, experimenta satisfação nas criaturas; o homem interior, em compensação, é o homem em sua essência singular de filho de Deus, é o homem na identidade profunda e verdadeira.

Em decorrência da maneira especial que Meister Eckhart tem de ilustrar seus argumentos através de metáforas muito “palpáveis” pela abstração, vê-se nesse ponto que ele faz uso de uma. Além dessas e outras, talvez nenhuma passagem de comentadores ou do próprio mestre consiga transmitir o real significado dessa sistemática divisão do homem entre homem interior e exterior que essa, do próprio Eckhart (2006, p. 118): Tomemos uma analogia (...). Uma porta se abre e fecha através de uma dobradiça. Agora, se eu comparar as partes exteriores da porta com o homem exterior, posso comparar a dobradiça com o homem interior. Quando a porta abre ou fecha, as partes exteriores se movem para lá e para cá, mas a dobradiça permanece imutável em um lugar e não se modifica em nada como resultado. Por isso, é também aqui, se você só sabe como agir corretamente.

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Fica muito clara a distinção de duas espécies de instâncias, que Eckhart chama em alguns sermões de criatura e criador. A criatura é tudo o que é finito, relacional, dualista, objetivo, temporal. Criador se refere ao infinito, eterno e livre. Sobre a criatura não se pode afirmar verdades, não há a possibilidade de haver liberdade, pois que há uma relação estrutural de interdependências mútuas entre as coisas. Então se a parcialidade está contida na criatura, o criador não admite relatividades, nele tudo é absoluto. Nesse caso, o absoluto é o mesmo que o nada, e, portanto, é inexprimível através da quantidade ou qualidade. A diferença entre o homem exterior e interior pode ser entendida de outra maneira, a saber que o homem exterior está sempre para deus, enquanto que o homem interior está sempre para a deidade, ou divindade3, a depender da tradução. Isso se explica através da necessária distinção que se encontra na filosofia de Eckhart existente entre esses dois elementos, deus e deidade. Como explica Silva (2004, p. 524), Deus (...) é o mostrar-se da Deidade como Deus (o Pai que gera o Filho e a força que os une, o Espírito Santo), portanto, é uma imagem. E, na imagem, há sempre uma distinção (o que ela mesma é, e aquilo para o que ela aponta). Se há ainda uma distinção em Deus, não será em Deus que o homem deverá estabelecer morada e permanecer. A bem-aventurança a que o homem anseia e busca só a encontrará na Unidade da Deidade. E a Deidade está além de toda imagem e aparência.

A deidade é algo que está para além da linguagem, que é, portanto, indizível, um mistério insondável, que se apresenta muitas vezes como Deus nas palavras do mestre como apenas enquanto palavra a cumprir sua função semântica. Ou seja, aquilo que ela se refere não se pode dizer. Essa distinção é importante, pois explica como o desprendimento lança o homem em um quadro tão sublime que ele trespassa inclusive a noção de deus. É de ajuda também a breve explicação dada por Malherbe (2006, p. 22): Deus é o ser exterior da divindade, ele é a divindade tal como o homem a pode conceber. A divindade é a natureza inefável de Deus. Deus é a divindade tal como a pode considerar o homem exterior. A divindade é o ser íntimo, interior de Deus que não se revela a não ser ao homem interior, além de toda meditação, no centro da meditação silenciosa.

Pois, o desprendimento aí pode ser traduzido por “desprendimento das criaturas”, de tudo aquilo que tira dele a liberdade. A obra do mestre está repleta de referências desse desprendimento inabalável. Para elucidá-lo, Meister Eckhart (2005, p. 36-37) em seu Daz buoch der götlîchen troestunge diz: Se, portanto, tu quiseres ter e encontrar plena alegria e consolo em Deus, faça com que tu sejas despojado de todas as criaturas, de toda a consolação das criaturas. Por certo, enquanto criaturas te confortam e são capazes de te confortar, tu nunca encontrarás verdadeiro conforto. Mas, se nada pode te confortar com exceção de Deus, verdadeiramente Deus vai te consolar, e com Ele e n'Ele tudo aquilo é deleite. Se tu estás consolado pelo que não é Deus, tu terás conforto nem aqui nem acolá. Se, no entanto, as criaturas não 3

Nas palavras do mestre, Got e gotheit.

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te consolam e tu não as aprecias, tu encontrarás conforto, tanto aqui como acolá.

Em outra tradução do mesmo Daz buoch der götlîchen troestunge, vê-se Eckhart demonstrando exatamente como se dá esse desvencilhar do homem da criatura, irradiando-se a deus. Eis, então, que diz Eckhart (1991, p. 65-66): Se fosse possível esvaziar perfeitamente uma vasilha e mantê-la vazia de tudo o que pode enchê-la, inclusive do ar, a vasilha sem dúvida renegaria e esqueceria a sua natureza, e o vazio a levantaria até o céu. Da mesma forma o estar nu, pobre e vazio de todas as criaturas soergue a alma para Deus.

Uma vez que é tirada da vasilha tudo aquilo que dá a ela o que a compõe, ou seja, todos os atributos ou características, não sobrará nada dela. De outra maneira a dizer: se for tirada de um objeto todo o seu ser, tornar-se-á o objeto nada. Surpreendentemente, e ainda mais para a igreja da época, esse nada é, para Eckhart, deus. Então, quando o homem alcança o desprendimento completo, ele se torna um com deus. Em miúdas palavras, esse é o coração da mística de Meister Eckhart, que explica o desprendimento a dizer (1998, p. 49): O desprendimento é isso: é o espírito não afetado por alegria e tristeza, honra ou desgraça; o desprendimento é como uma montanha de chumbo sendo golpeada pelo vento. Aqueles que se tornaram imóveis desta forma são semelhantes a Deus. Para Deus ser divino, ele deve ser imóvel, e daí vem a sua pureza, sua simplicidade e sua imutabilidade. Portanto, se as pessoas estão a se tornarem como Deus, na medida em que isso é possível, elas devem adquirir o desprendimento. Isto levará a pureza; e pureza conduzirá à simplicidade; e simplicidade conduzirá à imutabilidade. Isso é como as pessoas tornam-se semelhantes a Deus. Mas esse processo depende da graça de Deus. Uma vez que a graça divina atrai as pessoas para longe das preocupações mundanas e transitórias.

Uma montanha de chumbo tem uma magnitude tão imensa que é absolutamente indiferente ao vento – que lhe nada é capaz de fazer. Essa é a condição da alma desprendida. Por isso que o homem se iguala a deus, pois assim como esse, o homem se tornará perfeito e imperturbável pelo que é mundano; e assim permanecerá na alegria e no regozijo eterno, assim como deus. É notável a centralidade que o desprendimento toma na sua filosofia. Isso se dá de tal modo que Meister Eckhart chega a literalmente dizer que o desprendimento é preferível ao amor, por exemplo, para a união do homem a Deus, como se prova na seguinte passagem do seu Von abegescheidenheit (ECKHART, 1998, p. 47): Eu louvo o desprendimento mais que o amor. A melhor coisa sobre o amor é que me obriga a amar a Deus. O desprendimento, por outro lado, força Deus a me amar. É muito mais nobre eu obrigar Deus a me amar que eu me obrigar a amar Deus. A razão é que Deus pode se juntar e se unir a mim muito mais intimamente do que eu possa me unir a ele. O desprendimento obriga Deus a me amar, porque tudo ama estar em seu lugar natural. O lugar natural de Deus é onde há harmonia e pureza; e o desprendimento traz essas qualidades. Portanto, Deus tem necessidade de amar um coração desprendido.

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Para completar o pensamento, e acentuar ainda mais essa distinção, Eckhart (1998, p. 47-58) adiante diz: Também louvo mais o desprendimento que o amor porque o amor me obriga a sofrer todas as coisas em propósito de Deus, enquanto o desprendimento me faz receptivo de nada, exceto Deus. É muito mais nobre ser receptivo de nada, exceto Deus, do que sofrer todas as coisas em propósito de Deus. Quando as pessoas sofrem, elas naturalmente concentram suas mentes nas causas externas de seu sofrimento. Mas o desprendimento não tem causas externas. O desprendimento é receptivo de nada, exceto Deus, porque o processo de algo ser recebido deve evoluir de um receptáculo. O desprendimento cria um receptáculo espiritual para Deus, porque esvazia o coração de tudo exceto Deus. E Deus é tão simples e tão sutil que ele pode facilmente se inserir dentro de um coração desprendido. Portanto, o desprendimento é receptivo de nada, exceto Deus.

Essas talvez sejam duas das passagens mais expressivas e, para a igreja do século XIV, berrantes, do pensamento do autor. Na verdade é um trecho caríssimo para toda a mística que se seguirá a partir de Meister Eckhart, pois supervaloriza o desprendimento, pondo-o em um nível tão alto que é superior ao amor, e não para por aí. Eckhart (1998, p. 48) também põe abaixo do desprendimento outros valores fundamentais do cristianismo, como a humildade, como se vê abaixo: Eu louvo o desprendimento mais que a humildade. Isto é porque a humildade pode existir sem o desprendimento, mas o desprendimento perfeito não pode existir sem humildade perfeita. Na verdade perfeita humildade tende a destruir a si mesma, enquanto o desprendimento não deixa nada para destruir. Assim humildade leva em direção ao desprendimento - e duas virtudes são sempre melhor que uma.

Não somente fundado nesse argumento em função de provar ser o desprendimento mais importante que a humildade, Meister Eckhart explica melhor essa distinção, deixando cada vez mais clara a posição dessa espécie de desapego em sua filosofia, como explicita abaixo (1998, p. 48): Também louvo o desprendimento mais que a humildade, porque a humildade perfeita curva-se diante de todas as criaturas, tratando todas as criaturas como superiores; dessa forma a humildade faz as pessoas se concentrarem naquilo que é externo a elas mesmas. Mas o desprendimento permanece dentro de si. Olhar para fora nunca pode ser tão nobre como permanecer dentro de si mesmo. O desprendimento não se curva diante de coisa alguma, nem se afirmar acima de coisa alguma. Ele nem deseja estar acima nem abaixo. Ele pretende ficar em apenas em si mesmo, sem causar nem alegria nem tristeza a ninguém, sem querer nem igualdade, nem desigualdade com ninguém, nada desejando em particular. Ele não pretende ser coisa alguma. Se as pessoas desejam tornar-se algo, não podem estar desprendidas, porque o desprendimento não quer ser nada. Por esta razão o desprendimento não é um fardo para ninguém.

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Eckhart também faz menção da superioridade do desprendimento em relação à misericórdia, concluindo assim sua ideia de que a supremacia do desprendimento em relação aos principais cultuados valores cristãos, o que constitui uma situação digna de pô-lo talvez justamente em suspeita de heresia. Entretanto, se entendido o sentido de suas proposições, com todas as considerações de sua filosofia, entender-se-á que há uma razoabilidade de julgamento do mestre. Sobre essa superioridade do desprendimento à misericórdia, diz Eckhart (2005, p. 111): Também louvo o desprendimento mais que toda a misericórdia, porque misericórdia significa simplesmente que o homem, saindo de si mesmo, volta-se para a falha de seus companheiros e por isso seu coração está perturbado. O desprendimento é livre a partir disso, que permanece em si mesmo e não se permite ser perturbado por nada, porque, desde que nada pode perturbar um homem, não é bem com ele. Em suma, se eu considerar todas as virtudes, verificarei que nada é tão completamente sem defeitos e assim aplicável a Deus, como é o desprendimento.

Pois, a tomar esses dados em consideração, vê-se que o desprendimento é o centro para o qual os argumentos do mestre se direcionam. É a meta do homem, e também a meta de deus. Toda essa importância dada ao desprendimento consta não só no seu Von abegescheidenheit, mas também ao longo de toda sua obra, em cada sermão, em cada tratado. É preciso saber que através do desprendimento o homem alcança a unidade com a deidade, superando inclusive a imagem de deus, como dito anteriormente. Através do desprendimento o homem atinge a alegria eterna, a verdade absoluta. Em seu Von edeln menschen, Meister Eckhart enumerará seis degraus da vivência humana, a começar pela inspiração nos santos do cristianismo (primeiro degrau), a percepção da exterioridade do que é mundano e a passagem à busca por deus (segundo degrau), o afastamento completo do que é exterior, com gozo de alegria (terceiro degrau), a tomada do amor como parâmetro de vida (quarto degrau), a obtenção da paz (quinto degrau) e, por fim, o desprendimento total (sexto degrau). Dados esses passos para se chegar ao desprendimento, percebe-se que para Eckhart, o desprendimento é o nível máximo da vivência humana, na qual o homem cumpre seu destino, cumpre seu objetivo de vida. Assim explica Eckhart (2005, p. 95): Na sexta etapa, o homem é deformado e transformado na natureza eterna de Deus. Como ele tem a plena perfeição e, esquecido de coisas impermanentes e da vida temporal, é atraído, transportado à imagem de Deus e se torna um filho de Deus. Não há nenhuma etapa suplementar e nem superior. É o descanso eterno e bem-aventurança. A finalidade do homem interior e novo é a vida eterna.

Ou seja, o homem é “de-formado”, é tirada dele sua forma, e posta outra, a forma de deus. E deus o faz de muito bom grado, pois esse é seu objetivo, e também o objetivo do homem. Logo, deus quer que o homem de desprenda. Deus desvairadamente corre ao homem quando este se desprende. Como diz Eckhart (2006, p. 178): “Deus carece tanto de nossa amizade que não pode esperar que lhe façamos pedidos; ele vem ao nosso encontro e nos pede que sejamos seus amigos, pois de nós ele deseja que queiramos que ele queira nos perdoar”. 111

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Percebe-se, portanto, que o homem exterior está preso dentro da impermanência e da relatividade. O homem interior é sua única saída para a conquista da eternidade, do gozo esplêndido do criador. É o abandono do sofrimento, da morte, de tudo o que é perecível. O homem interior é aquele que se abre para a experiência mística, dada por deus como graça divina. É o ato que deus quer, mesmo na eternidade, tanto praticar. Em Eckhart, o desprendimento é uma forma de experiência mística, e, portanto, é imediata. Por isso que se compreende, na verdade, o que quer dizer desprendimento. O homem se unirá à deus, à deidade, quando se livrar de todas as mediações, podendo obter um contato imediato – que já não poderá ser contato, e nem outra palavra cujo sentido não conote unidade. O desprendimento é a experiência mística na linguagem de Meister Eckhart. A vida é celebrada pelo homem interior através do desprendimento. A morte é dada quando o homem se entrega à exterioridade. E reina o sofrimento. Sendo assim, toda a potência espiritual encontra seu furor no desprendimento, no qual retorna a criatura ao criador e lá se regozija na alegria eterna, findando o homem, findando deus, como que jorrando em ato toda sua infinidade de potência, em um transbordar de significado cuja magnitude encerra a dúvida, o receio e toda outra espécie de limitação. E se saberá em plenitude que a vida valeu a pena, ou melhor, que não há pena, há apenas o engano – que já fora abandonado. REFERÊNCIAS ECKART, Meister: From the book of divine consolation. In: O’NEAL, D. Meister Eckhart, from whom God hid nothing. Boston: New Seed Books, 2005. ECKHART, Meister. In praise of detachment. In: WEYER, R. V. de. Eckhart in a nutshell. Londres: Hodder and Stoughton, 1998. ECKHART, Meister. Sermões alemães. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006. Vols. 1 e 2. ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1991. ECKHART, Meister: On detachment. In: O’NEAL, D. Meister Eckhart, from whom God hid nothing. Boston: New Seed Books, 2005. ECKHART, Meister: The nobleman. In: O’NEAL, D. Meister Eckhart, from whom God hid nothing. Boston: New Seed Books, 2005. FORMAN, R. K. C. Meister Eckhart: The mystic as theologian, an experiment in methodology. Shaftesbury: Element, 1991. MALHERBE, J. Sofrer Deus: a pregação de Mestre Eckhart. Aparecida: Editora Santuário, 2006. SILVA, A. J. Mestre Eckhart, sua vida, sua mística. In: COSTA, M. R. N.; DE BONI, L. A. (Orgs.). A ética medieval face aos desafios da contemporaneidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. SMITH, M. The nature and meaning of mysticism. In: WOODS, R. Understanding mysticism. Garden City: Image Books, 1980.

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VOZES ENTRECRUZADAS: MEDIUNIDADE, HERESIA E SANTIDADE EM JOANA D’ARC Iracilda Cavalcante de Freitas Gonçalves Universidade Federal da Paraíba (UFPB) [email protected] Uma doutrina, seja religiosa, política ou filosófica, é um conjunto de discursos instituídos como verdades, em um dado contexto social, histórico e ideológico, e partilhado por uma quantidade numerosa de indivíduos. Estes, denominados de adeptos, identificam-se pela assunção das “mesmas verdades e a aceitação de certa regra – mais ou menos flexível – de conformidade com os discursos validados” (FOUCAULT, 2000 p. 42). Todavia, essa pertença doutrinária não está marcada apenas pela aceitação dos mesmos princípios e a proibição dos que a ela não pertencem. Os sujeitos adeptos são questionados o tempo todo pelo discurso que sustenta e pelo modo como o produz e o faz circular em circunstâncias dadas. A doutrina controla, pois, os discursos e os sujeitos que deles se utilizam, seja para ligá-los entre si, seja para diferenciá-los dos fieis de outros sistemas doutrinários. Pelo discurso proferido pelo sujeito, a doutrina identifica a sua pertença aos discursos validados. Desse modo, princípios formulados em desacordo com as verdades instituídas são considerados como sendo heresia e, em consequência, seus usuários reconhecidos como heréticos. Para Foucault, “a heresia e a ortodoxia não derivam de um exagero fanático dos mecanismos doutrinários, elas lhes pertencem fundamentalmente” (FOUCAULT, 2000, p. 42), ou seja, a heresia é um princípio fundante de qualquer discurso doutrinário: todo discurso contrário aos princípios selecionados serão classificados, indiscutivelmente, como aberração, falsidade. Nas palavras de Foucault: “uma teratologia do saber” (FOUCAULT, 2000, p. 33). Colocada com o status de princípio constitutivo, a heresia passa por um processo de naturalização, perdendo o efeito de sentido negativo que lhe foi dado, por exemplo, no contexto da inquisição, instituída pelo sistema religioso católico. Desse modo, somos convidados a compreender que o problema não é o discurso herético, mas o modo como às doutrinas, de uma forma geral, tratam os sujeitos que formulam discursos fora da ordem discursiva estabelecidas por elas. Como aplicação teórica desses conceitos proposto por Foucault, propomo-nos lançar um breve olhar na Idade Média, século XV, com o objetivo de observar como nesse momento histórico o sistema religioso Católico lidava com a questão dos discursos heréticos e, consequentemente, com o sujeito acusado de formular e fazer circular heresias. Para tanto, selecionamos, dentre tantos sujeitos acusados como heréticos, o produtor de discursos e adepto da doutrina Católica (re)conhecido pelo nome de Joana d’Arc, personagem cujos feitos e ditos circulam no campo dos discurso da história e da Religião. Os discursos da História e da Religião registram marcas discursivas que denunciam a trajetória da construção da identidade de herege, atribuída a Joana d’Arc pelo discurso religioso da Igreja católica na Idade Média. Neste trabalho, tentamos cruzar discursos produzidos em dois lugares distintos do campo discursivo religioso: o discurso da Igreja 113

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católica e do Espiritismo. Nosso objetivo é compreender como a doutrina Espírita, observando discursos que circularam no processo inquisitorial movido contra Joana d’Arc pelo tribunal inquisitorial, discursiviza o lugar da heresia, construído pelo discurso católico, para esse sujeito, nesse momento histórico. Como discurso que constitui parte da doutrina Espírita, figurando enquanto literatura complementar, utilizamos como referencial a pesquisa realizada pelo adepto Leon Denis registrada no livro Joana d’Arc Médium. Dele, retiramos enunciados produzidos por Joana e seus inquisidores, durante seu processo inquisitorial que, aqui, serão utilizadas como objeto de análise. Discursos históricos registram que Joana d’Arc foi uma aldeã Francesa, filha de camponeses, viveu no século XV, mais precisamente em 1429, na aldeia de Domremy, cidade de Lorena. Aos dezoitos anos, integrou o exército francês na posição de comandante e venceu batalhas contra os Ingleses. Traída e vendida por franceses, foi presa pelos ingleses e respondeu a processo movido pelo tribunal da inquisição instituída pela Igreja Católica. Por não se submeter aos preceitos dessa doutrina, foi condenada como herege a morrer na fogueira, pena máxima atribuída aos que não se conformavam aos princípios doutrinários naquele momento histórico. Ficou conhecida com o epíteto de “bruxa”, “feiticeira”, “mártir da inquisição” “heroína francesa e, por fim, “santa Católica”. Em que consistiu, para o discurso religioso Católico, a heresia de Joana d’Arc? Como a Igreja construiu a identidade de herege de Joana d’Arc? São essas perguntas que buscaremos responder, por meio da análise de discursos proferidos pela ré e seus inquisidores durante o processo inquisitorial. Joana d’Arc, acusada de herege, foi submetida a práticas como interrogatórios sucessivos e sessão de tortura que, mesmo levando-a exaustão, não a fez abdicar de seus princípios, os quais consideravam autenticamente “cristãos”. A sua imagem de herege foi, então, construída por meio de um jogo de perguntas e respostas que tinha como objetivo, sondar a sua compreensão sobre os princípios cristãos e, ao mesmo tempo, condená-la por ser considerada uma adepta que recusava adotar como seus os princípios doutrinários que a Igreja adotava. Para a Igreja, Joana colocou-se radicalmente em oposição a ordem social e religiosa sobre a qual afirma ser fiel atuante, infringindo, assim, os princípios doutrinários sobres os quais afirmava a sua pertença. Para o sistema religioso católico, muitos foram os comportamentos, inadequados aos costumes vigentes, adotados por Joana; dentre eles, o fato de não se portar no lugar de mulher construído no contexto social e religiosos da Idade Média: usou cabelos curtos e descobertos, vestiu trajes masculinos, integrou exército na posição de comandante, contexto em que o único lugar reservado as mulheres era o de “alegrar” o dia a dia dos soldados. Joana, também, foi acusada de se colocar como missionária divina responsável pelo resgate da unidade do reino francês, espaço reservado para os grandes comandantes de exércitos e não para um mensageiro divino, especialmente, revestido de figura feminina. Segundo relato de Joana, ela foi alçada a posição de missionária divina pelas famosas vozes que ouvia desde os treze anos de idade. Vejamos textualmente o que diziam as vozes: “é preciso que vás a socorro do delfim, para que, por teu intermédio, ele recobre o seu reino”. Assumir estado de graça por aceitar a condição de enviada e escolhida por Deus para salvar a 114

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França do jugo inglês foi, pois, para a futura heroína, motivo de condenação. Respaldada pelas vozes, vejamos como Joana, quando questionada, faz referência ao assunto: “vim ao encontro do rei para salvar a França, guiada por Deus e por seus santos Espíritos” e, ainda: “Venho da parte do Rei do céu e vos trago o socorro do céu! Em resposta a pergunta do inquisidor: “Deus odeia os ingleses?” ela responde: “do ódio de Deus aos ingleses nada sei; mas, Ele quer que os ingleses saiam da França e voltem para seu país” (DENIS, s/d, p.174). Sobre a integração de Joana ao exército francês, na posição de comandante, a sua fala sinaliza e fortalece, ainda mais, a questão da missão divina e do amparo dos mensageiros divinos à missionária escolhida. Vejamos, para a fala de Joana: “sou uma pobre rapariga, que não sabe cavalgar, nem guerrear!”, as vozes respondem: “filha de Deus, vai, serei teu amparo” e, complementa: “Vai, vai, nos te ajudaremos!”. Embora para a Igreja a posição de adepta assumida por Joana d’Arc tenha sido colocada em xeque, ela se considerava uma cristã autêntica que tinha o privilégio de ser guiada por vozes de santos. Esta foi sua resposta aos inquisidores quando questionada sobre sua fé religiosa: “Sou boa cristã e boa cristã morrerei” e, acerca do santo ao qual afirmava receber orientações: “S. Miguel me ensinou a bem proceder e a frequentar a Igreja”. A afirmação de Joana sobre a manutenção de contatos intermitentes com Santos Católicos, seja por meio de diálogos, seja por meio de visões foi considerada a maior das heresias, ou porque não dizer a maior delas, uma vez que essa possibilidade, apenas, poderia ser atribuída a sacerdotes da Igreja. Sobre essa temática, vejamos o diálogo com os seus inquisidores: _Toquei em Santa Catarina, que me apareceu visivelmente (DENIS,s/d, p. 40). _Beijaste ou abraçaste Santa Catarina ou Santa Margarida? (DENIS, s/d, p. 41.) _Abracei-as ambas. _Vi S. Miguel e os anjos, com os olhos do meu corpo, tão perfeitamente como vos vejo. E, quando se afastavam de mim, eu chorava e bem quisera que me levassem consigo. _Como explicas que as santas te respondam? _Quando faço apelo a Santa Catarina ela e Santa Margarida apelam para Deus e, depois, por ordem de Deus, me dão a resposta. _Eles aqui estão sem que os vejais (DENIS, s/d, 134). _Que dizem tuas vozes? _Dizem-me: ‘Não tenhas medo; responde desassombradamente; Deus te ajudará’. (DENIS, s/d, p.155).

Segundo, o discurso da Igreja, outra heresia assumida por Joana diz respeito à questão da sua relação com os pais. Joana partiu da sua aldeia à França, em cumprimento da sua missão, sem pedir a permissão dos seus pais e nem tampouco comunicá-los sobre sua decisão. Procedimento que feriu os princípios da Igreja no que diz respeito ao princípio de horar pai e mãe. Vejamos o que diz o diálogo travado com seus inquisidores sobre esse assunto: _Acreditavas proceder bem partindo sem permissão de teu pai e de tua mãe? _ Sempre obedeci a meu pai e a minha mãe em tudo, exceto no que respeitava a minha partida (DENIS, s/d, p. 77).

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_Quando deixaste pai e mãe, não consideraste estar cometendo um pecado?! _Pois que Deus ordenava, era preciso fazer. Mesmo que eu tivesse cem pais e cem mães e que fosse filha de rei, ainda assim teria partido!” (DENIS, s/d, p. 77).

Como se pode observar a obediência de Joana ao seu Deus estava sempre em primeiro lugar: “pois que Deus ordenava, era preciso cumprir”. Procedimento que considerava originalmente cristã, uma vez que na sua concepção de adepta da Igreja, Deus deveria sempre estar em evidência. Essa crença na autoridade suprema ao seu Deus a faz considerar-se como filha em estado de obediência e não em situação de pecado mortal, como queriam os seus inquisidores. Para a Igreja, Joana ao rejeitar a necessidade de desvencilhar-se desse e de outros pecados, renegou, também o princípio da confissão, fato que se constitui em assumir mais uma heresia. Vejamos a sua resposta a seguinte pergunta do inquisidor: “_Julgas, pois, inútil confessar-te, ainda que em estado de pecado mortal?” “_Jamais cometi pecado mortal”, respondeu Joana. Imbuída da ideia de obediência ao seu Deus, Joana não compreendia a dimensão das consequências que tomava a sua “não submissão” aos princípios adotados pelos seguidores dessa Igreja. Estes a acusaram, também, de utilizar práticas de magia e de sortilégios. Vejamos o diálogo cujo jogo de palavras tem como objetivo induzi-la a assumir sua identidade de bruxa e/ou feiticeira _Defendias o estandarte, ou o estandarte é que te defendia? (DENIS, p. 135). _Fosse do estandarte ou de Joana a vitória, tudo pertencia a Deus. _Mas, era no estandarte ou em ti mesma que fundavas a esperança da vitória? _Em Deus e em nada mais. _Todos os meus atos e palavras estão nas mãos de Deus e confio nele (DENIS, s/d, p. 136).

Segundo relatos de Joana, como já foi dito, desde os treze anos ela deixou-se ser orientada por vozes de mensageiros considerados divinos. Para ela, estes funcionavam como os verdadeiros intermediadores entre ela e a divindade. Nem durante o interrogatório com seus inquisidores, sob os efeitos de práticas de portutra, Joana abriu mão das orientações desses enviados fez, pois, questão de reafirmar a ascendência das “vozes espirituais” sobre “as vozes da igreja”. A Igreja, representada pelos sacerdotes, oficialmente alçada a mediadora entre Deus e os homens, figurou em segundo plano. O ato de não submeter-se aos princípios dessa doutrina foi considerado uma heresia imperdoável que a levou à fogueira. Observemos o trecho do diálogo que versa sobre o tema: _Joana queres submeter-te a Igreja? _Vim ao encontro do rei para salvação da Franca, guiada por Deus e por seus santos Espíritos. A essa Igreja, a de lá do Alto, me submeto, com relação a tudo o que tenho feito e dito! _Aí está uma palavra bastante grave. Entre ti e Deus, há a Igreja. Queres, sim ou não, submeter-te a Igreja?

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_Assim, recusas submeter-te a Igreja, recusas renegar as tuas visões diabólicas? _Reporto-me a Deus somente. Pelo que respeita as minhas visões, não aceito o julgamento de homem algum! (DENIS, s/d, p. 137) _A voz me disse que abjurar é uma traição. A verdade é que Deus me enviou. O que fiz esta bem feito (DENIS, s/d, p. 143).

Cinco séculos depois, à Joana d’Arc herética a Igreja atribui o status de santa. À doutrina católica não foi inserida novos princípios; quanto ao discurso de Joana d’Arc, este permaneceu irretocável o que fez, então, com que esse sistema religioso atribuísse a um dizer herético o caráter de princípio doutrinário? Como, então, a Igreja produziu a identidade de santidade para Joana d’Arc? Para a Igreja, enquanto doutrina religiosa, santificar significa atribuir o epíteto de adepto doutrinário àquele que, em vida, aceitou as verdades legitimadas e viveu em conformidade com elas. Conforme Andrade (2008, p. 241) nessa “instituição, existe um objetivo claramente definido em suas estratégias de beatificação e canonização: fornecer modelos de conduta centrados na adesão à fé cristã”. Continua explicando a autora: “o principal ingrediente para retratar seus escolhidos reside no destaque dado à sua adesão à fé cristã. As narrativas do Vaticano reforçam sempre o temor a Deus que sempre esteve presente em suas vidas. (ANDRADE, 2008, p. 254). A Igreja consagrou Joana d’Arc como santa por meio da identificação de elementos considerados pela Igreja como estabelecedores desse status; a morte pelo martírio é um deles: a adepta foi posta para ser queimada na fogueira, ainda, viva; e, mesmo ciente do gênero de morte a que seria submetida, não a temeu, aceitou-a pacificamente em nome do Deus cuja ordens estava submetida. Durante o suplício, a mártir pediu para segurar uma cruz e chamou por Jesus, prática que representou a reafirmação de sua fidelidade a fé religiosa Cristã. Andrade (2008, p.246) afirma que na valorização do papel do mártir está a “primeira manifestação da santidade no cristianismo” Outro princípio de santidade foi a vida de devotamento e de sacrifícios adotada pela adepta. Joana, conforme relatos históricos, viveu uma vida pautada nos princípios cristã e sacrificou sua própria vida em prol da liberdade e unificação do povo francês. Outro ponto fundamental na atribuição da sua identidade de santa, segundo Denis (s/d) foi o fato de que, conforme os representantes da igreja, Joana, também, produziu “curas milagrosas” em adeptos da Igreja a cujas preces atendera. Ao atribuir o título de santa a Joana d’Arc, a Igreja não só aceita como verdade doutrinária as ideias divulgadas pela adepta como, também, todos os atos praticados por ela. Entendemos que esses discursos e essas ações recebem valores doutrinários pelo lugar do dizer que a ela é atribuído, ou seja, o lugar discursivo de santa. Investida dessa posição ela pode ser considerada uma virgem imaculada, enviada por Deus em missão. Vivência missionária que, por ser de origem divina, foi passível de ser orientada por mensageiros divinos. Pelo discurso religioso Católico a desconstrução do discurso herético de Joana d’Arc passa, portanto, obrigatoriamente pela instituição da noção de santidade. Em fins do século XIX, a questão de o sujeito poder ouvir vozes e travar diálogos com seres que ressurgem do além passa a ter um lugar como objeto de estudo em vários campos do 117

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conhecimento. Nesse momento histórico, uma área de estudo inscrita como pertencendo aos domínios do saber religioso, filosófico e, também, científico, conhecido com o nome de Doutrina Espírita, sobressaiu-se por se propor a estudar o fenômeno da comunicação com seres extraterrestres. Essa possibilidade de intercâmbio foi, então, denominada de mediunidade e o sujeito capaz de se comunicar com esses seres, intitulados de médium. Um dos princípios que constitui essa doutrina é, pois, a possibilidade de comunicação entre os “vivos” e os “mortos”. Para esse domínio do saber, a comunicação com pessoas que já passaram pelo fenômeno da morte é uma possibilidade real, uma vez que todos os seres humanos já nascem organicamente preparados para realizar essa espécie de comunicação e não a perde quando morre, pois durante este processo, apenas o corpo material se decompõe, o outro, o corpo espiritual, continua a viver em outra dimensão (KARDEC, p. 15). Ao colocar a mediunidade como um traço da fisiologia humana, o Espiritismo naturaliza a temática da mediunidade e dos médiuns e os desterritorializa, ampliando o espaço de atuação, ou seja, todo e qualquer ser humano independente de idade, etnia e fé religiosa traz em si a possibilidade de se comunicar com entes que passaram pelo fenômeno da morte. Desse modo, o campo religioso perde a primazia sobre a temática. Trazendo o caso das vozes de Joana d’Arc, sob o olhar do Espiritismo, tem-se que ela é uma médium com mediunidade bastante avançada, por meio da qual ela pode não só entrar em comunicação com seres que estão em outra dimensão através da visão como, também, da audição e do tato. Sendo, pois, a mediunidade um princípio que constitui a doutrina Espírita, ela não possui obviamente o status de heresia como o foi e, ainda é, para o sistema religioso Católico e outras religiões contemporâneas. Conforme Denis (s/d, p. 68), para o Espiritismo “a mediunidade tem sido (...), o meio que Deus emprega para elevar e transformar as sociedades. No século XV, serviu para tirar a França do abismo”. Nessa doutrina, Joana d'Arc figura, não como herege, bruxa ou feiticeira, mas como uma médium poderosa, idealizando, assim, o modelo exemplar de mediunidade. Entendemos que o discurso espírita ao instituir e defender, em fins do século XIX, o princípio da natureza orgânica da mediunidade, naturaliza o fenômeno e contribui para a desconstrução da imagem de herege, produzida no século XV pela Igreja Católica para Joana d’Arc e, paradoxalmente, para a emergência da posição de santidade, construída para a adepta, pelo discurso católico, no início do século XX. O Espiritismo, enquanto discurso que se situa entre o religioso e o científico, ao reatualizar essa temática contribui, portanto, com o debate estabelecido sobre temas que circularam em práticas discursivas, posta em exercício pelo campo discursivo religioso Cristã na Idade Média, ressignificando-as. Referências ANDRADE, Solange Ramos de. A religiosidade Católica e a santidade do mártir.

Projeto

História, São Paulo, n.37, p. 237-260, jul. 2008.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 6ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000. (Leituras filosóficas) 79p. 118

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KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns e dos doutrinadores / Allan Kardec: tradução de J. Herculano Pires. São Paulo – LAKE, 2004a. DENIS, Léon. Joana d'Arc, Médium - Tradução de Guillon Ribeiro, 19ª Edição.

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“OS CARMINA BURANA: ENTRE O CÂNTICO DOS CÂNTICOS DE SALOMÃO E A CANTATA DE CARL ORFF” Maria da Conceição Oliveira Guimarães (Universidade Estácio Natal) [email protected] Introdução O olhar perscrutador em relação ao passado possui o propósito de alimentar o presente. Amiúde, verifica-se que a prática da recepção de textos por outros textos se reitera indefinidamente na literatura ao longo dos séculos. Exemplo mais fecundo de ressonâncias da tradição literária verifica-se em Os Lusíadas quando o poeta recorre ao mito grego para construir o famoso “Consílio dos Deuses”, prática literária utilizada também no episódio da “Ilha dos Amores”; em Ulisses, James Joyce referencia precisamente as errâncias do Ulisses épico de Homero; em A Divina Comédia, Dante edifica sua obra num compêndio onde todo o conhecimento do mundo clássico é transubstanciado pela cosmovisão de um homem da Idade Média. Afeitos esses exemplos sobre as contextualizações literárias de autores clássicos, segue-se com o objetivo relacional entre passado e presente na análise que ora se apresenta. No caso em tela, o Cântico dos Cânticos seria o texto que ressoa em os Carmina Burana que, por sua vez, é apropriado por Carl Orff em sua cantata cênica,“Carmina Burana”. O texto bíblico, desde a sua provável data, século III a.C., sempre representou o acervo inevitável de onde se retiravam passagens, versículos ou símbolos que fossem úteis para a produção literária. A apropriação desse texto por outros escribas certificava a pertinência das críticas sobre as práticas pouco aceitáveis da Igreja, ou ainda imprimia solidez a exposição de uma “doença de amor” cantada por poetas como é o caso Ob amoris pressuram em os Carmina Burana. No texto dos Goliardos, além de por à luz o “mal de amor”, doença da alma que não respeita classe social ou religiosa, reverbera ecos paródicos do credo, das missas, nas imitações burlescas dos evangelhos. Nas suas canções tabernárias vê-se que colocam em evidência os desmandos da Igreja, a hipocrisia dos altos prelados eclesiásticos, o paradoxo entre o que a Igreja prega e o que ela faz. Já Orff ressuscitou os poemas/canções desses monges para divulgar e popularizar a beleza de indiscutível valor poético e literário. A observação desses e de outros traços interrelacionados reaviva a transtextualidade, traço inevitável para o reconhecimento de que num texto sempre há que se notar um predecessor. No que tange a uma passagem gradativa no espaço temporal, por exemplo, esses textos comportam virtudes que permanecem e que se extinguem, demonstrando assim, os desdobramentos mentais e emocionais porque passam os homens em seus diversificados estratos sociais.

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1. Exegeses do “Cântico dos Cânticos” e dos “Carmina Burana” a. O poema de Salomão O Cântico dos Cânticos é parte integrante dos “Livros Poéticos e Sapienciais” da Bíblia grega e na Bíblia hebraica o mesmo poema é colocado entre os “escritos” que formam a terceira e a mais recente parte do canon judaico. A autoria dessa ode é atribuída a Salomão, pois que, mediante contexto histórico e político, esse rei de Israel, o homem mais sábio daquela época, costumava dedicar cânticos de exaltamento à beleza de suas mulheres. É fato histórico também que Salomão, filho de Davi, amou muitas mulheres estrangeiras, ligando-se a elas em casamento, num tempo em que poligamia masculina era enaltecida. Os textos sagrados registram que ele celebrou núpcias com setecentas mulheres princesas além de possuir trezentas concubinas ao seu dispor. Entretanto, Sulamita foi a mais amada entre todas as amadas de Salomão. Então, segundo estudiosos, o Cântico dos Cânticos nada mais foi do que um hino escrito por Salomão e dedicado à arrebatadora beleza desta mulher. Se Salomão era sábio, Sulamita era bela, portanto, a paranomásia dos nomes Salomão/Sulamita tende igualá-los na perfeição, ele em sapiência e ela em beleza. A preferida de Salomão gozava de uma sensualidade e de uma formosura que não passavam despercebidas a ninguém. O jogo dialógico entre os amantes é parte em que sobressai os atributos da esposa egípcia do Salomão histórico. Sulamita autodescreve-se: “Sou morena, mas formosa,”1 A resposta de Salomão, no mesmo poema dialogado, confirma tal virtude: Como és bela minha amada,/ como és bela! Nota-se ainda nesse canto, especialmente nos versos trocados entre Amada e Amado, um perfil físico feminino traçado pelo Amado que é repleto de um ardor e de uma sensualidade, beirando um erotismo dantes pouco visto: […]Teu lábios são fita vermelha/ tua fala melodiosa; […]Teu pescoço é torre de Davi,/construída com defesas;[…] Teus seios são dois filhotes, / filhos gêmeos de gazela,/ pastando entre açucenas.[…] És toda bela minha amada,/ E não tens um só defeito”2. Estudiosos veem no texto bíblico uma linguagem sensual, o que é inegável, uma vez que, para verdade dizer, o início do poema já dá um tom de ternura apaixonada e esta modulação dominará toda a coleção de poemas, numa languidez própria dos enamorados: “Que me beije com beijos de sua boca!/ Teus amores são melhores do que o vinho,/ o odor dos teus perfumes é suave,/ teu nome é como óleo escorrendo,/ e as donzelas se enamoram de ti…”3 Outros exegetas defendem que esse livro é uma coleção de cantos populares de amor, usados, talvez, em festas de casamento, onde o noivo e a noiva eram chamados de rei e rainha, que foram reunidos, formando uma espécie de drama poético, e atribuídos ao rei Salomão, reconhecido em Israel como patrono da literatura sapiencial. O certo é que O cântico dos Cânticos é “um belo canto de amor mútuo entre dois amantes, o rei Salomão e Sulamita,

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Bíblia de Jerusalém, Ct. 1, v .5. Bíblia de Jerusalém, Ct. 1, v .5; 4, vv. 1,3,4,5 e 7. 3 Bíblia de Jerusalém, Ct 1: 2,3. 2

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Amado e Amada que se juntam e se perdem, se procuram e se encontram”, como refere a introdução à edição da Bíblia de Jerusalém, (2002:1086). O fato de esse conjunto de poemas ter origem na celebração do amor de um rei pela sua consorte ou ainda que tenham sido cantos populares dedicados a esponsais em geral, não o impede de ter influenciado trovadores e jograis desde tempos remotos até os dias atuais. Um peculiar exemplo dessa evidência são os Carmina Burana de autoria dos Goliardos. b. O poema dos goliardos A poesia fornece uma base para a história da literatura Ocidental e o verso cantado constitui uma das mais antigas formas de expressão humana. A Idade Média bebera na tradição literária dos romanos que já recebiam, por sua vez, influências da tradição oral e dos textos gregos e esses mesmos gregos tiveram outros predecessores, como se pode certificar através de estudos comparatistas. Tal evidência torna possível a construção de uma ponte a partir dos poetas greco-romanos em direção à lírica medieval, sem medo de que sejam cometidos equívocos. Um erro comum é acreditar-se que o período que vai da decadência de Roma até a Renascença foi desprovido de cultura ou de qualquer forma de expressão literária. A carência de textos no início da Idade Média promove tais conclusões errôneas, entretanto, estudiosos que se debruçaram sobre os pergaminhos remanescentes daquela época demonstram tais equívocos e apontam a abundância e a riqueza de textos daquela tradição poética. Os pergaminhos da Idade Média, especificamente no século XIII A.D., época dominada pelo Teocentrismo, atestam que clérigos descontentes e expulsos dos mosteiros, por isso marginalizados, juntaram-se aos intelectuais e aos estudantes e formaram um interessante grupo que resolve popularizar tudo o que consideram irregular nas esferas do poder. Delatam os crimes, as injustiças, a corrupção, entre outras mazelas da sociedade religiosa, escolhendo a Literatura e a Música como meio de denúncia. Insatisfeitos, os Monges e outras pessoas de alto nível cultural expressaram o seu pesar contra o stablishement político-religioso do medievo e denominaram-se de Goliardos4. Jovens de espírito livre, os Goliardos, que por razões de princípios, rebelaram-se principalmente com o desvio da atenção dos religiosos seculares (sacerdotes, bispos e arcebispos), disseminaram na sociedade de então sua insatisfação através dos poemas intitulados Carmina Burana5. Através de seus textos criticam o clérigo secular por ter relegado ao segundo plano os assuntos ligados ao espírito, passando a agir dentro de uma concepção profana, em que, invariavelmente, pregavam a filosofia cristã, mas estavam longe de praticá-la. Anárquicos, os Goliardos antagonizavam, sobretudo, com todos aqueles que se reconheciam importantes nas castas sociais medievais, a exemplo daqueles que se associavam 4

A origem da palavra Goliardo é latina: goliardus; vagantes; outra possível origem, também latina, seria a referência à gula. Bebiam e comiam em excesso: goliardus; gulosos. 5 Segundo Maurice Van Woensel, “o manuscrito de Carmina Burana consiste em 112 folhas de pergaminho fino, de 17 por 25 cm, que foram copiados por volta de 1230 na atual Bavaria; a encadernação foi confeccionada muito tempo depois. Trata-se de uma compilação de canções, provavelmente por três copistas diferentes, e ilustrada com oito miniaturas e com vinhetas. Certas canções vêm com uma anotação musical rudimentar. Estudiosos conseguiram reconstituir o que foram as melodias originais delas…” (CB: 17)

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ao poder eclesiástico ou político e principalmente àqueles que estavam subjugados à mediocridade e à ignorância. Viviam de expedientes, eventualmente a serviço dos ricos, e seguiam os mestres preferidos, ao mesmo tempo em que ensinavam nos mesmos locais que professores famosos lecionavam. Com arrazoada crítica antipapal, descreviam o sumo pontífice como um hipócrita tutor da tradição moral, expoente de uma hierarquia organizada sob a nova força do dinheiro. Por todas essas razões era quase impossível enquadrar os Goliardos dentro de uma síntese social determinada, pois quaisquer caracterizações social que lhes atribuíam gerava suspeita e escândalo entre os conservadores. Foi sob este contexto histórico-religioso que, pelas mãos dos Goliardos, nasciam os poemas Carmina Burana. Esse nome “deriva do latim, carmen,ìnis 'canto, cantiga; e bura(m), em latim vulgar 'pano grosseiro de lã', geralmente escura; por metonímia, designa o hábito de frade ou freira feito com esse tecido”6. Os Carmina Burana são textos poéticos contidos em um importante manuscrito do século XIII, o Codex Latinus Monacensis, encontrados durante a secularização de 1803, no convento de Benediktbeuern, a antiga Bura Sancti Benedicti, fundada por volta de 740 por São Bonifácio, nas proximidades de Bad Tölz, na Alta Baviera. O códex compreende 315 composições poéticas, em 112 folhas de pergaminho, decoradas com miniaturas. Atualmente o manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Munique.7 O manuscrito de os Carmina Burana, datado de 1230 e publicado pela primeira vez em 1847, contém canções, na sua maioria profanas. Essas canções eram escritas em troca de comida, bebida e abrigo. Possuem teor satírico e erótico, revelando um mundo de orgias, bebedeiras e jogatinas, em vez dos esperados hinos em louvor a Deus, que seria um ato próprio de religiosos. O cancioneiro burano reúne em sua temática o trinômio Amor-VinhoJogo, pois os Goliardos baseavam os deleites da vida no vinho, no jogo e, sobretudo, no amor. Esse trinômio temático desdobra-se em Poemas Líricos ─ bucólicos e amorosos ─ e Satíricos. c. A cantata cênica de Orff Carl Orff é mais conhecido pelo triunfo de os Carmina Burana (1937), cantata que encenou a partir do canto dos Goliardos de mesmo nome. Na década de 1930, o compositor alemão, Carl Orff, buscava um texto para que pudesse escrever um ciclo coral. Seus esforços levaram-no aos Carmina Burana. Resultou de seus esforços um estrondoso sucesso pouco visto na música clássica, grande parte desse sucesso foi atribuído à fidelidade e ao respeito que dispensou aos elementos temáticos do manuscrito em si mesmo e ainda ao feitio dos arranjos melódicos moderno que só enriqueceram as melodias medievais. A cantata cênica de Orff é a primeira de uma trilogia intitulada Trionfi, que também inclui Catulli Carmina e Trionfo di Afrodite. Essas composições refletem seu interesse pela poesia medieval latina e alemã. É descrita pelo compositor como "a celebração de um triunfo do espírito humano pelo balanço holístico e sexual"8. O trabalho foi baseado no verso erótico do século XIX de um manuscrito chamado Codex latinus monacensis, já referido. Apesar de moderno em suas composições, Orff soube capturar o espírito da era medieval em sua trilogia. 6

Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana 8 cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Orff 7

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Com o sucesso de Carmina Burana, Orff abandonou todos os seus trabalhos anteriores, exceto por Catulli Carmina e En trata. 2. Correlações e receção dos textos Partindo da provável influência do Cântico dos Cânticos sobre a poesia médio-latina, notadamente em os Carmina Burana, articula-se neste texto constituintes que configuram essa interferência literária para demonstrar a pertinência desta análise. Há que se observar um potencial indicador de intertextualidade no conjunto de versos que abrem o prólogo do texto bíblico. Os vv. 2-4 dão o tema geral dos poemas, como já o dissemos, e as personagens do diálogo são distinguidas por Amada e Amado. No entanto, a gama expressiva dos poemas buranos que se quer comparar ao Cântico dos Cânticos é a terna poesia do amor presente no poemas Veni, veni, vénias (CB 174) e Chume, chum, Geselle min! (CB 174a)9, uma vez que ambos fazem parte da cantata de Orff. Trata-se indubitavelmente de uma obra influenciada pelo Cântico dos Cânticos, porque, em verdade, na sua composição de apenas cinco estrofes é percetível uma influência determinante da temática amorosa referida no poema bíblico. Convida-se a observar que esses poemas remetem explicitamente ao cântico atribuído a Salomão em duas vertentes: a primeira é a descrição física da amada e a segunda parece ser a imperiosa necessidade amorosa que acomete ambos amantes. No poema Veni, Veni, Venias (CB174)10, distingue-se perfeitamente cada um dessas faces quando o Amado dirige-se a Amada: Venha, venha, venha aqui, por seu desdém quase morri! Hyria, hyrie, nazazá, trillirivos! Sua face é divina, seu olhar me fulmina! Oh tranças tão sedosas, oh que formas graciosas! Mais rubra que a rosa, tal lírio, és formosa, ninguém iguala tua beleza, orgulhas-me, ó princesa! 11

Já no poema Chume, Chum, Geselle min! (CB 174a)12, escrito em alemão medieval, é a Amada que se dirige ao Amado. Faz uso de versos que se repetem, pondo em relevo a ansiedade da espera e a voluptuosidade própria dos amantes, e por outro lado, suaviza o item temático da beleza. Venha, venha, meu amado, 9

Poema escrito em alemão arcaico. Tradução do latim por Maurice vanWoensel. 11 Veni, veni, venias/ ne me mori facias,/ Hyria, hyrie,/nazaza trilirivos!/ Pulchra tibi facies/ oculorum acies,/ capillorum series -/ o quam clara species! Rosa rubicundior/ lilio candidior/ omnibus formosior,/ semper in te glorior!. 12 Tradução do Alemão por Maurice van Woensel. 10

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há tanto tempo esperado! Há tanto tempo esperado, venha, venha, meu amado. Doces lábios, cor-de-rosa, curem minh’alma inditosa! Curem minh’alma inditosa, doces lábios cor-de-rosa.13

Nas estrofes do CB 174a são percetíveis ecos da canção medieval dos viajantes eruditos que também é penetrada pela antiga concepção de beleza da amada. O tom também é claramente sensual numa referência explícita à personagem Sulamita do Cântico dos Cânticos, embora a figura com a qual depara-se nos cantos buranos, seja puramente literária. O dueto entre os amantes no “Quinto poema” do Cântico dos Cânticos registra o quanto o texto bíblico influenciou os poetas Goliardos, fundamentalmente na questão do elogio físicoamoroso-sensual. Comparem-se cada verso dos poemas buranos aqui apresentados aos versos do texto bíblico para que, efetivamente se consagre a correlação textual. Cântico dos Cânticos, v. 9: “(…) roubaste meu coração/ com um só de teus olhares”. Carmina Burana, vv. 5-6: “(…) Sua face é divina/ seu olhar me fulmina!”. Cântico dos Cânticos, v. 3: “Teus lábios são fita vermelha,”. Carmina Burana, v. 5: “ (…) doces lábios cor-de-rosa”. Quanto mais se apontar paralelos entre os dois textos, bíblico e medieval, mais embrenhar-se-á na questão da sensualidade e da voluptuosidade. Neles, tornam-se aguçados os sentidos da visão, da audição, do paladar, do olfato e do tato, a exemplo do arrebatamento dos olhares (v.9), a fala melodiosa (v. 3), o gosto pelos beijos (v.11), o perfume de suas roupas (vv. 10,11), todas referências expressas em ambos os textos, bíblico e burano. Importa perceber, entretanto, que mesmo um texto bíblico, considerado lascivo para época, havia um teor subjacente que conduz a uma espécie de restauração de vivência bíblica na experiência cotidiana. Assim é também em relação aos Goliardos, notadamente aos monges, uma vez que produziam seus textos com o propósito de conferir ao cotidiano uma verdade que estava camuflada sob a capa de uma beatitude defendida por uma sociedade político-religiosa extremamente hipócrita. Em paralelo, observa-se que Orff inclui os dois poemas Carmina Burana, (CB 174 e CB 174a), em sua cantata cênica. No entanto, todo o prefil de sua peça compreende um conceito muito difundido na Antigüidade e visível em os Carmina Burana. A Roda-dafortuna, símbolizada pela deusa grega, Fortuna, que em movimento contínuo e eterno, traz, alternadamente, a sorte e o azar a todos humanos. Essa alegoria metaforiza a vida humana, expostas a constantes transformações. Na peça do compositor alemão, a dedicatória coral à Deusa da Fortuna, “O Fortuna, velut luna”, tanto introduz como conclui as canções seculares. O acontecimento simbólico da peça, ensombrado por uma Sorte obscura, divide-se em três seções: o encontro do Homem com a Natureza, particularmente com o despertar da Natureza na primavera, “Veris leta facies”, seu encontro com os dons da Natureza, culminado com o do vinho, “In taberna”; e sua ligação com o Amor “Amor volat undique”, como 13

Chume, chume, geselle min,/ Ih enbite harte din!/ Ih enbite hartedin,/ chume, chum geselle min./ Suzer rosenvarwer munt,/ Chum und mache mich gesunt,/ Suzer rosenvarwer munt.

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espelhado em “Cour d’amours” na velha tradição francesa, uma forma de serviço cavalheiresco às damas e ao amor. A apropriação dos poemas buranos por Carl Orff reafirmou-lhe o perfil emoldurado pelo movimento da deusa grega Fortuna. Em sua cantata, sente-se que a humanidade está submetida aos caprichos da roda-da-fortuna, e que o amor e a exuberância da vida estão à mercê da eterna lei da mutabilidade. Nessa conjuntura, as leis do entusiasmo amoroso são contrariadas e o homem é submetido a uma luz dura, não sentimental, tornando-se um joguete de forças impenetráveis e misteriosas. Esse ponto-de-vista é plenamente característico da atitude antirromântica da obra, seja em relação ao amor fraterno ou ao amor carnal. Respeitando-se o viés histórico, que permite entender como os símbolos e as imagens do texto bíblico foram transmitidos através do tempo até os Carmina Burana, o que exige considerar as diferentes produções em contextos históricos e culturais díspares, Orff imprimiu em seu corpus critérios essencialmente literários, um conjunto de elementos comuns entre os textos e melodia que paralisam o corpo e extasiam a alma. Referências BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução de Euclides Martins Balancini, et al. São Paulo: Paulus, 2002. CARMINA BURANA: Canções de Beuern. Apresentação de Segismundo Spina e tradução, introdução e notas de Maurice van Woensel. São Paulo: Ars Poética, 1994. CARMINA BURANA. Disponível em: , acessado em: 05.jul.2012. Le Goff, Jacques. A Idade Média explicada aos meus filhos. Tradução Hortência Lencastre. Rio de Janeiro: Agir, 2007. Orff Carl. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Orff>, acessado em: 05jul.2012. Spina, Segismundo. Era Medieval. Era Medieval. 11. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006. Zumthor, Paul. Falando de Idade Média.Tradução de Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Coleção debates).

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ESPELHO DA LITERATURA, REFLEXO DO SAGRADO – REFLEXÕES FILOSÓFICAS SOBRE A MÍSTICA DE MARGUERITE PORETE Maria Simone Marinho Nogueira (UEPB/Principium/CNPq) [email protected] Considerações Iniciais O Espelho das almas Simples1, apesar de ser o texto místico mais antigo da literatura francesa, foi durante muito tempo atribuído a uma beata húngara. Somente em 1944, graças ao trabalho de Romana Guarnieri, a autoria do livro foi restituída a sua verdadeira escritora, Marguerite Porete que, possivelmente, assumiu o modo de vida das beguinas. O referido texto possui uma estrutura dialógica, cujos personagens principais são a Dama Amor, a Razão e a Alma que, na segunda metade do livro assume, se assim podemos dizer, a identidade de Marguerite, posto que narra, numa espécie de monólogo, a própria experiência da autora de O Espelho das almas simples. Dito isto, pode-se dizer que neste trabalho procura-se, de forma introdutória, apresentar a interface do sagrado com a filosofia, a partir de um texto místico, destacando a metáfora do espelho como reflexo do divino na alma aniquilada. Marguerite Porete: vida e obra Em 1 de junho de 1310, na praça de Grèves em Paris, ardem as chamas da fogueira que queimam um corpo de mulher. Trata-se da figura de Marguerite Porete que acreditava ter uma tarefa, da qual não abriu mão, apesar do peso, demasiado doloroso, do braço secular que “prestava serviço” àquela que Marguerite, várias vezes em seu livro, chama de Santa Igreja, a Pequena2. A referência à fogueira e ao processo inquisitório se faz importante porque as poucas informações que temos da autora de O espelho nos vêm dos autos desse processo e de algumas crônicas que o relatam. É por exemplo por meio deles que tomamos conhecimento do seu nome, certa beguina chamada Marguerite Porete e conhecemos um pouco mais os detalhes da condenação, como podemos ler numa crônica da época:

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O título da obra de Marguerite em francês medieval é: Le mirouer dês ames simples et anienties et qui seulement demeurent em vouloir et desir d’amour. Na tradução para língua vernácula que estamos utilizando a tradução do título é: O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo de Amor. Por uma questão de economia linguística sempre que citarmos o título do livro de Marguerite no corpo do texto, o nomearemos apenas por: O espelho das almas simples e aniquiladas ou simplesmente por O espelho. 2 Marguerite faz uma diferença entre o que ela chama Santa Igreja, a Pequena (entendida enquanto instituição religiosa) e Santa Igreja, a Grande (entendida como a força espiritual composta pelas almas aniquiladas). Segundo TEIXEIRA, 2008: 26, a Santa Igreja, a Pequena, “Enquanto instituição definida e delimitada, (...) não alcança o mistério das almas aniquiladas. Não capta igualmente a medula que habita o fundo da alma, pois ali não pode entrar nada de determinado. Daí o auxílio fundamental exercido pela Santa Igreja, a Grande, que vem constituída pelas almas animadas e preenchidas pelo Amor: as almas aniquiladas. É essa Igreja que sustenta a fé da Santa Igreja, a Pequena (...)”.

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Na segunda-feira seguinte ardeu naquele lugar [a Praça de Grèves] uma beguina clériga chamada Marguerite Porete que havia transpassado e transcendido as divinas escrituras e havia errado nos artigos de fé, e do sacramento do altar havia dito palavras contrárias e prejudiciais e havia sido condenada por isso pelos mestres em teologia. (CIRLOT e GARÍ, 1999:224).

O que ela disse para sofrer tal condenação encontra-se no seu livro, O espelho das almas simples, muito embora no decorrer do processo o que se fez foi julgar frases isoladas, dissociadas do seu contexto, que por fim foram julgadas como heréticas (quinze proposições) por uma comissão composta por 21 teólogos, dentre eles alguns representantes das ordens mendicantes3. Acrescente-se a isso, o silêncio de sua autora durante todo o tempo em que esteve presa e o fato de escrever sua obra em língua vernácula (francês medieval), tornando-a, assim, acessível ao público leigo, o que fazia do seu texto, do ponto de vista da ortodoxia da igreja, perigoso, já que ali, ao pregar a sua ideia de liberdade, afirma que a alma totalmente livre não se submete a nada, como podemos ler no seguinte excerto: (...) A herança desta Alma é a perfeita liberdade, cada uma de suas partes tem o brasão de nobreza. Ela não responde a ninguém a menos que queira, se ele não é de sua linhagem; pois um nobre não se digna a responder a um vilão que o chama ou o convida ao campo de batalha. Portanto, quem chama uma tal alma não a encontra; seus inimigos não conseguem dela nenhuma resposta. (PORETE, 2008: 148).

É fato que neste e em outros passos do texto, Marguerite deixa explícita a questão da liberdade (que não será abordada diretamente neste trabalho), que desenvolve ao longo do seu livro, e que tem relação direta com o tema da aniquilação. Entretanto, nesta e em outras passagens há acenos implícitos da pessoa Marguerite (mais do que da autora) sobre a repercussão que poderia ter o seu livro, se levarmos em conta que ele foi escrito, provavelmente, em meados de 1290 e vai sofrer um primeiro processo entre esta data e 1306, pelo bispo de Cambrai que proíbe a pregação de Porete e a divulgação da sua obra. Nossa mística não só não se cala, como continua divulgando o seu livro, enviando-os inclusive para a avaliação de três teólogos que o aprovam com ressalvas 4. Mediante tal atitude, ela sofre um segundo processo e é conduzida a Paris onde fica presa, por quase um ano e meio, e, diante do seu silêncio, é julgada como herética recidiva, relapsa e impenitente e condenada à morte na fogueira da inquisição, juntamente com o seu livro que também é queimado5.

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Tais Ordens foram responsáveis pelas orientações espirituais, por exemplo, das beguinas (feitas pelos dominicanos) e dos begardos (feitas pelos franciscanos). No Concílio de Viena (1311-1312) serão condenados alguns erros das beguinas e dos begardos e o processo contra Marguerite será amplamente utilizado. Mais informações sobre este tema podem ser encontradas em GUARNIERI: 2004. 4 São eles, conforme, TEIXEIRA, 2008: 19, Goffredo da Fontaines, da Faculdade Teológica da Sorbonne; um cisterciense da abadia brabantina de Villiers, chamado Franco e um franciscano inglês, John di Querayn. A própria Marguerite cita essas três autoridades no seu livro, no capítulo 140 (A aprovação), que vem acrescido da seguinte nota da tradutora: “A aprovação foi preservada no latim e no inglês médio e acrescentada pelos editores da edição crítica como o capítulo final”. SCHWARTZ, 2008: 229. 5 “Segundo a posição do grande inquisidor, todos aqueles que tivessem o livro condenado tinham a obrigação de entregá-lo às autoridades competentes no prazo de um mês, sob pena de excomunhão”. (TEIXEIRA, 2008:21).

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Mas do que trata O espelho das almas simples e que tarefa pensa ter Marguerite que dela não abre mão apesar das insistentes solicitações das autoridades eclesiásticas? Para responder a estas perguntas é necessário situarmos a nossa pensadora no seu tempo. Ela é apresentada por alguns estudiosos como sendo uma beguina6. Ela própria num dado passo do seu livro se autodenomina mendicante e se dirige às beguinas e a outros religiosos: Amigos, o que dirão as beguinas,/ E a gente da religião,/ Quando ouvirem a excelência/ De vossa divina canção?/ As beguinas dirão que eu erro,/ Padres, clérigos e pregadores,/ Agostinianos, e carmelitas,/ E os freis menores, / Porque escrevi sobre o estado/ Do amor purificado. (PORETE, 2008: 201202)7

Mesmo assim, não se tem certeza de ela ter sido realmente uma beguina, apesar de ter assumido um modo de vida que condiz em alguns aspectos com tal classe8. De qualquer forma, apesar dos poucos dados da vida de Marguerite, O espelho das almas simples denuncia, de algum modo, que ela era não só letrada, como também uma mulher culta. Ela é não só a autora, mas também a escritora da sua obra e nela há uma tripla influência: a da literatura profana, religiosa e filosófica. Assim, encontramos no seu texto tanto referências advindas dos trovadores medievais, destacando-se aí a ideia do amor cortês, quanto às referências advindas da mística do pseudo-Dionísio, como a linguagem apofática, até as referências às Sagradas Escrituras. É, portanto, em meio ao cruzamento destas influências que se destaca o tema central de O espelho: um guia espiritual que deve conduzir as almas que são capazes de mergulhar no 6

“Marguerite Porrete foi uma beguina, teria pertencido, segundo consta, ao Movimento Beguinal, um movimento que se desenvolveu como alternativa de vida religiosa leiga na Renania e Países Baixos. As beguinagens começam a aparecer no final do século XII. São formadas por pequenas casas agrupadas. Constituem-se comunidades com promessa (e não voto) de pobreza, obediência e castidade, inseridas num contexto social urbano. Nessas comunidades, as mulheres vivem do próprio trabalho: tecelagem, bordado, costura, ensinamento de crianças e serviço de damas idosas. O Movimento Beguinal está inserido no movimento de renovação da vida religiosa que, a partir do século X, se espalha por todos os países da Europa Ocidental. No entanto, é um movimento que permanece marginal, fora do controle institucional, pois não obedecia a uma regra aprovada”. (MARIANI, 2011:59). Ou, ainda como escreve uma outra estudiosa: “Referia-se a si mesma como uma mendiant creature, e era chamada de béguine por tantas fontes independentes que essa designação pode ser considerada como certa. Tudo indica que Porete tenha levado um estilo de vida béguine, de mendicância e errância. Ela estava imersa na cultura e espiritualidade europeia cristã do final da Idade Média, uma mulher – ou pseudomulier – como queriam seus inquisidores – à margem da vida religiosa institucional e, por sua condição feminina, também excluída dos estudos formais, embora suponha-se que tivesse alto nível de educação, o que sugere que pertencia às altas classes”. (SCHWARTZ, 2011:63). 7 Ao comentar tal passagem, CIRLOT e GARÍ, 1999: 231, explicam que não é impossível que com o nome de beguinas Marguerite se refira a um grupo bem concreto delas, talvez, inclusive, a suas antigas companheiras de santa Isabel. De toda forma, acrescentam: “(...) formada o no entre ellas, todo parece indicar que en su madurez Margarita no pertence a ningún grupo de mujeres religiosas viviendo em uma comunidad más o menos institucionalizada, sino a esas otras beguinas «independientes», viviendo solas a lo sumo com uma o dos mujeres más, construyendo de forma autónoma su vida y también su obra”. 8 Alguns aspectos porque, como nos faz pensar CIRLOT e GARÍ, 1999: 231: “¿Era entonces uma mendicante, como se llama a sí misma em outro momento del Espejo? ¿Andaba vagando por los caminos em um signo de pobreza voluntaria siguiendo el modo de vida de aquellos y aquellas a los que la época dio el nombre de «giróvagos»? Algo puede haber de eso, pero em todo caso no estamos ante uma indigente: el número de libros que parecen circular de su obra a principios del siglo XIV (...) hablan no sólo de uma mujer culta sino también capaz de sufragar el altísimo coste que suponía la elaboración de manuscritos”.

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abismo do mistério ao aniquilamento de si e a “posse” de Deus que se estabelece no nada da alma inundada de amor e Marguerite sabe que nem todos entenderão o conteúdo do seu livro. Por isso, já no Prólogo, chama a atenção dos seus leitores, logo depois da personagem Amor rogar que todos ouçam com aplicação do vosso entendimento interior sutil e com grande diligência, senão entenderão mal se não estiverem assim dispostos. Logo, a tarefa que Marguerite pensa ter significa mais do que pôr em prática uma certa teoria mística. Sua tarefa consiste, também, na divulgação desta experiência a todos que sejam capazes de vivê-la. Deste modo, não exagera Guarnieri quando afirma sobre O espelho, que este, sob a forma de um tratado didático, revela, implicitamente, uma autobiografia mística. (Cf. GUARNIERI, 2004: 265). Neste sentido, não é ao acaso que logo na abertura do livro, antes do Prólogo, Marguerite advirta os leitores, ao mesmo tempo em que expõe a importância do Amor, da Fé e da Razão: Vós que este livro lereis,/ Se bem o quiserdes entender,/ Pensai no que vos direi,/ Pois ele é difícil de compreender;/ À humildade, que da Ciência é a guardiã/ E das outras virtudes amai,/ Deveis vos render./ Teólogos e outros clérigos,/ Aqui não tereis o entendimento/ Ainda que tenhais as ideias claras/ Se não procederdes humildemente;/ E que Amor e Fé conjuntamente/ Vos façam suplantar a Razão,/ Pois são as damas da mansão. (PORETE, 2008:0)

Já nesta abertura, Porete não só esclarece que o seu livro é de difícil compreensão, como também indica a importância da humildade como necessária para o entendimento do que vai ser “dito”, tanto que esta é colocada como a guardiã do saber (da ciência). Além disso, e já antecipando, de alguma forma, os problemas que terá com as autoridades eclesiásticas, a autora/escritora adverte aos teólogos e outros clérigos que por mais que estes tenham as ideias claras, se não tiverem humildade, ou seja, se não forem capazes de ultrapassar a razão, nada entenderão. Ao destacar a força do amor e da fé como aquelas que conduzirão, humildemente, as almas ao aniquilamento, diz, de alguma forma, que o livro trata de uma gradação pela qual passarão as almas para sua total libertação e fusão com o divino. Neste caminho ascensivo, Marguerite divide o seu livro em 140 capítulos precedidos por uma espécie de canção de abertura seguida de um prólogo, sendo encerrada por uma aprobatio. Ao longo do texto, a autora demonstra toda a sua cultura letrada, mesclando, em termos de estilo, a prosa e o verso e, em termos de conteúdo, seus conhecimento sobre o amor cortês que encontramos, por exemplo, no Romance de Alexandre e no Romance da rosa; a literatura religiosa, como o Speculum virginum; e a literatura filosófica, como o neoplatonismo (sobretudo pseudo-Dionísio), Gregório de Nisa, Agostinho e a mística cisterciense. Neste caminho, sete graus se configuram antes de alcançar o estado perfeito. Passemos, então, a eles e a sua relação com a imagem do espelho. O espelho como reflexo do divino na alma aniquilada Podemos dizer que O espelho das almas simples divide-se em duas partes. Uma maior, que vai do capítulo 1 até o 122, e uma menor, que vai do capítulo 123 até o 139. Na primeira parte, apresentada em forma de diálogo, o texto gira em torno do caminho que deve 130

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ser percorrido pelas almas até alcançarem o estado máximo da liberdade que está relacionado à humildade e à aniquilação. Nesta parte, Marguerite parece tomar a distância necessária entre narrador e aquilo que é narrado, quando a narrativa não é, necessariamente, uma experiência de vida daquele que narra. Nesses capítulos, como já frisamos, três personagens principais se destacam: a Razão, o Amor e a Alma, no entanto, outros personagens, que podemos chamar de secundários ou esporádicos, também aparecem, como, por exemplo: a Fé, a Verdade, a Justiça Divina e a Esperança. Por sua vez, na segunda parte do livro nenhum dos personagens da primeira parte falam. O que ouvimos/lemos é a própria autora que se coloca na sua obra, inclusive falando na primeira pessoa. Entretanto, a mudança brusca da estrutura do livro não nos permite entender as duas partes de forma isoladas, ou seja, as duas fazem parte de um todo intitulado O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor. Assim, é como se uma parte completasse a outra, não sendo à toa, portanto, que encontramos reflexos de uma na outra. Por exemplo, já no Prológo, em meio a dois personagens (Amor e Alma) aparece um “terceiro” intitulado “Autora”. Na primeira parte, no capítulo 96 a Alma se autodefine como uma mendicante que buscou Deus na criatura e deste modo permaneceu aprisionada em si mesma. No capítulo seguinte (o 97), a personagem Alma assume a condição de autora ou a autora se revela na personagem já que afirma de forma poética: E, contudo, diz essa Alma que escreveu este livro, eu era tão tola no tempo em que o escrevi, (...) que me aventurei em algo que não se pode fazer, nem pensar, nem dizer, não mais do que aquele que quisesse encerrar o mar em seu olho, ou carregar o mundo na ponta de um junco, ou iluminar o sol com a lanterna ou com uma tocha. Eu era mais tola do que seria quem quisesse fazer isso. (PORETE, 2008:163).

Logo depois ela complementa essa ideia com alguns versos que falam sobre o ato de escrever e sobre o estado de perfeição buscado, encerrando este capítulo com a ideia de que tal estado só acontece quando a alma permanece no puro nada. Ora, o estado do puro nada é o grau máximo da aniquilação da alma, é o estado do nada querer, do nada saber, do nada dizer e, porque não, do nada escrever. Mas Marguerite escreve e opta não só pela escrita, como também pela divulgação disto que foi escrito. Logo, mesmo dizendo negativamente, no capítulo 132 (portanto, na segunda parte do seu livro) o que significa estar no puro nada: “Essa é uma obra miraculosa, sobre a qual nada se pode dizer, a menos que se minta” (PORETE, 2008: 221), podemos falar, como afirmam Cirlot e Garí (1999: 236), que Marguerite sente a necessidade de expressar as razões que a levaram a escrever sobre o que nada se pode dizer. Neste sentido, a narrativa, sobretudo a que é descrita à distância, se recobre de sentido, uma vez que agora, na segunda parte do seu livro, Marguerite fala como alguém que vivenciou a experiência do aniquilamento da alma e como tal, revestida da plenitude divina, se sente na obrigação de dividir o estado do puro nada ao qual chegou. Neste sentido, Aqueles que lerem O espelho terão não só o relato de uma teoria, mas a escritura/testemunho de quem só conseguiu teorizar sobre o caminho de ascensão das almas que buscam a fruição do divino porque uma prática assim o proporcionou. Talvez, por isso, escreva a autora, pela boca da personagem Amor (ainda na primeira parte do seu livro, 131

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“(...) vós reconhecereis neste livro a vossa prática”). (PORETE, 2008:164). Vejamos, então, como esta prática se mostra no reflexo do espelho. Como dissemos, O espelho descreve sete degraus que devem levar as almas a um experienciar do divino. Já no Prólogo, por exemplo, nossa pensadora afirma que “Há sete estados nobres de existência por meio dos quais a criatura recebe o ser, se ela se dispõe a passar por eles antes de alcançar o estado perfeito”. (PORETE, 2008:32). Tais degraus vão sendo denunciados ao longo do texto poretiano, mas é no capítulo 118, através da personagem Alma que estes estados são descritos de forma mais rigorosa. Como o que mais interessa para o nosso trabalho é o sexto estado, relataremos de forma breve, os sete graus e depois voltaremos para o sexto. Deste modo, vejamos como a própria Marguerite apresenta estes estágios: O primeiro estado (...) é aquele no qual a Alma (...) tem a intenção de observar em sua vida (...) os mandamentos de Deus, por Ele ordenados na lei (...). O segundo estado (...) é aquele no qual a Alma considera o que Deus aconselha a seus amados especiais e que vai mais além do que aquilo que ordena (...). O terceiro estado é aquele no qual a Alma se considera no sentimento do amor da obra de perfeição, no qual seu espírito decide (...) multiplicar nela tais obras (...). O quarto estado é aquele no qual a Alma é absorvida pela elevação do amor nas delícias do pensamento na meditação e abandona todos os trabalhos externos e a obediência a qualquer outro pela elevação da contemplação (...). O quinto estado é aquele no qual a Alma considera que Deus é, Ele por meio de quem todas as coisas são, e ela não é, se não é onde todas as coisas são. O sexto estado é aquele no qual a Alma não se vê mais, qualquer que seja o abismo de humildade que tenha em si; nem vê Deus, qualquer que seja a altíssima bondade que Ele tenha (...). Quanto ao sétimo estado, Amor guarda em si para nos dar na glória eterna, e dele não teremos compreensão até que nossa alma tenha deixado nosso corpo9. (PORETE, 2008: passim).

Como podemos perceber, cada grau ou estado corresponde a um exercício de despojamento que deve culminar na aniquilação da alma. Deste modo, no primeiro estado, a Alma, observadora dos mandamentos de Deus, ama-o com todo seu coração e também ao próximo como a si mesma. No segundo, a Alma vai além daquilo que é ordenado por Deus e, assim, se abandona e despreza as riquezas, as honras e as deliciais. No terceiro grau, a vontade da Alma só ama as obras da bondade e por isso as coloca em primeiro lugar. No quarto estágio, a Alma está ofuscada pelas delícias do Amor e só consegue vê-lo. No quinto degrau, a Alma se vê e compreende a bondade divina. No sexto, por sua vez, a Alma não mais se vê e no sétimo e último, como podemos ler no excerto acima, nada podemos dizer, pois só acontece na vida eterna. Nesta direção, percebemos que no sexto grau, o mais elevado que o homem pode ter em vida, a Alma não se vê mais, o que parece contraditório com a imagem do espelho, já que o sentido de tal imagem remete, necessariamente, à visão. Ora, na continuação do que foi citado em relação ao sexto grau, diz a Alma, ainda no capítulo 118, depois de afirmar que esta não vê mais nada: “Mas Deus se vê nela por sua majestade divina, que, por si, clarifica essa Alma de tal forma que ela não vê nada que não 9

O espelho. 118: passim (grifos nossos).

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seja Deus mesmo, Aquele Que é, no qual todas as coisas são”. (PORETE, 2008:194). Neste estado, continua o texto, “(...) a alma está liberada de todas as coisas, pura e clarificada”. (PORETE, 2008:194). Em primeiro lugar, podemos perguntar o que significa dizer que a Alma não vê a si mesma, mas Deus se vê nela? Em segundo lugar, por que a alma, livre de todas as coisas, é pura e clarificada? Comecemos pela segunda questão e tentemos relacionála à imagem do espelho ou do que pode significar tal imagem. Uma alma pura significa uma alma pautada na humildade e, portanto, livre de todas as coisas que a liga ao mundo exterior e também interior, já que no sexto grau, a alma se encontra despojada da sua própria vontade. Para chegar a este despojamento o estágio anterior (o quinto) se mostra como importante, pois, como nos esclarece Marguerite, falando através da Alma, ainda que haja um certa compreensão divina neste estado, já não há, como no sexto, vontade alguma: (...) ela não se preocupa mais com a guerra da natureza, pois sua vontade foi, com despojamento, recolocada no lugar de onde foi tomada, onde por direito ela deve estar. Agora essa Alma é nada, pois vê seu nada por meio da abundância da compreensão divina, que a faz nada e a coloca no nada. E assim ela é tudo (...). (PORETE, 2008:192).

Ora, ser nada é condição para o aniquilamento da alma que só se torna realmente aniquilada quando chega ao sexto grau, pois no quinto ela ainda está na abundância da compreensão divina, como já foi demonstrado. No sexto estágio, por sua vez, por maior que seja o abismo da humildade que tenha em si e por maior que seja a bondade de Deus, a alma não possui mais nenhum tipo de compreensão, aí sim, ela se encontra no puro nada. Nesta pureza e clarificação, ou seja, sem nenhum empecilho, a alma se torna espelho, isto é, superfície limpa e lisa capaz de refletir o que tem diante de si: o divino. Neste reflexo do divino, a alma nadificada encontra-se, por um momento, no mais alto estágio que pode alcançar em vida, o experenciar do Longeperto que é descrito em O espelho como superabundante e arrebatador e é chamado de centelha pela forma de abertura e rápido fechamento. Neste ponto, a vontade do eu é “transformada” na vontade divina e o ser da alma é substituído pelo ser simples e aí como nos diz o texto poretiano: “(...) mais alto ninguém pode ir, nem mais profundamente descer, nem mais desnudo pode estar” (PORETE, 2008:227). Em meio a este desnudamento, que é uma imagem sem imagem, como pode Deus se vê na alma transformada em espelho, se nem ela própria se vê? Uma passagem de O espelho pode nos ajudar a responder esta questão. Refere-se ela à Alma aniquilada: Tudo para ela é uma única coisa, sem um porquê, e ela é nada no uno. Agora ela não tem mais nada a fazer por Deus, nem Deus por ela. Por quê? Porque Ele é e ela não é. Ela não retém mais nada em si, no seu próprio nada, pois isso lhe basta, ou seja, Ele é e ela não é. Portanto, ela está despojada de todas as coisas, pois está sem ser, lá onde estava antes de ser. Assim ela tem de Deus o que Ele tem e é o que Deus mesmo é, por meio da transformação do amor, no ponto que estava antes de fluir da bondade de Deus. (PORETE, 2008: 225).

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A alma não se vê porque ela própria tornou-se espelho cristalino e, como espelho, ela reflete Deus. No entanto, mesmo afirmando que Deus se vê por si nela, para ela, sem ela; Alma e Deus, na verdade, tornaram-se espelhos um do outro, posto que se a alma pudesse se ver, se veria como Deus, assim como Deus se vê nela. Ela e Deus tornaram-se um só: espelho cristalino e uno. Esse uno é, conforme Marguerite, “quando a Alma é recolocada naquela Deidade simples, que é um Ser simples de fruição transbordante, na plenitude do saber sem sentimento, acima do pensamento” (PORETE, 2008:227). Podemos acrescentar, para concluir, embora não tenhamos tratado disso neste trabalho, que a metáfora do espelho (n’O Espelho de Marguerite) transgride um determinado modo de pensar até então estabelecido e nesta transgressão a personagem Alma, se faz autora, se faz escritora e se faz mulher que segue uma única regra, aquela que a devolverá para Deus: a regra da aniquilação. Para viver isto e dividir esta experiência (numa atitude de doação que só uma alma liberta de todo querer, de todo poder e de toda saber é capaz), Marguerite travou e, segundo ela mesma, venceu a luta contra todos os poderes, como podemos ler já no final do seu livro: Tal Alma professa a sua religião e obedece às suas regras. Qual é a sua regra? É que ela seja reconduzida pela aniquilação ao estado inicial, onde Amor a recebeu. Ela passou no exame de sua provação e venceu a guerra contra todos os poderes. (PORETE, 2008:226).

REFERÊNCIAS Fonte Primária PORETE, Marguerite. O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor. Tradução e notas de Sílvia Schwartz. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008. Fontes secundárias CIRLOT, Victoria e GARÍ, Blanca. La mirada interior. Escritoras místicas y visionarias em La edad media. Barcelona: Ediciones Martínez Roca, 1999. GUARNIERI, Romana. Donne e Chiesa tra mística e istituzioni (secoli XIII-XV). Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2004. MARIANI, Ceci Baptista. “A loucura da fé”. In: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/a-loucura-da-fe/ acessado em 5 de junho de 2011 às 10:20hs. ______. “Marguerite Porete: a alma entre aniquilamento e nobreza”. In: Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, edição 385, 19 de dezembro de 2011, 57-65. ______. “Mística e Teologia: Desafios contemporâneos e contribuições”. In: Atualidade teológica. Ano XIII, n. 33, setembro a dezembro de 2009, 260-380.

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SCHWARTZ, Sílvia. “Marguerite Porete: Mística, Apofatismo e Tradição de Resistência”. In: Numem: Revista de estudos e pesquisa da religião. Juiz de Fora, v. 6, n. 2, 109-126. ______. “Marguerite Porete e a “teologia” do feminino divino”. In: Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, edição 385, 19 de dezembro de 2011, 63-68. TEIXEIRA, Faustino. Apresentação de O espelho. In: O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008: 17-29.

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ASPECTOS RELIGIOSOS DO AMOR CONJUGAL NA OBRA "JÚLIA OU A NOVA HELOÍSA" DE ROUSSEAU: UM RETORNO À IDADE MÉDIA? Otacílio Gomes da Silva Neto (UEPB) [email protected] O que os pensadores do século XVIII, também conhecido como “Século das Luzes”, pensavam da Idade Média? Essa pergunta nos parece importante porque é preciso dizer algo sobre o significado da questão posta no final do título desse trabalho. Quando formulamos a questão “um retorno à Idade Média?” o nosso escopo é sofístico. Pois, o que significa eventualmente um “retorno à Idade Média”? Para problematizar essa questão, temos que recorrer a três outras não menos relevantes para o nosso estudo: o que esses intelectuais pensavam sobre o período medievo? Será que o que eles pensavam corresponde ao que foi o período medievo, efetivamente? O que a obra: Júlia ou Nova Heloísa (1760) de Rousseau tem haver com essa questão? Esse é o caminho que nós pretendemos seguir ao longo desse trabalho. Os Philosophes e a Moyen Âge Observando boa parte da literatura francesa do século XVIII, percebemos indiferença e desprezo dos intelectuais para com a expressão Moyen Âge. Quais as razões para isso? No verbete Endemoninhados do Dicionário Filosófico (1752) de Voltaire, é narrada à ignorância com que se tratavam pessoas com manifestações como a epilepsia. Esse filósofo francês inicia a narrativa apresentado as conseqüências naturais que resultam do não afundamento de um corpo de um epilético na superfície da água, e os desdobramentos dessa manifestação no imaginário popular: Acontecia frequentemente que os epiléticos, tendo as fibras e os músculos secos, pesavam menos do que um volume semelhante de água e boiavam quando eram metidos num banho. Gritava-se: Milagre! Dizia-se: É um possuído ou um feiticeiro (VOLTAIRE, 1978, p.163).

Causas naturais eram tratadas como sobrenaturais. Segundo os Enciclopedistas, essa era a tônica no período medieval. Boa parte das manifestações tidas como manifestações demoníacas eram resolvidas na base: ou do exorcismo, ou da demonização. Nos dois casos, cabia à autoridade religiosa resolver, conforme a continuidade da citação: Ia-se procurar água benta ou um carrasco. Era a prova indubitável de que o demônio se assenhorara do corpo da pessoa que boiava, ou então de que ela se tinha oferecido a ele. No primeiro caso era exorcizada; no segundo, queimada (VOLTAIRE, 1978, p.163).

Um dos motivos do desprezo à Moyen Âge, segundo enciclopedistas como Voltaire, diz respeito à forma supersticiosa como essas coisas eram tratadas. Disso resulta nos adjetivos 136

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pejorativos nos quais a Idade Média era associada: l’ignorance, curiosité grossière, barbarism, superstitions. Em contraposição, esses intelectuais se vangloriavam em ser os novos missionários da civilization, partidários que denunciavam les idolâtres odieux et ridicules, pois, conclui desdenhosamente o já citado Voltaire: “Foi assim que raciocinamos durante quinze ou dezesseis séculos...” (VOLTAIRE, 1978, p.163). Aliado ao desprezo estava à indiferença desses intelectuais para com o pensamento medievo, conforme o já citado Voltaire: “Passemos em branco o período que medeia entre a república romana e nós” (VOLTAIRE, 1978, p.102). Ora, isso é como se a Idade Média fosse um período em que em absolutamente nada contribuiu para o gênero humano. Era um tempo que deveria ser esquecido da história. Questionamentos ao iluminismo francés A que se deve tal atitude apresentada nos parágrafos anteriores? Talvez porque a Europa ainda guardasse em determinados domínios marcas intempestivas dos abusos cometidos pela religião cristã, como na França do século XVIII. Tudo bem, as fogueiras medievais foram substituídas pelo suplício da roda no Antigo Regime; mas, mais tarde não seriam substituídas pela guilhotina? Não há dúvida de que a Igreja oficial não tolerasse determinadas obras literárias e atitudes que fossem contrárias aos seus dogmas. Mas, durante a Revolução Francesa, foi diferente na querela entre girondinos e jacobinos? O próprio Voltaire ao fazer tantas críticas risíveis aos judeus, não terminaria por ser intolerante para com aqueles em que ele acusa de serem intolerantes? Na época, foi notória a atitude dos representantes das comunidades judaicas que acabaram por questionar Voltaire por causa de sua postura mordaz contra o judaísmo, ao afirmarem que: “... não basta não queimar os homens: é possível queimá-los com a caneta e esse fogo é ainda mais cruel na medida em que seu efeito permanece até as gerações futuras” (BUCCI, 2009, p.214). Rousseau e o período medievo Como foi o posicionamento de Rousseau para com o período medievo? No seu primeiro Discurso, intitulado: Discurso sobre as ciências e as artes (1750), Rousseau, em comum com os enciclopedistas demonstra uma continuidade em matéria de indiferença e desprezo ao pensamento medieval, ao escrever que: “A Europa tinha retornado a cair na barbárie dos primeiros tempos. Os povos dessa parte do mundo, hoje tão esclarecida, viviam há alguns séculos em estado pior do que a ignorância” (ROUSSEAU, 1983, p.334). Essa parece ser uma das poucas referências diretas de Rousseau à Idade Média. Embora sua obra apresente temas filosóficos comuns à época como: anticlericalismo, crítica aos milagres, superstições, dogmas como o pecado original, revelação divina, etc., características essas também atribuídas ao período medieval. Em 1760, é publicado o romance Júlia ou A Nova Heloísa. Quais seriam os objetivos de Rousseau em escrever esse romance? O tema da moralização dos costumes é uma constante na obra de Rousseau. Como ele quer fazer isso? Um dos efeitos da retórica rousseauísta é o de contrapor costumes antigos com costumes do seu tempo. Conforme 137

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Rousseau, o melhor país ainda é: “onde encontramos homens antigos nos tempos modernos” (ROUSSEAU, 1995, p.68). Para fundamentar a sua proposta de moralização dos costumes, ele evoca, de um lado, homens do passado, personagens moralmente exemplares como Catão, Sócrates, Jesus Cristo; e de outro, ele propõe a construção metafórica do homem em seu estado de natureza na Primeira Parte do Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da desigualdade entre os homens (1754), esse homem sendo: simples, feliz, livre, inocente, para servirem de modelo para os homens do seu tempo. Se os tempos antigos já apresentavam sinais de decadência dos costumes, quando o humano abandonou as virtudes guerreiras e rústicas pelo cultivo das ciências e das artes, o que pensar dos tempos presentes e, mais escatologicamente, o que esperar do futuro? O próprio Rousseau faz uma provocação aos homens do presente no Prefácio do já mencionado Discurso sobre a Desigualdade, segundo a qual: Descontente com teu estado presente, por motivos que anunciam à tua infeliz posteridade maiores descontentamentos ainda, quem sabe gostarias de retrogadar. Tal desejo deve constituir o elogio dos teus antepassados, a crítica de teus contemporâneos e o temor daqueles que tiveram a infelicidade de viver depois de ti (ROUSSEAU, 1983, p.237).

Rousseau precisa de bases para sustentar as suas idéias. Essas bases têm como uma das orientações: resgatar imagens e costumes que nos fazem lembrar o passado, para iluminar e denunciar a corrupção moral do presente, ainda que se utilizando das armas da própria civilização como a escrita de romances, com o intuito de mostrar as feridas dessa mesma civilização. Não seria agradável escrever romances como a Nova Heloísa, mas é preciso escrevê-los para demonstrar que uma vida policiada, civilizada, marcada pelas falsidades e aparências, não tornam as pessoas felizes. Nesse aspecto, uma pergunta nos parece fundamental: Rousseau retornou à Idade Média quando escreveu a Nova Heloísa? A pergunta inicial reaparece com essa roupagem. Já vimos que o nosso autor tende a ver o passado como modelo moral e o presente como decadência dos costumes. A Idade Média cabe nesse passado? No Discurso sobre as ciências e as artes, não. O que dizer da Nova Heloísa? Eis o que vamos investigar, agora. A Nova Heloísa, o amor, e a inspiração medieval Havia na Paris do século XVIII, a circulação de diversos romances eróticos e libertinos que atraíam parte do público. Geralmente esses eram romances anônimos que devido à dose de sedução e aventuras que iam de encontro à moral cristã, azeitavam o gosto da sociedade do Antigo Regime. Subitamente, um olhar de um não clérigo que já começava a romper com os Philosophes da época, começava a observar com desconfiança esse gosto dessa sociedade de forma perspicaz: As grandes cidades precisam de espetáculos e os povos corrompidos de romances. Vi os costumes de meu tempo e publiquei estas cartas. Ah! se

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tivesse vivido num século em que tivesse de jogá-las ao fogo (ROUSSEAU, 1995, p.23).

Exercício sofístico de um autor que já foi considerado “médico do mundo”. O olhar de Rousseau já detectava que havia algo de nebuloso na sociedade do seu tempo. Era preciso fazer o diagnóstico desse mal e combatê-lo com os remédios adequados a essa mesma sociedade: o romance. Não que a publicações de romances fossem boas em si mesmas, mas era preciso que se publicassem romances para mostrar quão perigosos eles eram para os costumes. Daí toda a catarse empregada no primeiro Prefácio da Nova Heloísa em que nosso autor chamava a atenção do leitor para com o estilo “desagradável” da obra. Desagradável, por quê? Segundo Rousseau: Este livro não é feito para circular na sociedade e convém a pouquíssimos leitores. O estilo desagradará às pessoas de gosto, o assunto alarmará as pessoas severas, todos os sentimentos não serão naturais para aqueles que não acreditam na virtude. Deve desagradar aos devotos, aos libertinos, aos filósofos, deve chocar as mulheres fáceis e escandalizar as mulheres honestas. A quem agradará, então? Talvez somente a mim: mas certamente não será indiferente a ninguém (ROUSSEAU, 1995, p.23).

A obra pode ser desagradável para muitos, mas não passará por despercebida para todos os que a tiveram lido. Quais as razões para isso? Em que sentido o enredo, os lugares, os personagens, podem chocar os leitores? Costumes esquecidos no passado podem refrescar a memória do presente. Mas, a Nova Heloísa é um romance contemporâneo ao escritor, não é um romance que se passa em tempos passados como a Idade Média, o que ele pode ter de medieval? Rousseau nos adverte que: “Esta coletânia, com seu gótico tom, convém melhor às mulheres do que os livros de filosofia” (ROUSSEAU, 1995, p.24). A expressão: Gótico tom pode ser uma das arestas que precisávamos para fundamentar a nossa tese, segundo a qual: a Nova Heloísa é um romance que tem no amor cristão medieval uma das suas fontes de inspiração. Uma nota da Moretto (tradutora do romance) nos chama a atenção para a definição da expressão Ghotique presente no Dicionário da Academia (1762), segundo a qual: “o que parece demasiadamente antigo e fora de moda” (ROUSSEAU, 1995, p.24). Explicação pobre que revela o desejo de superação da cultura e arte góticas. Então, o “Gótico tom” a que Rousseau se refere parece ter a intenção de mostrar que pode haver bons valores no Gótico, valores esses ignorados pelos seus contemporâneos. Outra fonte de fundamentação da nossa tese mencionada no parágrafo anterior, diz respeito ao próprio nome do romance: Júlia ou A Nova Heloísa, que tem clara relação com a história de Abelardo e Heloísa, ressurgida romanticamente na época de Rousseau. SaintPreux, personagem principal do romance, se apaixona por Júlia, quando aquele é convidado pelo pai desta, o senhor D’Etange, a morar em sua residência para ser o seu preceptor. Não há castrações nem fugas para conventos ou investiduras clericais. Mas, o romance que se inicia entre eles dois e que permanece ao longo da obra, com seus descaminhos, tem inspiração na

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história de Abelardo e Heloísa, conforme a Carta XXIV da Primeira Parte, escrita por SainPreux à Júlia: Quando as cartas de Heloísa e de Abelardo caíram em vossas mãos, sabeis o que vos disse dessa leitura e da conduta do Teólogo. Sempre lamentei Heloísa; possuía um coração feito para amar, mas Abelardo sempre me pareceu um miserável digno de sua sorte e com tão pouco conhecimento do amor quanto da virtude. Após tê-lo julgado, devo imitá-lo? Infeliz daquele que prega uma moral que não quer praticar! Aquele cuja paixão cega até este ponto em breve é punido por ela e perde o gosto pelos sentimentos aos quais sacrificou sua honra (ROUSSEAU, 1995, p.89).

A menção a Abelardo como Teólogo é pejorativa. Pois, se tiveram pensadores escolásticos com orientação filosófica um pouco mais distante do pensamento teológicodogmático oficial, um deles foi Abelardo. Para Gandillac: “Na história do pensamento medieval, Pedro Abelardo representa antes a tendência racionalista do que a corrente mística” (GANDILLAC, 2001, p.198-199). Como vimos, Saint-Preux não quer ser comparado a Abelardo de forma alguma, mas menciona bem Heloísa. Júlia é a nova Heloísa, ela tem um coração aberto para o verdadeiro amor. Não o amor traiçoeiro, enganador, inescrupoloso, de uma Manon Lescaut, por exemplo. Ao passo que, Saint-Preux quer passar-lhe segurança ao querer compartilhar esse amor de uma maneira virtuosa, digna de um homem de honra, demonstrando que tem autênticos sentimentos para com sua amada. Não há espaço para intrigas, infidelidades e traições. Ambos se amam verdadeiramente. A Nova Heloísa desperta no leitor sentimentos de pureza, inocência, verdade, honra, fidelidade. Virtudes que apenas a sociedade e a desigualdade nela presente podem abalar. Quando um nobre inglês amigo dos amantes chamado Milorde Eduardo tenta intermediar a união conjugal dos dois junto ao pai de Júlia, tal união não é aceita pelo Sr. D’Etange, que a considera um ultraje: o amor se mede pelo título e pela fortuna, assim pensavam aristocratas como ele. Quem é Saint-Preux? Um homem sem família, origem, fortuna. Um casamento “escandoloso” como esse não podia ser aceito por nobres aristocratas: “Proibo-vos, por toda a vida, de vê-lo e de falar-lhe e isto, tanto para a segurança dele quanto para a vossa” (ROUSSEAU, 1995, p.164), adverte o barão à sua filha. A filha não aceitou a advertência do pai e fugiu com seu amor para serem felizes para sempre. Isso poderia ser verdadeiro talvez em outros romances, mas não na Nova Heloísa. Mesmos consternados, os amantes se separam a pedido dos pais da amada, Júlia se casa com o Barão de Wolmar onde constroem um casamento estável e respeitoso, com filhos lindos e felizes. Júlia e Saint-Preux continuam nutrindo paixão um pelo outro no decorrer do romance e Wolmar não é enganado por nenhum dos dois quanto a esse sentimento. O próprio fidalgo convida Saint-Preux a ser o preceptor dos filhos do casal. Em absolutamente nada os casamentos são marcados pela infidelidade. Os laços de consaguinidade aristocratas são respeitados. Os filhos obedecem aos pais contra a sua própria vontade, e são felizes por isso. A linhagem e a fortuna se mantiveram como critérios para um bom casamento, o amor não se consumou, mas o dever venceu. A boa filha e a boa esposa superaram os desejos da amante. Saint-Preux reconhece os valores da amada. Ele não a ganhou, mas é preferível não ganhá-la, do que “perdê-la para o mundo”. 140

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Com isso, Rousseau apresenta uma galeria de mulheres que atendem aos pré-requisitos do que ele entende por costumes virtuosos que as mulheres francesas deveriam atender: elas são serviçais, boas esposas, fiéis, verdadeiras, fervorosas cristãs, obedientes e respeitosas a qualquer custo. Por tudo isso, a Nova Heloísa pode não ser um bom romance, para a sociedade. Mas, quem disse que esse bom é um bem em si? Nunca uma moça casta leu um romance, e coloquei neste um título suficientemente arrojado para que, ao abri-lo, se saiba o que esperar. Aquela que, apesar deste título, ousar ler uma única página, é uma moça perdida: mas que não impute sua perda a este livro, o mal fora feito de antemão. Visto que iniciou, que acabe de ler: não tem mais nada a pôr em risco (ROUSSEAU, 1995, p.24).

Valores cristãos são afirmados nesse romance: a fidelidade ao amor conjugal, a castidade, a honra ao pai e a mãe, a devoção cristã. Isso numa época em que era moda produzir romances eróticos, libertinos e contestadores da própria moral cristã. Os intelectuais estavam numa peregrinação às avessas: do cristianismo ao deísmo, do deísmo ao ateísmo. Mas, quem disse que na Idade Média os valores mencionados acima eram cegamente observados? A que passado Rousseau se refere como espelho e modelo para o presente? Quem disse que a sociedade medieval era casta e pura? Considerações finais Aqui chegamos ao ponto final do nosso trabalho. Nele encontramos mais interrogações do que respostas. Rousseau tende a desprezar o período medieval em sintonia com o pensamento da época. Isso nos diz alguma coisa de característico da época, mas nos diz muito pouco do que foi o período medieval, efetivamente. Rousseau tem uma tendência em ver no passado valores perdidos no presente. Há uma possibilidade de que na Nova Heloísa seja salvaguardada uma visão mais ponderada do período medievo, dadas as características que mencionamos no parágrafo precedente. Mas, o que há de real, de histórico, nessas características de inspiração gótica, pretensamente louvadas por Rousseau? Conforme Régnier-Bohler, algumas narrativas escritas em período medieval no tocante a vida familiar, apresentam uma dinâmica oposta àquilo que a realidade o era, efetivamente. Dessa forma: Ordenadas segundo uma firme estruturação familiar, as narrativas medievais traem, à flor do texto, os problemas internos das famílias, sugerindo – o que, aliás, pode ter obsedado a consciência da época feudal – a obsessão das rivalidades entre herdeiros com ambições comparáveis (RÉGNIERBOHLER, 2009, p.340).

Ainda assim, não se pode distanciar ou ocultar completamente a literatura da realidade: intrigas, adultérios, ciúmes, assassinatos, mentiras, sodomias, tudo isso também é parte dos tempos medievos:

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Se as referências familiares possuem uma complexidade extrema, é possível delas destacar aqui alguns eixos e, em primeiro lugar, a freqüência dos enredos sexualizados: seduções do tipo incestuoso (pai/filha, madrasta/enteado, cunhado/cunhada), rivalidades em torno da mesma mulher, calúnias de natureza sexual que acarretam o exílio das jovens mães, em suma, um conjunto de querelas domésticas que outras narrativas, prudentemente, ocultam por meio de uma exemplaridade por vezes um pouco rígida (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p.340).

Por mais que moralistas tentem impor regras de conduta religiosas na tentativa de maquiar a realidade, sempre haverá uma literatura que apresente, nos seus mais diversos domínios, a “vida como ela é”. No período medieval: crimes, traições e corrupções, adjetivos considerados sob uma ótica, cristã, claro, acontecem como em qualquer período da história. Nesse caso, se nossa tese está correta, na Nova Heloísa, Rousseau apresenta não apenas uma visão idealizadora da sociedade de seu tempo, mas apresenta também uma visão romantizada do passado ao acreditar que o amor conjugal, tal qual é apresentado em sua obra, fosse uma regra absoluta nos tempos medievos, em que: serenidade, inocência, simplicidade, transparência e fidelidade dos cônjuges, fossem imagens reais de um passado perdido. Isso demonstra que, Rousseau não apenas desprezou a Idade Média no Discurso sobre as ciências e as artes, mas idealizou uma forma de amor conjugal que não tem respaldo absoluto nos tempos da hegemonia da fé cristã na Europa. Essa humanidade dos tempos passados parece tão medíocre quanto à dos tempos presentes. Então, se não há saída, para que adianta escrever romances inspirados em tempos passados idealizados, passados esses que serviriam como modelos morais para o presente? O que realmente aprendemos lendo a Nova Heloísa? O próprio Rousseau nos responde: “Aprendemos a amar a humanidade. Nas grandes sociedades somente aprendemos a odiar os homens” (ROUSSEAU, 1995, p.27). Referências BUCCI, Eugênio. Intolerância, ou a tragédia do não diálogo. In NOVAES, Adauto (Org.). Vida, vício, virtude. São Paulo: Editora Senac, 2009. GANDILLAC, Maurice. O amor na Idade Média. Trad. Cláudio Marcondes. In Novaes, Adauto (Org.). O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Ficções. In DUBY, George et al (Org.). História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença. Trad. Mária Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as Artes. Trad. Lourdes Santos Machado. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores). ______. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Lourdes Santos Machado. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores). ______. Júlia ou A Nova Heloísa. Trad. Fulvia M. L. Moretto. Campinas: Hucitec, 1995. VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosófico. Trad. Marilena de Souza Chauí (et al). 2 ed. São Paulo : Abril Cultural, 1978 (Os Pensadores).

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A POBREZA COMO EXPRESSÃO MÁXIMA DA VITA VERA APOSTOLICA NOS ESCRITOS DE CLARA DE ASSIS Valéria Fernandes da Silva (Faculdade Teológica de Brasília)1 [email protected] Em 1212, a jovem Clara abandonou a casa de sua família para se juntar a Francisco de Assis e seus frades, tornando-se a primeira “franciscana”. Depois da morte do fundador, em 1226, e durante o primeiro século da Ordem, sua voz foi uma das mais poderosas na defesa da pobreza conforme aquilo que a santa acreditava ser a vontade do poverello. A todos os papas, Clara reforçava a necessidade de receber o maior de todos os privilégios, o da pobreza, para que ela e suas irmãs, no mosteiro de São Damião, nunca pudessem ser constrangidas a receber nenhuma propriedade de quem quer que fosse. À Clara são atribuídos poucos escritos, quatro cartas à Princesa Inês de Praga (ou da Boêmia), uma Bênção, o Testamento e a Forma de Vida.2 As quatro cartas para Inês de Praga sugerem, uma correspondência maior, assim como outras fontes sobre Clara e as mulheres franciscanas são indício de uma escritora mais ativa, especialmente, na promoção da pobreza que lhe era tão cara. Então, por que tão poucos escritos conhecemos da santa? Acreditamos, e defendemos esta idéia em nossa Tese de doutorado, que a ordem de destruição dos documentos sobre Francisco de Assis em 1266 atingiu da mesma forma os documentos ligados à Clara. Em 1266, o Capítulo Geral da Ordem Franciscana estabeleceu que somente as biografias escritas por Boaventura seriam tidas como legítimas e oficiais, banindo todas os demais escritos biográficos, que deveriam ser destruídos. Neste ímpeto de controlar a heresia dentro das fileiras da Ordem Primeira, é muito provável que documentos diversos sobre e de autoria de Clara possam ter sido escondidos e perdidos, como, também, destruídos. Afinal, uma das questões que agitava os franciscanos na época era exatamente o ideal de pobreza defendido pelo fundador e como ela deveria ser cumprida pelos membros da ordem. A insistência de Clara na importância de ser pobre e na necessidade de permanecer vivendo comunitariamente em pobreza norteia todos os escritos atribuídos à santa, desde suas cartas para Inês até a forma de vida, a única escrita por uma mulher aprovada pela Santa Sé até o século XIII. A resistência de Clara, ao longo de toda a sua vida religiosa (1212-53), pode ser percebida em múltiplos documentos, como a Legenda de Santa Clara, de autoria de Tomás de Celano, na qual a pobreza está associada ao perfeito segmento de Jesus Cristo:

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Doutora em História pela UnB, professora da Faculdade Teológica de Brasília e do Colégio Militar de Brasília. Há também uma carta para a beguina Ermentrudes de Bruges, cuja autenticidade é alvo de disputa, pois o compilador dos Annales Minorum, de Lucas Wading, diz ter encontrado duas cartas da santa para esta co-irmã, mas só apresenta o texto de uma. Esta carta parece ser a junção dos dois documentos. 2

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Quando tentou convencê-la a aceitar algumas propriedades que oferecia com liberalidade pelas circunstâncias e perigos dos tempos, ela resistiu com ânimo fortíssimo e não concordou, absolutamente. Respondeu o Papa: “Se temes pelo voto, nós te desligamos do voto”, mas ela disse: “Pai santo, por preço algum quero ser dispensada de seguir Cristo para sempre”. (Legenda de Santa Clara)

Este fragmento, que corresponde a parte de uma conversa entre a santa e o papa Gregório IX, mantém-se fiel ao que pode ser lido em várias passagens dos escritos da própria Clara, como em sua primeira carta à Inês de Praga quando ela declara que “Creio firmemente que sabeis que o reino dos céus não é prometido e dado pelo Senhor senão aos pobres, porque, quando se ama uma coisa temporal, perde-se o fruto da caridade.” A firmeza de Clara em afirmar a pobreza como traço fundamental para a salvação aproxima-se perigosamente de princípios defendidos dentro de alguns círculos heréticos dos séculos XII, XIII e XIV, mas, ao mesmo tempo, é uma radicalização daquilo que estava estabelecido entre os seguidores da chamada vita apostolica ou vita vera apostolica. Vita Vera Apostolica: O Caminho do Meio? Ernest W. McDonnell em seu texto clássico The Vita Apostolica: Diversity or Dissent, defende que a vita apostolica se assentaria em três princípios básicos: imitação da vida dos cristãos primitivos, em simplicidade, penitência e busca pelas coisas espirituais; o amor à Deus e pelo próximo enfatizando tanto o serviço aos pobres (viúvas, leprosos, órfãos, doentes), quanto o proselitismo; e a pobreza, imitação de Cristo, o ganho do sustento com as próprias mãos, a aceitação de esmolas. (MCDONNELL, 1955, p. 15) Pobreza, penitência e pregação centradas no modelo oferecido pelos Evangelhos sintetizam bem o que os defensores da vita apostolica, oferecendo um tripé de sustentação para uma nova, vigorosa e plural forma de vivência da espiritualidade. Os primeiros indícios da vita apostolica começaram a aparecer ainda no século XI, mas seu grande impulso se deu no século XII e no século XIII com homens como Norbert de Xanten, Robert D’Abrissel, Pedro Valdo, Francisco de Assis.3 Esse processo de rejeição dos bens terrenos e da opção por uma forma mais ou menos radical de pobreza é concomitante ao rápido processo de monetarização da economia, da expansão do comércio. A riqueza, inclusive da Igreja, era cada vez mais visível e incomodava muitos fiéis. Durante os séculos XI, XII e XIII, a vita apostolica teve adversários e defensores. Autoridades monásticas colocavam em dúvida a seriedade das novas formas de vida religiosa tipicamente urbanas e não claustrais. Cônegos questionavam o direito dos frades e leigos de pregarem. A familiaridade com as mulheres era usada como acusação aos pregadores, vide as preocupações do próprio Francisco de Assis para que seus frades não entrassem em mosteiros 3

Ernest W. McDonnell defende em seu texto que os princípios da vita apostolica estariam presentes até as bases da Reforma Protestante em personagens como Jan Huss e John Wycliff. (MCDONNELL, 1955, p. 15)

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de mulheres. Ainda assim, a vita apostolica foi acolhida e defendida por autoridades eclesiásticas, como Jacques De Vitry, que via com grande positividade a experiência das beguinas e dos menores (homens e mulheres), e o próprio Papa Inocêncio III, que buscou reconhecer as novas ordens e reintegrar grupos que tinham sido colocados na heresia, como os Humiliati. Foi Inocêncio III que aquiesceu em conceder à Clara o primeiro Privilégio da Pobreza. Este fato é relembrado por Clara em seu Testamento: Pra maior segurança, tive a preocupação de conseguir do senhor papa Inocêncio, em cujo tempo começamos, e dos seus outros sucessores, que corroborassem com os seus privilégios a nossa profissão da santíssima pobreza, que prometemos ao Senhor e ao nosso bem-aventurado pai, para que em tempo algum nos afastássemos dela de maneira alguma. McDonnell enfatiza que a reforma religiosa – começada nos dias de Gregório VII e concluída com Inocêncio III – era religiosa e teológica nas suas origens, mas que só se tornou realmente efetiva na medida em que as forças sociais a traduziram em práticas. (MCDONNELL, 1955, p. 17) Os costumes eclesiásticos anteriores permitiam que os religiosos nada tivessem de si, mas administrassem bens da Igreja, alguns mosteiros eram riquíssimos. Os praticantes mais radicais da vita apostolica defendiam uma abstenção total de qualquer posse, de qualquer bem. É esse o tipo de pobreza a defendida por Clara de Assis. Estabelecido isso, é preciso situar as mulheres dentro desse novo paradigma de vida religiosa. Assim como os homens, as mulheres se viram atraídas pela vita vera apostolica. Nesse sentido, o caso de Clara não é singular, mas se encontra dentro de um processo de renovação religiosa muito mais amplo, sobre essa questão Herbert Grundmann escreve: É freqüente nas fontes a informação de que jovens, particularmente da nobreza, rejeitavam casamentos vantajosos, geralmente enfrentando o desdém de seus pais, porque não desejavam nenhum noive senão Jesus Cristo. Elas preferiam não serem “protegidas”, mas optavam por viver em pobreza e fora do seu mundo social de origem como resultado da sua convicção religiosa. (GRUNDMANN, 2002, p. 84)

Antes de entrar para a vida religiosa, Clara vivia em penitência e pobreza dentro de sua casa. Este é o testemunho de vários dos depoentes em seu processo de canonização. Mas isso não era suficiente, permaneciam os constrangimentos familiares, a possibilidade de um casamento para ampliar as riquezas da família. Todas essas questões impediam a vivência integral da vita vera apostolica. A fuga, o confronto com a família, a resistência e, finalmente, a aceitação a contragosto por parte dos parentes da vocação religiosa de Clara, foram passos seguidos por outras mulheres antes e depois dela. Não é nosso interesse romantizar a vida religiosa feminina, mas é preciso marcar que para algumas mulheres a comunidade religiosa (convento, mosteiro, casa de beguinas, etc.) era um espaço de subjetivação e construção de uma identidade que pudesse escapar aos poderes masculinos, o pai (o tio, no caso de Clara), o marido, e até o controle dos religiosos homens. Grundmann enfatiza que a renúncia da posição social e da riqueza não se fazia geralmente por necessidade ou coação, mas por livre escolha. O autor ressalta que é difícil 145

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saber com precisão a qual grupo social as beguinas pertenciam, mas no caso das franciscanas e cistercienses, grande parte era da nobreza ou dos grupos patrícios das cidades. (GRUNDMANN, 2002, p. 85) A vita vera apostolica teve nas mulheres, de todos os tipos, grandes entusiastas. (BRENON, 1992, p. 83-84) Seja como penitentes, hereges, beguinas, monjas, elas contribuíram criativamente, e foram agentes diretas no estabelecimento de novas formas de vida religiosa. É preciso ressaltar que a vita vera apostolica somente acelerou a entrada de mulheres na vida religiosa, especialmente buscando as novas ordens e movimentos que estivessem ancorados nas premissas da nova espiritualidade, isto é, a imitação dos apóstolos e do próprio Cristo. É preciso marcar, também, que as comunidades masculinas fossem mais abundantes, a vida religiosa feminina floresceu desde os princípios da Igreja Cristã, e foi marcada pela diversidade. Quanto à regra, não havia também uma unidade, mesmo os mosteiros onde a regra beneditina era utilizada, os costumes, a vontade do fundador ou fundadora da casa, mesmo a vontade das monjas, cuja maioria absoluta era recrutada nas fileiras da nobreza, prevalecia. (PARISSE, 1994, p. 190) Os mosteiros eram casas voltadas para a oração e, também, a educação de jovens, e a representação da comunidade religiosa como lugar de reclusão absoluta não existia. As abadessas e monjas podiam empreender viagens autorizadas, algo assegurado e prescrito pela regra de São Bento, seguida por boa parte dos mosteiros de mulheres antes do século XIII. (LECLERQ, 1980, p. 67) Além das viagens para fundar outros mosteiros ou por motivos diversos, as monjas até o século XII não eram proibidas de pregar e o caso mais notável é o de Hildegard de Bingen que pregava em praça pública. (LECLERQ, 1980, p. 67 e PERNOUD, 1994, p. 94)4 Diversidade para os Homens, Modelo Único para as Mulheres Ernest W. McDonnell termina seu texto com uma afirmação muito completa sobre o panorama espiritual do século XIII. Segundo este historiador, (...) o século XIII foi uma era de ceticismo e fé, discussão e repressão, espiritualidade e secularismo, diversidade e unidade. Mas a autonomia religiosa, a liberdade de pensamento, depende da divisão dos interesses, não somente da diversidade de método. A igreja, ao contrário de certas seitas, podia ser elástica e inclusiva. (MCDONNELL, 1955, p. 28)

McDonnell, um especialista em beguinas, pouco se atém à questão das mulheres no texto que estamos utilizando. A questão da adesão das mulheres à vita apostolica é abordada

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Régine Pernoud, na biografia que escreveu sobre Hildegard de Bilgen, discorre sobre as quatro viagens de pregação da religiosa, a última empreendida quando ela já estava com mais de 70 anos. (PERNOUD, 1994, p. 118)

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de passagem, assim como a resistência das ordens. Joan Mueller, em seu livro sobre o Privilégio da Pobreza, defende que a aceitação das mulheres nos movimentos e ordens novas, era um primeiro passo que precedia a exclusão ou tentativa de exclusão.5 A partir do momento em que os franciscanos começaram a se organizar como uma ordem, estabelecendo conventos, a manutenção de casas femininas começou a se tornar um peso. (MUELLER, 2006, p. 16) Mas a chave para compreender o “peso” que as mulheres representavam repousa na emergência de discursos misóginos e na imposição da clausura às religiosas. Um exemplo de discurso que depreciava as mulheres é o conhecido fragmento de Prüfening: O sexo feminino, sobre cuja proteção escrevemos aqui, possui quatro grandes inimigos: dois deles encontram-se nele mesmo, a saber, a concupiscência da carne e a curiosidade própria das mulheres; dois vêm de fora, o desenfreado prazer dos homens e a insaciável cobiça do demônio para fazer o mal. Acrescente-se que, diferentemente do homem, a mulher pode perder a virgindade pela violência. (PRÜFENING, apud LECLERQ, 1980, p. 7)

As mudanças foram lentas e, como já pontuamos, houve resistência. O próprio Privilégio da Pobreza é uma forma de resistência das irmãs de São Damião. Sobre a questão das mudanças ocorrida na representação social de religiosa ao longo da Idade Média, Régine Pernoud nos diz: É raro e mesmo excepcional que uma religiosa, tendo escolhido a vida contemplativa, deixe seu convento sem com isso abandonar a sua vocação, (...) Bem mais surpreendentes são as viagens que realizou com o propósito da pregação. Sem dúvida, a clausura das religiosas no tempo de Hildegard era bem menos severa e restrita do que se tornaria depois, quando da constituição do Periculoso, do Papa Bonifácio VIII, no final do século XIII (...) iria constrangê-las a uma existência exclusivamente confinada. Tal severidade se vai acentuar ainda mais: nos séculos XVI e XVII, só serão permitidas às mulheres a fundação de ordens de total reclusão. A vida de uma religiosa do século XII transcorre num contexto bem diferente. (PERNOUD, 1994, p. 94)

O processo de Reforma da Igreja iniciado no século XI, e que de certa forma é concomitante à ascensão da vita apostolica, foi um processo baseado em discursos falogocêntricos e orientados por homens (papas, bispos, imperadores, abades, etc.). Sobre isso, Jane Schulenbrug escreve que as “(...) abadessas (...) perderam não somente sua liberdade de movimento, mas também a sua antiga influência” e, ainda que continuassem sendo convocadas por reis e imperadores, “(...) não participavam das assembléias reformadoras”. (SCHULENBURG, 1988, p. 115) 5

As tentativas de exclusão normalmente fracassavam, como no caso dos Cistercienses que decidiram excluir as mulheres em 1213, ou dos Dominicanos em 1228. Não raro, a decisão tornava-se letra morta ou era revertida por uma autoridade superior. O próprio papa Gregório IX reverteu a decisão do Capítulo Dominicano em 1238. (BOLTON, 1980, p. 151-152)

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A necessidade da clausura para as religiosas, ancorada em discursos sobre a debilidade moral e física das mulheres, foi se tornando central na vida religiosa feminina. Assim, no século XII, “(...) começam a aparecer as determinações mesquinhas sobre portas, chaves, muros e grades” e a “clausura transforma-se numa prisão”. (ROTZETTER, 1994, p. 141) No tocante à clausura, a questão começa a se deslocar, então, “da ‘periferia’ para o ‘centro’ de um campo discursivo”, (BACZKO, 1985, p. 298) tornando-se um dos eixos de estruturação da vida religiosa feminina. Cria-se um círculo vicioso. Enclausuradas, as mulheres não podem esmolar, nem pregar, dois eixos da vita vera apostolica. A defesa do afastamento entre homens e mulheres, começa a impedir que persistam os mosteiros duplos, ou que religiosos possam se abrigar em mosteiros de mulheres ou usarem essas casas como bases em suas viagens de pregação ou mesmo que para aí retornem depois de esmolar. Os novos moldes da clausura impedem, também, as mulheres de administrarem diretamente os bens dos mosteiros, precisando de procuradores. As casas de mulheres passam a ser um peso. A saída é limitar o número de religiosas, ou de casas de mulheres. A preocupação das ordens era menos com, o que chamamos perigo moral ou espiritual que as mulheres poderiam representar, e muito mais com o seu peso econômico. (LECLERQ, 1980, p. 89) Afinal, nos diz Leclerq, “(...) a clausura se torna um bem em si mesma, e o primeiro de todos, aquele em função do qual outros são sacrificados, a começar pela pobreza: a vida claustral exige a existência de rendas e reduz a possibilidade de trabalho.” (LECLERQ, 1980, p. 86) A clausura, se seguida nos moldes propostos pelas autoridades masculinas, tornava as religiosas absolutamente dependentes da boa vontade dos seus patronos laicos e religiosos, assim como de procuradores que deveriam gerir seus bens. Sem autonomia e a possibilidade de romper a clausura, tornava-se muito mais fácil controlar a prática religiosa feminina, impondo sérios limites à independência dos mosteiros de mulheres.6 Outra questão, que teve repercussão sobre Clara e suas irmãs foi a tentativa de imposição da Regra de São Bento a todas as religiosas. Quando da conversão de Clara, estava em andamento um projeto de uniformização da vida religiosa feminina a partir do modelo beneditino na leitura cisterciense. O cardeal Hugolino, futuro Gregório IX, era protetor dos franciscanos e, também, das mulheres religiosas. Ele será responsável por levar adiante o projeto de normatização da vida religiosa feminina tendo a Regra de São Bento como parâmetro e a clausura como condição essencial para a vivência religiosa. A Itália termina sendo o laboratório para essa primeira iniciativa e as franciscanas, organizadas em mosteiros independentes, são alvo da ação do cardeal. (MUELLER, 2006, p. 18-20) 6

O canône LXIV do IV Concílio de Latrão toca na questão da simonia e vai condenar especialmente os mosteiros femininos por essa prática. O texto se inicia com duras palavras: “O pecado da simonia se desenvolveu de tal maneira entre as monjas, que sob o pretexto da pobreza não admitem senão a um número mínino de irmãs que não possuem dinheiro. [...]” (Lateranense IV, LXIV, p. 200)

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A Pobreza como síntese da vita apostolica Durante toda a sua vida como religiosa, Clara lutou para garantir que as irmãs em São Damião poderiam viver em pobreza. As cartas sobreviventes à Inês de Praga, sugerem que a santa ajudou a co-irmã a obter o mesmo privilégio para as irmãs de seu convento. O direito de permanecer franciscana, de viver a vita apostolica, passava pela pobreza e Clara sustentou seus argumentos remetendo-se a uma autoridade maior, a do próprio Francisco. Assim, a regra que Clara viu ser aprovada pouco antes de sua morte começa da seguinte maneira “A Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres, que o bem-aventurado Francisco instituiu, é esta: (...)”. (Forma de Vida de Santa Clara 1). As irmãs são pobres e seguem uma forma de vida instituída não por Clara, mas por Francisco. Esse recurso a uma autoridade maior era uma estratégia para a obtenção de legitimidade. Ainda que Clara já fosse muito famosa por toda Itália e além, Francisco já era santo e, além disso, homem. Curiosamente, nenhuma forma de vida de Francisco para as irmãs resistiu aos séculos, isso, claro, se realmente ela foi escrita ou verbalizada. Em seu Testamento, Clara volta a insistir: (...) faça com que sempre o seu pequeno rebanho (cfr. Lc 12,32), que o Senhor Pai gerou em sua Igreja pela palavra e o exemplo do nosso bemaventurado pai São Francisco para seguir a pobreza e a humildade do seu Filho dileto e da Virgem, sua gloriosa Mãe, observe a santa pobreza que prometemos a Deus e a nosso bem-aventurado pai Francisco e nela digne-se encorajá-las e conserva-las. (Testamento)

A questão da pobreza é retomada em vários pontos do Testamento de Clara, assim como o seu compromisso de seguir o exemplo de Francisco, ele mesmo um seguidor de Cristo e sua Mãe, ambos pobres. Em carta à Inês, Clara louva a escolha dos esponsais com Cristo, e recomenda que a princesa “Veja como por você ele se fez desprezível e o siga, sendo desprezível por ele neste mundo”. (II Carta à Inês de Praga) A pobreza e a penitência, que também não pode ser esquecida, são características indissociáveis da vita apostolica defendida por Clara. A pobreza promove a união com o esposo celeste, que também se fez pobre, permite a aproximação do modelo de perfeição para as mulheres e Maria, que é louvada não somente por ser Virgem, mas especialmente por ser Mãe e pobre. É através da pobreza que Clara, assim como Inês, almejam chegar a salvação. Para que isso se concretize, é preciso resistir a qualquer pressão, mesmo que ela possa vir do próprio papa. Na mesma carta, Clara recomenda a Inês que “(...) não confie em ninguém, não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço no caminho, para não cumprir seus votos ao Altíssimo na perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou.” (II Carta à Inês de Praga)

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As quatro cartas não têm data precisa. Os estudiosos geralmente inferem datas a partir de indícios discursivos. Por exemplo, a II Carta fala de Frei Elias,7 ministro geral entre 123439. E ao sugerir que Inês “não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito”, parece que Clara está fazendo referência a forte pressão exercida pelo papa Gregório IX para que Inês aceitasse propriedades para o seu mosteiro em 1235. A resistência da princesa em aceitar o decreto do papa, fez com que este recuasse dois anos depois. Além de poderem viver em pobreza, outro pedido de Inês foi concedido: as irmãs de Praga poderiam trabalhar em um hospital. Tal decisão mostra que havia ainda terreno para negociação, que as deliberações papais não eram irrevogáveis e que as mulheres tentaram negociar condições, ainda que constrangidas por uma instituição cada vez mais falocêntrica. Por fim, na sua forma de vida Clara reforça várias vezes a necessidade da pobreza. Sua insistência pauta todo o texto, deixando outros aspectos, como a clausura tão cara aos papas, em segundo plano. O texto, também, reforça para as irmãs que a resistência a qualquer autoridade que deseje desviá-las da santa pobreza é legítima. Escreve Clara: “Rogo-vos, senhoras minhas, e vos aconselho a que vivais sempre nessa santíssima vida e pobreza. Guardai-vos bastante de vos afastardes dela de maneira alguma pelo ensinamento de quem quer que seja”. (Forma de Vida de Clara de Assis) Quando os próprios frades se negaram a aceitar o Testamento de Francisco com a aquiescência do papa Gregório IX, Clara se manteve firme na sua decisão de acatar a vontade do fundador. Em tempos de ingerência na vida religiosa feminina e de exercício máximo do poder papal durante a Idade Média a postura de Clara precisa ser vista como um ato de subversiva resistência em relação ao que se esperava das mulheres religiosas no século XIII: clausura, obediência e silêncio. Impossibilitada de exercitar plenamente a vita apostolica, Clara centralizou seus esforços na manutenção da pobreza evangélica. De uma forma muito contundente, venceu, pois ao morrer teve sua forma de vida, síntese de seus ideais, aprovada. Algo singular até então, pois foi a primeira mulher a ter uma regra aprovada e reconhecida pela Igreja. REFERÊNCIAS Fontes Primárias: PEDROSO, José Carlos Corrêa (org.). Fontes Clarianas. 3ª ed. Petrópolis: VozesCEFEPAL do Brasil, 1994. ___. Fontes Clarianas. 4ª ed. Piracicaba: Centro Franciscano de Espiritualidade, 2004. TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes-FFB, 2004. Lateranense IV. Edição crítica de Raimunda Foreville. Vitória: Eset, 1972. 7

“(...) siga o conselho de nosso venerável pai, o nosso Frei Elias, ministro geral.” (II Carta à Inês de Praga)

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Bibliografia Geral: BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moda, 1985, p. 296-332. BOLTON, Brenda. Mulieres Sanctae. In: STUARD, Susan Mosher. Women in Medieval Society. Filadélfia: Pennsylvania University, 1980, p. 141-158. BRENON, Anne. Les Femmes Cathares. Paris: Perrin, 1992. GRUNDMANN, Herbert. Religious Movements in Middle Ages. Indiana: Notre Dame, 2002. LECLERQ, J. Il Monachesimo Femminile. In: Convegno Internazionale - Movimento Religioso Femminile e Francescanesimo Nel Secolo XIII, 7. Assis: Società Internazionale Di Studi Francescani, 1980, p. 61-99. MCDONNELL, Ernest W. The "Vita Apostolica": Diversity or Dissent. Church History. Vol. 24, Nº 1 (Mar., 1955), p. 15-31 MUELLER, Joan. The Privilege of Poverty: Clare of Assisi, Agnes of Prague, and the Struggle for a Franciscan Rule for Women. Pensilvânia: Pennsylvania State University Press, 2006. PARISSE, Michel. As Freiras. In: BERLIOZ, Jacques (org.). Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994, p. 185-200. PERNOUD, Régine. Idade Média – O que não nos ensinaram. 2ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1994. ROTZETTER, Anton. Clara de Assis – A Primeira Mulher Franciscana. Petrópolis: Vozes-CEFEPAL, 1994. SCHULENBURG, Jane Tibbetts. Female Sanctity: Public and Private Roles, ca. 500-1100. In: ERLER, Mary C., KOWALESKI, Maryanne. (ed.). Women and Power in the Middle Ages. Athens: University of Georgia, 1988, p. 102-125.

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IDEIAS RELIGIOSAS NO CRISTIANISMO PRIMITIVO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO PROTO-EVANGELHO DE TIAGO Valmir Nascimento de Moura (UFPB) [email protected] Fabricio Possebon (UFPB) [email protected]

OS PRESSUPOSTOS BAKHTINIANOS De acordo com Bakhtin, a natureza da linguagem é dialógica, sempre está voltada para o outro e nasce dessa relação com o outro. Os homens se humanizam por meio/na linguagem. É nela e por ela, no processo dialógico, que os sujeitos são histórica e ideologicamente construídos. É por meio da interação verbal que os seres humanos constroem sua identidade e consciência, por meio dela participam das lutas de classe. A língua, no olhar de Bakhtin, é o lugar de formação de sujeitos que participam ativamente das realidades que os cercam. O sujeito bakhtiniano é um ser psicossocial que se manifesta por meio da interação. Nessa interação, produz enunciados orais ou escritos, que se enquadram em determinados gêneros discursivos. Estes também apreendidos socialmente. É um sujeito histórico e ideologicamente situado que constrói a identidade com relação à dinâmica de alteridade. Uma das características mais importantes da teoria bakhtiniana da linguagem é a responsividade ativa dos sujeitos durante a interação. O sujeito bakhtiniano nunca é passivo, ele constrói a significação durante o processo de interação por meio de negociações. Dessa forma, o sentido nunca é exclusivamente dado pelo autor ou se encontra simplesmente no texto. O significado é construído na interação entre os sujeitos ativos que estão em dialogo. A partir dessa responsividade ativa, surgem as réplicas do discurso, uma vez que, o sujeito se posiciona em relação ao enunciado manifesto. Há o princípio de apropriação do enunciado do outro para formular o próprio. Daí, a língua se torna o lugar de luta de classes, de afirmação do indivíduo. Não entendamos aqui, classe, como classe social, mas sim como classe ideológica. Os sujeitos reproduzem o social na medida em que participam ativamente dele. É nessa relação dinâmica de alteridade que é construída também a realidade. Segundo Souza (2005, p. 325) “na perspectiva bakhtiniana, a verdade não se encontra no interior de uma pessoa, mas está na interação dialógica entre as pessoas que a procuram coletivamente”. Por este ângulo devemos considerar as cosmogonias míticas do passado como também as ideias religiosas do presente verdades, pois para um determinado grupo de pessoas elas o são.

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Os mitos, mais que uma concepção equivocada dos que os consideram fantasia, ficção e ilusão, são uma forma de representação de verdade, construção ideológica de um grupo de indivíduos que a procuram. Eles criam a realidade em que os homens vivem, tal qual a ciência e a filosofia. OS INÍCIOS DA LITERATURA CRISTÃ O Cristianismo não nasce como uma religião autônoma. No princípio era considerado apenas como uma das seitas (facções) judaicas milenaristas. Tal como tais apresentava a esperança na figura de um messias e um juízo escatológico cataclísmico e fenômenos cósmicos extravagantes. No judaísmo, essa concepção messiânica e apocalíptica começara a ganhar forças no período do cativeiro judaico na Babilônia nos VI a.C.. Na mensagem profética desse tempo há uma mudança substancial de conteúdo. Enquanto os profetas anteriores pregavam a mudança de atitude dos israelitas, estes anunciavam uma nova era que se inauguraria com eventos prodigiosos do Deus de Israel e substituiria a anterior. Essa nova era seria perfeita e feliz para os judeus e traria a condenação para as nações inimigas. Esse novo mundo seria regido por rei designado por Deus que o governaria em seu nome. Esse rei era denominado de o Messias, isto é, o ungido. É possível observar essa esperança em uma obra redigida no século I a.C., os Salmos de Salomão. No capítulo 17, há uma prece para que o messias, filho de Davi, venha logo e esmage “os dominadores injustos e purifique Jerusalém da presença dos pagãos”. Deus governará então seu povo com equidade, pois, “Ele é um rei justo (...) e sob seu reinado não haverá injustiça, porque todos serão santos e seu rei será o messias”. Jesus era judeu e como tal, vivia sobre a influência de seu tempo e de seu mundo. Seus seguidores encontraram motivos para identificá-lo como o messias esperado. No texto dos evangelhos há referencias a essa identificação por meio de passagens veterotestamentárias de profetas que foram interpretadas como referentes a ele. Ainda nos evangelhos é possível ver os discursos escatológicos e apocalípticos que teriam sido pronunciados por Jesus e que faziam parte da esperança judaica. O cristianismo nasce tendo o Antigo Testamento como escritura. Há inúmeras citações dele por todo o Novo Testamento. O cristianismo nasce como religião do livro e aos poucos vai produzindo uma gama de literatura da qual uma pequena parte se tornará sua Escritura, o Novo Testamento. No primeiro período formativo da literatura cristã antiga, encontramos, sobretudo, a tradição oral. Inicialmente, os seguidores de Jesus utilizavam-se da memória para narrar os atos de seu mestre tal como também comunicar seus ensinamentos. Nesse primeiro momento, a mensagem cristã era baseada na paixão, morte e ressurreição de Cristo, como também em suas aparições como ressurreto. No final do primeiro século e início de segundo, surge a necessidade de se refletir sobre outros temas que não eram tão importantes naquele primeiro momento de pregação evangelística. Nasce então uma gama de textos que procuram desenvolver as ideias religiosas cristãs não contempladas por este primeiro momento. Segundo Moraldi (2008, p. 25), 153

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as obras mais antigas surgiram pelos mesmos motivos e com as mesmas finalidades da literatura canônica, fundamentavam-se nas mesmas tradições e correspondiam às mesmas necessidades; e não há duvida que no começo estavam ao lado dos escritos que foram”canonizados”: a catequese primitiva não era só amparada só por estes.

No período formativo da literatura cristã antiga surgem, como gêneros literários, várias cartas cristãs, que uniam as comunidades cristãs que viviam em localidades diferentes e longínquas; inúmeros evangelhos; vários atos dos apóstolos, isto é, os feitos que os apóstolos realizaram após a ressurreição de Jesus; diversos apocalipses; além de regras eclesiásticas, apologias, relatos de martírios, tratados teologicos, comentários etc. Esses textos se tornam importantes, pois mostram que nem todos pensavam da mesma forma, alguns divergem da tradição estabelecida posteriormente e nos mostram uma teologia alternativa. Eles podem ainda mostrar os fatos vistos por um outro ângulo. Esses pontos divergentes podem nos levar a compreender o que acontecia no Cristianismo primitivo, uma vez que, não é notório, que havia divergência de opiniões entre vários grupos. Para ilustrar, basta só relembrar uma passagem bíblica que se encontra na Carta do Apóstolo Paulo aos Gálatas capítulo 1, versículos 6 a 9. Na ocasião havia um grupo que não concordava com a mensagem do apóstolo e estava manifestando esse pensamento às igrejas da Galácia. Ressaltemos que este grupo era formado por cristãos que possuíam praticas judaicas. No livro de atos dos apóstolos canônico essa divergência haveria produzido o primeiro concílio cristão para debater os assuntos concernentes da inclusão dos gentios, isto é, dos não judeus, e como estes deveriam se comportar. Com o estabelecimento de um Canon, que veio a ser determinado no sec. IV d.C. a Igreja veio a rejeitar todos outros textos que foram estimados por cristãos em épocas anteriores. O Canon procura limitar as crenças e ideias religiosas. No ano 360, o sínodo de Laodicéia, no artigo 59, proibia que fossem lidos os salmos e livros não canônicos na igreja. A partir de então surgem várias listas apontando quais obras seriam apócrifas. Uma das listas mais extensas é o chamado Decreto Gelasiano já no sec. VI. Nele está escrito assim: “Todas as outras obras (Isto é, as que não fazem parte do cânon) escritas e difundidas por hereges e cismáticos não são aceitas pela igreja católica, apostólica, romana. Consideramos oportuno mencionar algumas como nos veem a mente, as quais os católicos devem evitar:” (apud. MORALDI, 2008, p. 21).

Daí cita em torno de 60 obras. Tudo o que não fosse considerado canônico tornou-se apócrifo. Nesse momento, juntaram-se tanto obras que eram utilizadas na igreja em épocas anteriores quanto outras que para ela eram aberrantes, como por exemplo, os textos gnósticos. Esse é provavelmente um dos motivos que o Protoevangelho não logrou fama no Ocidente.

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ANÁLISE DA OBRA O nome Proto-evangelho, que quer dizer, primeiro evangelho, foi atribuído a esse escrito pelo humanista francês Guillaume Postel apenas no século XIV (KLAUCK, 2007, pág, 86). Postel, em viagem a Jerusalém, descobriu que um texto era utilizado na liturgia e lido nas igrejas de lá. Fez uma versão latina, a qual foi impressa em Bale em 1552 e reparada em Estrasburgo em 1570. A princípio, a publicação da obra trouxe consigo controvérsias. Em uma delas, Postel foi acusado de ser o seu autor tendo a composto com o intuito de escarnecer a religião cristã (BRUNET, 1848, pág.112). Em 1564, é publicado pela primeira vez o texto grego, sem a preocupação de se saber de onde o manuscrito viera, contudo, notou-se grande divergência entre o texto grego e a tradução latina publicada por Postel. O nome dado por Postel, segundo Brunet (1848, pag.113), parece ter sido forjado, pois ele não se encontra em nenhum manuscrito grego conhecidos. No testemunho mais antigo do texto, o Papiro Bodner V, datado entre o século III e início do século IV d.C, o título é “Nascimento de Maria: Revelação de Tiago”. Os manuscritos gregos posteriores trazem algumas diferenças como as palavras “História” ou “Relato” fazendo hora menção ao nome de Tiago, hora não (CULLMANN, 2003, pág.423). No capítulo XXV, o autor do protoevangelho se identifica como Tiago. Contudo é obra de um autor anônimo que se vale de um pseudomino para conseguir autoridade. É uma forma comum de se escrever na literatura cristã da época. O desconhecimento de algumas instituições judaicas e da geografia da Palestina afasta a possibilidade de ser originário da região. Contudo, o autor possui um grande conhecimento do Antigo Testamento e conhece também a forma literária judaica do midrash. Com base nisso, pensamos ser um autor cristão, nascido e educado em um ambiente judaico, ou judaizante, mas que não habitava nem conhecia diretamente a Palestina. Quanto à origem, discute-se a possibilidade da Síria ou Egito. Quanto à língua, parece ser mesmo o grego a original, mas não se descarta a possibilidade de uma língua semítica. O testemunho textual mais antigo que temos hoje é o do papiro Bodner V, que data do III século e apresenta o conteúdo do texto, salvo as variações e abreviações, muito similar às evidencias posteriores. Klauck (2007, pg. 86) afirma que “o Proto-evangelho surgiu entre 150 e 200 d.C”. Isso se deve ao fato de que desde Orígenes (os irmãos do Senhor podem ser filhos do primeiro casamento de José, apoiando-se no Evangelho de Pedro e no livro de Tiago) e Clemente de Alexandria (a virgindade de Maria foi verificada pelas parteiras) esse documento é conhecido e Justino (Jesus nasceu em uma gruta) mostra algum contato com suas ideias (CULLMANN, 2003, pág.423). O nosso texto conta com 25 capítulos que podem ser divididos em três partes e um pequeno epílogo. A primeira parte vai do Cap I ao XVI e narra a história do nascimento de Maria até o momento do nascimento de Jesus. Os pais de Maria, Joaquim e Ana, eram pessoas ricas e piedosas, entretanto sofriam por não terem filhos. Em um determinado dia de se oferecer sacrifício um homem chamado Rubem ou Rubel – dependendo da versão do manuscrito – 155

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humilha Joaquim por causa disso. Este, inconformado, após verificar que todos os homens justos de Israel possuíam prole, dirige-se para o deserto. Ana, sua mulher, se lamenta pelos acontecimentos a Deus. Este a ouve e envia-lhe um anjo anunciando que ela seria mãe, Joaquim também é avisado por um anjo desse novo fato. Cumprido os meses de gestação, Ana dá a luz a uma menina e põe-lhe o nome de Maria. Quando Maria completa três anos, para cumprir a promessa que sua mãe fizera, é levada ao templo para servir a Deus. Ela mora lá até o aparecimento de uma preocupação: a menarca. A menstruação era vista como impureza para os judeus e Maria não poderia mais permanecer no templo. Os sacerdotes resolvem então passar a tutela de Maria para um dos viúvos do povo. A sorte recai sobre José. Ele acolhe a menina, levando-a para casa. Cabe resaltar que o texto atribui filhos a José de seu primeiro casamento e que esses são os considerados irmãos de Jesus. Ao chegar, José deixa a Maria e vai cuidar dos afazeres de sua profissão. Um dia, ao buscar água um anjo lhe aparece e anuncia que ela foi escolhida por Deus para ser a mãe do salvador. Quando chega ao sexto mês de gestação, José volta de seus trabalhos e encontra Maria grávida. Ele questiona, ela alega inocência. Pretendendo abandoná-la, um anjo lhe aparece e explica o ocorrido. Passado algum tempo, o escriba Anás visita José, vê Maria grávida. Ao voltar da casa de José, leva o caso ao sumo sacerdote. Maria e José são convocados a passar pela prova das águas amargas e fica então provada a inocência de ambos. A segunda parte vai do capitulo XII a XX. Narra o nascimento de Jesus e as circunstancias desse nascimento. Quando se aproxima o dia do nascimento do menino, vem o edito de Augusto ordenando o censo dos habitantes de Belém. José e Maria partem para se recensear e no meio do caminho Maria começa a sentir que é chegado o momento do parto. O lugar está deserto, mas José encontra uma caverna onde Maria poderia ficar enquanto ele procuraria uma parteira. Ao voltar com a parteira o menino já havia nascido. A parteira ao ver um sinal milagroso acredita que ali nascera o salvador. Entretanto, Salomé, outra mulher que a parteira contara o milagre não creu e pede provas. Após um exame ginecológico, Salomé comprova a virgindade de Maria, mas por causa da incredulidade foi castigada, tendo a mão queimada. Mas, ao tomar o menino nos braços, a mão lhe é restituída. A terceira parte vai do XXI ao XIV. Essa parte inicia-se com os magos do oriente, seguido do infanticídio e o assassinato de Zacarias, pai de João Batista, por ordem de Herodes. Tanto Maria como Isabel ocultam seus filhos para que não morram. Ao se procurar por João Batista, encontra apenas Zacarias que é sacerdote e está no templo. Este é morto e esta parte do livro se encerra com a escolha de Simeão para o lugar de Zacarias no sacerdócio. O capitulo XV é um epílogo em que o autor se apresenta como Tiago e explica as circunstâncias em que compôs a obra. Como interpretar todas essas informações? O que podemos inferir de tudo isso. Como vimos, a obra é produto do sec. II e do segundo momento da produção da literatura cristã antiga, isto é, do desenvolvimento das ideias religiosas estabelecidas do primeiro momento. O que historicamente está acontecendo no segundo século para o cristianismo? Primeiramente podemos destacar que o início de um movimento antijudaico dentro do próprio cristianismo, que estende também para os judeu-cristãos. Essa forma de compreender o 156

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Cristianismo pode ser deduzida do pensamento paulino. Entretanto, ganhou motivações maiores que as propostas por esse autor. Inácio de Antioquia, em sua carta aos magnésios, diz: 8. “não vos deixeis enganar por doutrinas heterodoxas nem por velhas fábulas que são inúteis. Com efeito, se ainda vivemos segundo a lei, admitimos que não recebemos a graça (...). 10. Contudo, tornamo-nos seus discípulos [discípulos de Cristo] abraçamos a vida segundo o cristianismo. Quem é chamado com nome diferente desse, não é de Deus. Jogai fora o mau fermento, velho e ácido, e transformai-vos no fermento novo, que é Jesus Cristo (...). É absurdo falar de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, judaizar. Não foi o cristianismo que acreditou no judaísmo, e sim o judaísmo no cristianismo (...). (PADRES APOSTÓLICOS, 2008, pag. 93)

Na carta aos filadelfienses, Inácio critica o judaísmo e parece mostrar que o cristianismo vivido por um circunciso é algo inferior: 6.1. Se alguém vos interpreta o judaísmo, não o escuteis, porque é melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaísmo de incircunciso. Se ambos não falam a respeito de Jesus Cristo, são para mim estelas e túmulos de mortos, sobre os quais estão escritos somente nomes de homens. (PADRES APOSTÓLICOS, 2008, pag. 111).

É também nesse século que o gnosticismo começa a se desenvolver dentro do Cristianismo. Dentro desse expoente gnóstico destacamos Marcião. Ele também desenvolveu um antijudaísmo fundamentado nos pensamentos e ideias paulinas. Marcião rejeitou por completo o Antigo Testamento e estabeleceu seu próprio cânone e fundou uma igreja gnóstica. A teologia marcionista, expõe um sistema dualista. Para ele há dois deuses. O do antigo testamento que instituiu as leis e é mau o deus do novo testamento que instituiu a graça e é bom. Jesus manifesta o Deus bom e Javé para se vingar entrega-o aos seus perseguidores. O mundo está sob o domínio de Javé e os fieis serão perseguidos até o final dos tempos quando o deus bom se mostrará, receberá os fieis em seu reino. Os outros homens, a matéria, e o Deus criador, isto é, Jave serão destruídos. Podemos ainda citar deste período Cerinto. Ele ensinava que o mundo foi criado por um demiurgo que ignorava o verdadeiro Deus. Segundo ele, o Cristo desceu do céu sobre Jesus no ato do batismo. Temos ainda Valentino, Menandro, Satornil e vários outros nomes que desconsideram o Antigo Testamento. Não queremos sintetizar o pensamento gnóstico por completo mais uma coisa fica saliente: Aversão ao Deus do Antigo Testamento que é um deus criador. Para eles a matéria é má e um deus bom e verdadeiro não a criaria; Consequentemente, a Lei (Torá), aos Escritos do Antigo Testamento. Esses são desconsiderados, sendo supridos por outras formas de compreender o mundo criado e o próprio Cristo. Essa forma de pensamento separasse radicalmente da forma como os apóstolos pensavam e de como o Jesus dos evangelhos canônicos pensava. Lembremos nesse ponto, que o cristianismo nasce da esperança judaica fundamentada no messias e num fim do mundo. Os primeiros cristãos, judeus de Jerusalém, constituíam uma seita apocalíptica dentro do 157

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judaísmo palestino. A compreensão do mundo era baseada na visão judaica do mundo que estimava um Deus de nome impronunciado e que criara todas as coisas. Em resposta ao pensamento antissemita dessa forma cristã de pensar, e do gnosticismo em desenvolvimento – ambos desvalorizavam os ritos judaicos, o Protoevangelho aponta para a piedade judaica dos pais de Maria. Joaquim apresentava suas ofertas para Deus nos períodos determinados e era tipo por justo. Quando Maria e José são acusados de pecado, por estar ela grávida, o modo de validação da inocência deles é provado por meio de um ritual judaico instituído no livro de levítico. O ritual mostra que esse Deus utiliza-se desse recurso ritualístico para inocentá-los. Um dos mitos principais atestados no Protoevangelho é sem dúvida o da partenogênese. É outra resposta ao gnosticismo. Miraculosamente, Maria engravida do Espírito Santo. Num gnosticismo posterior, como no Evangelho de Felipe, por exemplo, verso 16, isso é algo totalmente impossível. Lá está disposto: “Alguns dizem que Maria concebeu por obra do Espírito Santo. Mas eles estão enganados. Não sabem o que dizem. Quando uma mulher alguma vez concebeu por obra de outra mulher?”. CONSIDERAÇÕES FINAIS O texto do protevangelho nasce numa relação de conflitos ideológicos em que o autor expressa a realidade de sua comunidade ideológica. Parece-nos ter sido composto para responder as exigências que afetaram essa comunidade ideológica, isto é, a defesa de um cristianismo de base judaica, ou judaizante. Ele reafirma as origens judaicas de Cristo e de sua família, com cumprimentos de rituais. Há piedade judaica dos ancestrais de Jesus é ressaltada. O texto embora traga um relato sobre o mito da partenogênese, o material utilizado diverge do material canônico. Podemos inferir nesse ponto que a ideia religiosa de fato existe e que no caso desse texto, ao modelo, dos canônicos, possui base no Antigo Testamento. A família de Jesus é apresentada, seus irmãos são os filhos que José tivera em seu primeiro casamento. Essa ideia também existia nos tempos de Jerônimo, tal como a ideia de que esses seriam de fato filhos de José e Maria. Entretanto, a teoria de Jerônimo de que estes seriam ser entendidos como primos, ganhou popularidade e prevaleceu sobre as demais no Ocidente. O texto de forma secundária, demonstra o pensamento de copulação de seres angelicais com humanos, uma interpretação judaica comum de Gêneses 6. E ainda explica onde Adão estaria enquanto Eva era tentada. Todos esses fatos narrados não se encontram no material canônico. Conclui-se que há lutas de classe ideológicas que convergem e divergem em alguns pontos. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 14ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010. BRUNET, Gustave. Les Évangiles Apocryphes. Paris: Frank, Libraire-éditeur, 1848 158

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CULLMANN, O. Infancy Gospels. In: SCHNEEMELCHER, Wilhelm. New Testament Apocrypha. Vol I. 2 ed. Louisville: Westminster John Knox Press, 2003. p. 414-469 KLAUCK, Hanns-Josef. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Loyola, 2007 MORALDI, Luigi. Evangelhos apócrifos. 6ª Ed. São Paulo: Paulus, 2008 PADRES APOSTÓLICOS. Coleção Patrística. Vol 1. 4 ed. São Paulo: Paulus, 2008 PÉREZ. Gonzalo A. e GRANADOS, Paloma R. (org.). Apócrifos cristianos: El Protoeangelio de Santiago. Vol. 3. Madrid: Editorial Ciudad Nueva, 1997 SOUZA, Solange Jobim e. Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin: Polifonia, alegoria e o conceito de verdade no discurso da ciência contemporânea. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. 2ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005.

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ECOS DA FÁBULA E DO BESTIÁRIO MEDIEVAL EM “CONVERSA DE BOIS”, DE GUIMARÃES ROSA Gilberto de Sousa Lucena1 (UFPB) Dois gêneros literários remotos e sua filiação ao conto “Conversa de Bois” A análise aqui proposta do conto “Conversa de Bois” – do escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967) – decorre de um motivo nele explorado a nosso ver essencial no conjunto da produção ficcional rosiana. Nos referimos à temática do fabuloso ou maravilhoso. Temos, neste caso, uma narrativa concebida nos moldes das fábulas clássicas ou mesmo da literatura medieval dos bestiários nas quais se permite aos animais o atributo da racionalidade aliada à consequente capacidade de falar, agir e até exercer influência na vida dos humanos. Enquanto gênero ou forma literária, a fábula se define como sendo uma “narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a parábola, em razão da moral, implícita ou explícita, que deve encerrar”, geralmente tendo como protagonistas “animais irracionais, cujo comportamento [...] deixa transparecer uma alusão, via de regra satírica ou pedagógica, aos seres humanos” (MOISÉS, 1978, p.226). Em outras palavras, a fábula tem por meta “instruir” o homem sendo que da sua “didática” ou “pedagogia” é possível se extrair preceitos e lições morais que visam o aperfeiçoamento da conduta humana. A vida dos tempos modernos parece encarar o gênero fabular de modo distinto. É como se o homem de hoje sentisse a real necessidade de buscar, no plano sobrenatural ou místico da sua existência, “explicações” e “justificativas” para sua razão de ser ou de estar no mundo. Nessa busca, até de forma inconsciente, o indivíduo sente a falta no seu dia a dia da experiência com o fabuloso. Daí a possibilidade de, através da fábula, tornar a vida menos tediosa “mediante a aceitação e assimilação do fantástico, do maravilhoso, a exemplo da personificação dos animais que, no plano fabulatório, se tornam os genuínos representantes dos ‘vícios’ e ‘virtudes’ do ser humano” (LUCENA, 2012, p.43). O mesmo podemos afirmar sobre o gênero literário medieval dos bestiários. Incluídos entre as obras mais copiadas e lidas da Idade Média, aqueles belos volumes ilustrados contendo relatos ou lendas sobre bichos “exerceram profunda influência na história da cultura ocidental” (VAN WOENSEL, 2001, p.20). Nos questionando acerca do que levaria o homem do medievo a se interessar tanto pelos antigos bestiários, queremos crer que tal fato se deve à questão do “simbolismo natural e sobrenatural” que envolve cada espécie animal descrita ou comentada nessas obras. Como no caso da fábula, os livros medievais sobre bichos também fascinam pelo seu caráter “catequético” e utilitário que, implícita ou explicitamente, fornecem ao homem de todas a épocas “devotas lições” e “ensinamentos morais ou divinos” (VAN WOENSEL, 2001, p.15). É bem provável que advenha daí a “penetrante influência” dessa literatura, envolvendo o aspecto simbólico, na vida do ser humano. Admitimos estar a 1

Mestre em Literatura Brasileira, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba e membro do Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais da UFPB

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narrativa de Rosa aqui analisada em consonância com a temática e o conteúdo dos dois antigos gêneros literários ora evocados. Ao se referir ao conto “Conversa de Bois”, Álvaro Lins ressalta a “perfeição” daquela narrativa rosiana enquanto “concepção ficcionista e como arte literária” e chama a atenção para o fato de que nela os animais não mais são apresentados enquanto meros “elementos acessórios ou completivos” do enredo, “mas como verdadeiros personagens, aos quais o seu criador amplamente concedeu ritmo vital e direção autônoma” (LINS, 1963, p.262). São bastante comentados por críticos, amigos (em cartas) e pessoas do convívio do escritor (através de seus depoimentos) o fascínio e o carinho de Guimarães Rosa pelos animais, que com eles se identificava desde a mais tenra infância ao ser precocemente iniciado na literatura como um escritor de estórias fantasiosas e de suspense, época em que já sentia uma forte “compulsão para a fábula” (GIRON, 2011, p.142). É considerável o repertório de contos ou de narrativas rosianas em que os animais se fazem presentes como personagens destacados que se confundem ou se comportam como se fossem gente. Pela incontestável relevância dos bichos em sua fabulosa literatura, o crítico Alfredo Bosi passou a considerá-la – ao mesmo tempo – “uma constelação de fantasia e realismo”. O enredo “Conversa de Bois” é a estória da viagem de um carro de bois, pelo sertão adentro, que carrega – além de “umas rapadurinhas pretas”, segundo o narrador – o cadáver de seu Januário, pai do menino Tiãozinho que segue guiando o agrupamento de bovinos juntamente com o malvado carreiro Agenor Soronho. Os oito bois que compõem as quatro juntas do carro são assim denominados: Buscapé, Namorado, Capitão, Brabagato, Dansador, Brilhante, Realejo e Canindé. Ainda se destacam nesta trama, o enfoque da pobreza – traduzida pela dependência de Tiãozinho e da sua mãe em relação a Agenor Soronho – e a existência de estórias dentro da estória, com ênfase em expressões e adágios da sabedoria popular através, principalmente, da fala do boi Rodapião (verdadeiro catalisador da rebelião dos oprimidos pelo mal encarado carreiro). Trata-se de uma narrativa em terceira pessoa, cujo espaço é – como já dito – o cenário rural, com um narrador presente às situações narradas, demonstrando erudição (chega a fazer citações em latim – conferir CB, p.283) e revelando enorme conhecimento do ambiente circundante quando se refere a nomes de lugares, de plantas e de animais que constituem o cenário da trama. Com muita frequência, o narrador utiliza o discurso indireto livre para se “aliar” ou mesmo se imiscuir ao pensamento do menino Tiãozinho, inconformado com a situação de opressão vivida por este personagem e os próprios bois. O tempo da narrativa é marcado pela demora dos acontecimentos. Neste tocante, podemos destacar o longo percurso – motivo central do conto – em que os bois conversam entre si a respeito da opressão exercida pelo “homenzão ruivo”, Agenor Soronho, em relação a eles próprios e ao pobre Tiãozinho. No curso da estória, o desdobramento desta situação nos levará a compreender o que no entender de Alfredo Bosi determina a grandeza dos contos de Guimarães Rosa enquanto ficção reveladora da “dimensão metafísica e atemporal, das realidades vitais”. Tal dimensionamento se traduz segundo Bosi na extraordinária capacidade do escritor mineiro de 161

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passar “do fato bruto ao fenômeno vivido, da descrição à epifania, da narrativa plana à constelação de imagens e símbolos”. Sobretudo por considerar a “mente sertaneja, remexendo nas relações mágicas e demoníacas que habitam a religião rústica brasileira” (BOSI, 1981, pp.10-11). O autor de História Concisa da Literatura Brasileira nos adverte que – ao transplantar, de forma letrada, “uma certa visão primitiva ou arcaica das coisas à qual [...] procurou ser poeticamente fiel” – Guimarães Rosa é extremamente original na “conjuração rara” do “diálogo de uma solerte cultura linguística e literária com as mais caudalosas fontes da psique e da mitologia sertaneja”. De acordo com Alfredo Bosi, as coisas, os animais e as pessoas em seu universo ficcional são tomados por “uma dimensão mais ampla, uma aura que não é a do dia a dia normal e socializado”, no qual “forças cósmicas, eróticas e sagradas [...] agem no coração de cada vivente e o empurram para realizar o seu destino”. Ainda segundo Bosi, o escritor de Cordisburgo busca “na semântica do insólito o seu modo de responder a situações singulares extremas que fazem contraponto à outra literatura, a de situações típicas e médias da civilização moderna” (BOSI, 1981, pp.11-13). Esta singularidade – também de certo modo extensiva às fábulas clássicas e à tradição literária dos bestiários medievais – se revela no conto em apreço: a situação de opressão vivida por Tiãozinho e pelos bois é suprimida mediante a atitude de solidariedade dos animais para com o garoto. Dessa forma, constata-se uma identificação entre as partes homem/animal confirmada pela expressão “bezerro-de-homem” atribuída ao menino por seus companheiros bovinos (conferir CB, p.314). Em nossa análise, optamos por considerar a caracterização da moral, da solidariedade e da justiça populares tomando por referência a constatação da existência de uma espécie de “código de honra” da cultura literariamente representada em “Conversa de Bois”. Vingança tramada É necessário atentar para o fato de que, após perder o pai que há muito tempo se encontrava doente e prostrado, o menino passa a depender de Agenor Soronho para o sustento da família que – inicialmente – mostra-se prestimoso apenas pelo interesse de tornar-se amante da mãe de Tiãozinho. Ao longo da viagem, o perverso carreiro atormenta o pobre menino da mesma forma como maltrata os bois. Percebendo a tristeza e o ódio de Tiãozinho, os animais passam a urdir planos de vingança após “refletirem” sobre a opressão também promovida pelo terrível Soronho em relação aos bovinos. Desse modo, reconhecem para si a possibilidade de derrotar a superioridade do homem. Em solidariedade ao menino, os animais – de forma brusca e repentina – lançam-se para a frente, fazendo com que Soronho (que nessa hora estava cochilando em cima do carro) seja esmagado ao cair sob uma das rodas, “desencarnando” conforme nos assegura o narrador. Como se vê, a vingança ou o “acerto de contas” se dá por via indireta através de uma ação que envolve a solidariedade dos bois para com Tiãozinho, que assumem sua vingança contra Agenor Soronho. Para os casos de reparação de determinado dano moral observado na trama de “Conversa de Bois”, torna-se pertinente a seguinte afirmação de Oswaldo Elias Xidieh: “[...] no campo da moral rústica os valores referem-se a situações práticas”, esboçando-nos um “quadro de referência em que, de um lado, está aquilo que a sociedade rústica preconiza e, de 162

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outro, aquilo que não deve ser feito nem pelo grupo e nem pelas pessoas” (XIDIEH, 1967, p.84). O sociólogo paulistano enfatiza que, em se tratando desse “quadro de referência”, [...] expectativas coletivas quanto à hospitalidade, à justiça, à moral dos costumes, ao direito de propriedade, com os correspondentes sentimentos e qualidades morais de bondade, boa fé, modéstia, simplicidade e honestidade em oposição à vileza com os correspondentes sentimentos e defeitos morais de ganância, malícia, escárnio, hipocrisia, impostura, mentira, etc. (XIDIEH, 1967, p.84).

Está previsto pela moral rústica “um rol de prêmios e castigos, recompensas e condenações”, conforme a atuação de cada indivíduo. Nesse sentido, convém destacar algumas situações relativas ao conto “Conversa de Bois”. Nesta trama, o corpo de valores da moral rústica esboçado por Oswaldo Elias Xidieh também concorre para a justificativa das ações de determinados personagens. Aqui o adultério comparece através do relacionamento amoroso entre o carreiro Agenor Soronho e a mãe de Tiãozinho, cujo pai morto segue viagem no carro de bois em cima de uma carga de rapaduras. É necessário frisar que seu Januário há muito tempo “andava penando” de “doença antiga lá dele” (CB, p.289) – nas palavras de Soronho – “cego e entrevado”, enquanto o malicioso carreiro mantinha um caso amoroso com sua esposa. Este fato provoca em Tiãozinho rancor e ódio, de acordo com o que afirma o narrador: Ah, da mãe não gostava... Era nova e bonita, mas antes não fosse... Mãe da gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito... Que não tivesse mexida com outro homem nenhum... Como é que ele ia poder gostar direito da mãe?... Ela deixava até que o Agenor carreiro mandasse nele, xingasse, tomasse conta, batesse... Mandava que ele obedecesse ao Soronho, porque o homem era quem estava sustentando a família toda. Mas o carreiro não gostava de Tiãozinho... E era melhor, mesmo, porque ele também tinha ojeriza daquele capeta... Ruço. Então... Malvado... O demônio devia de ser assim, sem tirar e nem pôr... vivia dentro da cafua... só não embocava era no quartinho escuro, onde o pai ficava gemendo: mas gemia enquanto o Soronho estava lá, sempre perto da mãe, cochichando os dois, fazendo dengos... Que ódio... (CB, pp.294-295, itálico nosso).

Neste excerto, em que se torna perceptível através do discurso indireto livre, a voz do narrador se incorpora à fala e ao sentimento de Tiãozinho considerando a atitude reprovável de Agenor Soronho. No trecho destacado, nos é possível constatar a quebra da expectativa do homem rústico no que se refere ao comportamento do semelhante: ao manter um relacionamento adúltero com a mãe do menino, o carreiro estabelece uma quebra dos “códigos de honra” que regem a cultura popular. Por isso, estará sujeito a “um rol de castigos” e de “condenações” – no dizer de Oswaldo Elias Xidieh. O desfecho da narrativa irá apontar nesse sentido, como poderemos ver mais adiante. Em “Conversa de Bois” temos um narrador culto, conhecedor do latim, que ao estilo de um contador de histórias visa prender a atenção do ouvinte ou leitor. Desse modo, prolonga o curso da narrativa nela inserindo elementos que – à primeira vista – não teriam relacionamento algum com a trama. A título de ilustração deste procedimento de narrar, serve 163

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o exemplo lembrado pelo próprio narrador – na forma de flashback – do caso de Didico da Extrema, “que caiu morto, na frente de seus bois” (CB, p.297). Sendo que a voz que narra dá a palavra a Manuel Timborna, que ao ser solicitado afirma: “Eu até posso contar um caso acontecido que se deu” (CB, p.283) – estabelecendo um pacto com o narrador, após a exigência de Timborna: “– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...” (CB, p.283). Como resposta, Manuel Timborna obtém do narrador a confirmação do contrato: “– Feito. Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja” (CB, p.283). Além da existência de sequências em flashback – como a de Didico da Extrema e do momento em que Tiãozinho relembra, juntamente com o narrador, a “véspera” da morte do pai (CB, pp.298-299) – as estórias dentro da história (“narrativas de encaixe”, na visão teórica de Tzvetan Todorov) também comparecem, principalmente através das falas do boi Rodapião. Aquele que nunca para “quieto” e conta, reconta, remói, rumina estórias, num movimento circular, cíclico, à maneira de um pião rodando – como, aliás, seu próprio nome evoca. Reforçando este aspecto do processo narrativo, temos a frequência repetitiva das reflexões e estórias dos demais bois, em forma de rememorações, funcionando – conforme já mencionado – como elemento retardador do clímax da narrativa sugerindo, indubitavelmente, o ato de ruminar, uma peculiaridade atinente aos bovinos, elemento essencial na fatura do conto. Neste tocante, destaque-se a seguinte passagem da trama: Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e chão solto... Bateu aqui embaixo e berrou triste, porque não pôde se levantar mais do lugar das suas costas... – E foi? Ajudar eu não podia e nem ninguém... Chamei os outros, que não vinham e não estavam de se ver... Aí olhei p’ra o céu, e enxerguei coisa voando... E então espiei p’ra baixo e vi que já tinham chegado e estavam chegando desses urubus, uns e muitos... E fui-m’embora, por não gostar de tantos bichos pretos, que ficaram rodeando aquele boi Rodapião (CB, p.308 – itálicos nossos).

De modo claro, se sobressai no trecho acima – como índice da rítmica nele envolvida – a figura sintática do polissíndeto, através da repetição do conectivo e, conforme destacamos. Tal figura sintática relaciona-se com a atribuição de “maior expressividade ao significado” da mensagem, a ponto de a própria “lógica da frase” (em nosso caso, lógica do discurso narrativo) poder ser “substituída pela maior expressividade que se dá ao sentido” (PASCHOALIN e SPADOTO, 1989, pp.365-367). Aqui, a sugestão que nos ocorre é da circularidade ou do movimento cíclico e contínuo – como é o ato de ruminar dos bovinos – do discurso narrativo. A constante presença de reticências reforça este argumento. Por meio da fala do boi Brilhante (excerto destacado) – “Contei minha história, agora vou cochilar...” (CB, p.309) – nos vem, mais uma vez em flashback, a lembrança de um momento em que os bois foram levados segundo o narrador “p’ra longe” na busca de um “bebedouro” (CB, pp.306307). Este episódio (uma estória dentro da história), prolongador por excelência do curso da narração, antecede o encontro do carro de bois de Agenor Soronho com o “carro quebrado” da “Estiva, com o João Bala carreando...” (CB, p.309) e que despencara do Morro-do-Sabão (o 164

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nome do lugar sugere o sentido escorregadiço provocado pelo saponáceo que poderia concorrer para o despencar ou escorregar do carro da Estiva). Aqui, a “tomada de consciência” dos bois pela vingança em relação ao malévolo Soronho toma forma mais delineada. Acostumados aos maus tratos do carreiro, os bois presenciam o desespero de João Bala contando o acidente, ao mesmo tempo em que Agenor Soronho “está olhando mesmo de-propósito, todo de-luxo com os estragos do carro do outro” (CB, p.309). Bem dizendo seus bois Camurça e Melindre, diz João Bala: Abaixo de Deus, eu tiro o chapéu p’ra eles dois, porque foram que me salvaram... [...] porque Melindre mais Camurça sojigavam o chão com os cascos, mas não entregavam o corpo... Eu mesmo nunca vi bois p’ra terem tanto poder desse jeito (CB, p.310).

Ao contrário do que se dá com Tiãozinho e a boiada, frequentemente maltratados por Agenor Soronho, podem ao longo da viagem observar o caráter nada generoso do carreiro. Advém daí um forte desejo de vingança em relação àquele homem malvado. Nesse sentido, atente-se para a linguagem depreciativa de Soronho para com Tiãozinho, os bois ou até se referindo ao pai morto do menino cujo cadáver também seguia viagem no carro: Aí é que Agenor Soronho está mesmo com o demo: – vam’bora, lerdeza. Tu é bobo e mole; tu é boi?... Carece de ficar aí a vida inteira, feito estaca de dentro d’água, feito esteio de moinho?... [...] Mas não precisa de correr, que não é sangria desatada... Tu não vai tirar o pai da forca, vai?... Teu pai já está morto, tu não pode pôr vida nele outra vez. [...] também a gente cansa de ter paciência com um guia assim, que não aprende a trabalhar... Ói, seu mocinho, tu agora mesmo cai de nariz na lama... – E Soronho ri, com estrépito e satisfação (CB, p.304).

Devido ao tom humilhante da sua fala, o carreiro só alimenta o ódio e o desejo de vingança de Tiãozinho. Por meio do discurso indireto livre o narrador vem reforçar esse ponto de vista: Tiãozinho olhou, assim meio torto. “Teu pai já morreu, tu não pode pôr vida nele outra vez...” Por que é que não foi seu Agenor carreiro quem a morte veio buscar? Havia de ter sido tão bom... (CB, p.304). Enlameado até a cintura, Tiãozinho cresce de ódio. Se pudesse matar o carreiro... Deixa eu ficar grande... Hei de dar conta deste danisco... Se uma cobra picasse seu Soronho... Tem tanta cascavel nos pastos... Tanta urutú, perto de casa... Se uma onça comesse o carreiro, de noite... Um onção grande, da pintada... Que raiva... (CB, p.305).

Em seu sofrimento, Tiãozinho alimenta – em silêncio – o desejo de ver Agenor Soronho pagando pelos maus tratos infligidos a ele, ao cadáver de seu pai e aos bois, bem como pelo reprovável relacionamento amoroso mantido por Soronho com sua mãe. Assim, o “senso de justiça” popular encontra, nas reações do menino e dos bois do carro, os agentes que possibilitam a sua prática. Segundo Oswaldo Elias Xidieh,

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O senso de justiça tem, no mundo rústico, um embasamento facilmente destacável pela observação e pela análise de situações de vida rústica em relação aos meios geográfico e social, e que, na ausência de qualquer tentativa ou possibilidade de complicação teórica, repousa na identidade de origem de todos os seres – são todos filhos de Deus – e nas finalidades práticas de cada uma das coisas e criaturas que formam e rodeiam o mundo dos viventes (XIDIEH, 1967, p.87).

É na prática da justiça que os componentes do universo rústico justificam sua honra e, por extensão, sua condição de dignidade perante a comunidade. Sendo ela, a justiça, configurada como fundamental na manutenção da existência de padrões ideais de vida. Oswaldo Elias Xidieh também defende que [...] o senso de justiça da sua moral se elabora, em vista de coisas e situações imediatas e inequívocas, traduz-se em conceitos que o grupo admite como permanente e põe em veiculação “profanamente”, mas que [...] vão conectarse, em última instância, ao campo do sagrado e do sobrenatural (XIDIEH, 1967, p.87).

No âmbito da cultura popular, tanto o mal como o bem se apresentam “como coisas que podem ou não podem ser feitas, que são ou não são necessárias, que têm ou não finalidade, cabimento ou fundamento” (XIDIEH, 1967, p.87). Quanto a esta questão, o sociólogo paulistano conclui que [...] provavelmente, esse quadro de valores [...] elaborou-se, de um lado, devido à situação do grupo no meio rural, onde a necessidade anula ou abranda qualquer veleidade ou possibilidade de se estabelecerem distinções sociais que cheguem a negar a condição de pessoa para os indivíduos que o integram e, de outro, pela aceitação da natureza com a sua ordem (XIDIEH, 1967, pp.87-88).

Em “Conversa de Bois” podemos assimilar a prática do “senso de justiça” nos seguintes termos: aquela “junta da guia, com simetria perfeita” (CB, p.302), está a evocar a unidade de “pensamento” ou de ação dos bois – solidários com Tiãozinho – em relação à justa vingança a ser por eles praticada sem que o menino precise esperar a chegada do dia (“Quando crescer, quando ficar homem”), para “ensinar” a Agenor Soronho: “Ah, isso vai... Há-de-tirar desforra boa, que Deus é grande...” (CB, p.296). Vemos, neste caso, a justiça ser feita por via indireta haja vista terem os bois solidariamente se identificado com Tiãozinho, em função do sofrimento causado pelo perverso Agenor Soronho a ambas as partes (o menino e os animais). No início do clímax da narrativa – onde “A subida brava acabou, com fadiga para todos e glória para Agenor Soronho” (CB, p.312) – tem-se de acordo com a voz que narra “trezentos e cinquenta metros de silêncio” (CB, p.313). Neste ponto, o narrador estabelece prolongado suspense2 intermediando um comentário3 sobre a paisagem circundante

O termo é aqui usado no sentido a ele atribuído por Nádia Battella Gotlib: “técnica narrativa que consiste em ‘suspender’ a ação, adiando o desfecho e, assim, instigando a tensão [...] ou a curiosidade do leitor” (conferir GOTLIB, 1991, p.95). 2

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com “reflexões” e “falas” dos bois, através – num primeiro momento – da fala do boi Capitão. Embora longo, o excerto revela-se fundamental para justificar nosso ponto de vista: – Onde está o homem-do-pau-cumprido-com-o-marimbondo-na-ponta? Está trepado no chifre do carro... – E o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-frente-dos-bois? – O bezerro-de-homem-que-caminha-adiante vai caminhando devagar... E ele está babando água dos olhos... Aqui, no tabuleiro, o caminho está ainda pior que ruim, [...] os bois avançam de sobremão. Calados. [...] Aí, de coice a guia, por via cruzada, vem com outra informação: – O homem está dormindo, assentado bem na ponta do carro... O paucomprido-com-o-marimbondo-na-ponta também está dormindo... Por isso é que ele parou de picar a gente. Pela mesma nota [...] viaja a conversa dos bois dianteiros: – O bezerro-de-homem está andando mais devagar ainda. Ele também está dormindo. Dorme caminhado, como nós sabemos fazer. Daqui a pouco ele vai deixar cair o seu pau-comprido que nem um pedaço quebrado de canga... Já babou muita água dos olhos... Muita... Os guardas do cabeçalho devolvem a fala: – O homem está escorregando do chifre-do-carro... Vai muito pouco de cada vez, mas nós temos a certeza: o homem está pendendo para fora do chifredo-carro... Se ele cair, morre... Outra vez, pelo itinerário alternado, de focinho a focinho, é transmitida a visão da guia: – O bezerro-de-homem quase cai nos buracos... Ele está mesmo dormindo... Daqui a pouco, ele cai... Se ele cair, morre... (CB, p.313).

A partir deste episódio, tem início a “tomada de consciência” dos bois no que se refere à vingança cada vez mais próxima. A presença de reticências nas falas dos animais está, reiteradamente, reforçando o sentido da continuidade de alocução dos bois no modo como o próprio narrador se refere: “de focinho a focinho”. Identificando-se, até biologicamente, com Tiãozinho – “bezerro-de-homem” que “baba” muita água pelos olhos – os animais “refletem” de modo lógico, como gente que raciocina, acerca da possibilidade de Soronho morrer (“Se cair” do “chifre-do-carro”) efetuando-se, assim, a vingança desejada por Tiãozinho e pelos próprios bois devido ao tratamento a eles dispensado pelo malvado carreiro. Em estado de alerta – “Os guardas do cabeçalho” estão atentos a tudo – a boiada, silenciosamente, espera pelo momento grave da desforra. No “remoer”/“tresmoer” (CB, p.286)4 de informações passadas de um animal para outro – “de focinho a focinho, é transmitida a visão da guia” – “por via cruzada” é urdido o plano para se eliminar Agenor Soronho. Tendo o boi Dansador avisado que só “às vezes” os “bois-de-carro” têm de “obedecer ao homem” (CB, p.314). Os animais estão convencidos de que o “pensamento de bois é grande e quieto”, ao mesmo tempo em que temem que Tiãozinho entenda a “conversa” deles. Filosoficamente, no ponto de vista

O comentário-tática do narrador, usado para aumentar o suspense na trama, compreende o seguinte trecho: “Aqui, no tabuleiro, o caminho está ainda pior que ruim, como o facão alto e escorregoso no meio, separando as regueiras feitas pelas enxurradas e pelas rodeiras de outros carros e carretões” (CB, p.313). 4 O verbo “remoer” é aqui utilizado nas acepções de: “repetir muitas vezes a mesma coisa” e de “encasquetar-se (com ideias fixas, problemas, etc.)”. Conferir o verbete “remoer” em LUFT, 1988, p.480. 3

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dos animais – “no mato-escuro-de-todos-os-bois”, onde “o homem caminha por fora” – seu mundo se caracteriza pela equidade; em cujo lugar “não há dentro e nem fora”, podendo os bois superar a hegemonia do homem pela conscientização da igualdade entre todas as criaturas: – Mhú. Hmoung... Boi... Bezerro-de-homem... Mas, eu sou o boi Capitão... Moung... Não há nenhum boi Capitão... Mas, todos os bois... Não há bezerro-de-homem... Todos... Tudo... Tudo é enorme... Eu sou enorme... Sou grande e forte... Mais do que seu Agenor Soronho... Posso vingar meu pai... Meu pai era bom. Ele está morto dentro do carro... Seu Agenor Soronho é o diabo grande... Bate em todos os meninos do mundo... Mas eu sou enorme... [...] Sou aquele-que-tem-um-anel-branco-ao-redor-das-ventas... Não, não, sou o bezerro-de-homem... Sou maior do que todos os bois e homens juntos. [...] Sim, sou forte... Somos fortes... Não há bois... Tudo... Todos... [...] Não há bois-de-carro... (CB, pp.314-315).

A consciência de justiça da(s) voz(es) que narra(m) – misto de boi e Tiãozinho – encontra-se embutida no excerto acima por intermédio do fato de, para a justiça ser feita, os animais poderem suplantar a hegemonia do homem, aqui representada pelo poder que Agenor Soronho tem sobre o menino e os bois. No fluxo narrativo do trecho destacado, é patente uma confusão de vozes – todas emitidas ao mesmo tempo – tornando-se impossível afirmar se tratar de um discurso saído da boca de um único ser – “todos falam” (CB, p.316)5. Dá-se, também, uma total identificação dos animais com Tiãozinho. As onomatopeias do início do excerto são índices da intenção do narrador em dar voz aos bois, numa espécie de “reflexão” pungente acerca da intenção que os move: Boi Namorado: “– Mú-úh... Mú-úh... Sim, sou forte... Somos fortes... há bois-de-carro... Não há mais nenhum boi Namorado...” – Boi Brabagato, boi Brabagato... Escuta o que os outros bois estão falando... Estão dôidos?... Boi Brabagato: “– Bhúh... Não me chamem, não sou mais... Não existe boi Brabagato... Tudo é forte. Grande e forte... Escuro, enorme e brilhante... Escuro-brilhante... Posso mais do que seu Agenor Soronho...” Boi Dansador: “– Que estão falando, todos? Estão loucos?... Eu sou o boi Dansador... Boi Dansador...” (CB, p.315).

Para, finalmente, a voz anônima e ambígua de outro boi afirmar de modo inexorável: – Mas, não há nenhum boi Dansador... Não há o-que-tem-cabeça-grande-emurundú-nas-costas... Sou mais forte do que todos... Não há bois, não há homens... Somos fortes... Sou muito forte... Posso bater para todos os lados... Bato no seu Agenor Soronho... Bato no seu Soronho, de cabresto de vara de marmelo, de pau... Até tirar sangue... E ainda fico mais forte... Sou Tião... Tiãozinho... Matei seu Agenor Soronho... Torno a matar... Está morto esse carreiro do diabo... Morto matado... Picado... Não pode entrar mais na nossa Para uma maior compreensão dessa questão, é necessário considerar o trecho mais extenso da “conversa” dos bois: onde fica claro o fato de que toda a boiada conversa sem primazia de falas deste ou daquele animal. O excerto destacado (CB, pp.314-315), fala do boi Capitão, acaba sendo prolongado por outras falas dos bois Brabagato, Dansador etc. 5

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cafua. Não deixo... Sou Tiãozinho... Se ele quiser embocar, mato outra vez... Mil vezes... Se a minha mãe quiser chorar por causa dele, eu também não deixo... Ralho com a minha mãe... Ela só pode chorar é pela morte do meu pai... Tem de cuspir no seu Soronho morto... Tem de ajoelhar e rezar o terço comigo, por alma do meu pai... Quem manda agora na nossa cafua sou eu... Eu, Tiãozinho... Sou grande, sou dono de muitas terras, com muitos carros de bois, com muitas juntas... Ninguém pode mais nem falar no nome do seu Soronho... Não deixo... O mais forte de todos... Ninguém pode mandar em mim... Tiãozão... Tiãozão... Oung... Hmong... Múh... (CB, p.315).

A ideia de aparente desordem no modo de narrar – “Não há bois, não há homens...”/“Posso bater para todos os lados...” – refletindo um discurso em que se confundem o ser Tiãozinho com o(s) ser(es) boi(s), é gradativamente substituída por um juízo preciso e definitivo de intenções. Em princípio, a desordenação – até no nível da construção frasal, com orações justapostas em sua maioria exprimindo sentidos pouco concatenados, bem como a dificuldade de se determinar o sujeito que fala (se boi ou menino) – parece querer fornecer a sugestão de uma espécie de confusão mental reinante na “conversa”. Que, por sua vez, tornase expressão do drama de consciência vivido pelas partes envolvidas no mesmo conflito em função da decisão por vingança. O discurso, inicialmente marcado por elementos vinculados à realidade bovina, acaba confluindo para a consideração de fatos ou episódios diretamente relacionados com a vida e o sofrimento de Tiãozinho. A identificação dos bois com o menino torna-se completa (“Sou Tiãozinho”): a revolta da boiada justifica-se pela reparação dos atos praticados por Agenor Soronho (a ser “Morto matado”) em relação à família de Tiãozinho. Como consequência, a voz que fala – misto de boi e menino – no malvado carreiro bateria “de cabresto de vara de marmelo, de pau... Até tirar sangue”. Mataria, até “Mil vezes”, o terrível Soronho para que não pudesse mais entrar na “cafua” com a intenção de namorar a esposa do “cego e entrevado” pai de Tiãozinho, agora morto. O jovem guia até então triste e submisso ao carreiro, torna-se – na espécie de delírio provocado pelo afã de vingança – “grande” e poderoso (“Ninguém pode mandar em mim”), num processo gradativo crescente: “Tiãozinho”, “Tião”, “Tiãozão”. Dessa forma, em uníssono de “vozes” bovinas, a desforra se torna iminente: E todos falam. – Se o carro desse um abalo maior... – Se nós todos corrêssemos, ao mesmo tempo... – O homem-do-pau-comprido rolaria para o chão. – Ele está na beirada... – Está cai-não-cai, na beiradinha... – Se o bezerro, lá na frente, de repente gritasse, nós teríamos de correr, sem pensar, de supetão... – E o homem cairia... – Daqui a pouco... Daqui a pouco... – Cairia... Cairia. – Agora. Agora. – Mûung. Mûng. – ... Rolaria para o chão (CB, pp.316-317).

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Esse “coro” de bois em afinação6, no qual não lhes falta a faculdade do raciocínio lógico dito humano – uma das características do gênero da fábula – urde o plano de vingança que já nos encaminha para o desfecho da trama. Soronho, em “sono sereno”7, após o solavanco provocado pelos bois em “algazarra” – “se jogaram para diante, de uma vez” (CB, p.317) – tem o pescoço colhido pela “roda esquerda” do carro, sem tempo para “xingo ou praga”. O narrador nos garante que “não se pôde saber ao certo se o carreiro despertou ou não, antes de desencarnar” (CB, p.317). Em função da sua religiosidade – que para o homem popular inspira sempre temor e respeito em relação ao que é por ele considerado sagrado (podendo “premiar” ou “castigar”, conforme nos ensina Oswaldo Elias Xidieh) – Tiãozinho ao ser despertado a tempo de ver o que ocorrera com Agenor Soronho, segundo o narrador “arrepelando-se todo” e “chorando como um doido”, lamenta: – Meu Deus. Como é que foi isto?... Minha Nossa Senhora... [...] Eu tive a culpa... Mas eu estava meio cochilando... Sonhei... Sonhei... E gritei... Nem sei o que foi que me assustou... [...] Minha Virgem Santíssima que me perdoe... Meus boizinhos bonitos que me perdoem... Coitado do seu Agenor. Quem sabe se ele ainda pode estar vivo?... – Fazer promessa. Todos os santos. Rezar depressa (CB, pp.317-318).

No âmbito da comunidade rústica o “senso de justiça”, embora não sendo exclusivo da cultura popular, é compreendido – conforme já advertido anteriormente – enquanto critério de reparação de determinado dano ou ofensa praticados por alguma parte em relação à outra. No entanto, o reparo se dá levando-se em consideração o “sentido de igualdade primordial” entre os seres. Trata-se de um princípio sagrado e indiscutível, não sendo permitidas distinções que privilegiem determinada parte em detrimento de outra. Lição que podemos assimilar do que ocorre com Agenor Soronho na trama, justa represália a ele infligida por ter vivido maltratando e humilhando Tiãozinho, sua família e os bois do carro. REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo (Org.). O Conto Brasileiro Contemporâneo. 4ª Edição. São Paulo: Cultrix, 1981. GIRON, Luís Antônio. “Antes de Rosa Ser Rosa”. In: Época. Rio de Janeiro: Editora Globo, Edição 693 – 29 de Agosto de 2011, pp.141-145. (“Mente Aberta”). GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. 6ª Edição. São Paulo: Ática, 1991. (Série Princípios, 2).

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Esta expressão nos foi motivada pela existência, na clássica tragédia grega (geralmente no início ou no final do drama), da figura do Corifeu ou do Coro. Compreendido como um porta-voz consciente das intenções morais de cada história. Nesse sentido, não deixa de ser sintomático o fato de em “Conversa de Bois” esse “coro” dos bois (unissonamente) ser também movido por intenções moralizantes – no que se refere à reparação, em forma de advertência – na prática da justiça nos moldes populares. 7 Atentar para a maestria do autor relativa à semântica do nome do personagem que, por si só, fornece a sugestão de seu comportamento sopitante nesse momento decisivo do conto.

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LINS, Álvaro. Os Mortos de Sobrecasaca: Ensaios e Estudos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. (Coleção Vera Cruz – Literatura Brasileira, 44). LUCENA, Gilberto de Sousa. Mosaico de Falas: Da Cultura Popular e do Foco Narrativo em Sagarana. João Pessoa: Programa de Pós-Graduação em Letras/Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes/Universidade Federal da Paraíba, 2012. [Tese de Doutorado]. LUFT, Celso Pedro. Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. 7ª Edição. São Paulo: Scipione, 1988. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 2ª Edição, revista. São Paulo: Cultrix, 1978. PASCHOALIN, Maria Aparecida & SPADOTO, Neuza Terezinha. Gramática: Teoria e Exercícios. São Paulo: FTD, 1989. ROSA, João Guimarães. Sagarana. 9ª Edição (Póstuma). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967. (Coleção Sagarana, 1). VAN WOENSEL, Maurice. Simbolismo Animal na Idade Média: Os Bestiários. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. XIDIEH, Oswaldo Elias. Narrativas Pias Populares. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/USP, 1967.

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INÊS DE CASTRO: A FACE FEMININA DO AMOR MEDIEVAL EM PORTUGAL Aldinida Medeiros (UEPB) [email protected] Inês de Castro morre para a vida e nasce para a História em 1355. Desde então, a língua e a literatura eternizaram-na. Ela que antes fora imortalizada pelas ações de Pedro, dentre as quais mandou esculpir duas majestosas arcas tumulares, expostas até hoje no Mosteiro de Santa Maria, em Alcobaça, consideradas ícones da arquitetura portuguesa. Indo além, não é exagero afirmar que Inês de Castro bem poderia ser personagem de uma peça shakespeariana, pois sua morte está registrada em trovas, crônicas, romances, poemas, rimances e óperas, como uma triste e real tragédia de amor. Por tudo isso, afirmamos que Inês de Castro é a face que melhor representa o amor medieval na cultura e na literatura portuguesas. É a partir das encenações feitas pelos grupos de teatro popular nas aldeias portuguesas, desde um certo tempo após o episódio inesiano, impossível de precisar, que surge uma frase, hoje de uso corrente não só dos brasileiros – embora seja um ditado bem popular no Brasil – mas de muitos falantes da língua portuguesa: “Agora é tarde, Inês é morta”1. Apenas nesta frase ela é morta, pois a vívida memória inesiana mostra a força do amor que vai além da morte. Agnes, Inês, Heloísa, Isolda. No Ocidente, ficção e realidade têm em comum estas protagonistas de amores impossíveis; amores que vão além da vida: o mito do amor-paixão. No ensaio O amor e o Ocidente, Dennis de Rougemont (1988) aponta Tristão e Isolda como a obra que origina o mito do amor na Europa ocidental. Portanto, foi no cenário entre o amor profano e o amor místico, mencionado por Georges Duby em Idade Média, Idade dos homens (2001) que a Europa medieval conheceu o amor de Tristão e Isolda. Vale salientar que, de acordo com o historiador, a lenda, no início, dizia respeito apenas à figura de Tristão. 1. Tristão e Isolda, Pedro e Inês: o amor no Ocidente medieval Assim como muitas outras lendas que circulavam pelas cortes europeias, notadamente na Normandia, França, nos ducados de Anjou e Aquitânia, como parte dos acontecimentos sociais e das festas oferecidas por Henrique Plantageneta, bardos do País de Gales e da Cornualha recitavam lendas que atiçavam a imaginação dos cavaleiros ali presentes. Em Heloísa, Isolda e outras damas no século XII (1995), Duby explica que No centro dessas histórias figuravam assim um filtro, as misturas, as infusões, o ‘vinho com ervas’ [...] cujo segredo as mulheres transmitiam umas às outras. Se por acaso vier a beber dessa poção, fica-se prisioneiro 1

Segundo texto mímeo do Historiador Jorge Pereira de Sampaio, a frase teria surgido nas encenações populares, quando uma personagem diz a D. Pedro, numa peça, que agora a sua Inês estava vingada e a personagem D. Pedro responde: mas agora é tarde, Inês é morta. A frase tornou-se um dito popular de uso corrente no Brasil.

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dela. [...] Mostrar os efeitos nefastos de um desejo nascido dessa maneira. E portanto ingovernável, destinava-se a alimentar, na sociedade cortês, salutares reflexões sobre a ordem e a desordem, e em especial sobre essa perturbação cuja causa são as turbulências da sexualidade (DUBY, 1995, p. 86-87).

Mais que explicar o contexto no qual surgiram as lendas como a de Tristão e Isolda, interessa-nos também lembrar a semelhança de tudo isso com a realidade medieval portuguesa do período referente a Pedro e Inês. Assim como Tristão quebra a “ordem” regular de obediência ao seu soberano, traindo-o, Pedro quebra também a ordem de obediência ao pai, vivendo uma relação extraconjugal com Inês, mesmo quando esta segue exilada para Albuquerque e ele vai constantemente visitá-la. É a força do amor paixão, o amor que é cortês para a literatura e que se torna também o amor que vai além da morte. Rougemont (1988) afirma que, a paixão, quando ultrapassa o instinto, faz surgir a linguagem e assim ambas podem ser vistas como formas – ou criações – literárias; uma espécie de condição retórica para sacralizar esses sentimentos que, se existissem sem deles haver registros, não seriam reconhecidos. Subjaz ao mito, instaurado pela lenda celta, o tantrismo vindo do Oriente, ainda que se encontre aí também uma forte carga de maniqueísmo cristão, que impregna o lado oriental do globo. É por isso a declaração de Rougemont, segundo o qual [...] o amor cortês nasceu no século XII, em plena revolução da psique ocidental. Surgiu do mesmo movimento que fez remontar à meia-luz da consciência e da expressão lírica da alma o Princípio feminino da sacti, o culto da mulher, da mãe, da Virgem. Participa dessa epifania da Anima que representa, a meu ver, no homem ocidental, o regresso de um Oriente simbólico (ROUGEMONT, 1988, p. 92).

Desse modo, este teórico assegura que, quanto mais apaixonado for o homem, maiores possibilidades existem para que se reinventem as figuras da retórica amorosa, como em Tristão e Isolda; amor e morte, amor mortal: motivo não só de lenda, como também de poesia. E se isso não é o motivo original de toda a poesia, é, ao menos, o que há de mais universal em termos de subjetividade na Literatura, no Ocidente. Existem várias versões da lenda celta, entretanto, independente de qual das versões – Beroul, Thomas, Bérdier ou Gottfried – seja tomada para análise, em Tristão e Isolda, no primeiro momento da narrativa, o amor nasce sob o signo da proibição e, portanto, é escondido, impetuoso, um amor selvagem. Depois, extingue-se o poder do filtro mágico e o sentimento passa a ser decaído e amargurado, porque consciente do adultério. Todavia, ainda assim, sobrepõe-se o desejo dos amantes, impelindo-os aos encontros amorosos. Há, desse modo, uma evolução de um sentimento de culpa inicial para um sentimento de desejo incontestável e impossível de deter, que cada vez mais legitima os direitos da paixão. Esta, vista como uma desordem e, efetivamente, corrosiva. É o sentimento que leva à desgraça, ao degredo ou, inevitavelmente à morte. Os direitos desta paixão avassaladora são admissíveis, porém são postos em causa, sobretudo pelo matrimônio – nesse caso o de Isolda e Marcos – por ser o casamento uma ordem social, um mecanismo de regulação e não só, como aponta Duby: “[...] controle, codificação: a instituição matrimonial se encontra, por sua própria posição e pelo papel que ela assume, encerrada numa firma estrutura de ritos e 173

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interditos.” (DUBY, 2001, p. 11). Também com Pedro e Inês, o casamento deste com Constança Manuel, acordo diplomático entre os pais, foi um empecilho para o seu amor por Inês. No século XII, a regulação dos casamentos pela Igreja chega a ser arbitrária, considerando a união para satisfação do dever conjugal era considerada pecaminosa, pois, visava apenas o prazer carnal, o desejo. Por conseguinte, também a figura feminina medieval será caracterizada como o ser que tenta o homem a realizar o desejo carnal. A mulher é, então, personificada em Eva, pecadora, tentadora, mulher-demônio e culpada pelo pecado original. A partir desse arquétipo, Eva concentra em si todos os vícios que trazem símbolos tidos como femininos: a luxúria, a gula, a sensualidade e a sexualidade. O outro lado da dicotomia, a redenção, o arquétipo da mulher-anjo e caminho para a salvação é a figura de Maria, a redentora, Mãe do Salvador que se contrapõe à Eva por não ter máculas ou pecados. Esta concepção dualística da mulher, construída através dos séculos, tornou-se deveras acentuada no período de ascensão da Igreja Católica e por ela foi assegurada, permitindo, assim, a permanência dos homens no poder e legitimando uma submissão feminina que sufocava qualquer tentativa de subversão da ordem estabelecida pelos homens. A doutrina cristã, no centro das regulações religiosas, estendia-se também às regulações sociais e, por isso, pregava como ideal a união numa intenção apenas procriadora, para multiplicar os “filhos de Deus”. O prazer era considerado pecado até mesmo nas relações que visavam à procriação, pois fora do casamento, a paixão amorosa, vista como doença, podia levar até a morte. Isto vem de uma tradição latina e ocidental, com origem na tradição judaico-cristã, porém, não quer dizer que outras culturas vejam esse tema dessa forma, muito embora seja mais comum a percepção por esse ângulo, que se cristalizou através de outras doutrinas religiosas. De qualquer modo, a Igreja – Católica, principalmente – fechava os olhos para relações extraconjugais e paixões vividas fora do casamento, se isso lhe fosse conveniente. George Duby também nos apresenta este cenário em Heloísa Isolda e outras damas do século XII (2001), no capítulo sobre Leonor de Aquitânia e seu casamento desfeito com o rei francês. A própria Igreja tratou de encontrar as desculpas “plausíveis” para que Leonor pudesse contrair novas núpcias, livrando-se do marido anterior pela desculpa de parentesco. Observando todos estes aspectos, podemos disso tudo concluir, de acordo com o ensaio de Duby, que a lenda de Tristão e Isolda faz do amor cortês um amor-paixão, tornando-se primeira manifestação do amor no Ocidente como hoje conhecemos, mas ressalta que o troubadorismo provençal – que, consequentemente, expande-se à vizinha Península Ibérica – acaba por trazer muito desse mito, o da impossibilidade de concretizar o amor. Embora muitos estudiosos da lenda celta tomem a figura de Tristão como cavaleiro, atribuindo seu amor por Isolda como um modelo de amor típico dos romances de cavalaria, em diversos aspectos encontramos características do trágico no amor dos jovens irlandeses. Acreditamos que o aspecto trágico não exclui o cavaleiresco da lenda. Tristão é um cavaleiro condicionado pelo desregramento do amor, e sua conduta, se comparada ao código de honra do cavaleiro medieval fica caracterizada, na cultura européia, como uma forma de “loucura amorosa”, de modo que, 174

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A visão de quase toda a literatura da baixa Idade Média é, portanto, o Amor: o amor profano, responsável pela imensa produção lírica e pela novela palaciana, o amor sagrado, fermento das representações litúrgicas de toda esta época, em que a devoção a Cristo e o conhecimento de suas verdades constituem o núcleo da produção dramática medieval (SPINA, 1997, p. 39).

E não só da baixa Idade Média, vale salientar. Se Seomara da Veiga Ferreira retoma esse mito no seu romance sobre Pedro e Inês, e João Aguiar o faz em outro romance, A catedral verde – no qual também alude às questões da identidade portuguesa como em Inês de Portugal – busca também essa visão medieval do amor, retomando o mito Tristão e Isolda. Com base nesses exemplos, as imagens de Tristão e Pedro, Inês e Isolda continuam a permear a produção romanesca contemporânea, conforme podemos apreender nas palavras do próprio João Aguiar: Amor absoluto é inusitado em época descartável Gosto da história de "Tristão e Isolda", de um velho romance medieval, e de Wagner. É uma das minhas óperas preferidas» Porquê a abordagem do tema «Tristão e Isolda.» neste romance feito no ano 2000? Precisamente por ser, de facto, uma coisa tão inusitada, tão completamente estranha nesta nossa época. O amor absoluto, total, obsessivo, exclusivo, numa época eminentemente descartável. O ser amado também já é descartável? Sim, hoje em dia descarta-se o ser amado com uma certa facilidade. Por isso mesmo Tristão e Isolda é uma ideia exótica. Wagner é aqui o desafio? Claro. Por outro lado, existe também uma questão de gosto pessoal: eu gosto muito da história, de um velho romance medieval, e gosto de Wagner. Uma das minhas óperas preferidas de Wagner é Tristão e Isolda, que considero uma obra-prima do verdadeiro erotismo em música (AGUIAR, Entrevista a João Aguiar, 31/03/2001). Grifo do entrevistador.

Conforme se pode observar nas palavras de João Aguiar, o mundo vive um tempo de amor descartável, o que está relacionado a uma certa perda da visão de amor como um sentimento verdadeiro e duradouro, que durante muito tempo foi alimentado por histórias reais como a de Abelardo e Heloísa. Destarte, é compreensível que essas mudanças na sociedade e no modo do homem ver e sentir a vida, na contemporaneidade, seja, fatores de busca desses mitos, de se buscar nas lendas o que já não se encontra na realidade. E vem daí o fato de constatarmos como o mito inesiano continua sendo alimentado coletivamente como componente cultura e estar tão fortemente presente no romance. Voltando a da lenda celta, esta dá início, então, ao mito que vai aparecer sob a forma e história de diversos casais, que desde a Idade Média simbolizam o amor trágico, o amorpaixão, o amor que é levado à plenitude, ainda que traga como consequência a morte. São os chamados “amores eufóricos”, que sobrepujam as questões políticas e sociais apenas para que os amantes concretizem o intenso desejo de estarem juntos. Se Pedro e Inês continuam a figurarem na literatura portuguesa contemporânea, é porque há ainda largo espaço para a circularidade cultural desse mito do amor que supera tudo e se estende além da morte. No oriente há uma famosa história de amor, a história de Layla e Manjunan. Semelhante a Pedro, que vai às últimas conseqüências, Manjunan ama até a 175

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loucura. Layla configura-se, assim como Inês, sua amada eterna. Os casais que vivenciaram amores impossíveis – Abelardo e Heloísa, Pedro e Inês -, seja qual for o motivo de impedimento do amor, serão sempre mitos referenciais para a literatura tratar este tema, conforme acentua Jabouille (1993): “O mito é a estrutura profunda e universal que suporta a narrativa […] (p. 21)”, de modo que a “[…] narrativa tradicional, mantém, ao longo dos tempos, um valor paradigmático, actualizado em cada realização singular” (p. 21). 2. O romance histórico contemporâneo vai à fonte do amor medieval Diz António Cândido Franco, em A rainha morta e o rei saudade, “[...] próprio dos mitos é vestirem acessórios diferentes, repetindo o essencial” (2005, p. 13). Com base nesta afirmação, acreditamos que os diversos romances históricos que retomam o mito inesiano – compreendam-se aqui as imagens míticas de Pedro e Inês – reelaboram estas figuras construindo, sob novas focalizações, outras “roupagens” interpretativas na ficção contemporânea. Os elementos da ficção são constantemente refigurados no romance contemporâneo num tipo de inovação própria da modernidade, na qual trabalhar sobre os ecos da história origina um vasto discurso e inúmeras citações, criando jogos de sentidos e interpretações. Narra-se também para lembrar. A narrativa literária, composta de citações e recordações que envolvem sujeitos ficcionais, busca a desconstrução da palavra, para, então, reconstruí-la; e essa busca se dá através de várias reescritas, acentuando-as, por isso é que se narra reescrevendo. No caso de Pedro e Inês, reescreve-se tanto a lenda como a História. De tudo isso, observamos que há uma constante retomada da Idade Média pela literatura contemporânea. Inês de Castro é quem melhor representa a face feminina do amor medieval na literatura portuguesa. Essa constante retomada da imagem inesiana esta, via de regra, associada a dois componentes que perpassam os textos literários: a memória, visto que se relembra sempre um fato passado, e a saudade, como não poderia deixar de ser, como forte componente de Portugal, conforme assegura Cândido Franco entrevistado por Medeiros: “Mas sem Pedro, que é força da saudade, não havia sequer memória de Inês, que é o amor puro e inefável” (MEDEIROS, Entrevista. Jornal Tinta Fresca, 10/02/2005). Esta aura inesiana é tão marcadamente forte na cultura de Portugal que Inês chega a ser mencionada como um profeta, um messias, por Faustino da Fonseca: A Ignez da lenda é o novo symbolo da mulher amante, esposa e mãe, prophetisada pelos trovadores, tendo no cancioneiro o seu evangelho. Esperavam-na os poetas como a um Messias, como a um redemptor da tyrannia que lhes esmagava o sentimento. Martyrisada pela barbárie medieval, é Ignez immediatamente idealisada por quantos choram na sua desdita, a propria desventura, e lhe vão entoando o responso de esperança nas canções do seu amor. (FONSECA, 1910, p. 13).

Portanto, se “esperavam-na como a um profeta”, esse mito é também uma espécie de catarse do povo português. Esse povo que precisa buscar sempre algo profético, não no futuro, 176

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mas sim no passado. Ressaltamos, portanto, que a pátria lusitana, parece que desde a sua mais remota origem, vive em busca do que não está no presente. Maria Leonor Machado de Sousa (2004, p. 12) diz, sobre a história de Inês de Castro, que “[...] é um caso invulgar de interpenetração da crônica e da literatura. Ao tratá-la, os historiadores mais objectivos tornaram-se poetas”. Convém, então, ressaltar que, desde a Idade Média, Inês de Castro aparece como tema literário; e sua morte adquiriu dimensões que vão muito além das fronteiras de Portugal. A literatura espanhola, por exemplo, é uma das literaturas europeias que registra um grande número de textos inesianos. Antes mesmo de se firmarem a língua e a literatura na Espanha – quando os reinos de Aragão, Leão e Castela ainda tinham seus dialetos –, já havia textos em “línguas peninsulares”, no contexto ibérico, a tratarem da figura de Inês. Sobre os textos produzidos no século XIV, na Península Ibérica, Sousa (2004, p. 40) aponta que “são fundamentalmente quatro espanhóis, além de cinco romances velhos de uma tradição comum, dos quais só um conhecemos em texto português”. O poema escrito pelo judeu Ibn Bilia é o texto em língua portuguesa que primeiro menciona o episódio. Apesar de saber-se que deve ter sido escrito ainda no mesmo século em que se deu a morte de Inês, não se pode precisar sua data, como afirma Sousa (2004). Mas, ainda nos séculos XIV e XV, o episódio é mencionado em diversos textos que servirão de fontes aos que virão nos séculos seguintes. Os séculos XVI e XVII serão ricos, principalmente, na produção de rimances. Deste período, destacam-se, no século XVI, as Trouas que Garcia de Resende fez à morte de Dona Ynes de Castro, datada de 1516. Depois das Trovas, também a Castro, de António Ferreira – poeta de destaque do Renascimento português – e o Canto VII, de Os lusíadas. Este conjunto de textos e duas tragédias espanholas tiveram grande repercussão na literatura portuguesa: Nise laureada e Nise lastimosa, de Jeronimo Bermudez. Outro fator que também mostra a força do mito inesiano é a existência de várias óperas dedicadas à Inês; dentre essas, exemplificamos a primeira, escrita por Gaetano Andreozzi, que foi estreada em 1793, em Florença. Outra, de Giuseppe Francesco Bianchi, seria apresentada no ano seguinte: Inês de Castro, em Nápoles, 1794. Ainda em Nápoles, apresentada sob autoria de Giuseppe Farinelli, uma ópera, homônima às anteriores, seria apresentada em 1806. Pier Antonio Coppola é também um italiano que escreve, em 1841, outra ópera intitulada Inês de Castro (SOUSA, 2004). Vários textos em outros gêneros literários vão se seguindo, sob diversas autorias, entretanto, dois, da autoria do espanhol Lope de Vega também ganham destaque: Doña Ynes de Castro, em 1618, e um Romance, em 1621; este, como parte da publicação intitulada Don Lope Cardona, do mesmo autor. Mais adiante, dá-se destaque para o drama do espanhol Luís Vélez de Guevara, Reinar despues de morrir2, de 1644. Em Lisboa, esta comédia famosa de Guevara data uma publicação de 1652. O século XVII é, também, riquíssimo em publicações inesianas, agora não só na Península Ibérica, mas em diversos países da Europa, dando início

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Os textos literários desta página e vários textos dos séculos XV, XVI e XVII estão mencionados em MEDEIROS, Aldinida. Inês de Castro no romance contemporâneo português. Tese de doutorado. Natal: Univesidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010. 209 páginas.

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a uma tradição que até hoje “aimenta” a literatura, pois o romance histórico contemporâneo não cessa de recorrer à imagem da Colo de Garça. Também importantes para firmar e divulgar o tema foram as crônicas medievais. Os cronistas mais referendados são Fernão Lopes, Rui de Pina – de quem se diz ter-ser apropriado e feito uso das crônicas de Lopes – e Acenheiro. Bem mais recente, já do século XVIII são as crônicas de Duarte Nunes de Leão, uma espécie de compilação das crônicas anteriores. Sem criarmos análise de valor para nenhum dos cronistas, pois o enfoque aqui é outro, o que interessa-nos é afirmar que, assim como as Trovas de Garcia de Resende foi um texto importante, também os cronistas soubera, cada um ao seu modo, referenciar o amor de D. PedroI de Portugal por Dona Inês de Castro. Considerações finais Considerando tudo o que acima expusemos, é preciso levar em conta que o discurso da História é, em certos aspectos, limitado, pois o passado só pode ser conhecido através do que foi textualizado. Ou seja, só sabemos do passado aquilo que está escrito ou o que os achados arqueológicos permitem conhecer. Assim, a História é feita de muitos silêncios e não é tão objetiva quanto parece. Não há apenas um único ponto de vista sobre o passado, e por isso é que se faz necessário conhecermos os vários pontos de vista, para perceber os fatos e tirar conclusões acerca deles. Bucando o período medieval como fonte, o romance pós modernos realiza suas leituras dos tempos medievais e reafirma Inês de Castro como mito. Ela é a face feminina do amor medieval em Portugal e continua a render teatro, prosa e poesia após mais de seis séculos de sua morte, isto era a parte previsível de nosso estudo. Outrossim, constatamos, através do romance histórico contemporâneo, as variadas imagens que a ficção criou para Pedro, colocando-o num plano também de protagonista e que vai, tanto da figura do herói cavalheiresco como ao vingador sanguinário, isto foi o inovador que estas obras apresentaram. Essa é a inovação do romance histórico. Trovas, crônicas medievais, lenda, romance, toda a literatura inesiana redimensiona essa História. E acreditamos na literatura, por também acreditarmos nas palavras de Austina Bessa-Luís, em Advinhas de Pedro e Inês: “A História é uma ficção controlada. A verdade é coisa muito diferente, e jaz encoberta debaixo dos véus da razão prática e da férrea mão da angústia humana” (1983: p. 224). Referências ACENHEIRO, Christovão Rodrigues. Chronicas dos senhores reis de Portugal. In: Collecção de Inéditos de História Portuguesa, tomo V. Lisboa: Officina da Academia Real das Sciências, 1824. (p. 1 – 365). AGUIAR, João de. Inês de Portugal. 5. ed. Lisboa: Asa, 1999. ______. Entrevista a João Aguiar. In: Diário de Notícias, 31/03/2001. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2009 BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. 3. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1983. 178

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CASTRO, Aníbal Pinto de. Inês de Castro. Da crónica à lenda e da lenda ao mito: Inês de Castro. In: BROTTA, Patrizia. Studi. Estudos. Estudios. Ravenna: Longo Editore, 1999. DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens – do amor e outros ensaios. (trad. Jônatas Batista Neto) São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ____. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. (trad. Paulo Neves). São Paulo: Companhia das letras, 1995. FONSECA, Faustino da. História e lenda de Ignez de Castro. Lisboa: Guimarães e Cia. Editores, 1910. FRANCO, António Cândido. A rainha morta e o rei saudade. 2. ed. Lisboa: Ésquilo, 2003. KUNDERA, Milan. A arte do romance. (trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca). São Paulo: Companhia das letras, 2009. (Coleção Companhia de bolso). LEÃO, Duarte Nunes de. Crónica dos reis de Portugal: reformadas pelo licenciado Duarte Nunes de Leão. Porto: Lello e irmãos, 1975. LE GOFF, Jacques (1992). História e Memória. Campinas: Editora UNICAMP. MARINHO, Maria de Fátima (1999). O Romance Histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras. MEDEIROS, Aldinida.. Entrevista: Inês de Castro por António Cândido Franco. Tinta Fresca Jornal de Arte, Cultura e Cidadania. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2009. ______. Inês de Castro no romance contemporâneo português. Tese de doutorado. Natal: Univesidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010. 209 p. RESENDE, Garcia de. Trouas que Garcia de Resende fez à morte de Dona Ynes de Castro. In: Cancioneiro Geral. Edição facsimilada. Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 2.o vol., n.o 861. Ano 1516. ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente. (trad. Paula Brandi e Ethel Brandi) Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. 2. ed. Lisboa: ACD, 2004.

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SESSÕES DE COMUNICAÇÕES JOANA D'ARC E BRANCA DIAS - PERSONAGENS DA INQUISIÇÃO: DIÁLOGO ENTRE MÁRTIRES Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos (PIBIC-UFPB) [email protected] Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (Orientadora) (UFPB)2 1 Breve histórico da Inquisição A Inquisição compreendia tribunais ad hoc, surgiu inicialmente por volta do século XII, como meio de combate as crenças praticadas pelos albigenses, a criação/concepção de existência de um Deus do bem e outro do mal, deixou a Igreja Católica incomodada. Assim, para averiguar e contornar tal movimento herético, a Igreja Católica decidiu por instituir o Tribunal da Santa Inquisição, criação esta definida a partir do Concílio de Verona3. O movimento teve maior destaque a partir do início do século XVI, quando Martinho Lutero, monge católico, precisamente em 1517, lançou em frente a Igreja de Wittenberg as suas 95 teses que questionavam certos procedimentos até então adotados pela Igreja Católica. A partir de tais questionamentos, a Igreja Católica posicionou-se de forma contrária aos questionamentos feitos por Lutero, e perante o confronto sem retratação, o questionador acabou por ser excomungado. Sem o ofício que até então praticava, o de monge, Lutero partiu para difundir as suas concepções por toda a Alemanha. Surgia então o movimento hoje conhecido por Reforma Protestante, movimento este que teve a adesão de inúmeros governantes europeus, se expandindo principalmente pela França, Suíça e Holanda. Em resposta a Reforma Protestante, a Igreja Católica gerou a Contra Reforma Protestante, instituída pelo Concílio de Trento4, movimento que se mostrou efetivo até meados do século XVIII, presente em todos os continentes do globo terrestre. Com o surgimento destes movimentos surgiu a diferenciação no termo “cristão” antes unificado, passou a ser concebido por: “cristãos católicos” e “cristãos protestantes”. 1

Graduando em Letras Portuguesas (UFPB). Graduando em Direito (Unjpê). Participante do Grupo de Pesquisa Interação, Dialogismo e Subjetividade em Gêneros Discursivos Orais (PIBIC-UFPB-DLCV). Membro do Grupo CIDADI, linha de pesquisa Análise Dialógica de Gêneros Discursivos Verbo-Visuais da Esfera Midiática. Email: [email protected] 2 Professora Adjunto I do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutora em Letras (UFPE-Universite Blaise Pascal). Coordenadora de projetos de pesquisa voltados para estudos de literatura, medievo, poesia feminina, tradução. Email: [email protected] 3 Constituído em 1184 com a finalidade única de instituir o Tribunal da Inquisição. 4 Constituído em 1545 com a finalidade discutir a Reforma Protestante liderada por Martinho Lutero que se instalara, bem como, demais movimentos insurgentes que ameaçavam rebelar-se. Tratou também de temáticas quanto os livros canónicos, apócrifos e perpétua virgindade de Maria.

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A finalidade do movimento eclesiástico era punir os hereges, aqueles que não seguiam a fé católica, assim os métodos punitivos variavam, podendo ser desde prisões, torturas, até mesmo a pena de morte, geralmente mediante a fogueira. Este último foi o procedimento final utilizado para contra Joana D’arc, uma das maiores personagens da Idade Média. Por serem Estados ligados a Igreja Católica, a Inquisição se deu de modo mais frequente e intenso nos países ibéricos, Portugal e Espanha, e suas respectivas colônias, tanto africanas quanto americanas. Relatos historiográficos relatam processos e condenações aqui no Brasil. A Inquisição teve imensa projeção, meio pelo qual ampliou seu objeto inicial, passando a perseguir não somente os cristãos-protestantes, mas também judeus, muçulmanos (por meio das Cruzadas), mulheres e homossexuais. Os procedimentos e processos de repressão persistiram até meados do século XIX, quando passaram a surgir as constituições dos Estados Modernos, juntamente com a concepção de estado dissociado de religião, conceitos estes oriundos da Revolução Francesa. Nos dias atuais a Igreja Católica tem uma congregação denominada, Congregação para a Doutrina da Fé5, esta corresponde a um remodelamento das entidades instituídas durante a Inquisição. É a partir da referida congregação que se ratificam os dogmas e são editadas diretrizes basilares da fé cristã católica. Atualmente a Congregação para a Doutrina da Fé é compreendida como uma das congregações de maior destaque dentro do Estado do Vaticano. 2 A Inquisição na Literatura A Inquisição surge como tema forte na literatura, dos mais diferentes países, dizemos isto por ter sido um movimento de grande amplitude, duração e consequências humanísticas. Sendo esse um dos pontos principais do nosso trabalho, passaremos então a apresentar a Inquisição presente na obra em estudo. 2.1 A Inquisição na Literatura Brasileira - O Santo Inquérito Escrita em 1966, por Dias Gomes, a obra ‘O Santo Inquérito’ foi publicada de forma definitiva no ano de 1985. Inicialmente a obra fora redigida com o intuito de ser tornada peça teatral, todavia, após o enorme sucesso gerado, a peça fora transformada em livro. A peça fora elaborada a partir de um episódio histórico, ou lendário, ocorrido precisamente em 1750 na Paraíba. Distribuída em dois atos e composta por sete personagens, dois centrais (Branca Dias) e cinco coadjuvantes (Augusto Coutinho, Simão Dias, Visitador do Santo Ofício, Notário e o Guarda).

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Corresponde a uma das nove congregações unidas a Cúria Romana, entidade ligada a Santa Sé, governo do Vaticano. Hoje, diferente do período medieval, tem por objetivo defender a fé, a tradição e os dogmas católicos, consolidados ao longos dos tempos, como assim prevê o art. 48 da Constituição Apostólica Pastor Bonus: “Função própria da Congregação da Doutrina da Fé é promover e tutelar a doutrina sobre a fé e os costumes em todo o mundo católico: é portanto da sua competência tudo o que de qualquer modo se refira a essa matéria.”

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Elementos como a boa fé, a sinceridade e a pureza da personagem Branca Dias trazidos pelo autor, contradiz com o antigo modo de fazer peça teatral que eram realizadas pelos antigos românticos. O narrar trazido por Dias Gomes demonstra que a comunicação exercida pelas pessoas dentro de uma sociedade se torna bastante relativizada, tudo a depender do contexto em que está inserida, sujeitos, momento histórico e situação envolvida. 3 Joana D’arc e Branca Dias – Personagens da Inquisição: diálogo entre mártires 3.1 Joana D’arc Figura lendária nos estudos medievais, Joana D’arc se tornou uma mártir do período para a história da França do século XV. Inicialmente compreendida como herege e, consequentemente, condenada pela Igreja Católica a morte, nos dias atuais a antiga condenada e excomungada foi transformada em heroína e padroeira da França. Mesmo tendo sido morta aos 19 anos de idade, ainda muito jovem, Joana D’arc ficou de forma perpétua fixada na história política da França, e não pela condenação da Inquisição, mas sim pelo heroísmo apresentado durante a Guerra dos Cem Anos, na qual, tomou a frente das tropas francesas e, ao fim, conquistou a guerra. Como sabemos, o heroísmo de Joana D’arc não atribuiu a ela, de forma imediata, honras nem glórias, mas sim, inveja e temor da elite da época. Primeiro, por está se emergindo uma nova classe social, daqueles que venceram a guerra, e, segundo, motivado pelo fato de que as estratégias desenvolvidas por Joana D’arc foram as responsáveis para o triunfo francês perante a guerra, atos que davam a ela mais notoriedade do que aos altos generais franceses derrotados em combate. Ressalta-se que tal destaque atingido por Joana D’arc perante as tropas e o governo francês era uma humilhação aos homens que não conseguiram atingir o seu feito. O fato de ser mulher, constitui como um fator negativo para a história Joana D’arc, dizemos isso pois, na época em que a personagem histórica viveu a mulher não detinha nem vez, nem voz. Joana D’arc então se apresenta como uma ruptura ao modelo vigente até então, demonstrando assim que mesmo mulher e jovem, tem a capacidade de apresentar os seus atributos a sociedade, esta, patriarcal, totalitária e estratificada. Vencida a guerra, nada de honras militares e de Estado foram destinadas aquela que deu a França a vitória da Guerra dos Cem Anos. Ao revés, o que fora destinado a ela foi a perseguição. Inicialmente fora a ela imputadas suspeitas de bruxaria. Após a realização do processo de inquirição foi entrega aos ingleses, que fizeram todo o seu julgamento, ao fim, condenaram-a por feitiçaria às penas da fogueira, na modalidade de auto-de-fé. Como mencionado acima, a ‘culpa’ atribuída inicialmente a Joana D’arc fora retirada, e depois dado a ela o valor merecido. Passou assim de herege para santa da Igreja Católica, oficialmente declarada pelo Vaticano, em 1920, e respectivamente padroeira do seu país. País este que fora protegido por ela, e que o igual tratamento não fora direcionado em seu favor.

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3.2 Branca Dias – personagem histórica Figura emblemática da literatura e da história do Brasil é Branca Dias, uns a consideram personagem mítica, outros como fatos reais de uma vítima do extremismo radicado pela Igreja Católica por meio do Tribunal do Santo Ofício em terras brasileiras. Adotada a hipótese de sua existência, a sobra de dúvida ainda persiste, mas agora quanto ao eixo temporal. Pesquisas divergem quanto à precisão temporal em que viveu Branca Dias, umas dizem ter sido no início do século XVI, outras apresentam o século XVIII como período provável de sua existência. Aos que apontam o início do século XVI, afirmam que Branca Dias, personagem real e vítima da perseguição inquisitorial, nasceu em Portugal, possivelmente no ano de 1515. Caso que causa estranheza é o fato de ter sido denunciada pela própria mãe ao Tribunal do Santo Ofício, devido uma suspeita de reconversão ao judaísmo, fato que a levou a prisão, e posteriormente, a chegada de toda a sua família ao Brasil. Com a chegada da Inquisição ao Brasil logo é vigiada, bem como, todos os seus familiares, e a suspeita de reconversão ao judaísmo é retomada, fato que a levou de volta a Portugal para que fosse julgada, e morta pela modalidade de punição auto-de-fé. Punição similar aquela adotada contra Joana D’arc a séculos anteriores. A Branca Dias vivente no século XVIII é apresentada como paraibana, da região de Gramame, que ainda jovem fora perseguida e morta pelo Tribunal do Santo Ofício aqui no Brasil, e “assim Branca Dias Paraibana, foi julgada e condenada à morte pela Inquisição, acusada de professar sua fé no judaísmo”. (NISKIER, 2007). Mesmo sendo perseguida, a jovem não se conformou, e assim, buscou forças no judaísmo para encontrar a tranquilidade em face da desigual luta que travava. Nestes termos complementa NISKIER, 2007: Branca Dias não se conformou com as perseguições. Ela buscou consolo na sua crença, em tudo o que o judaísmo representava em seu coração, afirmando que nunca foi desonroso morrer por uma causa justa: a defesa do direito, da justiça e da liberdade, como preconizou o profeta Isaías. Para concluir que estará no céu, ao lado de todos os seus irmãos, ao alcance da sua grande e insubstituível fonte de inspiração. [...].Uma das nossas mais corajosas heroínas.

Os fatos de ser judia ainda nos dias de hoje é mera especulação, certamente o que levará a condenação foi a cobiça do padre Bernardo, que ao vê-la nadar no rio, encantou-se com quão beleza, e devido a seu ofício, de sacerdote, via impossível a concretização do seu amor pela jovem. O amor vira doença, então o sacerdote imputa a Branca Dias práticas heréticas para que a mesma seja punida pelo Tribunal do Santo Ofício. Os dois não podem se unir, devido o sacerdócio e também pelo fato da jovem não aceitá-lo, então o evento da morte vem como meio de amenizar a fixação do padre em relação a ela. Esta caracterização de Branca Dias adotada por estes que creem que ela viveu no século XVIII apresenta-se similar à compreendida e relatada por Dias Gomes na sua obra O Santo Inquérito, que trataremos a seguir. 183

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3.3 Branca Dias – personagem literária Inserida num contexto histórico preso aos anos de 1750, precisamente no estado da Paraíba, nordeste do Brasil, está a Branca Dias narrada por Dias Gomes, na sua obra ‘O Santo Inquérito’. Logo no primeiro ato, nos é apresentado o Padre Bernardo invocando as pessoas para o início do processo contra Branca Dias. Ocorre um embate entre o Direito Positivo e o Direito Divino, como podemos verificar na seguinte consideração: Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. (GOMES, 1985, pág. 26)

A divergência entre Direito Positivo e Direito Divino é algo recorrente quando se entram em polos distintos o Estado e a Religião. Aqui a invocação pelos direitos do homem (Direito Positivo) podemos conceber como o direito à vida, a liberdade de expressão, direitos estes que estavam sendo cerceados. Em contraste, os direitos da fé (Direito Divino) ligam-se aos preceitos de ter como rei e senhor o Deus apresentado pelo Cristianismo, aqui Catolicismo. Desde o início é visível o transtorno do Padre Bernardo que apresenta Branca Dias como estando nua, caso que não ocorre. Vê-se que o problema não se encontra nas atitudes apresentadas pela jovem, mas sim como ela é vista pelo sacerdote. Os seus olhos lascivos impõe a jovem os males alegados, mas de onde veio a distorção alegada pelo padre? Vejamos o seguinte fragmento: É verdade que uma vez — numa noite de muito calor — eu fui banhar-me no rio... e estava nua. Mas foi uma vez. Uma vez somente e ninguém viu, nem mesmo as guriatãs que dormiam no alto dos jeribás! Será por isso que eles dizem que eu ofendi gravemente a Deus? Ora, o senhor Deus e os senhores santos têm mais o que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da noite. Não, não é só por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não entendo... Eles não dizem... só acusam, acusam! E fazem perguntas, tantas perguntas! (GOMES, 1985, págs. 27-28)

O fato de tê-la visto uma única vez banhando-se no rio, fez com que a figura de Branca Dias perante a mente do sacerdote fosse permanentemente de pecado, de luxúria. Todavia, o ato da jovem não trazia consigo características de luxúria, mas sim de um simples ato de tomar um banho. No entanto, a luxúria estava sim fixada no pensamento do padre, fato este que fez enchê-la de culpa com o intuito de condená-la. A partir de tal afirmação de Branca Dias, a palavra é dada ao Visitador, responsável pelo julgamento de Branca Dias junto ao Tribunal do Santo Ofício. Buscando enquadrá-la como cristã-nova (judia) o julgador passa a tecer indagações ligadas ao judaísmo. Diante de tal questionamento, a jovem continua sem compreender o que se passava, não é a toa que desabava ao questionar: 184

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[...] Por que me fazem todas essas perguntas, por que me torturam? Eu sou uma boa moça, cristã, temente a Deus. Meu pai me ensinou a doutrina e eu procuro segui-la. Mas acho que isso não é o mais importante. O mais importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na água do rio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentado, com muita farofa, desses que fazem a gente chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso. [...]. (GOMES, 1985, pág. 29)

Ao citar como compreende por Deus, a jovem na sua inocência se complica, majorando o grau de condenação, quando o apresenta como sendo a existência/vivência do prazer, como vemos no seguinte trecho: “No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer.” (GOMES, 1985, pág. 29). Toda e qualquer afirmação feita por Branca Dias era levada para uma segunda interpretação forçada, que só tinha o intuito de demonstrá-la como mulher envolvida pelo maligno, e que mesmo sendo tentada uma conversão, nada foi conseguido. Dá para observar o interesse do padre na moça quando o mesmo diz: “Branca... você é um dos tesouros do Senhor. Preciso cuidar de você.” (GOMES, 1985, pág. 37). É incompreensível como uma pessoa tão distanciada dos costumes da igreja, tão cheia de suspeitas, como elencava o padre, pode ser um tesouro, tesouro este que deve ser zelado por ele. O interesse surge a partir do primeiro diálogo, interesse este doentio não sugira como salvação para moça, mas sim uma verdadeira perdição, rumo a morte. Logo no segundo encontro, o padre a leva para o templo, fato que a incomoda pela pouca presença de luz. Entretanto, sendo perspicaz o sacerdote logo diz que as sombras refletem o recolhimento, indicando de forma sorrateira do que a jovem necessita. Devido à extensão da narrativa, nos restringimos a debates pontuais presentes no ato primeiro. Todavia, a presença de perseguição descabida por parte do Padre Bernardo em relação à Branca Dias persiste de forma contundente por todo o limiar da história. Atingindo o ápice com a condenação e morte da personagem Branca Dias. 4 Considerações Finais Como bem pudemos apreciar, tanto Joana D’arc como Branca Dias foram mortas pela Inquisição, por diferentes motivos, mas com a punição idêntica, o auto-de-fé. A mulher até pouco tempo não detinha nem vez, nem voz, perante a sociedade em que vivia. O destaque alcançado por essas personagens gerava cobiça, inveja e desconfiança a sociedade machista e patriarcal. Ambas as personagens correspondem a modelos de mulher diferentes, fato notório devido às circunstâncias distintas em que viveram, uma França revolucionária e um Brasil colônia, mas que, cada uma a sua forma, combateu o modelo social vigente à sua época. Joana D’arc com a sua técnica e estratégia desbancou os grandes generais franceses, e com a sua visão de exército entregou a França uma vitória perante sua maior rival, a Inglaterra. 185

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Branca Dias, com a sua pureza e sutileza, não realizara nada contra si, nada que voltasse os olhos da Inquisição para os seus atos. Entretanto, fora presa, passou por todos os ritos inquisitoriais que buscavam de toda a forma a confissão. Nada confessou, pois nada devia. Esta autoafirmação demonstra uma mulher forte nos seus ideais, posição esta que nem os métodos da Inquisição subverteram. Referências GOMES, Dias. O Santo Inquérito. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1985. Coleção Teatro de Dias Gomes – Vol. 3. Disponível em: . Acesso em: 06 maio 2012. NISKIER, Arnaldo. O Martírio de Branca Dias. 2007. Disponível em: . Acesso em: 06 maio 2012. VATICANO. Constituição Apostólica Pastor Bonus sobre a Cúria Romana. Disponível em: . Acesso em: 05 de maio de 2012. WIKIPÉDIA. Auto-de-fé. Disponível em: Acesso em: 06 de maio de 2012. WIKIPÉDIA. Branca Dias. Disponível em: . Acesso em: 06 de maio de 2012. WIKIPÉDIA. Congregação para a Doutrina da Fé. Disponível em: . Acesso em: 05 de maio de 2012.

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ÉOWYN OU DERNHELM. UMA ANALISE DO ESTEREÓTIPOS DA MULHER GUERREIRA NAS OBRAS DE J. R. R. TOLKIEN Adhemar Correa Neto (UFMA) Alessandro Lima Moraes (UFMA) 1. INTRODUÇÃO Na atualidade diversos tipos de fontes vem sendo utilizadas pelos historiadores para o estudo historiográfico, é comum a pratica de analises de filmes, iluminuras, fotografias e até mesmo quadrinhos para a analise historiográfica em diversos sentidos, isso leva o historiador a ter que lidar com um tipo de instrumental, para tanto deve-se ter determinados cuidados ao analisar esse instrumental "Saber interpretar signos visuais tornou-se mais que uma necessidade para os acadêmicos e profissionais do ensino, mas uma necessidade." (LANGER, 2004, p.1). O texto histórico já não é a única fonte de pesquisa do historiador no caso desta pesquisa as fontes utilizadas foram obras de cunho literárias e filmes que são encaixadas no novo instrumental historiográfico oferecido a analises. 2. O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DAS OBRAS Tendo Tolkien em destaque a priori, é extremamente necessário que se faça uma análise e abordagem do processo que resultou na concepção da obra, tendo em vista, um maior embasamento para a temática que vai ser aos poucos abordada nos capítulos seguintes. John Ronald Reuel Tolkien nasceu em três de janeiro de 1982, em Bloemfontein, África do Sul, filho de pais ingleses que haviam emigrado para lá. Em 1896, um mês depois do seu quarto aniversário quando estava em Birmingham na Inglaterra, seu pai veio a óbito. Sua mãe, Mabel, foi sua primeira professora o ensinando a interpretar as palavras sua morte em 1904, consolidou os estudos de Tolkien. A escola acabou por ser o único elemento estável na vida de J.R.R. Tolkien. Na escola King Edward’s fez grandes amigos, três em especial: Chistopher Wiseman, G.B Smith, e Rob Gilson, e acabaram por criar o “Clube de Chá da Sociedade Barroviana” conhecido como TCBS (Tea Club and Barrovian Society), um pequeno clube com base no amor pelas lendas e sagas heroicas. Em 1911 Tolkien ingressou na Universidade de Oxford para estudar inglês e literatura, mas este período idílico acabou com a eclosão da Primeira Grande Guerra em 1914, em dezembro do mesmo ano os quatro amigos se encontraram na casa de Wiserman para um evento chamado o “Conselho de Londres” nesse encontro Tolkien vivenciou uma provável revelação, percebendo de certa forma que queria ser um escritor criativo. Este foi o ímpeto por trás da criação da Terra-Média. O “Conselho de Londres” coincidiu com o processo de criação do primeiro idioma élfico de Tolkien, até o

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momento ele já dominava: o latim, o grego, o inglês arcaico, e vários outros idiomas indoeuropeus. Todos os amigos íntimos de Tolkien combateram na Batalha de Somme da Primeira Grande Guerra e quase todos morreram, isso teve uma grande influência na sua obra principalmente depois de ler uma correspondência do seu amigo Rob Gilson nas trincheiras da guerra: Sou um grande admirador, de todo o meu coração, e meu maior consolo é saber que, se eu for morto hoje à noite, ainda haverá um grande membro do TCBS para dar voz ao que eu sonhei e àquilo que nós concordamos. Pois a morte de um dos seus membros não pode dissolver o TCBS. Estou determinado. (Rob Gilson membro da TCBS, 1914)

Em vários “momentos calmos” da guerra, Tolkien aproveitava para escrever histórias num caderno, histórias que chamou de “O Livro dos Contos Perdidos” (The Book of Lost Tales) nesse momento nasceu os primeiros textos sobre a Terra-Média, O Silmarillion, aquilo que ele começou a escrever nas trincheiras só foi publicado depois de sua morte, pelo filho Christopher. Depois da Primeira Grande Guerra, a literatura medieval parecia ser totalmente relevante novamente. Ela estava de fato abordando questões de que as pessoas ou tinham esquecido ou achavam que fossem antiquadas. O que atingiu Tolkien feito um raio foi a Gramática Finlandesa, de Sir Charles Eliot, porque era um idioma muito diferente daqueles que Tolkien dominava. Isso o inspirou a criar o quenya, o primeiro idioma élfico, mas Tolkien também ficou muito interessado pelo idioma galês, produzindo outro idioma élfico, o sindarin que de certa forma é como o galês em sua estrutura fonética. Até então em 1920 ele já tinha dois idiomas bem desenvolvidos, J.R.R Tolkien escreveu uma história de fantasia para explicar quem falava esses idiomas, por que eles se diferiam e como se desenvolveram até o formato dado a eles. Esse é o começo e a semente da história que se transformou em O Silmarillion. Tolkien retornou a Oxford em 1925, como professor de anglo-saxão, e 12 anos se passaram até a publicação oficial de “O Hobbit” em 1937, que se tornou um sucesso praticamente imediato, o curioso é que a obra teve seu feedback feito por Rayner Unwin, o filho de 10 anos do editor de Tolkien que deu sua calorosa aprovação do ainda não publicado “O Hobbit”. A popularidade de “O Hobbit” levou Stanley Unwin, seu editor, a pedir mais histórias sobre hobbits. Tolkien, com 45 anos de idade, começou a escrever a “continuação de O Hobbit”, mas recorreu a seus antigos textos e antigas paixões, que seria a tentativa de criar uma mitologia propriamente inglesa desejo fortemente compartilhado por seu amigo C. S. Lewis, criador de “As Crônicas de Nárnia”. Tolkien compartilhava da idéia de que a Inglaterra não tinha mitologia, apenas contos-folclóricos, e se apropriavam muito da mitologia alheia, tendo como base justamente a noção de que a história que todos consideram inglesa é a do Rei Arthur, quando na verdade as fontes são variadas e o maior número delas vem da França, pensando dessa forma Tolkien achava que não deveria fazer parte do folclore e nem da mitologia inglesa. Ele lamentava fortemente o fato de que qualquer mitologia que a Inglaterra pudesse ter tido havia sido erradicada pela invasão da Normandia de 1066. 188

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No prefácio para o “O Senhor dos Anéis” Tolkien comenta sobre sua inspiração e fonte para escrever a obra. Tinha alguma esperança de que outras pessoas ficassem interessadas nesse trabalho especialmente por ser o fruto de uma inspiração primordialmente lingüística e por ter sido iniciada a fim de fornecer o plano de fundo histórico necessário para as línguas élficas. (Tolkien, 2000, pág XI.)

Inspirado pela filosofia, pelos estudos das línguas germânicas, sagas nórdicas e poesias anglo-saxões, Tolkien também comenta sobre a forma como o autor não consegue evitar a sua própria experiência e lugar social em suas obras. É claro que um autor não consegue evitar ser afetado por sua própria experiência, mas os modos pelos quais os germes da história usam o solo da experiência são extremamente complexos, e as tentativas de definição do processo são, na melhor das hipóteses, suposições feitas a partir de evidências inadequadas e ambíguas. (Tolkien, 2000, pg. XIII.)

Fica claro a partir do comentário de Tolkien, que todo escritor coloca elementos pessoais em seus livros, no caso específico de Tolkien, a forma como ele “cria as pessoas” de Rohan instintivamente sabemos que ele entendia de cavalo. Rohan está intrinsecamente relacionada a tradições anglo-saxões dos séculos IX e X. A cultura é facilmente reconhecível, o palácio de Rohan chamado de Melduseld é o mesmo nome do palácio de Beowulf, que é um poema épico escrito em língua anglo-saxã. Rohan passa a ser então basicamente um Beowulf com cavalos acrescentados. A maioria dos nomes das pessoas em Rohan tem os nomes relacionados a cavalos. Eoh  Cavalo (Inglês Arcaico) Éomer  Provavelmente seria alguém famoso em termos de cavalos. Éowyn  Provavelmente seria alguém que se alegra com cavalos Antes da Primeira Grande Guerra, Tolkien se associou a algo chamado “Cavalo do Rei Eduardo”, era um batalhão, foi sua primeira e maior experiência com cavalos. Essa experiência mostra mais do que meras abstrações por trás da idéia de Rohan. Os Rohirrim são uma forma de preencher os desejos de Tolkien, porque eles são muito parecidos com os anglo-saxões, mas com cavalos. Tolkien tinha uma teoria de que “se” os ingleses tivessem tido uma cavalaria eles nunca teriam perdido a batalha de Hastings, porque no momento em que os cavaleiros atravessaram o mar, vindos da França, eles acabaram com os ingleses. A invasão normanda segundo a visão de Tolkien foi uma grande catástrofe, o afluxo da cultura normanda impediu um florescimento total da mitologia inglesa, desta forma, os cavaleiros de Rohan são uma imagem dos anglo-saxões não como eles foram, mas como provavelmente teriam sido, e talvez se tivessem retido mais a cultura dos cavaleiros eles poderiam não ter perdido em Hastings, e a atual civilização inglesa não teria sido tão afrancesada como foi, algo que Tolkien considerava um completo desastre. 189

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3. A PERSONAGEM ÉOWYN Éowyn nasceu em 2995 da Terceira Era, em Rohan, filha de Théodwyn, a amada irmã do Rei Théoden, e de Éomund, um dos grandes Marechais da Terra dos Cavaleiros. Era também a irmã mais nova de Éomer, que viria a tornar-se o Terceiro Marechal da Terra dos Cavaleiros e Rei de Rohan. Descrita como uma mulher bela, com longos cabelos louros, olhos cinzentos e pele branca como a neve, era esguia e alta, tendo uma graça e uma altivez herdadas do sul, de Morwen de Lossarnach, a quem os rohirrim haviam chamado Brilho do Aço. Seu pai, Éomund, odiava os orcs e amava os cavalos. Em 3002, Éomund atacou um grupo de orcs que atravessavam suas terras com um grupo pequeno e sem cautela. Isto o conduziu a uma armadilha, na qual foi morto. Sua mãe, Théodwyn,ficou doente e morreu pouco depois, para a grande tristeza do rei, que acolheu em sua casa os filhos da irmã, chamando-os de filho e filha.O filho do Rei, Théodred, na época com 24 anos, recebeu bem seus primos e tratou-os como irmãos mais novos, tendo nascido uma grande amizade entre eles. Todavia, ao crescer num ambiente tão masculino e militarizado quanto Edoras, Éowyn começou a demonstrar grande interesse a respeito de espadas e cavalos. Alguns anos depois, ela já sabia cavalgar e empunhar uma espada com destreza. Todos estavam felizes, até o dia em que Gríma Língua de Cobra, um servo de Saruman, assumiu o posto de conselheiro do rei. Éowyn esteve sempre ao lado de Théoden e assistiu com tristeza a decadência física e mental de seu tio. O homem forte e orgulhoso que ela amava como um pai estava cada vez mais fraco, e isso a entristecia e fazia nascer em si um ódio secreto, mas forte, contra Gríma, que ela via como o principal responsável pela decadência de Théoden. Quando Gandalf veio a Edoras, em 3019, Éowyn tinha poucas esperanças de que algo mudasse. Mas o mago curou o rei de sua apatia, e lhe mostrou como o mundo caminhava a passos largos para a guerra contra Mordor. Théoden mandou que o exército dos rohirrim fosse preparado, e deu a regência do Reino de Rohan para Éowyn, e nisso demonstrou mais amor por ela do que em qualquer outro gesto, pois nunca antes uma mulher havia ocupado o posto de regente naquele reino. O Rei Théoden e o exército de Rohan foram para o Abismo de Helm esperar o ataque dos orcs. Éowyn nada teve a ver com essa batalha, pois estava ajudando o povo de Rohan a se esconder dos orcs. Os exércitos do Oeste foram vitoriosos e os orcs dizimados. Todos festejaram a vitória, mas ainda havia uma batalha para se travar. Uma batalha que denominaria o destino de todos. Os rohirrim partiriam novamente para lutar, mas dessa vez nos Campos de Pellenor, em Gondor. Um dia antes da partida dos exércitos de Rohan para a guerra, Aragorn, Gimli, Legolas, o guardião do norte Halbarad e os filhos de Elrond, Elrohir e Elladan partem para as Sendas dos Mortos. Neste ponto, Éowyn já sentia uma grande admiração por Aragorn, e quando soube que ele desejava usar tal caminho tentou 190

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dissuadi-lo de todas as formas, e chegou até a se oferecer a acompanhá-los, mas isso lhe foi negado. O rei ordenou novamente que Éowyn fosse a regente e protegesse o povo durante sua ausência. Mas ela já estava decidida que lutaria e, secretamente, vestida como um homem e usando o pseudônimo de Dernhelm, cavalgou com o exército de Rohan em direção a capital de Gondor, Minas Tirith, juntamente com Meriadoc Brandebuque, um hobbit e integrante da Sociedade do Anel que nada sabia sobre sua verdadeira identidade. Quando os rohirrim atacaram as hordas de orcs, Éowyn estava entre eles, e lutou com bravura (mas anonimamente) até o momento que o rei foi abatido. O Rei dos Bruxos de Angmar, o capitão dos Nazgûl, atacou Théoden e ela se pôs entre eles. O Nazgûl riu de sua valentia, já que pensava tratar-se de um homem, mas quando tirou seu capacete e revelou ser mulher, irrompeu em fúria e medo, pois uma antiga profecia diria que ele nunca poderia ser morto pela mão de um homem, e Éowyn não era um homem. Conta-se que nesse feito Éowyn teve ajuda de seu companheiro, Merry. Éowyn matou o Nazgûl, mas caiu vítima do hálito negro e ficou às portas da morte. Quando a guerra termina, seu irmão Éomer acha seu corpo e pensa que ela está morta, entretanto, o Príncipe Imrahil de Dol Amroth vem ao auxílio dos rohirrim e diz que Éowyn não faleceu. Éomer já havia partido, e só descobre que sua irmã estava viva quando ela chegou às Casas de Cura. Foi o próprio Aragorn que a curou, usando a erva chamada athelas ou folha-do-rei. Alguns dias após a partida dos exércitos de Rohan e Gondor em direção ao Portão Negro, Éowyn levanta-se da cama e exige falar com o diretor, pois queria lutar ao lado de seu povo e morrer com dignidade. O diretor então a leva ao regente de Gondor. Foi nessa ocasião que Éowyn conheceu Faramir, e durante sua estadia nas Casas de Cura, os dois se apaixonam. Ela renuncia ao trono de Rohan para que pudessem se casar e os dois beijaram-se sobre as muralhas de Minas Tirith Foi em 3020 da Terceira Era, que ocorreu o casamento de Éowyn e Faramir. Em 3019, ela era conhecida no Reino de Gondor como “Senhora Branca de Rohan” e passou a viver nas colinas de Emyn Arnen. Viveu como Princesa de Ithilien e amiga do Rei Elessar. Não existem registros de sua morte, apenas de seu único filho: Elboron. 4. ANÁLISE DOS ESTEREÓTIPOS A personagem Éowyn é estruturada em diversos estereótipos da mulher no período medieval principalmente no que se refere a mulheres guerreiras, partindo desse pressuposto faz-se necessário uma abordagem histórica da origem dos estereótipos que serão analisados. Os costumes e tradições dos povos formadores da sociedade européia de certa forma condicionaram a ótica da mulher no medievo. “A interpenetração de certos hábitos dos celtas, romanos e germânicos com a cultura cristã teve peso considerável na concepção medieval da mulher.” (MACEDO, 1990, pg. 9) Em Roma no período Imperial consagrou-se a idéia da inferioridade natural da mulher, as mesmas não poderiam atuar em funções públicas, políticas e administrativas, limitando-as a casa. A liberdade assim como em vários outros povos, dependia da posição social que a 191

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mulher ocupava. Um fato importante é que mesmo quando era “livre”, tinha a autonomia pessoal limitada pelos interesses da família diferentemente do que ocorria entre os celtas. Na sociedade celta, juridicamente houve uma “equiparação entre os sexos” e em alguns casos até um avanço feminino, a mulher quando solteira tinha autonomia na realização do matrimônio o que não acontecia na sociedade romana, o “Estado” que representava a coletividade, sobrepujava os interesses individuais retirando desse modo qualquer forma de autonomia. Umas das principais origens do estereótipo da mulher no período medieval foi o relato de Felipe de Novare que por ser um nobre e ter recebido uma educação refinada teve seu discurso aclamado: O cavaleiro achava que a virtude a ensinar deveria ser a obediência. O sexo frágil, segundo ele, foi feito para obedecer. Outras virtudes complementares deveriam impedir que as filhas fossem ousadas, faladeiras, ambiciosas. Não era bom, julgava, que uma mulher soubesse ler e escrever, a não ser que entrasse para a vida religiosa. Caso fosse instruída estaria à mercê de rodeios e galanteios dos homens. Assediada, a dama dificilmente resistiria ao desejo de responder aos admiradores; manteria uma correspondência e sabe o diabo mais o quê. Uma moça deveria isso sim, saber fiar e bordar. Se fosse pobre, teria necessidade do trabalho para sobreviver. Rica, ainda assim deveria conhecer o trabalho para administrar e supervisionar o serviço dos seus domésticos e dependentes. (Macedo, 1990, Pg 25.)

No lar e fora dele fiar e borda eram uma função restritamente feminina servindo como uma separação da sociedade masculina e guerreira contrapondo o lado da espada e o lado da roca. A sociedade medieval nutriu um desprezo generalizado pelas mulheres, à atitude de desprezo dos homens pelas mulheres, consideradas ao mesmo tempo perigosas e frágeis, era justificada por todos os meios, até pela etimologia da palavra que as designava, a palavra latina que designava o sexo masculino, “Vir”, lembrava “Virtus”, isto é, força, retidão, enquanto Mulier, o termo que designava o sexo feminino lembrava Mollitia, relacionada à fraqueza, à flexibilidade, à simulação. Entretanto, é errado conjugar toda a ótica da mulher para esse viés, as diferenças sociais foram sempre tão fortes quanto às diferenças de sexo. Não é possível comparar, condessas e castelãs com servas e camponesas livres, ricas burguesas com artesãs, domésticas ou escravas. No que concerne a personagem Éowyn, ela alegoricamente é uma guerreira pautada em alguns estereótipos, dentre eles o de mais fácil análise é a transição da mulher guerreira para uma curadora (Santa) passando nessa transição, uma percepção de que ser uma guerreira não faz parte da natureza feminina, o que ocasiona também uma dualidade. Guerreira e Virgem  Santa e Mãe; Guerreira = Escuridão  Santa = Luz Nesta passagem do livro, “O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei” fica consagrado o estereótipo no momento da declaração de Faramir (Regente de Gondor): E eu (Faramir) a amo. Já senti pena da sua tristeza. Mas agora, mesmo que você não sentisse tristeza alguma, nem medo, e não lhe faltasse nada (...) ainda assim eu a amaria. Éowyn você não me ama? Naquele momento o coração de Éowyn mudou, ou então finalmente percebeu a mudança. E de repente seu inverno passou e o sol brilhou para ela. (Tolkien, 2000, pg 244.)

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Assim como nesta passagem: Estou em Minas Anor, a Torre do Sol – disse Éowyn -; e eis que a Sombra partiu! Não serei mais uma escudeira, nem competirei com os grandes Cavaleiros, e deixarei de me regojizar apenas com canções de matança. Serei uma curadora, e amarei todas as coisas que crescem e não são estéreis (Tolkien, 200, pg 244.)

A análise dos estereótipos é extremamente importante para uma maior compreensão da mulher no período medieval assim como é de extrema importância para compreender a transposição desses estereótipos para obras literárias. 5. CONCLUSÃO Podemos concluir dessa breve analise que, o estereótipos quanto a mulher na idade media foram determinados principalmente pelo meio social, a posição de mulher variava de acordo com a sociedade em que estava inserida, as tradições católicas de certa forma vieram a desvalorizar a figura feminina dentro da sociedade, levando ao caráter mais submisso. Vemos que a condição de guerreira era uma posição de difícil acesso a mulher na época medieval pois as relações sociais dificultavam o advento de uma classe feminina voltada para a guerra visto que, segundo a mentalidade medieval a submissão da mulher para com o homem era fundamental para a manutenção da hierarquia social. 6. REFERENCIAS MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Media, São Paulo: Editora Contexto, 1990. LANGER, Johnni. Metodologia para Analise de Estereótipos em Filmes Historicos, São Paulo: Revista Historia Hoje, 2004 TOLKIEN, J R R. O Senhor dos Aneis - A Sociedade do Anel: Primeira Parte/tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 2º ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000. TOLKIEN, J R R. O Senhor dos Aneis As Duas Torres: Segunda Parte/tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 2º ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000. TOLKIEN, J R R. O Senhor dos Aneis O Retorno do Rei: Terceira Parte/tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 2º ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000. TOLKIEN, J R R. O Hobbit. Tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 3º ed. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. TOLKIEN, J R R. O Silmarillion; organizado por Christopher Tolkien; tradução Waldéa Barcellos. – 4º ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

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RED SONJA: A MULHER GUERREIRA NA ERA HIBORIANA Adriano Everton NEMIS/UFMA Luciana Campos A origem de red Sonja “Por Mitra”. Quando esta frase é pronunciada em qualquer história envolvendo os personagens criados por Robert Howard logo constatamos a presença de red Sonja na corrente aventura. Seja como coadjuvante de Conan, o bárbaro, ou numa aventura solo, red Sonja é a representação da mulher guerreira no universo howardiano. Ao contrário de Conan, a demônia da hircância foi criada especificamente para as histórias em quadrinhos, para possibilitar o protagonismo das HQs para o dono da espada selvagem. Mesmo sendo uma coadjuvante, Sonja é uma personagem literalmente “forjada no calor da batalha”. Convém ressaltar que Red Sonja é uma personagem modificada, mas que foi inspirada na personagem homonina “red Sonya of rogatino” presente no livro de Howard “The shadow of the vulture”. A personagem foi criada por Roy Thomas nos anos de 1970 quando a Marvel ainda era a detentora dos direitos autorais dos personagens de Robert Howard. Mesmo com essa desambiguação de personagens a marca “Red Sonja” ainda é assunto de pendências judiciais, porém, o foco desse trabalho é trajetória do demônio nas HQs. Nas HQs, Sonja é filha de um mercenário aposentado e vivia feliz com a sua família na hircânia. Entretanto, a aspiração guerreira era nítida em sue personalidade. Mercenário aposentado, o pai do futuro demônio, ensinava seus outros filhos o manejo da espada, algo que era proibido para Sonja, pela sua identidade feminina. Mesmo assim, de forma escondida, a então jovem ruiva passou a treinar, às escondidas, às lições repassadas pelo seu pai aos seus irmãos. Sonja era proveniente de uma família com uma relativa felicidade, mas algo deveria acontecer para que o seu potencial guerreiro finalmente viesse à tona. Em certa ocasião, seu pai foi convidado por outros mercenários para agir em um “trabalho”, mas em virtude da negativa do hircaniano, os mercenários promoveram um massacre nas terras da família de Sonja. Toda a sua família foi cruelmente assassinada, passando pelos seus pais até seus irmãos. Sobrevivente, a ruiva ainda foi vítima de inúmeros abusos de natureza física e sexual. Depois de promover um sangrento massacre da família dos hircanianos, os mercenários colocam fogo na propriedade e fogem deixando Sonja para sucumbir perante as chamas. Contudo, é nesse momento que a sorte de Sonja muda seu curso. Enrolada em um lençol molhado, milagrosamente, Sonja consegue sobreviver ao incêndio à casa de seus pais. Depois de conseguir escapar de sua antiga casa, após sofrer uma série abusos físicos e sexuais Sonja caiu desfalecida e em seu ultimo fôlego deparou-se com o momento que mudaria a sua vida, seu encontro com a deusa Mitra. Apiedando-se dos abusos sofridos por Sonja, Mitra propõe um pacto para a jovem em que fica estipulado que, em troca de uma vida de guerreira e da proteção da deusa, Sonja não poderia ser envolver com nenhum homem a menos que ele a vencesse em uma batalha. Sem titubear, Sonja aceita o acordo e, instantaneamente, com a benção de Mitra a ruiva ressurge 194

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em uma nova identidade, mais poderosa e mestra no manejo da espada, esta é a origem de Red Sonja. Cronologia e Indumentária Ás vésperas de completar 40 anos de aventuras nas HQs, a primeira aparição de Red Sonja data de 1973 na revista “Conan, the barbarian,” de número 23. A personagem surgiu como uma mera coadjuvante, ou como muitos gostam de relatar como um correspondente feminino ao dono da espada selvagem. Quando a sua indumentária, apesar do modelo clássico perdurar por esses 40 anos de histórias sem modificações, a hircaniana já teve seu corpo coberto por outro tipo de roupa. Nas primeiras edições de Conan, o bárbaro, em que Red Sonja aparece com uma blusa de malha e com uma calça curta de seda vermelha. O biquíni que cobre até hoje o corpo de Sonja foi idealizado pelo ilustrador espanhol Esteban Maroto, modelo que ganhou fama na revista “savage sword of Conan” de número 1, em que além de ganhar a sua indumentária é nessa revista que encontramos a primeira história solo da ruiva. No que se refere a sua vestimenta, Sonja tem uma aparência simples. Ela usa uma espécie de biquíni que é recoberto de micro plaquetas de metal. As plaquetas recobrem apenas o traje expondo as formas do corpo de Sonja quase que o tempo todo, sendo exceção apenas às situações de frio extremo como visto na série “Wrath of the gods” em que no início da história ela está trajando um casaco que não deixa de exibir seu corpo talhado por Mitra. O traje de Sonja, e a maneira como ele está exposto permitem muitas interpretações, neste momento, a bordo dos estudos de Peter Burke, e de seu livro testemunha ocular, mais precisamente do segundo capítulo, em que o autor trata sobre iconografia e iconologia, o qual defende a ideia que para as imagens serem “lidas” faz-se necessário um conhecimento prévio do conteúdo a ser analisado. No caso da indumentária de Red Sonja fica nítida a relação de correspondência de seu traje com as armaduras do tempo medieval. Em outra corrente de interpretação, o metal do traje do demônio da hircânia pode remeter aos materiais usados na construção de trajes para ambientes hedônicos, sendo exemplificado pela festividade do carnaval, e afins. Este tipo de interpretação tem em vista apenas o caráter sexual da personagem, de modo a desprezar todo o caráter aventureiro das histórias da era hiboriana. A correspondência do metal do traje da ruiva com se faz presente pela semelhança com as armaduras medievais, tanto aquelas de cota de malha quanto a armadura de placa completa. Em uma analise mais ousada, observa-se que o traje de Red Sonja faz uma espécie de fusão dos dois estilos. Como todos os leitores e fãs tanto das histórias e do potencial físico de Red Sonja devem ter observado, o metal de seu traje é ligado de uma forma pouco vista. Sua “armadura”, na verdade, se resume em pequenas placas interligadas com anéis de metal bem semelhantes àqueles que são utilizados em armaduras de cota de malha. Outro elemento observado nas armaduras de cota de malha é percebido em Red Sonja, a liberdade de seus movimentos. Neste caso, essa liberdade é representada pela própria falta de cobertura em seu corpo, e lógico, pelo apelo sensual da personagem. 195

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Outro ponto que merece atenção é o fator criativo envolvendo o desenvolvimento da indumentária da personagem. Esteban Maroto aplicou ao traje uma ideia inovadora, realizando uma hibridização entre os estilos de armadura e os aplicou num traje que ao mesmo tempo protege o corpo da heroína e presenteia os leitores com o atraente corpo da guerreira. Com este conceito, o traje de Red Sonja valoriza ainda mais o caráter divino que envolve a personagem, isto porque a singularidade do uniforme, e também seu caráter moderno ratifica a proteção de mitra na forma de um artefato único. “Whath of the gods” Nesta minissérie publica pela dynamite entertanmeit no ano de 2010, está disposta em cinco edições que não contém histórias paralelas, como costumeiro em outros títulos de outras editoras de quadrinhos. As revistas da minissérie “Wrath of the gods” contém apenas a aventura do demônio da hirkânia em si, contendo apenas a divisão de acordo com a parte da história. Nesta minissérie é contada como Red Sonja enfrenta um de seus mais poderosos inimigos. A história começa com Sonja em meio a sua jornada na era hiboriana. Em terras geladas, a guerreira encontra o jovem Gamble, ruivo como ela, a criança aparece sentada na porta de uma taverna a qual foi impedido de entrar, num gesto de boa vontade da heroína, ela o convida para entrar na taverna para se proteger de uma nevasca que se aproximava. Entretanto, uma descoberta sobre sua origem esperava a guerreira de cabelos vermelhos no interior da taverna. Ao adentrar a taverna com o pequeno Gamble, Sonja e o menino são recepcionados de forma hostil pelas pessoas daquele lugar que não aceitavam pessoas da etnia budini naquele lugar. Correndo perigo, Red Sonja tinge o chão da taverna com o sangue daqueles que lhe ameaçavam. Depois de disso, o jovem Gamble explica para a heroína o porquê de eles serem chamados pela alcunha de budini. Já devidamente acomodados na taverna, Gamble conta para Sonja que eles são oriundos de uma etnia chamada budini, que tinha por principal característica física a coloração vermelha nos cabelos. A criança ainda disse que seu povo não tinha a tradição guerreira e que foi massacrado por outros povos até encontrar asilo em um lugar que estava fora dos mapas hiborianos, em um lugar chamado wodinaz. Entretanto, mesmo em seu refúgio o povo budini estava em perigo. Após revelar sua história para Red Sonja, Gamble também revela a sua missão, que seria encontrar um guerreiro budini que cumpriria a profecia libertando o seu povo das forças opressoras. Relutante quando a história do garoto, Red Sonja tem o seu espírito heroico inflamado pelo lindo rubi que Gamble oferece em troca dos serviços do demônio da hircânia. Com este belo incentivo, a guerreira parte com Gamble para wodinaz. Após um complicado caminha pelo interior de uma montanha, Red Sonja e Gamble se deparam uma wodinaz desolada dominada por monstros de todas as espécies comandados um poderoso mago, Loki. Depois de uma intensa batalha, Sonja acaba enfeitiçada por Loki, porém, um novo aliado se junta a heroína e Gamble, se trata do “semideus”, Thor. 196

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Cabe resaltar que o Thor dessa história tem uma descrição física distinta das histórias da Marvel. Em “Wrath of the gods”, o Thor descrito tem sua aparência fiel à mitologia nórdica, sendo um homem com uma grande altura e força, além dos cabelos e barba ruivos, neste caso especial isto tem mais haver com os budinis. Entretanto, um dos objetos característicos de Thor é uma das peças chaves da trama. Em “Wrath of the gods”, os roteiristas produziram um visão alternativa envolvendo elementos do panteão nórdico. Na minissérie, Thor aparece como o maior inimigo de Odin, mesmo sendo seu filho. Na história, Odin tem como pretensão eliminar os budinis por conhecer a profecia que aponta um guerreiro budini como o seu sucessor em wodinaz. Neste momento, observa-se uma referência ao panteão grego, mais precisamente a Zeus e o titã Cronos, o qual devorava seus filhos com o temor que um deles lhe tomasse o posto de rei de todos os deuses, e que foi vencido por Zeus, e logo depois sendo exilado com outros titãs para o tártaro. Outro elemento importante é o fato de Loki e Odin aparecerem como aliados, entretanto, com o decorrer da história a relação conflituosa entre eles ficam em evidência. Para derrotar Odin e salvar os budini, Thor precisa de uma arma poderosa quanto um deus, para isso ele precisa juntar a pedra de ardinos com o cajado de Odin para obter um martelo poderoso o suficiente para realizar a sua missão. Thor ainda conta com a ajuda de Red Sonja, que é decisiva para a derrota de Odin e o estabelecimento da ordem em wodinaz. Ao final da história, mesmo com Thor lhe oferecendo o trono de rainha, Sonja pega o rubi concedido por Gamble e parte de volta para a sua jornada. Nesta minissérie, apesar da distorção em relação à mitologia nórdica, muitos aspectos sobre Red Sonja ficaram explícitos e serão analisados no tópico a seguir. A “não amazona” e a “mulher cavaleiro” Por meio da leitura de “Wrath of the gods”, alguns aspectos da personagem de Roy Thomas fazem menção a outros tipos de lendas envolvendo mulheres guerreiras, como no caso das amazonas, e outros tipos de guerreiros como a cavalaria medieval. Em uma breve análise contata-se que Red Sonja possui semelhanças como também diferenças com estes tipos de guerreiros. Primeiramente, a relação da ruiva com as Amazonas será objeto de estudo. De acordo com o dicionário de mitologia grega e Romana, de Georges Hacquard, as amazonas eram povo mítico, predominantemente feminino, o qual só interagia com seres do sexo masculino para fins reprodutivos, de modo que, esta interação tinha o objetivo de garantir a perpetuação daquela civilização, ou seja, só indivíduos femininos eram aceitos, costume que acarretava, por meio de sacrifícios, a eliminação seres masculinos. Outro costume das amazonas era a amputação do seio direito com o objetivo de garantir um melhor manejo do arco. Por se tratar de um povo em que predomine a figura da mulher guerreira, constata-se referências e, principalmente, diferenças com a personagem do universo howardiano. O primeiro ponto de correspondência entre Red Sonja e as amazonas se refere ao distanciamento em relação ao gênero masculino. Apesar desta característica ser presente nos dois referenciais o distanciamento quanto aos homens ocorre por motivos distintos. No caso 197

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das amazonas, a recusa pela presença masculina é inerente a sua cultura, no caso de Red Sonja o abstração do gênero masculino ocorre por conta do pacto com a deusa Mitra, que só permite que um homem se relacione carnalmente com a guerreira se vencê-la em batalha, algo que só ocorre com as amazonas quando estas buscam reproduzir-se. Outra diferença entre Sonja e as amazonas ocorre por causa da mutilação do seio direito, algo visivelmente não praticado pelo demônio da hircânia. E por último, ao contrário das amazonas que vivem seu reino, Red Sonja leva uma vida peregrina. Quanto à vida peregrina, ao mesmo tempo em que esta característica se difere das amazonas faz menção a outro tipo de corpo guerreiro, a cavalaria. No que se refere à relação de Red Sonja com a cavalaria medieval, depreendem-se semelhanças em aspectos fundamentais para a constituição do modo de operação de ambos, principalmente no que tange os chamados ideais da cavalaria. Mesmo se tratando de uma mulher visivelmente viril, Red Sonja exibe traços de generosidade e justiça. Conforme visto em uma das primeiras passagens de “Wrath of the gods”, ao conhecer Gamble, e este alertá-la da tempestade, ela prontamente o convida para entrar junto com ela na taverna. A ajuda aos mais fracos é um dos traços que norteiam os valores da cavalaria ainda tão presente no imaginário atual. De acordo com o dicionário temático medieval, a cavalaria tem um código que norteia as ações deste corpo guerreiro, dentre os principais preceitos deste código estão à proteção para os mais fracos, e contra a injustiça em geral, característica também inerente ao demônio da hircânia. Entretanto, não para neste quesito a correspondência de Red Sonja com a cavalaria. Quanto à indumentária, é percebia outra referência a cavalaria em Red Sonja. Citado anteriormente, o conceito do traje da guerreira horwardiana consiste numa hibridização entre os dois tipos armaduras utilizadas pelos cavaleiros, à cota de malha e a armadura de placa completa. Outro aspecto de correspondência entre Red Sonja e a cavalaria também se refere à vassalagem. Como uma legítima representação do feudalismo, a cavalaria também em sua constituição as relações de vassalagem, de modo que todo cavaleiro tinha obrigações com seu senhor, sobretudo, no que se refere aos ideais de proteção do corpo guerreiro. No caso de Red Sonja, esta relação de vassalagem tem a sua equivalência demonstrada em sua relação com a deusa Mitra. Neste exemplo, Mitra concede proteção para a guerreira em troca da obediência dos seus preceitos que se assemelham aos seguidos pela cavalaria medieval. A seguir nas considerações finais mais ponderações sobre a personagem da época de Conan, o bárbaro. Considerações Finais Criada a partir de um próprio personagem do universo de Robert Howard, a Red Sonya, Red Sonja, com muita ação e doses de sensualidade, com o passar das décadas conquistou uma legião de leitores que perpetuaram a figura do demônio da Hircânia do imaginário dos fãs das histórias em quadrinhos. A importância e a relevância da personagem já lhe garantiram espaço em plataformas midiáticas diferentes dos quadrinhos. Sendo o principal exemplo disso o seu filme 198

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“Guerreiros de fogo” produzindo nos anos 1980. Nos quadrinhos, Red Sonja já protagonizou ferozes batalhas e também notabilizou pelo “crossover” protagonizado junto com o HomemAranha. Entretanto, Red Sonja não á apenas uma mulher ruiva com trajes mínimos no campo de batalha, existem muitas referências de outros tipos de guerreiros na construção desse personagem. Entre as suas discrepâncias em relação às amazonas e suas semelhanças em relação à cavalaria, surge um elemento novo, a comparação de Red Sonja com o próprio Conan, o bárbaro. Preparada para ser uma mera auxiliar nas aventuras do anti-herói, a guerreira mesmo com todo o espaço conquistado com o passar das décadas, ainda se apresenta como um correspondente feminino ao cimério. Por fim, entende-se assim com outras plataformas midiáticas merecem atenção e estudo, os quadrinhos são parte importante na construção do imaginário da sociedade atual e, dessa forma também devem ser estudados, pois, como produtos de uma determinada época, as HQs reproduzem ideias e valores do seu tempo, além de compor o um dos pilares para o entretenimento como é conhecido na atualidade. REFERÊNCIAS Armaduras disponível em http://www.armaduras.com.br/armaduras.php BOYER, Régis. Mulheres virs. In. BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de Mitos Literários; Ed. UNB, 1997. Burke, Peter. Testemunha ocular: história e imagem/ Peter Burke ; tradução Vera Maria Xavier dos Santos ; revisão técnica Daniel Aarão Reis filho. – Bauru, SP ; EDUSC, 2004 Carlos Manoel de Hollanda Cavalcanti. As mil faces do herói: o mito, o cavaleiro e suas razões androcêntricas nas HQ’s de aventura. História, imagem e narrativas. No 2, ano 1, abril/2006 – ISSN 1808-9895 Flori, Jean. Cavalaria in: Le Goff & Schmitt. Dic. Temático do ocidente medieval. Sp: edusc. 2002. HACQUARD, Georges. Dicionário da Mitologia Gregas e Romana. Lisboa: Edições ASA, 1996. LANJER, Johnni. O ensino de História Medieval pelos quadrinhos. História, imagem e narrativas. No 8, abril/2009 – ISSN 1808-9895 Red Sonja disponivel em www.wikipedia.com Red Sonja disponivel em universohq.com.br Redsonja. Whath of the gods. Dynamitte entertanmeit

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A INTERPRETAÇÃO DA ÁRVORE DE JESSÉ NA IDADE MÉDIA1 Ana Caroline dos Santos2 (UEPB) [email protected] Jôkarlla Kataryne Oliveira Alcântara3 (UEPB) [email protected] Introdução Temos por objetivo mostrar neste trabalho A interpretação da Árvore de Jessé. O que representa esta árvore e a quem está relacionada. Sabemos que o nome Jessé surgiu a partir do nome original Isai que significa “homem servidor de Jessé”; Jessé é o pai do rei Davi. Há inúmeras citações na Bíblia onde o próprio Deus remete-se a Davi e a sua descendência, é possível constatar o nascimento de Jesus a partir da profecia encontrada no livro de Isaías (11,1): “Virá um descendente do rei Davi, filho de Jessé, que será como um ramo que brota de um toco, como um broto que surge das raízes”. Em suma, a árvore de Jessé é uma representação da passagem de uma geração carnal a uma geração espiritual. A criação do Mundo É a partir do livro de Gênesis, que temos conhecimento sobre a origem do mundo. É segundo este livro que vemos a criação do homem e da mulher, o homem aqui é representado por Adão e a mulher por Eva. Deus fez o homem e a mulher a sua imagem e semelhança. Ambos foram colocados no jardim do Éder, quando Deus mostrou-lhes tudo que tinha criado, possibilitando a desfrutar de tudo que havia sido feito, exceto a árvore que estava no meio do jardim: “A mulher respondeu para a serpente: ‘Nós podemos comer dos frutos da árvore do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: ‘ Vocês não comerão dele nem o tocarão, do contrário vocês vão morrer” (Gênesis, 3,2-3 p.16). Em desobediência a Deus, a mulher se deixou influenciar pelas palavras da serpente (que aconselhara a comer do fruto da árvore proibida para a obtenção do conhecimento), visto que o fruto era apetitoso, comeu e ofereceu ao marido que também aprecio o fruto. A partir deste momento, o homem e a mulher obtiveram discernimento, ou seja, o conhecimento do bem e do mal e percebendo que estavam despidos, logo, envergonharam-se e buscaram pelo jardim alguma maneira de cobrirse: Então a mulher viu que a árvore tentava o apetite, era uma delícia para os olhos e desejável para adquirir discernimento, pegou o fruto e o comeu: depois o deu também ao

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Texto apresentado para publicação na Universidade Federal da Paraíba Aluna matriculada no curso de Letras Espanhol na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) 3 Aluna matriculada no curso de Letras Espanhol na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) 2

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marido que estava com ela, e também ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois, e eles perceberam que estavam nus. Entrelaçaram folhas de figueira e fizeram tangas (Bíblia Sagrada, p.16, 2007). O homem e a mulher ao perceberem que Deus estava no jardim sentiram-se envergonhados e logo Deus percebeu que sua ordem havia sido descumprida lançando sobre eles sua ira. Da ira de Deus e do conhecimento do bem e do mal o pecado passa de geração em geração, de descendência em descendência, desde Adão e Eva até os dias atuais. Santa Ana mãe da Virgem Maria Santa Ana foi a mãe da virgem Maria e avó de Jesus. Era filha do sacerdote Natã e de Maria. Suas irmãs chamavam-se Maria de Cleófas, mãe de Salomé e Sapé, mãe de Santa Isabel, que gerou João Batista. Casou-se com Joaquim e durante muito tempo prevaleceu estéril concebendo Maria em idade avançada. Santa Ana morreu tempo depois de Maria, aos (3) três anos de idade, ser consagrada a Deus no templo. No século XVI a igreja católica consagrou Santa Ana como padroeira das mulheres grávidas e protetora dos navegantes. O nascimento de Maria Para se chegar ao nascimento de Jesus Cristo, é preciso conhecer a sua descendente, Maria conhecida como imaculada Virgem Maria. Maria filha de Joaquim e de Ana foi fruto de um milagre, pois sua mãe (hoje concebida pela Igreja católica como santa) era estéril e não poderia dá a luz a uma criança. Maria aproximadamente aos 3 anos de idade, seus pais atendendo aos preceitos da lei judaica, foi levada ao templo em Jerusalém para ser consagrada e apresentada a Deus. Maria cresceu junto às paredes do templo humano. Maria em sua juventude acreditava muito em Deus e seguindo seus preceitos, ela queria guarda-se, e consagrar sua vida para Deus. Tudo o que ela fazia era de bom grado aos olhos do Senhor. Segundo ela, sempre que fosse fazer algo, o faria bem feito, pois como Deus deu-lhe o dom da vida, ela teria que retribuir tudo isso com perfeição. Aproximadamente aos seus 14 anos, Maria recebe em sua casa a visita de José (o qual muito lhe admirava), porém no principio ela não tinha pretensões para com José e sempre o tratava como amigo. José encantou-se pela figura de Maria, uma jovem bela, meiga e serva do Senhor. Depois de muito tentar querer viver do lado de Maria, José ao ver que a jovem guardava-se para o Senhor, decidiu pedir Maria em casamento aceitando a sua inteira preservação para Cristo. Naquele tempo as jovens judias eram obrigadas a casar cedo, em média entre seus 14 e 16 anos. Visto que Maria já alcançava essa idade José resolve pedi-la em casamento. Maria sabendo que José era um homem bom e trabalhador aceita o seu pedido, e os dois seguem uma vida casta buscando seguir os ensinamentos de Deus. Em certa tarde, Maria descansava no seu quarto quando apareceu-lhe um anjo, e falou “Alegra-te cheia de graça, o Senhor está contigo”4. Maria assustada, não esboçou reação, então o anjo falou: “Não tenhas medo Maria, porque você encontrou graça diante de Deus” 4

Evangelho de São Lucas I, 28.

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(Lucas 1,30) e revelou que Deus tinha lhe concebido um filho: “Eis que darás a luz um filho e o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado filho do altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; Ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reino não terá fim! (Lucas, 1, 31-33). Ao saber que Maria estava grávida, mesmo antes de viverem juntos, José pensou em abandoná-la em silêncio. Foi quando em sonho o anjo do Senhor lhe apareceu e falou que Maria iria conceber um filho através da ação do Espírito Santo e que José teria a missão de dar um nome a Jesus, tornando-o descendente de Davi e fazendo com que dessa maneira se cumprisse a profecia. Quando recebeu a tarefa, José a cumpriu com responsabilidade: escutou atentamente o anjo e tomou Maria como esposa. Diante dessa passagem bíblica podemos nos perguntar: Mas como pode surgir alguém pura, se sua ascendência possui pecado? Para alguns teólogos ou estudiosos da Marialogia 5, para que Jesus Cristo viesse ao mundo, ele teria que ser concebido por alguém pura, é portanto devido a vontade de Deus que surge uma virgem sem pecado e sem mancha para dá a luz a seu filho, ou seja, Maria já foi livrada do pecado mesmo antes de nascer. A isenção do pecado das origens é uma graça que somente a virgem Maria e Jesus Cristo conceberam. Isso quer dizer que Maria não foi atingida pelo pecado original e nem pelas consequências que ele poderia gerar, pois ela foi a escolhida por Deus para ser a mãe do Salvador. Mas para que Maria fosse concebida sem pecado, fazia-se necessário e justo que sua mãe, Santa Ana também fosse gerada de pais sem pecados, visto que o pecado se passa de pai para filho, teríamos a conclusão de que toda a família e descendência de Maria fosse única e exclusivamente extraída do pecado original. Mas dúvidas surgem quando pensamos sobre a existência de Adão e Eva, eles realmente existiram? E se existiram eles realmente pecaram? A descendência de Maria não vem de Adão e Eva? Essas questões podem ter inúmeras respostas vindas de estudiosos de Maria, da própria igreja, dos cientistas entre outros estudiosos. O fato de Maria não portar consigo a mancha original fez com que sua natureza humana tivesse um poderoso equilíbrio a ponto de torná-la decidida a sempre fazer o que era verdadeiro, correto e santo. Como o pecado não a escravizou Maria era portadora do entendimento e da sabedoria, o que contribuíram para que ela tivesse lucidez diante da tomada de decisões. A interpretação da Árvore de Jessé O tema que envolve a árvore de Jessé é a anunciação da vinda de Jesus Cristo para salvação da humanidade. Jessé era o pai do rei Davi que em como citamos está em vários trechos bíblicos e o nascimento de Jesus Cristo se dá pela descendência de Davi: “Virá um descendente do rei Davi, filho de Jessé, que será como um ramo que brota de um toco, como um broto que surge das raízes”. Também citado em Isaías (IX, 6) o nascimento de Cristo : “ Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre seus ombros, e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz”. A

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Conjunto de estudos teológicos a cerca de Maria

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genealogia de Jesus Cristo encontra-se no Evangelho de São Mateus no qual mostra toda a descendência de Abrão até o nascimento de Jesus: Abraão gerou a Isaque; Isaque, a Jacó, a Judá e a seus irmãos; Judá gerou de Tamar a Perez e a Zera; Perez gerou a Esrom; Esrom, a Arão(...) Jacó gerou José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo.De sorte que todas as gerações, desde Abraão até Davi, são catorze; desde Davi, são catorze(...)6

Se formos analisar literalmente o que representa a genealogia de Jesus na Bíblia no Evangelho de Lucas, o evangelista interpreta como um nascimento virginal de uma linhagem de Adão até Abraão, ou seja, a genealogia em Lucas mostra o alcance da Salvação em Jesus a partir de José, levando até a sua origem. Já no evangelho de Mateus, o seu maior interesse é em apresentar o Messias como salvador da humanidade. E a genealogia para ele era vista como uma forma divinamente aceita na descendência do Messias. Tendo conhecimento que a genealogia passada não continham nomes de mulheres, esse teria o motivo para aceitar que Jesus mesmo nascido de uma virgem, fazia parte de descendência de Davi, porque José também fazia parte, e ele foi o pai de Jesus. Na Idade Média aproximadamente nos séculos XII a representação da árvore de Jessé continha seis figuras dentre elas encontrava-se Jessé (deitado ou adormecido, brotando de suas costas uma árvore), os descendentes, a Virgem, o menino Jesus, o Espírito Santo e os profetas. Já no século e XIII a árvore modifica. Os reis antepassados de Cristo estão sentados. No século XV a árvore surge com ramos dos dois lados e os reis ocupam outro lugar. Ainda no século XV Nossa Senhora tem nos braços o menino Jesus, saindo do cálice de uma flor e envolvida por uma aureola. Antigamente o Espírito Santo era representado por sete pombos ao redor de Maria. Ainda no século XIII a direita da árvore é agregada com 12 profetas com os olhos levantados para o céu. Todas essas representações da árvore de Jessé simboliza a passagem da geração carnal (Jessé) á espirituais (Virgem e Cristo). A partir daí a Virgem Maria toma maior importância e surgem maiores devoções a Imaculada. A ideia ou a verdade da consagração foi reconhecida há muito tempo. Desde a idade média já exaltavam a Maria como pura e santa. Para que esta ideia se consagrasse foi necessário que o franciscano Duns Scoto em meados do século XIII, explicou o porque da Virgem Maria ser preservada do pecado original(o pecado de Adão e Eva). O franciscano afirmou que seria de necessidade que Deus livra-se Maria do pecado, pois como a virgem daria a luz a seu filho, Jesus. Fazia-se evidente a onipotência de Deus, preservando a Maria. A própria Maria confirma ser imaculada, Ela mesma afirma o Dogma da sua “Imaculada Conceição” quando aparece a Santa Bernadete, em Lourdes, dizendo: “Eu sou a Imaculada Conceição.” E nós costumamos afirmar o que foi dito pela Virgem Maria quando dizemos: ”Ó Maria, concebida sem pecado rogai por nós que recorremos a vós.”. São muitas as igrejas que tem a representação da árvore de Jessé. Entre elas a catedral de Seviila, onde vários sevillanos trabalharam e projetaram com cerâmicas e azulejos e na Virgem foi colocada uma coroa.

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São Mateus ( 1,2-17)

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Outra grandíssima obra localiza-se na cidade do Porto em Portugal, que sempre foi rota de comércio. Do Brasil vinham ouro e madeiras para enfeitar as igrejas locais, como é o caso da igreja de S Francisco, a igreja ostenta 200kg de ouro recobrindo o altar, colunas e pilares. O ponto mais alto da decoração é a árvore genealógica de Jessé, que mostra a descendência de Cristo (os galhos da árvore apoiam mais ou menos 12 figuras que culminam em Jesus ao lado da sua mãe e seu pai):

(I. S.Francisco, Portugal) A basílica de St Denis é uma das principais igrejas com estilo gótico, foi umas das primeiras construídas. A igreja é um enorme prédio e localiza-se ao norte de Paris. Esta igreja a demais dos valores estéticos possui também a representação da árvore de Jessé.

Representação da árvore de Jessé(Basílica St Denis, França) A igreja de Santa Maria do Castelo em Olivença pertence a território espanhol e está situada dentro do castelo de Olivença, foi construída em meados do século XIII e foi reconstruída no século XV. Também é uma das igrejas que possui a representação da árvore de Jessé: 204

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Igreja de Santa Maria do Castelo ( Olivença) Considerações Finais No trabalho exposto tentamos relatar a interpretação da árvore de Jessé, buscando informações que nos levem a um olhar crítico e um olhar representativo da genealogia de Jesus. É importante termos em mente, que o real sentido da árvore genealógica de Jessé, é o de representar por símbolos ou através de imagens, toda a descendência de Cristo desde Adão e Eva, no qual surge o pecado e trazem consigo toda uma geração pecadora na qual, o pecado é hereditário, e em um determinado momento, esse mesmo pecado rompe-se com o nascimento de uma virgem que é preservada do pecado original e dá a luz ao Salvador da humanidade. Referências Árvore de Jessé. In: Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora,2003-2012.[consultada em 03/06/12] disponível em : http://www.infopedia.pt/$arvore-de-jesse KUPKA, Claudio, P. A árvore de Jessé. Disponível em: acessado em 07/06/2012 Breviário de Isabel, a católica. Disponível em:< http://www.moleiro.com/pt/livros-dehoras/breviario-se-isabel-a-catolica/miniatura/863>acessado em 03/06/2012 ROSCHINI, Gabriel Pe. Mariologia. Disponível em acessado em 05/06/12 205

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GONÇALVES, Flávio. A na arte portuguesa. Porto, 1986. Disponível em: < http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2047.pdf> acessado em 07/06/12 DUARTE, Albert de Almeida Branco. Estudos sobre a genaologia de Jesus na arte portuguesa. Lisboa, 2000. CHRISTIAN, Duquoc.Cristologia.In: Ensaio Dogmático I.2ºed.SãoPaulo:Loyola,2008,p.17 TASKER, R.V.G. Mateus: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2008, p.24 -27 MORRIS. L. L. Lucas: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 96 – 97 BIBLIA. Genesis. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulus, 1991, p. 16.

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MORTE CRISTÃ DO MEDIEVO: UMA FORMA DE REPENSAR O CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO DIANTE DA MORTE Ana Cândida Vieira Henriques (UFPB) [email protected] Viviane Cristina Cândido (orientadora) (UFPB) [email protected] Introdução A morte enquanto fenômeno natural é caracterizada pela cessação da vida, pela falência múltipla dos órgãos vitais que compõem o complexo corpo humano. Ela se apresenta como uma realidade viva que ceifa a vida de toda a humanidade e do seu destino, o homem não consegue se esquivar. Por sermos seres mortais, estamos predestinados a este fim, a um morrer enigmático que nos amedronta durante toda a vida. O medo do desconhecido, do que há por vir, nos persegue desde nosso nascimento, nos condenando a um existir angustiante, tudo isso é inerente à nossa própria condição humana, pois está no cerne da constituição do ser. O homem, desde a época mais arcaica de existência, faz indagações acerca de sua natureza humana e divina. Esforça-se para desvendar sua origem, sua função no universo e também seu destino final. Pela sua natureza humana, é dotado de inteligência e capacidade de discernimento quanto ao que acontece consigo, com os outros e com o mundo. Sua consciência atesta a vivacidade da morte na vida, ambas se misturam, se confundem, uma começa quando a outra termina, despertando temores e angústias que perduram por toda existência humana. Nesse viés, pretendemos direcionar nosso olhar para uma investigação contextualizada acerca das atitudes diante da morte e do morrer, numa perspectiva cristã medieval. Em nosso trabalho, faremos um recorte histórico enfatizando a dimensão antropológica e cultural da morte, visando apontar as diferenças no tocante ao tratamento da morte no cristianismo medieval e moderno. Desta forma, desejamos trazer à tona um objeto oculto e estigmatizado pela sociedade contemporânea, pois o tema da morte, em nosso contexto, é sistematicamente extirpado desde as simples conversas do cotidiano até os ambientes mais propícios, como os acadêmicos, onde deveria ser abordado com mais frequência. Cristianismo: Teologia Ressurreicionista A concepção cristã acerca da mortalidade do homem atesta que a morte não é o fim, apenas uma ruptura entre as dimensões materiais e imateriais da existência humana. Para o cristianismo, a ressurreição de Jesus se tornou o dogma central da religião por ser uma verdade inquestionável e é nesse dogma que a doutrina cristã se ampara. A ressurreição 207

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simboliza a vitória da vida sobre a morte. Os preceitos cristãos conservam uma lealdade em relação ao homem para além da morte, revelando um Deus que ressuscita os mortos, que dá vida plena e abundante a todos os crentes. Desta forma, como ponto de partida, estabelece a superação da morte atenuando a angústia humana sofrida. As concepções e preceitos cristãos são amparados por uma teologia ressurreicionista que propõe uma vida posterior à morte como a verdadeira vida. Essa proposição de imortalidade vem como aporte às atitudes do homem durante sua jornada temporal baseadas na obediência. A observância de preceitos que corroborem para uma conduta ilibada favorecerá ao homem a chance de alcançar a tão sonhada salvação, e esta por sua vez, conduzirá o cristão a gozar das benesses celestiais. A doutrina cristã, ao longo do tempo, sofreu influencia quanto à ampliação da ideia de ressurreição. Algumas concepções influenciaram para tanto, como foi o caso do modelo dualista platônico e agnóstico, no qual o homem é composto por dois princípios, um espiritual (alma) e outro material (corpo). Esta noção de uma vida após a morte, a princípio, foi influenciada pelas culturas egípcia e persa. Estes povos tinham a crença numa “mansão dos mortos” 1, onde os mortos viviam como “sombras”, distantes de Deus e dos próprios homens (BLANK, 2000, p.67). Diante de tais influências teológicas, a ideia de ressurreição dos mortos surge semelhante ao que se concebe hoje com relação à ressurreição do corpo. No contexto sócio histórico do antigo testamento, ainda não se tinha um conhecimento claro e exato acerca da noção de julgamento, céu e inferno. Estes conceitos surgiram pelas constantes discussões sobre a ressurreição no início do cristianismo. A partir destes conceitos surge a noção de um “Reino de Deus”. Essa noção está atrelada a uma literatura apocalípta ricamente representada por imagens, símbolos e elementos míticos, na qual este reino é misteriosamente revelado. Essa linguagem simbólica foi facilmente entendida pelas comunidades daquela época, onde os símbolos se faziam presentes no cotidiano das pessoas. Por séculos, através da catequese cristã, foi repassado um modelo tradicional daquilo que acontece na morte do ser humano. Renold Blank (2000) sequencia muito bem esta concepção quando diz que, Na morte, a alma se separa do corpo e entra numa nova dimensão, chamada eternidade. Nesta nova dimensão, a alma da pessoa está sendo julgada por Deus no assim chamado juízo particular. Conforme o resultado deste juízo, a alma ou entra diretamente no inferno, ou, depois de ter passado talvez certo tempo no purgatório, entra no céu. Ela aguarda, numa situação de felicidade ou de tormento, a chegada do juízo final. Quando o momento deste segundo juízo chegar, acontecerá também a ressurreição do corpo e, de novo conforme o resultado dos dois julgamentos, a alma humana, agora reunida com o seu corpo, passará para toda a eternidade numa situação de felicidade total, chamada céu, ou de tormento inimaginável, chamado inferno (BLANK, 2000, p.75).

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Também conhecida como Scheol ou Xeol. Em hebraico significa túmulo, cova ou abismo. No Cristianismo, é a destinação comum de todos os homens, bons e maus.

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Blank (2000) passeia pelo campo tradicional de um modelo que colabora para atender as expectativas religiosas ensinadas e interiorizadas por gerações de cristãos. A morte, segundo a crença da maioria dos cristãos, só atinge o corpo. Esta constatação pode ser vista pela deterioração do cadáver, através das exumações. Mais como manter viva uma fé numa vida após a morte diante de um corpo sem vida? Para explicar este fato, o modelo antropológico binário – antigamente chamado de dualista - vem preenchendo esta lacuna de uma forma satisfatória. Para este modelo, a alma é imortal, constitui a essência humana, e na morte, esta alma se separa do corpo para dar prosseguimento à outra vida, agora numa dimensão espiritual sem vínculos materiais. A bíblia, por sua vez, oferece aos cristãos outra concepção antropológica sobre o fenômeno da morte. Para ela, o ser humano é uma unidade indivisível, na morte a alma não se separa do corpo. Com isso descarta o dualismo ontológico grego, baseado nos dois princípios, corpo e alma. A partir de enfoque bíblico, o artigo “Alma e imortalidade” de Herbert Haag confere essa versão bíblica quando diz que, O Antigo e Novo Testamento concordam totalmente na concepção de que Deus criou o homem como uma unidade psicofísica. Nesta unidade, que é a sua essência, Deus o destinou para uma existência incorruptível (...). Em nenhum caso, no testemunho dos textos bíblicos, a noção “alma” significa um ser puramente espiritual que, em si mesmo, independentemente do corpo já possui a imortalidade ou a incorruptibilidade. A noção “alma” é, para o antigo e novo testamento, a designação para o ser humano, que é marcado de maneira global pela sua natureza espiritual e que, por causa disso, é aberto para Deus (...) (HAAG, 1969 apud BLANK, 2000, p.82).

Com base em discussões e posicionamentos dessa natureza na teologia, chegou-se a uma nova compreensão acerca dos acontecimentos com o homem na morte. Essa nova concepção tem no seu cerne a crescente conscientização de que, de fato, a alma não pode ser separada do corpo, mas sim, entendida como princípio integrativo do ser humano. A concepção filosófica de Tomás de Aquino, de que o ser humano é uma única substância e, portanto indivisível, pois se dividida e separada, deixa de ser aquela substância, veio contribuir sobremaneira para uma superação do modelo dualista e para uma nova descoberta do modelo bíblico (BLANK, 2000, p. 82-90). A escatologia cristã contemporânea teve que enfrentar um novo desafio, formular um novo modelo que pusesse fim as contradições do modelo antigo acerca da ressurreição na morte. O grande desafio foi responder às questões relacionadas à sobrevivência do homem na morte, diante da realidade inegável do cadáver. Para tanto, novos pressupostos filosóficos e científicos elaborados nas últimas décadas do século XX, mais precisamente na década de 70, permitiram uma nova resposta a essas indagações. No novo modelo, o homem na sua morte entra numa nova dimensão atemporal chamada eternidade. Nesse momento, o tempo deixa de existir como dimensão existencial deste homem, significando que a sua morte é o fim dos tempos. Diante disso, já que não há tempo, também não pode haver nenhuma passagem transcorrida entre um acontecimento e outro. Desse modo, o momento da morte é o mesmo do final dos tempos na eternidade. Portanto, acontece como a Igreja sempre declarou, a ressurreição do corpo acontece no final 209

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dos tempos, e esse final dos tempos se realiza na morte, então ambos acontecem simultaneamente. Na visão cristã, a morte humana não representa uma aniquilação, mas sim uma profunda transformação de todo ser, tendo sua identidade total e global preservada, visto que o homem é constituído como uma única substância (BLANK, 2000, p.105-110). Atitudes diante da morte: do medievo à modernidade A morte tanto possui uma dimensão biológica quanto uma dimensão social, visto que, comporta os fatos relativos à vida humana. Ao longo dos séculos, as atitudes diante da morte e do morrer sofreram uma grande transformação sociocultural desde a idade média até os dias atuais, marcando profundamente toda a sociedade pós-moderna. Estas mudanças ocorreram de uma maneira lenta, quase imperceptível, mas de uma forma concreta, contribuindo para um quadro de negação da morte na contemporaneidade ocidental. Desde a antiguidade até a idade média, a morte adquiriu um caráter familiar e doméstico. Era encarada como parte integrante da existência humana, pois desde seu nascimento, a própria cultura já se encarregava de fornecer uma consciência de sua finitude. Na antiguidade ocidental, percebemos uma atitude paradoxal quanto à familiaridade da morte, pois ao mesmo tempo em que a consideravam familiar, praticando cultos nas sepulturas, temiam uma proximidade, mantendo os mortos a distância. Por essa razão os cemitérios eram situados à beira das estradas, fora da cidade, longe das aglomerações (RODRIGUES, 2006, p.106-107). No entanto, de acordo com Philippe Ariès (2003, p.37), “Os mortos entrarão nas cidades, de onde estiveram afastados durante milênios”. A coexistência entre os vivos e os mortos se torna real, o mundo dos vivos se mistura ao mundo dos mortos, tornando a morte cada vez mais familiar. Desta forma, igreja e cemitério se fundem, proporcionando uma convivência pacífica entre vivos e mortos. Algumas mudanças sutis foram surgindo no fim da idade média, apresentando conotações dramáticas e pessoais quanto à familiaridade tradicional com a morte, principalmente entre as classes instruídas. Segundo Ariès (2003), (...) é preciso ter presente que esta familiaridade tradicional implica uma concepção coletiva da destinação. O homem desse tempo era profunda e imediatamente socializado. A família não intervinha para atrasar a socialização da criança. Por outro lado, a socialização não separava o homem da natureza, na qual só podia intervir por milagre. A familiaridade com a morte era uma forma de aceitação da ordem da natureza, (...). Com a morte, o homem se sujeitava a uma das grandes leis da espécie e não cogitava em evitá-la, nem em exaltá-la. Simplesmente a aceitava, apenas com a solenidade necessária para marcar a importância das grandes etapas que cada vida devia sempre transpor (ARIÈS, 2003, p. 46-47).

Percebemos que existia até então uma consciência coletiva quanto à finitude humana, uma grande resignação quanto ao destino coletivo das espécies, uma consciência de que um dia morreremos. A partir do século XV é que começa uma nova concepção acerca do juízo final, o qual será concebido de forma individual e no leito de morte. Esse rito adquire um aspecto dramático, pois, carregado de emoção, o moribundo trava uma luta individual através 210

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de uma grande ação cósmica. Nesse momento, o indivíduo revê toda sua trajetória de vida, reconhecendo-se como ser único e responsável pela sua própria história. Quanto aos costumes diante da morte, estes se diferenciam entre as classes sociais, sendo essa diferenciação desde o ritual que precede a morte até o local estabelecido para as sepulturas. Um novo sentido então é dado à morte através do homem da sociedade ocidental, ela tende a adquirir um aspecto dramático quando se refere à morte do outro. Além do caráter dramático, a morte também adquire um sentido erótico através das iconografias, mais precisamente no fim do século XV. Começam a associá-la ao amor, na medida em que através das imagens o homem tem seu corpo violado. Da mesma forma que o ato sexual era considerado uma transgressão por arrebatar o homem do seu mundo racional, do seu cotidiano e lançá-lo num mundo irracional, violento e cruel, assim era também a morte. Contudo, ainda estava longe de se tornar apavorante e obsessiva, continuava familiar e domada (ARIÈS, 2003, p.64-65). No período medieval, as práticas rituais relativas à morte eram compostas por cerimônias tradicionais na qual o moribundo era a figura central. Estas cerimônias transcorriam com simplicidade, sem dramaticidade e sem exageros nos gestos emotivos. O quarto onde se encontrava o jacente tornava-se palco de uma cerimônia pública e organizada, onde a família, os parentes, os amigos e inclusive as crianças faziam-se presentes. O ritual realizava-se através de uma evocação triste e discreta do moribundo. Logo após, o mesmo pedia perdão a todos que ali estavam e os recomendavam a Deus. Em seguida, pedia perdão a Deus através de preces para depois recomendar sua própria alma. Por último, era a vez do ato sacramental, onde o sacerdote ministrava a absolvição em remissão aos pecados cometidos, aspergindo água benta no jacente (ARIÈS, 2003, p. 32-33). Os funerais eram compostos por quatro fases fundamentais. A primeira fase das exéquias iniciava-se imediatamente após a morte e era marcada pelas expressões dramáticas de dor. Consistia em atitudes carregadas de dramaticidade exagerada, pois os participantes “rasgavam suas roupas, arrancavam a barba e os cabelos, ralavam o rosto, beijavam apaixonadamente o cadáver, caíam desmaiados e, no intervalo de seus transes, faziam elogios ao defunto” (ARIÈS, 1977 apud RODRIGUES, 2006, p.105). A segunda fase consistia na absolvição do cadáver pelo sacerdote. A terceira fase era o cortejo fúnebre, no qual a família e os amigos o acompanhavam até o local da inumação. A quarta e última fase era a inumação, que consistia num curto ato sem nenhuma solenidade (RODRIGUES, 2006, p.105). Alguns costumes precediam e sucediam os funerais. Antes do funeral, os familiares tinham um cuidado todo especial com o cadáver. Eles banhavam o corpo, cortavam as unhas, aparavam o cabelo, vestiam a mortalha, entrelaçavam os dedos das mãos e colocava um rosário. Depois o corpo ficava exposto sobre uma mesa durante dois ou três dias para o último adeus dos familiares e amigos, estes por sua vez caracterizados pela vestimenta de luto. Após o funeral, eles costumavam fechar as janelas da casa, cobriam os espelhos, paralisavam os relógios, acendiam velas e aspergiam água benta pela casa. Essas eram as práticas habituais daquela época e os familiares as cumpriam religiosamente. Quanto às manifestações de luto, os familiares se vestiam usualmente com vestimentas totalmente negras e não participavam de nenhuma atividade social, até que ocorresse a cicatrização da 211

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ferida causada pela dor da perda e da separação. Todas estas interdições eram cuidadosamente respeitadas até a reintegração dos familiares à vida normal em sociedade (MARANHÃO, 1998, p.8-9). Já na contemporaneidade, as práticas e costumes antigos foram sendo tolhidas e substituídas pela proibição da dor. Esse novo comportamento tem como finalidade poupar a coletividade da dor e de qualquer ato que possa incomodá-la. O luto que era regido por regras coletivas, passa a ser relegado a iniciativa individual, exigindo do indivíduo enlutado um equilíbrio emocional quanto a expressão de seus sentimentos. Toda e qualquer expressão de exaltação emocional coletiva foi eliminada, desta forma, o luto se privatizou, sendo praticado somente pelos parentes mais próximos (RODRIGUES, 2006, p.164). A morte que era tão presente e familiar, agora se tornara vergonhosa e objeto de interdição. Ela vai sendo apagada do convívio das pessoas, vai se esvaziando quanto ao seu sentido e distanciando-se cada vez mais da vida da sociedade ocidental contemporânea. Ela se torna um tema proibido, algo inominável. Parece que essa nova atitude diante da morte tem a finalidade de preservar a felicidade, pois as pessoas não estão encontrando mais um padrão de comportamento adequado diante dela. Pela nova postura de negação da morte, a sociedade já não consegue mais suportar sua ritualização. Os ritos fúnebres foram neutralizados e modificados na sua essência com a intenção de esconder a morte. Todas essas mudanças de atitudes tiveram como causa a transferência da morte para os hospitais. Com isso, os ritos que precediam a morte foram exterminados, agora o enfermo não é mais dono do seu destino, um novo ator desponta no cenário, o médico. Ele é quem ditará as regras a partir de agora, amparado por uma tecnologia que tende a prolongar a vida, nem que para isso o enfermo viva de maneira inconsciente. Os preparativos do funeral, que antes era missão dos familiares, passam para a responsabilidade de terceiros. A família não deseja mais arrumar o cadáver como antigamente, delega essa tarefa que era tão familiar para outras pessoas que nem sequer viram nem conviveram com o morto. O cortejo fúnebre, que antes começava no seio da família, rodeado pelos parentes e amigos, transmigrou para as casas funerárias, especializadas na prestação de serviços eminentemente funerários. Se antes o defunto ficava exposto por dias na sala de sua casa, agora ele não passará mais que algumas poucas horas diante das pessoas que ali se encontram para despedir-se. Torna-se cada vez mais comum o caixão no qual o defunto se encontra ficar fechado, longe dos olhares. Uma tendência quanto ao uso do caixão, segundo Rodrigues (2006, p.114) é que “(...) a generalização do uso de caixões, em que os mortos serão fechados e subtraídos aos olhares (não se trata simplesmente da ocultação do rosto, mas da ocultação do cadáver)”. As exéquias após a morte permanecem até hoje, porém sem alguns atributos específicos do passado. As quatro fases posteriores à morte do indivíduo são o luto, a absolvição, o cortejo e por fim, o enterro. No que se refere ao luto, não carregam mais a carga dramática, que era uma atitude exclusivamente ritualizada e se dava imediatamente após a morte. Quanto à absolvição, agora se realiza com o morto e não com o moribundo. O cortejo continua sem a presença de um religioso, e com relação à inumação, não houve mudanças significativas, continua sendo realizada de forma simples, rápida e discreta (ARIÈS, 2003, p.107-109). 212

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Conclusão As atitudes diante da morte passaram por inúmeras transformações na sociedade cristã ocidental contemporânea. O temor e a negação invadiram extensões inteiras dessa civilização. Percebemos uma verdadeira revolução das práticas funerárias acontecerem a partir dos séculos XIX e XX, através de uma grande reformulação dos pensamentos e sentimentos a ela relacionada. A morte que sempre foi exaltada e desejada no período medieval vai perdendo no dia a dia todo o encantamento e valor que lhes foram atribuídos, passando a ser encarada com aparente indiferença. Apesar das mudanças lentas, percebemos claramente como o tratamento da morte no cristianismo medieval difere do tratamento moderno. Verificamos pela história da morte e pelo comportamento dos novos cristãos, desenvolvidos a partir de investigações científicas, que as atitudes diante da morte sofreram grandes alterações no decorrer do tempo que corroboraram para um quadro contemporâneo de negação da morte. Diante disso, compreendemos que a morte ocupa um lugar essencial e central em nossas vidas, justificando a importância do seu estudo para a existência humana, pois, como bem diz Edgar Morin, “É impossível conhecer o homem sem lhe estudar a morte, porque, talvez mais do que na vida, é na morte que o homem se revela. É nas suas atitudes e crenças perante a morte que o homem exprime o que a vida tem de mais fundamental”. Metodologia Como nosso objeto de estudo refere-se a um fenômeno oculto pela sociedade, fizemos uso da pesquisa exploratória quanto aos objetivos, pois a mesma visa proporcionar maior familiaridade com o problema com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses. Com relação aos meios técnicos, a pesquisa bibliográfica forneceu o suporte necessário através de livros de autores clássicos e contemporâneos. Quanto à abordagem do problema, percebemos uma relação dinâmica entre o mundo real e mundo dos sujeitos, exigindo uma compreensão dos significados do fenômeno através da pesquisa qualitativa, que nos proporciona um solo fértil para interpretações, descrições e comparações. REFERÊNCIAS ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. BECKER, E. A Negação da Morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976. BLANK, Renold J. Escatologia da pessoa: vida, morte e ressurreição. São Paulo: Paulus, 2000. MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 1998. MORIN, Edgar. O homem e a morte. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1997. RODRIGUES, José Carlos. Tabu da morte. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.

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O LIRISMO E O MISTICISMO MEDIEVAL EM ADÉLIA PRADO André Sérgio Soares Guedes Trigueiro (UFPB) [email protected]

Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (Orientadora/UFPB) [email protected]

Mesmo não sendo uma particularidade medieval, não se pode negar a dificuldade encontrada pela mulher, também nesse período, para afirmar-se ou simplesmente adentrar-se no território das letras, enquanto sujeito da enunciação. Apesar do testemunho das trobairitz, como é o caso da Condessa de Dia, percebemos que a poesia trovadoresca foi predominantemente praticada por homens. Nesse sentido, apesar dos trovadores terem, em muitos casos, exaltado as mulheres e expressado sua poética através de um eu-lírico feminino, assumindo a posição de uma delas, como é o caso das cantigas de amigo, temos, em grande parte, a voz do outro a respeito delas e não a própria voz feminina a falar e a imprimir mais fortemente o seu universo na literatura: “Ocupar o território do escrito é para a mulher da Idade Média uma grande empresa, acompanhada da consciência de uma infracção ou de uma audácia, de uma timidez ligada à incapacidade do sexo” (RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 525). Quando praticada por mulheres, a posição do eu-lírico assumia uma autoridade feminina, invertendo os papéis sexuais de objeto de desejo inatingível e exaltado, mas passivo, observado nas cantigas dos trovadores, para um papel ativo em que o eu-lírico feminino se torna o “pregador”, aquele que roga o amor do “amigo”. Contrariamente ao que acontece com a “senhora”, enaltecida por suas qualidades físicas e morais, o “amigo” ora é descrito pelo eu-lírico como um traidor, não merecedor do amor cortês, ora se torna um objeto de desejo, cobiçado e seduzido pelo eu-lírico feminino. É certo que, apesar de se constituírem uma espécie de paródia, de reverso do código de amor cortês, as cantigas das trobairitz não inovaram do ponto de vista formal e temático. Consideramos que ainda não é na literatura como a concebemos hoje e, dentro dela, na lírica trovadoresca que vemos nascer uma escrita marcadamente feminina, onde a mulher assume a consciência do ato de escrever e afirma sua identidade como autora. É principalmente na dita espiritualidade feminina ou Mística feminina medieval que vão surgir autoras mais conscientes do seu papel de escritoras, como são os casos de Hildegarda de Bingen, no século XII, e Beatriz de Nazaré, Hadewich de Amberes e Margarida Porète, nos séculos XIII e XIV. Incluímos, entre as místicas, a escritora leiga Christine de Pizan, que escreveu entre os séculos XIV e XV obras de denúncia contra o poder patriarcal, sendo considerada a primeira feminista ocidental, com sua obra A Cidade das Damas. Essas mulheres demonstravam possuir grande cultura literária e conhecimento teológico, tinham consciência do seu papel ativo na transmissão de uma mensagem divina, pois se sentiam eleitas pela graça de Deus e impelidas a escrever por uma força superior a elas que, portanto, legitimava sua produção e vocação, tinham consciência que atingiam um público específico que as incentivava e estavam conscientes de que a condição feminina 214

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implicava em oposição por parte da sociedade, o que pode ser constatado nas expressões de modéstia e humildade das quais elas faziam uso: “O espanto dos contemporâneos foi grande ao verem estas mulheres manifestarem-se no terreno teológico e abarcarem a amplitude das questões religiosas” (RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 541). Em linhas gerais, o misticismo medieval defende a união íntima e direta do ser humano com Deus através da vida contemplativa, que ultrapassa o uso da razão. É uma experiência subjetiva da alma: Mística é então, nesse contexto, discurso sobre a relação com Deus daquele que faz um percurso que implica o envolvimento num trabalho de despojamento de si, para deixar-se transformar pelo totalmente Outro que, em sua grandeza e liberdade, é absolutamente transcendente, impossível para o entendimento e o querer humanos (MARIANI, 2009, p. 371).

Através da meditação, mergulha-se no mais fundo da alma humana em busca da imagem de Deus. Já na contemplação, busca-se fundir o ser do homem com o ser de Deus. O pesquisador e tradutor Pablo María Bernardo, em uma das notas da introdução do livro Deus, amor e amante, no qual as cartas da mística Hadewijch de Amberes estão traduzidas, revela a dificuldade de se definir o termo “mística”: [...] de uso tão freqüente quanto impreciso, obriga a recordar o sentido tradicional que tem na literatura espiritual cristã. Refere-se a uma experiência de Deus de ordem interior e se relaciona estreitamente com a palavra contemplação, que expressa nova maneira de operar de espírito humano e de suas faculdades, por um dom de Deus que pode ser transitório, porém que, normalmente, vai-se enraizando no ser profundo do homem para transformá-lo e divinizá-lo (1989, p. 7).

Apesar da diversidade das formas de expressão, a mística feminina é marcada pela enunciação das experiências espirituais das mulheres em suas próprias línguas (alemão, francês, flamengo, italiano), e não em Latim. Não havia mediadores entre elas e Deus, o transmissor da mensagem. Elas comunicavam essa união e intimidade com Deus, como é o caso das beguinas, através de descrições de êxtases, relatos de visões e expressões de desnudamento da alma. Veja-se, por exemplo, o início da Carta I, na qual Hadewijch de Amberes chama a destinatária de irmã e filha: Como Deus ao passar entre nós manifestou o claro amor, outrora ignorado, iluminando com a claridade do amor todos os aspectos da condição humana, digne-se também iluminar-te e pôr-te na luz dessa claríssima claridade que o permite ser transparente, tanto para si mesmo como para seus amigos e seus amantes íntimos (1989, p. 33).

O uso da linguagem verbal, como o uso de metáforas relacionadas ao corpo e aos sentidos, não era suficiente para expressar a ligação do ser humano com o seu Criador. Por extrapolar a racionalidade, a linguagem corporal, como o grito e o pranto, era amplamente utilizada. Em muitos casos elas diziam não se sentirem aptas para a escrita, o que acentua o dom dado por Deus para escrever e realça certa espontaneidade percebida nos escritos: 215

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Os textos da espiritualidade feminina são documentos indispensáveis para a consciência de uma subjectividade. Relacionar esta última com esta linguagem de mulheres é não só escutar a palavra que circula, criadora de laços do grupo, mas também sopesar a própria existência da pessoa. O sujeito – personagem que a crítica literária contemporânea acha simultaneamente fascinante, enigmática e por vezes bem embaraçosa para o percurso hermenêutico – é rei nestas obras, ainda que atravessado e trabalhado por Deus, como muitas dessas mulheres afirmam, visitadas pela graça, submissas e ancilares (RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 583).

2. Hadewijch de Amberes e o movimento das beguinas Uma dessas místicas que se diziam visitadas de forma especial pela graça de Deus desde a infância é Hadewijch de Amberes. Ela escreveu, durante o século XIII, suas Visões, Poemas e Cartas, nas quais, com muita frequência e intensidade, fala do Amor-Deus, da Trindade e da condição humana: “Es en las Cartas donde Hadewijch puede desarrollar mejor todos los recursos de su lengua y La riqueza de su teología espiritual” (ÉPINEY-BURGARD; BRUNN, 2007, p. 165). Sua desenvoltura com a palavra e seu conhecimento geral parece indicar que ela foi educada num convento ou numa comunidade de beguinas, fato comum às crianças da época: O fato, porém, de que, junto a esta sabedoria recebida por canais sobrenaturais, demonstre tão grande conhecimento da literatura profana, a do amor cortesão, por exemplo, nos confirma que sua educação não se deu exclusivamente em ambiente fechado. Suas cartas mostram-na desempenhando a função de mestra espiritual, e suas discípulas conhecem seus dons eminentes apesar do pouco que lhe respondem. Em torno dela, calúnias, e em sua comunidade, divisões. As dificuldades não parecem terlhe sugerido, em nenhum momento, a idéia de passar a outro convento, como fizeram tantas beguinas (Bernardo, 1989, p. 8).

O período compreendido como Baixa Idade Média (século XI ao XV), sobretudo o século XII, viu nascerem novas ordens religiosas, como os Cistercienses e os Mendicantes, Ordens Militares, com o envio de Cruzadas à Terra Santa, e movimentos de contestação insatisfeitos com o espírito monástico e com a burocratização hierárquica, a opulência e o domínio do alto clero da Igreja, como foi o caso dos goliardos, dos cátaros e das beguinas. Hadewijch fez parte do movimento das beguinas nos Países Baixos, que era formado por mulheres piedosas que queriam servir a Deus e ao próximo, sobretudo à causa dos pobres e necessitados, mas não queriam estar sob o rígido controle das comunidades dirigidas por homens, como os mosteiros. Em relação à poética dessas místicas, em especial da flamenca Hadewijch, em muitos pontos se aproximam com traços da lírica trovadoresca, do ponto de vista formal e temático, como a menção à estação primaveril, da renovação da natureza, a divisão das estrofes, a variedade de ritmos, a utilização do envoi, finalizando o poema. Em relação ao tema do Amor, as pesquisadoras Georgette Épiney-Burgard e Émilie Zum Brunn observam:

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El amor (Minne) es cantado bajo aspectos que reflejan la polivalencia de esta palabra. Esse amor (feminino em neerlandés y en alemán) es presentado como una persona: dama, reina, maestra suprema, cuya fuerza y riqueza se alaban, y que impone su ley. A este tema del amor personificado se unen imágenes de la vida caballeresca: la aventura (avounture), la calbagada, la justa, la cacería donde el amor persigue y se deja perseguir. Aparecen también esos enemigos que la poesía cortesana llama los losengiers, maledicentes que tratan de destruir el amor y que, en Hadewijch, que les da una significación más elevada, son los extranjeros (vremde) que se niegan a conocer al amor y se oponen a quienes lo sirven.(2007, p.158)

3. Adéçoa Prado: “Assim na terra como no céu” 3.1 Notas sobre os traços estilísticos de Adélia Prado A escritora Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu no dia 13 de dezembro de 1935, numa pequena cidade mineira chamada Divinópolis. Casou-se com José Assunção de Freitas em 1958. Em 1973, a professora de escola pública e dona-de-casa Adélia Prado envia uma carta e os originais de seus novos poemas ao poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant'Anna, que gosta do que lê e comenta com o já consagrado poeta Carlos Drummond de Andrade. Este sugere ao editor da Imago, Pedro Paulo de Sena Madureira, que publique um livro dela. Ele recebe os originais do próprio Drummond e empolga-se com os poemas. Em 1976, com quarenta anos de idade e mãe de cinco filhos, é lançado no Rio de Janeiro Bagagem, o primeiro livro de poemas da até então desconhecida poeta Adélia Prado. A título de informação, os livros de poesia lançados por Adélia Prado até o presente momento foram: Bagagem (1976), O coração disparado (1978), Terra de Santa Cruz (1981), O pelicano (1987), A faca no peito (1988), Oráculos de Maio (1999) e A duração do dia (2010). Sobre ela, escreveu Drummond em uma crônica de 1975: "Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis” (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 2000). O comentário do poeta nos deixa antever o cotidiano e o sagrado presentes na obra de Adélia Prado. Sua linguagem é marcada pela hierofania, pelo onírico, pela espontaneidade, pela ironia, pelo humor e por certa coloquialidade, o que não exclui uma cuidadosa elaboração artística e um domínio da língua, mas que, antes, ressaltam o seu estilo e o tom da sua poesia. O conceito de hierofania, que podemos aplicar à poesia de Adélia Prado, foi definido pelo pesquisador Mircea Eliade como o ato de manifestação do sagrado para se referir a uma consciência fundamentada da existência do sagrado, quando se manifesta através dos objetos habituais de nosso cosmos como algo completamente oposto do mundo profano. No livro O sagrado e o profano (1992, p. 13), Eliade explica: Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma

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pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania.

Assim, a poética adeliana pode ser considerada uma poética mística, pois, como defende o Prof. Dr. Josias da Costa Júnior, no artigo Religião e literatura na poética mística de Adélia Prado: “É nesse sentido que a poética de Adélia Prado é religiosa, pois tem a capacidade e a sensibilidade de captar essa dimensão sagrada do mundo nas coisas mais simples e corriqueiras” (2012, p. 127). Em sua concepção de poesia, perpassa uma noção de experiência do divino através do corpo e das relações humanas. Trabalhos como do Arauto da Palavra que corta, o Poeta (2011) e O desejo no olhar: o gozo outro na poesia de Adélia Prado (1999) mostram como o corpo é assumido como um espaço sagrado. Além da relação com o sagrado, podemos perceber nos seus poemas uma forte presença do cotidiano de uma vida simples, da paisagem local, das vicissitudes da vida, da incompletude da natureza humana, do amor carnal, do erotismo, da relação entre um homem e uma mulher e do convívio entre o ser humano e seus semelhantes, partindo para reflexões mais profundas e metafísicas. Os poemas de Adélia Prado apresentam como traços estilísticos a ressignificação das palavras, a reflexão metalinguística, a sacralização do banal e a dessacralização do divino, a experiência de ser mulher e o caráter narrativo. A escritora escolheu o verso livre, e não a métrica regular, como a melhor forma para a sua expressão poética, que tem “um ritmo às vezes lento, de tom reflexivo, que se expressa ao sabor da conversa, da prosa cotidiana” (OLIVEIRA, 2012, p. 25). 3.2 A poesia oracular de Adélia Prado O poema escolhido para a análise faz parte do livro Oráculos de Maio, cujo título remete a uma ligação do plano físico com o espiritual, do mundo natural com o sobrenatural. Na Antiguidade, o oráculo poderia ser a resposta dada por uma divindade a quem a consultava geralmente acerca do futuro ou poderia se referir à própria divindade. Pode também se referir a uma palavra inspirada ou infalível. O mês de maio é associado às noivas e à Virgem Maria, sendo esta última muito aludida em alguns poemas do livro, mas pode ser associado à primavera, como tempo de renovação das flores e exuberância da natureza. O livro é composto de cinquenta e sete poemas divididos em seis seções: a primeira seção, cuja epígrafe é “Quero vocativos para chamar-te, ó maio”, tem por título Romaria e abriga a maior parte dos poemas, trinta e cinco; a segunda, Quatro poemas no divã, tem quatro poemas; a terceira chama-se Pousada e também tem quatro poemas; a quarta chama-se Cristais, com seis poemas; a quinta, Oráculos de Maio, que dá título ao livro, tem sete poemas; e a sexta e última, com apenas um poema de mesmo título da seção, Neopelicano, 218

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tem por epígrafe um versículo bíblico: “Então se lhes abriram os olhos e o reconheceram, mas ele desapareceu (Lc 24, 31)”. No poema O poeta ficou cansado, que abre o livro, podemos perceber algumas características do período medieval, especialmente as ligadas ao misticismo. Nele, o eu-lírico se coloca como o arauto de Deus, o seu mensageiro. Na Idade Média, o arauto era o oficial que fazia proclamações solenes e anunciava a guerra e a paz. O arauto é uma espécie de portavoz; é um mensageiro, aquele que carrega e anuncia uma mensagem. Anunciando-se como tal, o eu-lírico se equipara a um profeta ou místico e o poema passa a ter status de mensagem divina, passa a ser uma espécie de oráculo. Vejamos o poema: 1. Pois não quero mais ser Teu arauto. 2. Já que todos têm voz, 3. por que só eu devo tomar navios 4. de rota que não escolhi? 5. Por que não gritas, Tu mesmo, 6. a miraculosa trama dos teares, 7. já que Tua voz reboa 8. nos quatro cantos do mundo? 9. Tudo progrediu na terra 10. e insistes em caixeiros-viajantes 11. de porta em porta, a cavalo! 12. Olha aqui, cidadão, 13. repara, minha senhora, 14. neste canivete mágico: 15. corta, saca e fura, 16. é um faqueiro completo! 17. Ó Deus, 18. me deixa trabalhar na cozinha, 19. nem vendedor nem escrivão, 20. me deixa fazer Teu pão. 21. Filha, diz-me o Senhor, 22. eu só como palavras (2007, p. 9).

A intertextualidade com a Bíblia Sagrada é uma das marcas da autora. Em sua obra, é comum encontrarmos citações de versículos bíblicos e é recorrente o diálogo e a alusão a personagens e histórias bíblicas e da tradição da igreja romana (Maria e os santos). Além disso, devemos levar em consideração que o ocidente medieval era dominado pela visão de mundo da Igreja Católica Romana. Por isso recorreremos ao texto bíblico e à tradição sempre que estes forem justificados e importantes para a análise do poema. O poema é uma espécie de lamento ou queixa que o eu-lírico faz a Deus, lembrando textos bíblicos do Antigo Testamento como os livros de Salmos, de Jó e de Jonas. Neles, as personagens dirigem suas súplicas, suas queixas e seus questionamentos diretamente a Deus, que os ouve e lhes responde. Tanto o eu-lírico do poema quanto os profetas bíblicos e as místicas medievais revelam em seus escritos uma proximidade e uma intimidade muito grande com a divindade, o que os coloca numa posição privilegiada em relação aos seres humanos comuns e dão a eles uma visão de mundo diferenciada dos demais.

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No primeiro verso, a voz de enunciação feminina1 diz que não quer mais ter a função de mensageira de Deus; função que os profetas bíblicos e as místicas medievais exerciam e reivindicavam pra si em seus escritos. No terceiro capítulo do livro primeiro de Samuel, da Bíblia Sagrada, é dito: “Enquanto Samuel crescia, o Senhor estava com ele, e fazia com que todas as suas palavras se cumprissem. Todo o Israel, desde Dã até Berseba, reconhecia que Samuel estava confirmado como profeta do Senhor” (2000, p. 212). E, na Carta VII, escreve Hadewijch de Amberes: “Saúdo-te, querida, com o amor que é Deus e com o que sou eu, que também é Deus de alguma maneira” (p. 73). Nos três versos seguintes, ela questiona os motivos de ter que desempenhar essa função, já que não é diferente de ninguém e é igual a todos aqueles que podem falar. Apesar de desempenhá-la, a tarefa de levar a mensagem de Deus não era uma escolha sua; ela não tinha escolhido a direção daquele navio. O que nos remete à história de Jonas, que, ao ser mandado por Deus à grande cidade de Nínive para pregar contra ela, toma um navio em outro sentido a fim de não cumprir a ordem divina (Bíblia Sagrada, 2000, p. 735). Ela continua a contender com Deus (v. 5-8) e, com ousadia, pergunta por que Ele mesmo não realiza aquele trabalho de gritar “a miraculosa trama dos teares” - o fazer poético seria como tecer ou fabricar tecidos e o poeta é o arauto que grita para “vender” esse “tecido” poético. Já que Ele é tão poderoso e, se Ele gritasse, sua voz seria ouvida em toda e qualquer parte do mundo, por que Ele precisa de um mediador, de um ser cuja voz é limitada? Nos versos seguintes (9-16), o poeta é visto como um caixeiro-viajante, um representante comercial que viaja de cidade em cidade divulgando e vendendo um produto. Ela diz a Deus que esse tipo de atividade está ultrapassado para a presente época. Ao falar de um vendedor que oferece um canivete mágico e apresenta todas as suas utilidades e qualidades, podemos pensar no papel, na relevância e no rebaixamento do artista e da arte, e, mais especificamente, no do poeta e na poesia, nos dias de hoje. O que leva ao questionamento se ofício do poeta, tão antigo quanto o dos caixeiros-viajantes, seria ainda necessário e relevante em um mundo pragmático e de incrível progresso econômico e tecnológico. No sistema capitalista atual, até as mais variadas formas de arte são transformadas em produto e o artista torna-se um vendedor sujeito às regras e às imposições do mercado, e não aos ditames de sua própria consciência e criatividade. Nos seis últimos versos, em forma de prece (“Ó, Deus”), ela pede ao ser que lhe inspira a poesia para sair da linha de frente e fazer um trabalho mais reservado para Ele, um trabalho doméstico: ser sua cozinheira ou padeira, dando forma a um produto palpável e comestível. Em “me deixa fazer Teu pão” (v. 20), podemos dizer que temos uma hierofania. O pão não é um pão comum, mas um pão sagrado; o pão de Deus. Não sendo um ser de carne e osso e respondendo às indagações do eu-lírico, Deus diz: “eu só como palavras”. A resposta do Senhor ao eu-lírico nos remete ao Evangelho de João, que fala acerca de Jesus Cristo, o Filho de Deus, logo na sua abertura: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus” (2000, p. 847). E nos remete também ao episódio narrado nos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), no qual Jesus é levado para o deserto e é 1

Ou o eu-lírico.

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tentado pelo diabo. Ao ser desafiado por ele a transformar pedras em pães, “Jesus respondeu: ‘Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus’” (2000, p. 769). Aqui, é Deus quem alimenta o homem da sua palavra, num gesto unilateral. No poema, há uma complementaridade. O poeta é alimentado por Deus e deve alimentá-Lo. As palavras de Deus que inspiram (alimentam) o poeta-arauto e que este deve anunciar ao mundo, ao passar por ele, devem também servir e voltar como alimento para Deus. O uso de metáforas relacionadas ao ato de comer, de se alimentar, com a finalidade de expressar a relação e a intimidade com o outro, com o divino, foi também bastante explorado pelas místicas medievais, como podemos comprovar em um poema de Hadewijch (RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 578): Este laço une aqueles que amam de forma que um penetra inteiramente no outro, na dor ou no repouso ou na ira de amor, e come a sua carne e bebe o seu sangue: o coração de cada um devora o outro coração, o espírito assalta o espírito e invade-o por inteiro, como nos mostrou Aquele que é o próprio amor, tornando-se o nosso pão e o nosso alimento, e desfazendo todos os pensamentos do homem. Ele deu-nos a conhecer que nisto está a mais íntima união de amor: comer, saborear, ver interiormente. Ele come-nos, nós julgamos comê-lo, e sem dúvida que o fazemos.

Portanto, a conclusão do poema nos leva a entender que o ofício do poeta é essencial e que ele foi escolhido para uma função difícil e nobre, assim como os profetas bíblicos e as místicas medievais sabiam-se escolhidos por Deus e ligados a Ele por uma união interior, profunda e sobrenatural. Por mais que os tempos mudem, o poeta será sempre fundamental para o equilíbrio entre o mundo material e o mundo espiritual. É preciso de um mediador para que a comunicação e o ciclo não sejam interrompidos. Referências AQUITÂNIA, Guilherme IX de. Poesia. Tradução e introdução: Arnaldo Saraiva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. BÍBLIA SAGRADA: NOVA VERSÃO INTERNACIONAL. [traduzido pela comissão de tradução da Sociedade Bíblica Internacional]. São Paulo: Editora Vida, 2000. BOEHLER, G.. Poesia, teologia e gênero: Adélia Prado e Marcela Althaus-Reid em diálogo. Educação & Linguagem, Brasil, 11, mar. 2009. Disponível em: . Acesso em: 08 Out. 2011. CALADO, Alder Júlio Ferreira. O perfil instituinte do movimento das beguinas, na Baixa Idade Média. Consciência.Net, Rio de Janeiro, mai. 2010. Disponível em: 221

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A MULHER E SEU PAPEL NA LITERATURA TROVADORESCA Alba Caldeira Mello (UFMG) O Trovadorismo foi uma época pródiga em composições recheadas de pistas sobre a vida da Europa feudal. Para se entender a importância da literatura medieval seria interessante abolir preconceitos e desconstruir o conceito de que aquele tempo teria representado um período de trevas. Ainda torna-se de suma importância colocar a figura feminina (tanto de eu lírico quanto de poeta) em seu devido lugar. Para entendermos melhor a Idade Média, levaremos em consideração a dominação católica na Europa. Essa dominação não se restringe só às esferas religiosa e moral. Segundo Erich Auerbach, (AUERBACH, 1974, p. 105)1 devemos a essa instituição uma clara e viva influência na vida intelectual e social do medievo. A mulher foi estigmatizada pela Igreja como símbolo do mal, da perdição e, assim como as crianças, era um ser relegado a plano inferior ou sem expressão no imaginário medieval. A figura feminina nas chamadas cantigas trovadorescas era, basicamente, representada pelos topos da amiga, (cantigas de amigo), da amada (‘senhor’ – cantigas de amor), da soldadeira (sirventés), da jogralesa e principalmente de Maria, a mãe de Deus, a virgem venerada e compadecida (cantigas de Santa Maria). São comuns as figuras da mãe e da filha (CUNHA, 2006, p. 185)2 e das atividades que envolviam o dia-a-dia daquelas mulheres: costurar, cozinhar, rezar, cuidar da casa dos senhores, dos filhos, da limpeza das igrejas e também um eterno esperar. Esperar pelo casamento com algum nobre, se ricas; ou esperar pelo amado que se fora nas cruzadas. Também há o tema da mal casada, pois se as mulheres eram “artigos” de troca nos arranjos casamenteiros, existiam os amantes, por quem cantariam e chorariam quando o dia irrompesse, terminando assim o idílio (albas). É comum encontrar nas cantigas elementos do cotidiano medieval feminino tais como a ida à fonte, o manto com o qual cobrem o corpo ou a cabeça, a linha com que cozem, o cervo que aparece à beira do rio, a chegada do amanhecer ou a espera do anoitecer, o cantar dos pássaros (albas em galego-português), a figura dos vigias (albas provençais principalmente). Outro detalhe, mas não menos importante, no Trovadorismo é a questão do louvor à mulher casada. Segundo Rodrigues Lapa, na sua famosa obra Lições de Literatura Portuguesa, (LAPA, 1955, p. 12), além de os trovadores “endereçarem o seu grande amor a mulheres casadas: a puella da anterior poesia goliardesca dava agora lugar à domina; e os poetas desfeminizavam o objecto das suas homenagens, adoptando o termo conhecido midons < mi dominus”. Esse fato explica-se pela pouca importância social da donzela. Finalizando esta introdução, é significativo lembrar que cantigas medievais são, por excelência, do âmbito da oralidade, que não deve em nenhum momento ser desprezado. Ou seja, o ambiente de recepção eram os salões de festas dos castelos feudais, que reunia toda a 1

AUERBACH, Erich – Introdução aos estudos Literários (pp105) CUNHA, Viviane – Da Grécia antiga à România Medieval: Revista do CESP – v. 26, nº36 – jul.-dez.2006. p.185. 2

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população vizinha (principalmente nobres e agregados) em uma sociedade pouquíssimo letrada. Suas letras não eram complicadas, porém bem elaboradas e retratariam, com possível autenticidade, a sociedade em que fora gerada. Sendo assim, as repetições contínuas em público dessas cantigas, preservou-as, levando-as a serem compiladas, algum tempo depois. Na obra “A Letra e a Voz”, Paul Zumthor (ZUMTHOR, 1993, p.23), alerta, entretanto, da necessidade de nos atermos aos escritos, à importância do fato de esses textos terem sido reproduzidos, mesmo sendo textos da tradição oral. O autor chama a atenção para que busquemos sempre o texto para comentá-lo e analisá-lo, segundo fontes históricas e a própria teoria da literatura. Sendo assim, guardemos a imaginação para aproximar do contexto de sua produção, ou melhor, do momento de recepção das cantigas naquele tempo. Portanto estaríamos mais próximos daquela a quem ora mais queremos conhecer de perto, apesar de toda a distância que o tempo nos separa: a mulher medieval. Não se pretende fazer um estudo estilístico acurado neste trabalho, apenas despretensiosos comentários sobre os gêneros, seus temas e alguns símbolos recorrentes. Mulheres medievais à frente de sua época – As trobairitz Começaremos citando a importância das trobairitiz. Segundo Viviane Cunha, (CUNHA 2007, p. 35), teriam sido nobres damas feudais, pertencentes ao sudeste da França medieval, que escreviam suas cantigas em occitano (dialeto próprio daquela região). Dessas trovadoras existem 46 canções catalogadas. Os poemas reproduzem o código de amor dos trovadores no entanto, mais diretas. Dentre essas mulheres poderosas, poderíamos citar, de acordo com Martim de Riquer (RIQUER, 1999, p. 1325 a 1330), Castelozza (três composições seguramente atribuídas), Alienor D’Aquitânia, Comtessa de Dia (século XIII; a mais importante delas, com um corpus de 4 cansós) e Azalaïs de Porcairagues, cujas composições reunem um corpus considerável. Os nomes das trobairitz carregam seus topônimos, ou seja, onde teriam morado ou nascido. Essas canções possuem todos os traços do grande canto cortês, respeitando um “senhal”, com o uso de pseudônimos (chamavam o amado de ‘joglar’ e eram por eles assim chamadas). São um gênero de poesia, geralmente em forma de debate (poesia dialogada). Esse amor trovadoresco, como a tradição nos ensina, possui graus diferentes de representação, sendo revelados por etapas. São canções chorosas, cujo lamento se refere sempre a um homem a quem amam, podendo ou não ser correspondidas. Inverte-se o tema da cantiga de amor, pois o eu lírico (e o autor) é (são) femininos, e há o sofrimento de amor: a coita amorosa, própria das cantigas de amor, cujo eu lírico é sempre masculino. Enfatizamos aqui o caráter único dessa poesia: ser de autoria feminina e de ser uma poesia direta. Falando assim abertamente de seu desamor, o eu lírico se dirige ao jogral na tornada, que é o arremate da poesia. Do ponto de vista formal, percebe-se aí o uso da pontuação, para dar maior entonação à cantiga.

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A arte das soldadeiras (sirventés) As soldadeiras eram mulheres que cantavam e interpretavam em troca de pagamento, soldo, daí seu codinome. O sirventés foi um subgênero diretamente ligado às cantigas de escárnio e maldizer. Nessas cantigas há muito erotismo e mesmo palavras obscenas a respeito da sexualidade feminina, realçando a natureza pecaminosa das relações humanas. Na lírica galego-portuguesa, dentro do tema, encontramos a figura de uma soldadeira de nome Maria Balteira - Maria Pérez, uma mulher amplamente citada em cantigas de maldizer, que teria a sua existência situada no século XIII. Provavelmente, seria uma dama de índole “duvidosa” e cobiçada por homens poderosos, religiosos e invejada pelas mulheres por sua rara beleza. Com fama de prostituta, de acordo com o estudo de Ana Paula Ferreira (FERREIRA, 1993, p. 155), a Balteira, porém, consegue ajuntar fortuna e terminar seus dias com tranquilidade, recolhida a um convento, com direito a enterro patrocinado por ela mesma e com pompas de nobreza. Segundo a história, Maria Pérez teria acompanhado o rei Afonso X em sua luta contra o rei da Tunísia. Menendes Pindal acredita que o rei a usava como chamariz para suas conquistas contra os muçulmanos. Encontra-se nessas cantigas satírica a figura dos religiosos, por vezes envolvidos com o amor, normalmente sendo injuriados pelos trovadores, revelando uma forte crítica ao clero. Além disso, existe nessas cantigas uma variedade de símbolos atribuídos ao relacionamento sexual, tendo em vista a fama da mulher que é cantada. Aqui a figura da mulher é rechaçada, conforme o código da poesia trovadoresca satírica em vigor. Em composições de outros autores como Pero da Ponte, Fernan Velho, Pero Garcia de Burgalez dentre outros sátiros, há uma certa reincidência dos termos: madeira, dados, adubar, maleta, cadeado – possivelmente, alegorias sexuais, remetendo às funções da dama mal falada. Cantigas de Santa Maria – a poesia religiosa Existe um corpus de 420 cantigas catalogadas nesse estilo. Dentre os principais nomes de poetas destacamos os nomes de Gautier de Coinci (precursor dos milagres – compôs canções paralitúrgicas) e o de Afonso X (O Sábio), dentre vários. O eu lírico pode ser um padre ou mesmo um jogral que na hierarquia trovadoresca era considerado inferior ao trovador. Nessas cantigas a figura de Maria é ligada aos milagres que realiza entre os jograis e as pessoas que peregrinavam, por exemplo, pelo caminho de Santiago. É uma poesia de cunho religioso que fez grande sucesso, que pode ser justificado pelo grande número de exemplares encontrados. Costurando e tecendo seu destino - As canções de tela Por trazerem em seu cerne episódios narrativos de guerras são também chamadas de chansons d’histoire. Algumas foram encontradas em romances conhecidos da Idade Média, tais como o Guillaume de Dole e o Roman de la Violette. Acredita-se que as chansons de toile sejam uma criação aristocrática, porém difundidas popularmente. O eu lírico dessas composições são nobres damas aristocráticas, e as canções são narradas em terceira pessoa, 226

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sendo algumas dialogadas. A língua em que essas cantigas são mais encontradas é o langue doil. Em uma dessas canções de tela temos o tema de uma moça que trabalhava em um quarto, e conta-se que chorava ao fazer trabalhos de agulha na torre do castelo. Embora haja um narrador em terceira pessoa, nas estrofes seguintes aparece o diálogo dela com a mãe, quando relata seu amor e que, provavelmente, estaria grávida de seu amado. A moça está sonolenta em seu trabalho, despertando assim a curiosidade materna. A mãe pede para a filha mostrar o seu corpo, constatando assim a gravidez já adivinhada. Ao ser inquirida se o moço seria capaz de desposá-la, ela responde não saber. No decorrer da cantiga a mãe a exorta a procurá-lo e a jovem obtém dele, finalmente, o esperado pedido de casamento. Aubes: Albas – manhãs indesejadas As albas são cantigas medievais (provençais, espanholas, alemãs e galegoportuguesas) em que o despertar dos amantes se dá por meio de um aviso de um vigia ou pelos pássaros de que os primeiros raios da manhã anunciam um novo dia. Em língua portuguesa pouco há, em termos de bibliografia, a respeito desse gênero trovadoresco. Em algumas tradições europeias (galego-portuguesa) a figura do vigia é substituída pelo pousar ou o cantar de um pássaro próximo à janela dos amantes. Talvez, o mais famoso diálogo da história literária seja o diálogo entre Romeu e Julieta, em que os amantes prenunciam seu afastamento ao ouvirem o canto de uma cotovia, desejando fosse o de um rouxinol, pássaro que possui o hábito de cantar à chegada da noite. Essa separação é marcada, provavelmente, pela incerteza do reencontro. O homem medieval ia para as lutas, e a mulher não escolhia com quem se casava. Um mau casamento, em termos sentimentais, era o mais comum naquela época, conforme a literatura e a história nos atestam, pois feito em torno de interesses alheios a si, os jovens não poderiam questionar. Dentro desse contexto um amor adúltero poderia facilmente se constituir. Entretanto, temos também as albas com indícios de soldados prontos a se levantar para as cruzadas ou defender seus superiores, em que os mais valentes correm a avisar aos que ainda dormem, ou encontram-se ainda sonolentos. Não apenas “virgens, viúvas e esposas” Finalizando este breve estudo, a imagem de mulher que triunfa na Idade Média é, sem dúvida, aquela que retrata a sua castidade e opõe à figura da mulher “perigosa e feiticeira”, tão propalada naquele tempo. No entanto, a literatura ‘lembrou-se’ de contribuir com a poesia para que soubéssemos hoje um pouco mais do universo feminino, desmitificando um pouco essa imagem redutora de mulher, que temos notícia. Mesmo que nessa literatura a figura feminina esteja, quase que constantemente, ligada ao religioso, ao amor proibido, ao espaço no castelo, às atividades cotidianas e à “antítese santa/prostituta”, o feminino perpassa também o trabalho autoral, como visto neste artigo, o que demonstra existirem mulheres intelectuais que conseguiram fazer frente à hegemonia clerical masculina do medievo. 227

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O CONTRASTE ENTRE A MULHER RELIGIOSA E A FEITICEIRA EM MEMORIAL DO CONVENTO Ana Flávia da Silva Oliveira (UEPB) [email protected] Aldinida Medeiros (UEPB) [email protected] O romance histórico possibilita uma nova forma de ver a História, porque, entre outros aspectos, põe em cena novos personagens que ficaram à margem da versão oficial da historiografia, apresentando, assim, grande importância para a literatura atual, mais que isto, é um gênero que tem estado em evidência na contemporaneidade. E tem como uma de suas principais características, trazer para a prosa de ficção o componente híbrido que constitui romance e História. O Memorial do Convento (1999), objeto de análise de nosso trabalho, é um dos romances históricos de José Saramago de maior destaque no âmbito da literatura de língua portuguesa. Percebemos que nele, predomina, dentre outros aspectos, o dialogismo social3, que da voz aos excluídos, tal como Blimunda e Baltasar, conforme veremos adiante; e o hibridismo, através dos quais se juntam ficção e realidade para mostrar “[...] uma outra versão da mesma História, tantas vezes ouvidas e decoradas.”(MARINHO, 1999, p. 234). O romance apresenta o fato histórico da construção do Convento de Mafra, edificado no século XVIII no decorrer do reinado de D. João V, e traz várias figuras históricas, mas dentre elas o nosso estudo aborda a personagem da rainha D. Maria Ana Josefa, retratada na obra como uma mulher submissa e religiosa e, buscando na história a veracidade, mas também propiciando as teias da ficção, este romance nos permite ainda evidenciar a figura de Blimunda, personagem criada pelo autor, dotada de poderes sobrenaturais, que em destaque como personagem e em características, contrapõe-se à figura da rainha. Sabendo-se que os estudos sobre o romance histórico contemporâneo apontam a focalização heterodoxia e a desconstrução de referentes como algumas das muitas características deste gênero, buscaremos, em Memorial do Convento (1999), evidenciar duas “forças místicas” distintas: a fé da rainha – motivo da construção do convento – e o lado místico daquela que a Igreja4 considera como feiticeira, Blimunda, sendo as duas personagens femininas de maior destaque no romance. Com isso, elucidaremos aspectos de como o romance histórico contemporâneo de José Saramago faz a sua releitura da história, considerando-se que “[...] o pano de fundo histórico introduz-se na trama graças à presença das personagens históricas, mesmo que em posição secundária. [...]”. (ZILBERMAN, 2003, p. 122). 3

O conceito de dialogismo social que adotamos em Memorial do Convento é o mesmo estudado pelo teórico russo Mikhail Bakhtin, que se refere às varias vozes sociais que dialogam, de forma, divergente, entre si em cada discurso. 4 Todas as menções se referem à Igreja Católica.

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As personagens femininas subvertem a ordem de destaque no romance de Saramago. Diferente do que acontece no seu congênere tradicional, a rainha não é a mulher forte e destemida da história; estas características são atribuídas à personagem Blimunda, representante da classe popular. O contraste constantemente marcado entre Baltazar e Blimunda, D. João e D. Maria Ana, representa a existência simultânea de duas historias, a oficial e a anulada, a conhecida e a desconhecida [...]. A História que Saramago constrói, difere da repetição mais ou menos romanceada do estabelecido, para da voz [...] a uma focalização tão heterodoxia quanto subversiva – a edificação do convento de Mafra não mostra só a riqueza do rei, mas também e, prioritariamente, a exploração dos trabalhadores. (MARINHO, 1999, p. 237).

O que percebemos aqui é que há um contraponto entre as duas principais personagens femininas. A rainha é vista como uma mulher submissa, medrosa e beata, que vive para satisfazer as vontades do marido. Acreditando que nasceu para ser rainha e que nada poderia mudar seu destino, D. Maria Ana vê, em um determinado momento na doença do marido e na sua morte, se viesse a acontecer, a possibilidade se livrar daquela vida monótona que levava. A verdade é que ela tinha grande simpatia pelo cunhado, o infante D. Francisco, irmão de D. João V, com quem sonhava frequentemente. Para ela, tais sonhos, “[...] são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem ao confessor confesso, [...].” (SARAMAGO, 1999, p. 112). No entanto, casando-se com o cunhado, por conseguinte à possível morte do marido, não se livraria do seu destino, o de ser rainha, visto que a intenção de D. Francisco era tornar-se rei, ao passo que D. Maria Ana continuaria com seu título de nobreza. No decorrer da narrativa, D. Maria Ana expõe os seus sentimentos de mulher conformada e sem personalidade, como mostra o trecho a seguir: [...] Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o meu marido, não vá ser pior outro que venha [...], Maus são todos os homens, a diferença só está na maneira de o serem [...]. (SARAMAGO, 1999, p. 112).

É importante ressalvar que o casamento real foi arranjado, por motivações políticas, como era costume àquela época, portanto, ela teve que se adaptar ao novo país visto que seu país de origem é a Áustria. O narrador, na primeira frase do romance a descreve ironicamente: “D. João, [...], irá esta noite ao quarto de sua mulher, D Maria Ana Josefa, que checou a mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.” (SARAMAGO, 1999, p. 11). A partir desse fragmento é possível se ter uma imagem de como viria a ser construída a personagem no decorrer da narrativa. A religião não só serve de justificativa à postura da rainha, como também comanda, orienta e direciona-a em suas funções, na condição de mulher, sendo ela religiosa em uma época em que a Igreja ditava as regras de boa conduta das famílias, apontando como elas deveriam ou não agir, o que, indiretamente, significa afirmar que ao homem era ou é dado o poder absoluto e a mulher apenas o direito de procriar, tanto é, que o casal vivia em aposentos 230

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separados, só se encontrando duas vezes por semana para cumprir, ele porque é compromisso de marido, com suas obrigações conjugais, para eles um “simples” ritual. Mesmo sendo algo comum para época, a submissão da rainha ao marido5 é de tal modo exagerada que acredita ela não desejar nada além do que deseja o rei, como ilustra a passagem que segue, na qual o narrador descreve “uma noite de amor” do casal: Vestem a rainha e o rei camisas compridas, que pelo chão arrastam, a do rei somente a fímbria bordada, a da rainha bom meio palmo mais, para que nem a ponta dos pés se veja, o dedo grande e os outro, das impudicícias conhecidas talvez seja esta a mais ousada. D. João V conduz D. Maria Ana ao leito, leva-a pela mão como no baile o cavaleiro à dama, e antes de subirem os degrauzinhos, cada um de seu lado, ajoelham-se e dizem as orações acautelantes necessárias, para que não morram no momento do acto carnal, sem confissão, para que desta tentativa venha a resultar fruto, e sobre este ponto tem D. João V razões dobradas para esperar, confiança em Deus e no seu próprio vigor, por isso estar dobrando a fé com que ao mesmo Deus impetra sucessão. Quanto a D. Maria Ana, é de crer que esteja rogando os mesmos favores, se por ventura não tem motivos particulares que os dispensem e sejam segredo do confessionário. (SARAMAGO, 1999, p. 1516).

Tomando o trecho citado, deve-se ressaltar que o casamento real está em função de se manter o poder monárquico, uma vez que as obrigações matrimoniais, como denomina o narrador, tinham por objetivo gerar o filho desejado para a sucessão do trono. Já no que se refere à Blimunda, esta é uma mulher que foge aos padrões, ao tipo comum da época: é guerreira e não teme os desafios impostos pela vida pobre e “injusta” que leva ao lado do marido Baltasar. O casal pode representar o amor de forma simples, assim como tantos casais das camadas populares que se unem por um amor verdadeiro, sem as imposições dos interesses. A jovem conheceu aquele que seria para sempre o grande amor da sua vida no mesmo dia em que a mãe foi para a África. A união desse casal foi abençoada pelo padre protetor, Bartolomeu de Gusmão, que recebe esta denominação por proteger Blimunda, para que seus poderes não fossem descobertos pelos inquisidores, e o casal passou a morar junto, mesmo sem os ritos religiosos e sociais do casamento, a partir do dia em que se conheceram, não se preocupando com convenções religiosas nem sociais. E, ao contrario do que acontecia com a rainha, as descrições das relações amorosas do casal são totalmente diferentes, por que aí destaca-se uma relação em que a entrega é mútua em função de um amor que surgiu de uma forma mágica e inexplicável. A união foi consumada em uma cena repleta de simplicidade, mas que não se compara, em termos de cumplicidade, ao que acontece no leito real, como nos mostra o seguinte fragmento: [...] Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar onde durmo, Comigo. 5

Embora seja século XVIII, os vestígios Medievais se fazem presente na relação do casal real, reconstituída por Saramago, ainda se encontra sob os moldes da Idade Média.

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Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornaram muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue. (SARAMAGO, p. 54-55).

Como é possível perceber, o narrador faz um jogo sinuoso quando intercala a descrição da relação do casal com os conflitos existentes além daquele ambiente, os conflitos da guerra. É como se o narrador considerasse e/ou pretendesse demonstrar que enquanto do lado de fora o sangue derramado destrói e separa pessoas, do lado de dentro o sangue sela uma união que jamais seria desfeita. Como mostra o estudo desenvolvido por Cristina Vieira, acerca da construção da personagem romanesca, mais especificamente no que se refere ao Processo Narratológico, – entende-se por processo narratológico as diversas categorias que compõe o texto narrativo, dentre eles, o ato em si de contar, ou seja, a narração, – vários são os procedimentos pelos quais se constrói uma personagem. Para autora a personagem pode ser definida, dentre outras coisas, pela a ação a qual ela vai executar, em outras palavras, a ação cria a personagem no sentido de que se ela for de grande impacto o personagem certamente crescerá dentro dela. Sendo assim, “a personagem romanesca pode, portanto, ganhar maior autonomia face à acção.” (VIEIRA, 2008, p. 236). Isso porque, [...] a acção é um macro-processo narratológico sempre responsável por parte da construção de qualquer personagem romanesca. Até a obra centrada na mundividência do protagonista continua a sujeitar este ao processo construtivo da acção, mesmo que esta acção seja caótica ou rotineira, [...]. (VIEIRA, 2008, p. 234).

Interessa-nos aqui, todavia, a diferenciação que ela apresenta entre personagem protagonista e secundária. Nesse sentido Blimunda pode ser considerada a protagonista do romance, pois é uma personagem autônoma, responsável pelo andamento das sequências que protagoniza e ainda ocupa lugar de destaque em algumas ações secundárias. Isso se justifica pelo fato de que “os protagonistas vão-se destacando das demais personagens por aparecerem em sequências que dispensam a comparticipação de outras personagens, [...].” (VIEIRA, 2008, p. 241). Enquanto isso as personagens secundárias e as figurantes não detêm tão grande autonomia no interior da narrativa. A maior amostra da autonomia da personagem que representa a classe popular do Memorial do Convento (1999) se dá quando Baltazar desaparece na passarola. Blimunda passa a dedicar seus dias a procurar seu grande amor e durante nove anos a procura se deu de forma incansável e com uma garra e vontade que sua história seria tida como eminentemente verdadeira e não fictícia, se não soubéssemos que se trata, tão somente, de uma criação do autor. Porém, para Saramago “fingindo, passam então as histórias a ser mais verdadeiras que os casos verdadeiros que elas contam,” (SARAMAGO, 1999, p. 134). Daí é possível concluir que a história da heroína pode ser tão ou mais verdadeira do que a mais verdadeira das histórias. Tudo isso pode ser percebido a partir da leitura do seguinte trecho: 232

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Durante nove anos, Blimunda procurou Baltazar. Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, abranda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer. Tisnou-se do sol como um ramo de árvore retirado do lume antes de lhe chegar a hora das cinzas, arregoou-se como um fruto estalado, foi espantalho no meio de searas, aparição entre os moradores das vilas, sustos nos pequenos lugares e nos casais perdidos. (SARAMAGO, 1999, p. 343).

A busca solitária de Blimunda, também caracteriza sua condição de protagonista, dentro do que Cristina Vieira expõe sobre personagem protagonista. Para esta teórica “Este procedimento [a sequência de longos passeios solitários] é amplamente usado na construção dos protagonistas dos romances do romantismo europeu, assolados por densas solidões” (VIEIRA, 2008, p. 241, acréscimo nosso). Percebemos então que esta é uma característica que persiste nos romances históricos contemporâneos. Assim, ao contrario da rainha, que via na morte do marido uma “porta” para a liberdade, ela não podia imaginar sua vida sem Baltazar o qual, na verdade era a razão de seu viver, e o sonho de encontrá-lo com vida era o que a mantinha viva. E nem a idade, já avançada, a impede de cruzar um país de ponta a ponta sem nenhuma companhia e dependendo da boa vontade das pessoas que a encontravam pelo caminho. É importante frisar que a personagem se completa ou não através da ação, portanto, Cristina Vieira defende “que a sequencialização do romance se deve à personagem, e não propriamente à intuição do leitor.”. (2008, p, 243). Por esse motivo, o relevo que Blimunda obtém está diretamente relacionado com o planejamento da ação. E, como o romance em estudo é, ou foi, planejado para desconstruir o seu referencial histórico, pode-se constatar que são as ações, pensadas e estruturadas pelo romancista, que dá a dimensão do alcance que obterá a personagem. No caso de Blimunda, ela torna-se protagonista porque as ações das quais ela participa foram elaboradas para serem desempenhadas por um personagem que não seria outra coisa se não o/a protagonista, já que o objetivo é reverenciar o lado popular da História. Se por um lado cabe a Blimunda o papel de protagonista, por outro lado é a rainha que desempenha o papel de personagem secundária, porém, ela não pode ser considerada antagonista da feiticeira, também chamada Sete-Luas. Isso porque, segundo Vieira (2008), a personagem antagonista deve ocupar um lugar equivalente ao do protagonista em ações opostas dentro da narrativa, o que não acontece nesse caso, pelo contrário, o espaço que a personagem real ocupa é o de personagem secundária juntamente com as demais personagens que compõe a classe da realeza o que a torna ainda mais irrelevante dentro da narrativa. Daí observarmos, conforme Vieira, que “a participação de uma personagem em ações secundarias, funcionado como mero suporte das principais, faz dela uma personagem secundária.”. (VIEIRA, 2008, p. 247), o que significa dizer que a personagem da rainha só existe para justificar uma referência histórica e, consequentemente, a presença de uma outra personagem que inverte a ordem do destaque, ofuscando o status que a alteza tem no plano social, no caso Blimunda. 233

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A focalização é um dos fatores responsável pela subversão da ordem, no que se refere ao relevo das personagens, principalmente em se tratando de romances contemporâneos em que se enfatiza a focalização múltipla. Porém, é a focalização heterodoxa que, segundo Vieira (2008), predomina de forma exclusiva no romance moderno e contemporâneo, e podemos considerá-la, no romance de Saramago, como o processo narratológico utilizado pelo narrador para subverter a ordem das personagens femininas, pois para a teórica essa focalização “constrói sempre personagens apócrifas, que fogem aos modelos canônicos familiares ou relevantes para uma sociedade, sejam esses modelos políticos, econômicos ou outros.” (VIEIRA, 2008, p. 305). Percebe-se, portanto que, enquanto a focalização múltipla se faz presente no Memorial do Convento (1999), dando vozes tanto aos personagens referenciais quanto as puramente fictícias, a focalização heterodoxa inverte a ordem dentro do contexto narrativo não só das personagens, mas também dos acontecimentos, colocando em primeiro plano a história popular fictícia ao invés da história real oficial. É, justamente, o que acontece com D. Maria Ana Josefa e Blimunda, duas personagens em que a segunda, fazendo ela parte da classe popular, normalmente não seria colocada em primeiro plano, esse espaço caberia a primeira personagem por ser esta, teoricamente, a mais importante na história. A ordem de seus lugares sociais dentro da narrativa é invertida. A mulher do povo, Sete-Luas, ganha status de rainha, isso do ponto de vista do narrador e da elaboração das sequências narrativas. Desse modo, a verdadeira rainha, personagem verídica da história, é posta como personagem secundária. Isso só é possível de ocorrer porque a focalização heterodoxia “permite que personagens individuais ou colectivas habitualmente marginalizadas ganhem estatuto diferencial, relegando para segundo plano diegético personagens a que habitualmente seria dado o relevo principal: [...]”. (VIEIRA, 2008, p. 305). Logo, podemos dizer que a inversão de destaques que há entre Blimunda e a rainha acontecem pela focalização heterodoxa propagado pelo narrador e autor Saramago, pois, esta “[...] constrói, [...] personagens apócrifas e inverte a ortodoxa distribuição dos relevos diegéticos. [...].”. (VIEIRA, 2008, p. 305). Outro ponto que devemos considerar é a posição da Igreja em relação às duas personagens. A rainha, por ser devota, temer e respeitar as leis da Igreja, é, possivelmente, considera a mulher ideal, a esposa perfeita, que dedica ao marido à mesma devoção que consagra ao próprio Deus. Por mais que esse seja um perfil típico dos casamentos reais da época, o leitor atento perceberá a crítica de Saramago à subordinação mantida pela Igreja. O trecho a seguir delineia bem os anseios religiosos da rainha: [...] D. Maria Ana, como razões acrescentadas de recato, tem a mais a maníaca devoção com que foi educada na Áustria, e a cumplicidade que deu ao artifício franciscano, assim mostrando ou dando a entender que a criança que em seu ventre se está formando é tão filha do rei de Portugal como do próprio Deus, a troca de um convento. (SARAMAGO, 1999, p. 31).

Quanto a Blimunda, essa nunca se preocupou em respeitar as convenções sociais e muito menos as impostas pela Igreja. Não conhecia perigos em suas ações, a sua união 234

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ilegítima e transgressora com Baltasar representa a sua ousadia e coragem, se pensarmos que viviam em uma época em que a inquisição pregada pela Igreja punia, quase sempre com a morte, todos que não seguissem seus mandamentos. E mesmo ela tendo sido vítima indiretamente da inquisição, uma vez que sua mãe foi condenada, não se submeteu a tais comandos. A protagonista, entretanto, contou com o fato de ter sido considerada louca pela Igreja, principalmente quando ela passou a procurar incansavelmente seu marido, após ele ter levantado voo acidentalmente na maquina voadora. Mas, desde cedo, Blimunda era “mau vista” pela ordem religiosa. Sua mãe foi condenada, pela inquisição, por bruxaria e, por conseguinte, Blimunda passou a ser alvo de desconfiança por parte do poder religioso. Foi graças à proteção do padre Bartolomeu que seus poderes sobrenaturais não foram descobertos. Dessa forma a inquisição não chegou até ela. Nos tempos de andanças, em que Sete-Luas “[...] já era conhecida de terra em terra, a pontos de não raro a preceder o nome de Voadora, por causa da história que contava. [...]” (SARAMAGO, 1999, p. 343), a Igreja tentava se aproximar e subordiná-la aos seus preceitos, porém, ela não aceitava, recusava-se, por exemplo, confessar-se: [...] A esses mandava dizer que fizera promessa de só se confessar quando se sentisse pecadora, não poderia encontrar resposta que mais escandalizasse se pecadores todos nós somos, porém, não era raro que falando sobre isto com outras mulheres as deixasse pensativas, afinal, que faltas são assas nossas, as tuas, as minhas se nós somos, mulheres, verdadeiramente, o cordeiro que tirará o pecado do mundo, no dia em que isto for compreendido vai ser preciso começar outra vez tudo [...]. (SARAMAGO, 1999, p. 344).

Enfim, a forma particular como Saramago elabora a personagem, chama a atenção pela sua sensibilidade. Sensibilidade esta que não é sinônimo de fraqueza, pelo contrário, enquanto retribuía com afeto e gratidão aos que lhe faziam o bem, também se defendia corajosamente daqueles que tentavam fazer-lhes o mau. Basta nos recordamos da primeira noite em que ela passa fora de casa, quando sai a procura de Baltasar, vendo-se obrigada a matar um frade para defender a sua honra, ocasião em que se refugiou nas ruínas de um convento, após ter constatado que Baltasar havia de fato desaparecido e tendo a protagonista recuperado apenas os seus pertences, acreditando ela estar em segurança por ter sido o lugar recomendado pelo próprio frade, ainda no cair da tarde quando a encontro-o solitária a vagar pela estrada desabitado. Ao mesmo tempo em que se mostra guerreira e destemida, é uma mulher afetuosa, que encontra no amor por Baltazar toda a força que necessita para lutar por justiça, sinônimo de liberdade. Sua busca infatigável por seu amado, ocasionada pelo desaparecimento do mesmo, não a torna fraca nem submissa, ao contraio, serve mais para mostrar que os dois eram, verdadeiramente, felizes e sem ele a vida parece perder toda a graça, no entanto, não perde a razão, porque ela transforma a procura em sua razão de viver. Enquanto D. Maria Ana Josefa acreditava está no “desaparecimento” do marido um “caminho” para a felicidade, Blimunda nunca desistiu de Baltasar, em sua caminhada, muitas vezes foi maltratada, mas ao invés de se virar contra a quem a maltratava retribuía ajudando a essas pessoas. A Voadora nunca se abateu e, afinal de contas, foi essa força de vontade e o seu 235

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amor por Sete-Sóis que fizeram com que alcançasse o seu objetivo maior. Blimunda o encontrou nove anos após o seu sumiço. Baltasar havia sido capturado pelos inquisidores, e na ocasião em que o reencontro, na sétima passagem por Lisboa, estava sendo cumprida a sua sentença em um auto-de-fé, ele seria queimado na fogueira. “E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar SeteSóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Bluminda.”. (SARAMAGO, 1999, p. 347). O que podemos perceber na construção das duas personagens é uma clara e consciente manipulação das ações, por parte do romancista, com o objetivo de (re)escrever a história partindo de um pressuposto de que se vai mostrar o lado de quem “fez” realmente a história e não o lado de quem “a escreveu”. O embate ente a mulher nobre, devota da fé cristã-católica e a mulher considerada feiticeira, a mulher simples, da classe popular é evidente e marca o contraste no romance histórico de Saramago. A construção do convento de Mafra é a história oficial, “escrita” que Saramago resgata, porém a história só existe porque alguém construiu o convento, e esses foram os populares, portanto quem fez a história acontecer. Sendo assim, a heroína do romance se ajusta a essas ações para dar significado real aos acontecimentos, imortalizando, dessa forma, uma classe que encontra na literatura o lugar e o destaque que não lhes foi dado na historiografia. REFERÊNCIAS ESTEVES, Antônio R. O romance histórico: origem e percursos. In.: ______. O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). São Paulo: Ed. UNESP, 2010, p. 30-43. GOFF, Jacques Le. Memória. In.: ______. História e Memória, v. II. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 09-59. (Coleção Lugar da História). HUCTHEON, Linda. Metaficção historiográfica: “o passado do tempo passado”. In.: ______. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991, p. 141-182. ______. A intertextualidade, a paródia e os discursos da História. In.: HUCTHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991, p. 163-182. MARINHO, Maria de Fátima. O romance histórico em Portugal. Porto: Campos das Letras, 1999. PASERO, Carlos Alberto. Metaficción e imaginário social del la novela histórica em “Memorial do convento” de José Saramago. In.: BOECHAT, M. C. B.; OLIVEIRA, P. M.; OLIVEIRA, S. M. P.(Orgs.). Romance histórico: recorrências e transformações. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2000, p. 161-177. SARAMAGO, José. Memorial do convento. 24. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. SOARES, Maria de Lourdes. O romance de José Saramago: um novo paradigma do romance histórico?. In.: BOECHAT, M. C. B.; OLIVEIRA, P. M.; OLIVEIRA, S. M. P.(Orgs.). Romance histórico: recorrências e transformações. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2000, p. 203-215. 236

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VIEIRA, Cristina da Costa. Processos narratológicos. In.: ______. A construção da personagem romanesca. Lisboa: Colibri, 2008, p. 227-325. ZILBERMAN, Regina. O romance histórico – teoria & prática. In.: BORDINI, Maria da Glória. (Org.). Lukács e a literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 109-139. (Coleção Teoria da Literatura; 1).

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NO DIA QUE ROLAND FALOU COM SOTAQUE NORDESTINO Caroline Sandrise dos Santos Maia (UFPB) [email protected] Nilma Barros Silva (UFPB) [email protected] Wanderson Diego Gomes Ferreira (UFPB) [email protected] Beliza Áurea Introdução O presente trabalho discorrerá sobre a narrativa de Roldão no folheto de cordel e sua tradição discursiva, ligada à memória da La Chanson de Roland, canção de gesta medieval francesa, revisitada por várias literaturas da idade média, entre elas o romanceiro, no século XIV. A Canção de Rolando é parte do núcleo narrativo Carolíngio, que tem Carlos Magno e os doze pares de França como tema fundante. Discutiremos a desterritorialização de Rolando e sua reterritorialização como Roldão, nos sertões nordestinos. Vale relembrar que o poema da canção de gesta pontua o fim heroico dos pares e de Rolando, sobrinho de Carlos Magno, que morrem ao lutar contra os sarracenos na batalha de Roncesvales. A Canção é baseada numa batalha real que ocorreu em 15 de Agosto de 778 entre a retaguarda do exército Franco, comandada por Rolando, e um grupo de montanheses bascos. Apesar de a Canção ter como pano de fundo uma história real, alguns fatos não foram reproduzidos com fidelidade, ou seja, o cancioneiro utiliza-se de sua liberdade poética para acrescentar e/ou suprimir fatos, visto que não tem compromisso com o fato real. Sendo assim, ele trabalha a partir da lembrança, fazendo com que o poema passe a contar a trama pelo fio da memória e por ser literatura pode ser centrado em devaneios, acoplando na canção elementos do imaginário medieval. Podemos citar como exemplo desta modificação na Canção, o fato de que os bascos passam a ser representados como muçulmanos, alguns nomes foram modificados e certos personagens foram acrescentados. No dia que Roland falou com sotaque nordestino A temática da literatura de cordel é diversificada, tudo é motivo para os cordelistas escreverem seus versos, basta que tal tema seja interessante para seus leitores. Segundo Câmara Cascudo, a História de Carlos Magno e os doze pares de França, retratada na Canção de Rolando, foi um dos livros de cabeceira dos grandes poetas do passado. Essa era uma leitura frequente nas fazendas e engenhos nordestinos, familiares, amigos e empregados reuniam-se no fim do dia para ouvirem as histórias lidas muitas vezes pela única pessoa 238

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alfabetizada do lugar. Através do Nomadismo das palavras (Zumthor), esse tema se difundiu, fazendo com que o rei da França e seus paladinos virassem personagens de muitos folhetos de cordéis, permanecendo no imaginário nordestino até os dias atuais. “Na voz a palavra se enuncia como lembrança, memória-em-ato de um contato inicial.” (ZUMTHOR, 1997, p.13) A memória vem das vozes, são elas que repassam a memória coletiva. A voz, segundo Zumthor, constrói o imaginário, pois não tem o compromisso da letra. Por isso, ela se reterritorializa nos locais que se faz presente. No processo de reterritorialização, os personagens da Canção de Rolando sofreram mudanças. Eles foram adaptados ao ambiente e sentimentos nordestinos, religiosidade, misticismo e aos acontecimentos mais recentes. Deste modo, o herói do folheto serve como porta-voz dos hábitos e costumes nordestinos, agindo de acordo com a ética do seu ambiente social. A grande aceitação de Carlos Magno e os pares de França nos sertões nordestinos se dá pelos valores que eles carregam, representando o equilíbrio e o fim das injustiças sociais nessa região. O poeta popular procura escrever sobre temas que agradem os ouvintes e escolhem os fatos mais interessantes, para a partir deles produzir seus relatos. Por isto, nos folhetos que analisamos, não encontramos nada que remeta à morte dos Pares, fato este narrado na Canção de Rolando, pois representaria a vitória do mal. Analisaremos a seguir trechos do cordel Roldão no Leão de Ouro e da Canção de Rolando, para evidenciar as similitudes existentes em ambas. Entre os componentes que aparecem no ciclo carolíngio e se repetem na literatura popular nordestina estão o combate, a busca contínua por aventura, o relato de proezas, as provas, os ardis, dilemas e a luta contra seres monstruosos, como os gigantes. Nas canções de gesta, a honra do herói depende da lealdade para com o seu senhor. Tal característica ficou evidente na Canção de Rolando, quando ao ser designado por Ganelão para comandar a retaguarda do exército franco, Rolando aceita mesmo sendo contra sua vontade, já que era do agrado do Rei Carlos. Como vemos nos seguintes versos: O conde Rolando, quando se ouve designar, fala como um perfeito cavaleiro: “Senhor padrasto, devo agradecer-vos muito; vós me designastes para a retaguarda. Carlos, o rei que domina a Doce França, não perderá, que eu saiba, nem palafrém, nem corcel, nem mulo nem mula que deva cavalgar, nem rocim nem besta de carga sem que as espadas lutem por eles.” Ganelão responde: “Dizeis a verdade, sei muito bem.” (A CANÇÃO DE ROLANDO, 1988, v. 751 a 760)

Ganelão, o traidor, indica Rolando para ficar na retaguarda, pois tinha conhecimento que os Sarracenos atacariam os retardatários do exército franco. O herói medieval honrado, ao ser escolhido para uma tarefa, não a recusa, visto que a honra é uma virtude muito significativa da época. Rolando luta com todas as forças para defender os interesses do seu Senhor, os interesses do Bem. Já na literatura de cordel, a honra do herói depende da sua coragem. Em Roldão no Leão de Ouro, destacamos o seguinte trecho: “A minha resolução/ É seguir pra Timorante/ Creio que é esta ocasião:/ Ou eu perco a minha vida,/ Ou Angélica sai da Prisão!” (FERREIRA, 2007, 09). Nesses versos percebemos a coragem de Roldão, que de tão 239

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destemido não tem medo da morte e está disposto a perder a vida para libertar Angélica, presa por causa de um sonho da madrasta. No sonho, um estrangeiro inimigo roubaria a princesa para casar-se com ela. A madrasta adverte Abderaman, que por precaução prende a filha na cova Tristeféa. Outra passagem da Canção de Rolando que demonstra toda a honra do Conde é quando ele percebe que os Sarracenos atacariam a retaguarda. Olivier, temendo uma derrota, visto que o exército franco possuía menor quantidade de homens, pediu para o amigo tocar o olifante, com a intenção de avisar aos outros franceses sobre o ataque, mas teve o pedido negado. Rolando diz: ‘Não agrada ao Senhor Deus que por minha falta meus parentes sejam censurados e que a Doce França caia na humilhação. Mas eu darei grandes golpes com Durindana, minha boa espada que está cingida aqui do lado. Vereis sua lâmina toda ensanguentada. Os infiéis pagãos se reuniram aqui para sua desgraça; garanto-vos que estão todos condenados a morrer. ’ (A CANÇÃO DE ROLANDO, 1988, v. 1059 a 1069)

Para o herói, tocar o olifante seria um sinal de fraqueza, de covardia. Tal atitude não agradaria a Deus, pois os franceses e sua família ficariam conhecidos como fracos. Na ética guerreira é melhor morrer lutando do que ser reconhecido como um covarde. Nas Canções de gesta o mal é representado pelos Sarracenos, pagãos e mouros, assim como pelos gigantes, dragões e bruxas, criaturas do imaginário medieval. Na Canção de Rolando, o Emir pede ajuda aos gigantes para vencer os cristãos “‘Carlos é feroz, seus guerreiros valentes. Jamais vi um exército com mais ímpeto. Mas pedi o auxílio dos barões de Ocian, Turcos, Enfruns, Árabes e Gigantes.’” (A CANÇÃO DE ROLANDO, 1988, v. 3508 a 3519). O mal, nos cordéis que trazem as histórias do ciclo carolíngio, continua representado pela figura dos mouros, turcos e pagãos, bem como pelos gigantes, bruxas e dragões. Roldão que ia passando/ Tinha subido a escada/ Mas o gigante deu fé/ Embaraçou-lhe a passada/ Botou-lhe o alfanje no peito:/ - Quem é você, camarada?/ Brutamonte então gritou: - Me prendam este soldado/ E o levem para a forca/ Que vai morrer enforcado!/ Roldão puxou a espada/ Deu tudo por acabado. (FERREIRA, 2007, p.20)

Nos versos acima, Roldão tenta escapar da cova Tristeféa após ter libertado Angélica e é surpreendido pelo Gigante Brutamonte. Mais uma vez, o mal aparece na vida do herói para adiar sua felicidade com Angélica. Como foi mencionado anteriormente, essas provações são constantes tanto na gesta quanto no cordel. O tema que envolve o herói Roldão é muito recorrente na literatura popular. Em decorrência disto, encontramos outros títulos que abordam o ciclo Carolíngio. Foram eles: O Príncipe Roldão e a Princesa Lídia, do autor paraibano José Costa Leite. A Prisão de Oliveiros e A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, que são do autor Leandro Gomes de Barros, nascido no Município de Pombal por volta do ano de 1865. A Grande Paixão de Carlos Magno pela Princesa do Anel Encantado, do autor Zacarias José dos Santos, nascido no município de Marcação no interior de Sergipe. A Vitória do Príncipe Roldão no Reino do 240

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Pensamento, de Severino Gonçalves de Oliveira, conhecido no meio literário como Cirilo de Oliveira, do estado de Pernambuco. Roldão no Leão de ouro, nosso corpus, do autor João Melchíades Ferreira da Silva, nascido em Bananeiras. As Bravuras de Roldão e a Mala do Defunto, do autor Zé Barbosa, nascido em Fortaleza e residente em Teresina. E A História de Carlos Magno e os Dozes Pares de França, do autor João Lopes Freire, não encontramos maiores informações sobre o autor. Considerações Finais O tema “Carlos Magno e os 12 pares de França” chegou aos sertões nordestinos por intermédio dos colonizadores e obteve grande aceitação da população, por esta região ser vítima de injustiças sociais. Partindo deste pensamento, concluímos que o núcleo narrativo Carolíngio está presente no imaginário coletivo nordestino através dos cordéis, mantendo viva a imagem do herói medieval da Canção de Rolando. Na literatura de cordel, o herói passa por diversas provações. Esses obstáculos são os combates que o mesmo precisa vencer para atingir seus objetivos, realizar sua missão. Ao completar essa tarefa, ao herói é quase sempre dado a paga de casar-se com a princesa e conquistar riquezas para que assim a noção de gratificação a quem faz o bem, o certo, seja disseminada na escrita e na oralidade popular, tendo em vista que a mesma possui um alto índice de aceitação pelos leitores em geral. REFERÊNCIAS A CANÇÃO de Rolando. VASSALO, Lígia. (Trad. Not. Pref.). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. BARROS, Leandro Gomes de. A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás. São Paulo: Luzeiro, 2007. BARROS, Leandro Gomes de. A prisão de Oliveiros e seus companheiros. São Paulo: Luzeiro, 2007. BARBOSA, Zé. As Bravuras de Roldão e a mala do defunto. São Paulo: Luzeiro, 2007. BORGES, Maria do Carmo F. B. O Maravilhoso em A Canção de Rolando. Maringá, 2011. . Acesso em: 10 jun. 2012. CÂMARA CASCUDO, Luís da. Cinco livros do povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. FERREIRA, João Melchíades. Roldão no Leão de Ouro. São Paulo: Luzeiro, 2007. FREIRE, João Lopes. A História de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Rio de janeiro: Edição do autor, (s/d). KUNZ, Martine. Cordel, criação mestiça. In Cultura Cri-ti-ca, Revista Cultural da Apropucsp, Nº6, 2007. pp. 26-31. LITERATURA popular em verso. Estudos. Tomo I. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973. NEMER, Sylvia. O ideal cavalheiresco: entre o romanceiro medieval, o cordel e o cinema. Intermídias 7 – Dossiê Jerusa Pires Ferreira. 241

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Acesso em: 10 jun. 2012. SAMPAIO, Marcos. A Morte dos 12 Pares de França. Juazeiro do Norte-CE: Tip. São Francisco, 1975. ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec, 1997. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000. . Acesso em: 10 jun. 2012. Acesso em: 11 jun. 2012. Acesso em: 11 jun. 2012.

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IMAGENS DO FOL AMOR DE LANCELOT E GENEVRA D’ A DEMANDA DO SANTO GRAAL: DELÍRIOS DE AMOR E VISÕES DE TERROR Elenilda do Rosário Costa (UFPA) [email protected] Alessandra F. Conde da Silva1 (UFPA) [email protected] 1-Introdução O amor cortês foi bem traduzido nos romances medievais e, por não raras vezes, vê-se que esse amor levou ao desespero, à paixão sem medida e até mesmo ao desejo de morte mediante a não concretização do sentimento. Lancelot, o cavaleiro do rei Arthur suspirou e sofreu a dor de amar uma mulher que jamais poderia ser sua. O cavaleiro nutria pela rainha Genevra, a esposa do rei, um amor, que podemos chamá-lo de cortês. Ora, o amor cortês apresentava muitas funções, entre elas, atribuir uma relativa valorização feminina 2. É claro que havia uma pedagogia para os homens, posto que o amor cortês, mediante os jogos da corte e os gracejos, buscava ensinar aos homens regras comportamentais que lhes freassem os instintos. Neste sentido, o amor cortês contribuiria para fazer com que os homens não se perdessem de seus reais objetivos (cristãos). Por outro lado, uma vez que havia a ideia de que o amor só se realizaria fora do casamento, uma tensão existia: a Igreja precisou frear os impulsos anticristãos pertencentes às teorias do amor cortês. Notemos que em novelas de cavalaria como A demanda do Santo Graal, o amor cortês não é representado via matrimônio entre Genevra e Artur, mas na relação adulterina entre aquela e o melhor cavaleiro do rei: Lancelot. Para Rossiaud (2002, p. 485), no caso de Lancelot, “(...) embora pecador, ele não traz em si o mal, mas o “pegou” de Genevra, já que o adultério é um (...) crime considerado essencialmente feminino”. A personagem de Genevra como representação feminina ecoa a moral religiosa e social da época Medieval, não como elevação, mas como um modelo a ser

1

Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo (Orientadora) Para Duby (1990, p. 349-350) o amor cortês permitiu que os homens que se queriam civilizados [tivessem] que reconhecer que a mulher não é apenas um corpo de que alguém se apodera para dele gozar um instante ou que se semeia para que ele alimente descendente e prolongue a duração de uma linhagem. Eles aprenderam que importa também conquistar o seu coração, quer dizer, assegurar-se do seu bem querer, e que para isso é ter em conta a inteligência, a sensibilidade e as virtudes singulares do ser feminino. Assim, “o amante não devia servir um homem, seu igual, mas um ser que ele tinha por inferior, uma mulher. Eles vinham assim reforçar a ideia vassálica sobre a qual repousava na época todo o edifício político” (DUBY, 1990, p. 344). Georges Duby (1990, p. 59-93), aponta o amor cortês como um “remédio ideológico” para as contradições internas à nobreza. Rigorosamente, para o autor (1990, p. 74) o amor cortês seria um jogo – mas um jogo realizado entre os homens e que tem nas mulheres apenas personagens coadjuvantes. Neste sentido, o Amor Cortês é simultaneamente um produto do sistema feudal e de uma sociedade fundamentalmente masculina no que se refere ao exercício do poder social e político. 2

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temido. E é desta forma que o amor cortês é tomada pela Igreja, detentora do discurso imperativo da época: o amor cortês é utilizado como mecanismo doutrinário. Assim, o adultério nas novelas de cavalaria servia como exemplo moral-religioso, portanto como algo que não deveria ser realizado e, a Igreja, como produtora ideológica, traçava a imagem que a sociedade deveria ter. Além do que, escolher deixar esses acontecimentos na novela era uma autoafirmação para os monges, que envolvidos com o texto tinham maior consciência de que era melhor permanecer longe das mulheres, haja vista que tinham a imagem de Genevra, que era o símbolo da mulher traidora e transmissora do pecado. O Medievo traz à tona, então, uma imagem matizada do feminino: a mulher socialmente vista sob clivagens diversas é refletida na Literatura de cavalaria e, para que possamos clarear essa escuridão passemos ao estudo de imagem e representação. 2 - Imagem & Representação O homem medieval encontrou muitas formas de falar do pecado, pois, vivia efetivamente em um mundo de imagens e muitos significados, de pinturas de mulheres, de animais, de doenças. Todas essas imagens eram meios de representar o pecado constantemente. Produções como A Demanda do Santo Graal apresentam forte teor alegórico3 e a imagem é a representação mais forte para refletir esse ideal. Segundo Umberto Eco (1989, p. 73) “a mentalidade simbolística inseria-se curiosamente no modo de pensar do medieval” e, desta forma, a imagem era algo perfeito para refletir uma doutrina, uma ideia. Na novela de cavalaria referida acima há muitas imagens e representações sobre muitas personagens. A imagem de Genevra representava o símbolo do pecado, haja vista que morreu sem arrependimento pelo adultério que cometera; seu amor devotado ao cavaleiro estava acima da fidelidade ao marido e também era a imagem do sofrimento que o amor carnal imputaria ao homem. Morgana representava a mulher que disputa o poder temporal, aquela que tinha o poder mágico-pagão pelos mecanismos sociais coercitivos, por isso considerada diabólica. Arthur não é somente identificado como o marido traído, mas como um senhor também traído por seu vassalo. Assim sendo, vê-se que as imagens, aqui mencionadas, são representações de uma realidade visível e sensível, externa à consciência do homem. No que diz respeito à representação, há sempre uma confusão em razão “da ambiguidade do termo” (GINZBURG, 2001, p. 85). De acordo com Carlo Ginzburg (2001, p. 85), a “representação” proporciona à realidade a oportunidade de ser pintada e do mesmo modo “torna visível a realidade representada” (GINZBURG, 2001, p. 85); trata-se, na verdade, da evocação da ausência ao mesmo tempo em que sugere a presença. As imagens

3

Segundo Santo Agostinho, alegoria é “a palavra que soa de um modo, mas acaba significando outra coisa diferente. Por exemplo, Cristo é chamado cordeiro (Jo 1,29); acaso é Ele animal? Cristo é chamado leão (Apo 5,5); acaso é Ele fera? É chamado pedra (ICor 10,4); acaso é Ele dureza? É chamado monte (Dan 2,35); acaso é Ele elevação de terra? E, assim, há muitas palavras que soam de um modo, mas são entendidas de outro e a isto se chama alegoria (AGUSTINHO apud LAUAND 2011, p.22).

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que o cavaleiro da charrete desenhava nas paredes do quarto no castelo de Morgana 4 são um bom exemplo disso. Tais imagens evocavam a ausência da rainha Genevra, da mesma forma que a colocava presente ali, de modo que ele a olhava e a admirava todos os dias. A representação da qual tratamos é a chamada representação mimética, pois é por meio dela que a passagem da realidade acontece, de forma que a sua percepção é consequência da interpretação. A realidade é (re)elaborada adquirindo certas características simbólicas e interpretativas. As imagens construídas por Lancelot (tanto a de seus feitos guerreiros quanto às de sua amada) são representações da realidade que um dia ele viveu e, é deste evento representativo que trataremos logo mais, entendendo melhor a força do símbolo ou da imagem presentes nas novelas de cavalaria, tomando como demonstração o episódio 262 d’A demanda do Santo Graal – [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e conhecerom sua fazenda e da raĩa]. 3 – Entrando na camara O episódio a que nos referimos no tópico anterior trata do momento em que Lancelot é aprisionado por Morgana, a irmã do rei. Enclausurado, o cavaleiro colocou nas imagens, desenhadas por ele, suas lembranças de amor e seus feitos guerreiros, alimentando-se, desta forma, dos momentos venturosos. Um dia, tempos depois de Lancelot ser liberto por Morgana, Mordret e seus irmãos são levados até ao castelo da irmã de Rei Artur. Recuperando-se de alguns ferimentos, Mordret, um dos sobrinhos de Morgana, ao oitavo dia chega até a câmara que Lancelot estivera preso e, encontra “feitos de Lancelot eram i pintados” (DSG, 1995, p. 211). A princípio, ele não compreende o que estava vendo e chama seus irmãos para que vejam e sua tia para que lhes explique o significado daquelas imagens. Morgana, de imediato se nega a relatar tal fato, porém com a insistência dos sobrinhos, ela decide contar, declarando sua revolta em tais palavras: “ca maior pesar nom me poderia fazer como fazer tal escanho a tam alto homem como meu irmão e amar-lhe sua mulher e jazer-lhe com ela.” (DSG, 1994, p. 211). Diz ainda que, por sentir tão grande amor pelo cavaleiro, o fez prisioneiro ali por volta de um ano e meio. Foi neste período que ele “pintou com sua mão todos seus feitos, dês que foi cavaleiro até que foi aqui preso. E cada menhãã, tanto que se erguia, abraçava e beijava as mãos da rainha tam de coraçom como se fosse ela meesma” (DSG, 1994, p. 211). Galvam, ao ouvir toda história contada por sua tia, recusou-se a acreditar, pois tão bom cavaleiro era Lancelot que não poderia cometer tal traição. Sua tia, por fim, pede aos cavaleiros que ao chegar à corte, contem tudo que ouviram e viram naquela câmara. Na verdade, as palavras ditas por Morgana expressaram muito mais sua amargura por não ser correspondida com o amor de Lancelot do que pretensão em elevar a honra de seu irmão Arthur. O que o cavaleiro representou naquelas imagens não foram nada mais que suas emoções e carências amorosas, informando (quiçá) à Morgana que o seu coração pertencia a uma única mulher. No entanto, as imagens que dedicara à Genevra, atingiram as emoções de 4

No episódio [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e conhecerom sua fazenda e da raĩa] (DSG, 1995, p. 211 ), o cavaleiro desenha imagens de seus feitos guerreiros e da sua amada Genevra e prega estes desenhos nas paredes da câmara em que ele estava preso.

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Morgana com efeito contrário, porque Lancelot não as construiu tentando “provocar” a irmã do rei, mas as construiu, simplesmente para expressar seu amor e para não esquecer o rosto de sua amada Genevra. A narrativa descrita acima revela algumas funções que Vladimir Propp traçou em um inventario de 31 funções5 na obra Morfologia do conto Maravilhoso. Faremos a análise de alguns desses elementos iterativos, ligados a uma ideia primeira: a presença da imagem mimética e o seu papel de preservar as lembranças de Lancelot. Utilizaremos, no quadro abaixo, quatro funções de Propp, a saber: proibição, transgressão da proibição, carência e reparação da carência ou dano. Quadro A, Episódio 262 [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e conhecerom sua fazenda e da raĩa]

Episódio Como eles entrarom na camara u jouvera preso Lancelot e conhecerom sua fazenda e da raia

Função (Propp)

Função (Demanda)

Representação

Proibição

Não pode viver o amor com Genevra, posto que ela estivesse ausente.

X

-

Transgressão da proibição

-

Carência

-

Reparação do dano/carência

Lancelot transgride a proibição de viver o amor mediante a fruição da imagem. Lancelot sente falta da rainha (ausência) Lancelot desenha a imagem da rainha na parede de forma a fruí-la, isto é, torná-la presente.

Desenha imagens de Genevra na parede da câmara. X Ele se vale da representação da imagem da amada: visão angelical da rainha

Neste 1º quadro devemos observar o uso das imagens numa perspectiva particular do cavaleiro. A primeira função, das muitas descritas por Propp, a aparecer aqui é a proibição6. Lancelot é proibido de viver o amor com Genevra, por ela ser casada e por ele ser cavaleiro do rei. A seguir, vê-se a transgressão da proibição7. Lancelot não deveria envolver-se com Genevra, porém transgrediu a regra, neste caso, mediante a fruição da imagem. A representação é clara nos desenhos de Genevra desenhados nas paredes da câmara. Ora, se a proibição foi transgredida é por que houve um motivo para isso, e tal motivo se deve a

5

Segundo Propp, as funções são grandezas que não mudam nas narrativas, o que muda são, por exemplo, os nomes dos personagens. “a repetição das funções é surpreendente” (PROPP, 2001, p. 16). 6 Na obra Morfologia do conto maravilhoso é a função II. Impõe-se ao herói uma proibição (PROPP, 2001, p. 19). 7 Função III. A proibição é transgredida (PROPP, 2001, p. 20).

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carência8que Lancelot sentia pela ausência da rainha. Mas, no decorrer do episódio temos a reparação da carência9 sentida por Lancelot quando ele desenha a imagem da rainha de modo a querer torná-la presente. Neste momento há a representação da pessoa amada, uma visão angelical de Genevra que Lancelot simula nos seus desenhos. O quadro 2, exposto abaixo, revelará o uso das imagens numa perspectiva social, ou seja, vê-se o que os outros (Mordret e seus irmãos; Morgana) pensam sobre as imagens produzidas por Lancelot. Quadro B10, episódio 262 [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e conhecerom sua fazenda e da raĩa] Episódio Como eles entrarom na camara u jouvera preso Lancelot e conhecerom sua fazenda e da raia

Função (Propp)

Função (Demanda)

Representação

Antagonista

Morgana age de forma velada e desvelada (ludíbrio)

X

-

O antagonista causa dano

-

Comunica-se o dano

Reparação do dano: mandam o herói embora ou deixam-no ir

Lancelot é aprisionado por Morgana que, em seguida (A), coloca cavaleiro contra cavaleiro, mostrando as imagens na parede (B) É comunicado aos sobrinhos de Morgana a traição de Lancelot e Genevra(B). Morgana deixa o cavaleiro sair do castelo (A)

X

Morgana conduz os sobrinhos a contemplar as imagens na parede.

X

O quadro apresenta funções que revelam características do personagem. Morgana é a representação da vilã da história, ou seja, é a antagonista11, pois age de forma velada (quando de alguma forma faz com que seus sobrinhos cheguem à câmara em que esteve preso Lancelot) e desvelada (quando Mordret ordena que lhe explique tais imagens e ela se nega, por pouco tempo, para em seguida revelar o segredo e aconselhar que contem para o rei 8

Função VIII-A. Falta alguma coisa a um membro da família, ele deseja obter algo (PROPP, 2001, p. 23). Função XIX. O dano inicial ou a carência são reparados (PROPP, 2001, p. 31). 10 O caso da revelação (uso das imagens numa perspectiva social: o que os outros fazem da imagem produzida por Lancelot). 11 Função III. A proibição é transgredida - nesta função aparece um novo personagem que é chamado antagonista do herói (PROPP, 2001, p. 20). 9

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Artur). Assim sendo, como diz a função, a antagonista causa dano ao herói12 (Lancelot e sociedade); à Lancelot por mantê-lo preso em seu castelo e à sociedade, por que aconselhou aos sobrinhos que relatassem ao rei o suposto adultério da rainha e de Lancelot. A partir de então, o dano é comunicado13. Comunicado e reparado14, na medida em que se diz que Morgana causou dano a Lancelot por mantê-lo preso, da mesma forma reparou esse dano no momento em que o manda embora. Em resumo, as imagens de Genevra desenhadas na parede, permitiram que o cavaleiro apaixonado mantivesse presente, mediante a representação imagética, as lembranças dos amores vividos com a rainha. Nestas representações ela é vista de forma angelical, bela. É claro, como vimos, que o conhecimento de tais quadros, permitiram à Morgana e a seus sobrinhos descortinarem os segredos dos amantes, revelando-o ao rei Artur, causando, então, a destruição do reino de Logres. Como haverei de analisar dois episódios d’A demanda do Santo Graal, o caso que trataremos a seguir, diz respeito à imagem do sonho de Lancelot. Esta é a mensagem futura do seu destino. A passagem revela seus antepassados, gozando das maravilhas do paraíso. Estes o avisam de que se persistir na vida de pecado, será merecedor dos castigos do inferno. 4 – Sonho: Visões de terror Os episódios 201 e 202 [Da visam que viu Lancelot] e [Da outra visam que viu Lancelot.] contam que durante o sono Lancelot teve três visões. Na primeira delas ele vê um rio cheio de cobras e vermes: “o mais feo e o mais espantoso que nunca vira” (DSG, 1995, p.158). Desse rio saem sete homens coroados e felizes e, logo após, sai um homem magro, pobre e cansado sem tal coroa. Os sete homens são exaltados pelos anjos e levados para o céu, diferente do pobre que ficou. Na segunda visão que está presente no episódio 202 [Da outra visam que viu Lancelot] Lancelot vê Morgana, “mui fea e espantosa” (DSG, 1995, p.159). A irmã do rei Arthur estava escoltada por milhares de demônios que levaram o cavaleiro a um “vale mui fundo e mui escuro e mui negro” (DSG, 1995, p.159). Ali, Lancelot viu uma “cadeira em que siia a rainha Genevra toda nua e suas mãos ante seu peito” (DSG, 1995, p.160); estava ela queimando fortemente. E, na ultima visão, o cavaleiro vê em uma horta seus pais, o rei Bam de Benoic e a rainha Helena, os quais lhe dizem que se permanecer numa vida de pecado, ele não terá nada a alcançar naquele lindo lugar. Vejamos que o discurso cristão perpassa todas as visões, haja vista que por trás de cada uma delas há mensagens a serem decodificadas. A princípio, temos um homem que é pecador e, portanto não merecedor do reino dos céus. Depois, entregado aos diabos dá a ideia de que ele será castigado e, por fim, o inconsciente do cavaleiro se sente culpado até porque, seus próprios pais o chamam de pecador. O sonho lhe incomoda, na medida em que parece ter sentido para Lancelot, como diz Vieira (1694, p.22) “o vicioso

12

Função VIII. O antagonista causa dano ou prejuízo a um dos membros da família (PROPP, 2001, p. 21). Função IX. É divulgada a notícia do dano ou da carência, faz-se um pedido ao herói ou lhe é dada uma ordem, mandam-no embora ou deixam-no ir. (PROPP, 2001, p. 24) 14 Função XIX. O dano inicial ou a carência são reparados. (PROPP, 2001, p. 31) 13

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sonha como vicioso, o santo como santo”. Assim sendo todas as visões parecem que vão se cumprir em sua vida. Neste sentido, ligados a ideia da imagem, vamos nos deter ao estudo das visões 2 e 3, segundo as funções de Propp. Quadro A15, episódio 202 [Da outra visam que viu Lancelot] Episódio

Função (Propp)

Da outra visam que viu Lancelot

Função do doador/ Um ser hostil tenta aniquilar o herói

-

O herói é transportado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura

-

O herói sofre perseguição

-

O herói é salvo da perseguição

Função (Demanda)

Representação

Morgana, no inferno, agarra Lancelot dando-o aos demônios. Lancelot encontra com Genevra (alvo da sua busca) no inferno, conduzido pelo sonho. Por parte dos demônios e da sua própria consciência. Lancelot é acordado do sonho

A imagem dos demônios, a culpa e os pecados (enquanto alegoria).

X

X X

Nesta fase da narrativa, temos um sonho infernal tido por Lancelot; aqui vemos aparecer a função do doador16. O doador é um ser que entra na narrativa para prover algo ao herói, ajudando-o a superar algum dano sofrido; no entanto, antes que o herói possa receber algo deste, ele deve passar por algumas situações que o levarão ao “galardão”. Neste sentido, cabe a Lancelot ser aniquilado por um ser hostil, que no episódio é a figura de Morgana, a própria representação do inferno, agarrando-o e entregando-o aos demônios. Num olhar cristão, estar no inferno é ter a privação de Deus e da vida; numa representação maior para Lancelot se trata da culpa pelos pecados cometidos pelo “boo cavaleiro” (DSG, 1995, 212). Não se pode esquecer que a Igreja era o centro de tudo na Idade Média e, portanto, estar no inferno sofrendo significa não ter vivido de acordo com os preceitos da Igreja. Seguindo o passeio pelo inferno, na visão do cavaleiro, temos o deslocamento17 de Lancelot de um espaço a outro. Genevra, a sua amada, está também no inferno por ter traído o seu marido. Sabemos que Lancelot está sendo perseguido18 tanto pelos diabos do inferno quanto por sua própria consciência de pecador. Mas para felicidade do herói, e para finalizar os comentários sobre este 1º quadro, Lancelot é salvo da perseguição19 quando é despertado 15

O caso do sonho infernal (o uso das imagens numa perspectiva alegórica sobre Morgana e os demônios) – plano maior da narrativa. 16 Função XII. O herói é submetido a uma prova; a um questionário; a um ataque etc., que o preparam para receber um meio ou um auxiliar mágico. (PROPP, 2001, p. 25). 17 Função XV. O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura (PROPP, 2001, p. 30). 18 Função XXI. O herói sofre perseguição (PROPP, 2001, p. 33). 19 Função XXII. O herói é salvo da perseguição (PROPP, 2001, p. 33). 21 O caso do sonho infernal – plano menor da narrativa.

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de seu sono. Passemos a observar agora, o quadro B numa perspectiva alegórica sobre Genevra, a partir do uso das imagens. Quadro B20, episódio 202: [Da outra visam que viu Lancelot] Episódio

Função (Propp)

Função (Demanda)

Representação

Da outra visam que viu Lancelot

O Herói é Transportado, Levado ou Conduzido ao Lugar onde se Encontra o Objeto que Procura (Carência).

Lancelot é levado de um reino (do plano dos demônios) a outro reino (local em que está Genevra).

X

A carência é reparada

Lancelot encontra com Genevra (alvo da sua busca) no inferno, conduzido pelo sonho.

A visão da rainha toda “escabelada e nua, com língua de serpente”: visão infernal da rainha.

-

Podem ser encontradas nesta passagem duas funções de Vladimir Propp. No sonho de Lancelot, ele se vê transportado21 de um plano a outro da narrativa. Neste outro local ele vê Genevra queimando, ardentemente, sentada numa cadeira de fogo; imagem infernal. O sonho o conduz ao seu “objeto” de procura – na realidade – realizando, ao menos naquele plano, a reparação da carência22. É claro que a visão da rainha queimando e com língua de serpente servirá para amedrontar o cavaleiro. A rainha o admoesta a abandonar o pecado e voltar ao caminho da salvação. A imagem da rainha serve à causa religiosa, imperativamente. 4 – Considerações finais No presente trabalho buscou-se observar a função das imagens nos dois episódios da Demanda aqui estudados. A presença marcante da rainha Genevra tanto nas imagens postas na parede, quanto nas visões de Lancelot, mostram faces recorrentes da velha dicotomia – santo x profano. Ela é tanto vista como anjo, quanto como demônio. Seguindo a linha alegórica cristã, ela é vista como pecadora; já, Lancelot, apaixonado, desenha-a bela e angelical. É claro que nos dois episódios, duas outras mensagens podem ser lidas. Falamos do conhecimento de Morgana e dos sobrinhos sobre o caso adulterino de Genevra, mediante a apreciação das imagens desenhadas por Lancelot. No segundo episódio, as imagens cristãs, no sonho do cavaleiro, além de pintarem uma Genevra demoníaca, servem para estabelecer o pensamento cristão. É a força da alegoria. A representação serve quer à causa do amor, quer à causa religiosa.

22

Função XV. O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura (PROPP, 2001, p. 30) 23 Função XIX. O dano inicial ou a carência são reparados (PROPP, 2001, p. 31)

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REFERÊNCIAS DUBY, Georges. A propósito do Amor Chamado Cortês. (1990). In: ______. Idade Média, idade dos homens − do amor e outros ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. P. 59-65 ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval; tradução Maria Sabino Filho. Rio de Janeiro: Globo, 1989. GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das letras, 2001. LAUAND, Jean. Tomás de Aquino e o papel do corpo na realização do homem. Notandum. Porto: CEMOrOC-Feusp / IJI-Universidade do Porto. 2011, p. 22. MEGALE, H. A Demanda do Santo Graal. Texto sob os cuidados de Heitor Megale. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988. PROPP, Vladimir I. Morfologia do Conto Maravilhoso. CopyMarket.com, 2001. ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade.In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. VIEIRA, A. Xavier dormindo e, Xavier acordado: dormindo (...) Lisboa: Miguel Deslandes, 1964.

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HELGA E HONI: A FORÇA FEMININA NOS QUADRINHOS DE “HÄGAR, O HORRÍVEL” Elvio Franklin Menezes Teles Filho (UFC – Valknut: Grupo de Estudos Vikings) [email protected]

A utilização das Histórias em Quadrinhos como ferramenta de aprendizado histórico ainda não é bem reconhecida pelos pais e educadores. A ideia de que as HQs são simples meios de comunicação com o único objetivo de divertir (ou perverter, como se pensou nos anos 1950) ainda está bastante em vigor no mundo de hoje. Pensando nisto tornam-se necessários maiores esclarecimentos acerca desta forma de arte e seus benefícios no meio educacional. As primeiras Histórias em Quadrinhos (HQs) surgiram em fins do século XIX e início do XX, primeiramente com temáticas humorísticas e em formas de tirinhas curtas, somente nas décadas seguintes iniciou-se uma produção de quadrinhos com histórias mais longas e bem elaboradas. Após a década de 1930, com o crack na bolsa de valores surgiram gêneros como ficção científica, quadrinhos policiais e de aventura. Heróis como Flash Gordon, Dick Tracy e Tarzan, tiveram sua estreia neste período. No entanto as tirinhas continuaram a ter sua publicação garantida em jornais e periódicos de todo o mundo. Em 1973 um nova-iorquino encorpado e barbudo cria no porão de sua casa uma das tirinhas mais famosas e uma das personagens mais carismáticos da história das HQs. Criado por Richard Arthur Allan Browne, o Dik Browne, Hägar, o Horrível torna-se imediatamente fenômeno mundial. Ambientado na Era Viking (790 – 1066 d.C), Browne nos apresenta um Viking beberrão e sua família, sua esposa Helga, seus dois filhos Honi e Hamlet, seu cão de estimação Snert e seu melhor amigo Lucky Eddie.

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A análise de imagens não é um objetivo novo na pesquisa histórica. A décadas os historiadores vem se empenhando em utilizar pinturas, fotografias, esculturas, filmes, entre outras, como fontes de pesquisa e análise. As imagens podem ser um forte indício do pensamento de uma época ou das formas de representações de uma camada social, pode nos dar pistas de como as pessoas pensavam ou deixavam de pensar, pode nos mostrar algo que muitas vezes o texto escrito não consegue. O ser humano vem produzindo imagens desde o início de sua existência e, diferente do que se pode pensar, ele não simplesmente reproduz imagens do que ele ver ou reconhece, ele cria e essas criações não são arbitrárias, elas tem uma intencionalidade, um objetivo. As imagens não são a realidade histórica em si, mas trazem porções dela, traços, aspectos, símbolos, representações, dimensões ocultas, perspectivas, induções, códigos, cores e formas nela cultivadas. Muitas vezes os quadrinhos (assim como outras formas de arte) falam mais do seu criador e da época em que foram criados do que do momento em que estão ambientados. Isto acontece nas tirinhas de Hägar, Dik Browne utiliza-se da ambientação na Era Viking para nos apresentar aspectos da sociedade e da família americana contemporânea. As imagens que Browne utiliza para representar o cotidiano dos vikings vem de uma tradição que deu origem à maioria das representações de vikings na atualidade, o romantismo oitocentista.

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“Respondendo aos diversos anseios nacionalistas, as antigas paisagens e os personagens medievais foram resgatados para construir identidades modernas” (LANGER, 2001, p. 223). Foi no século XIX com a obra do músico Richard Wagner que estas representações foram amplamente instauradas, seguidas posteriormente por pintores, escultores, diretores de cinema e teatro, escritores, entre muitos outros artistas de todos os gêneros. Nos quadrinhos não foi diferente. A partir da década de 1960 artistas como o americano Frank Frazetta, grande ilustrador da adaptação das histórias de Conan, O Bárbaro (Robert E. Howard) para quadrinhos, ajudaram a dar continuidade a essas imagens. (imagem acima). Em Hägar, O Horrível podemos perceber vários destes estereótipos, tendo como principal exemplo o fato de a maioria das personagens (inclusive o cão Snert e Kuaak, a pata de estimação de Helga) usarem capacetes com cornos, seguindo a tradição oitocentista. No entanto não se pode condenar o trabalho de um artista por utilizar estes estereótipos, como já foi comentado, há uma intencionalidade em cada uma dessas representações, Browne precisava que o público leitor reconhecesse Hägar como um viking e para isso utilizou de elementos de conhecimento geral que remetessem à esses povos. Inclusive muitas das imagens criadas por Browne correspondem com uma proximidade grande à alguns símbolos e imagens dos povos escandinavos, obviamente com alguns exageros, marca registrada dos quadrinhos humorísticos. No decorrer da leitura das tirinhas de Hägar podemos perceber a importância das personagens femininas nas historinhas, especialmente em Helga e Honi, respectivamente esposa e filha do viking.

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Helga é a representação da dona de casa americana do século XX em diante, ao mesmo tempo independente ao ponto de ter grande controle sobre o marido, mas sem nunca abandonar seus deveres domésticos, apesar de sentir alguma vontade de ter uma vida mais livre, entretanto jamais renegaria os cuidados e carinhos aos filhos e o amor pelo marido, mesmo sendo este um grande fanfarrão. Seu aspecto parece ter sido parcialmente baseado na personagem Brünhild, valkiria e uma das protagonistas da Volsunga Saga, bem como em mulheres da ópera de Wagner. Corpulenta e sempre com seus loiros cabelos trançados e farto busto, muitas vezes aparece usando o característico avental de dona de casa, mas também costuma, dependendo da ocasião, usar indumentária de guerra, como cota de malha, escudo e espada.

Já Honi, a belíssima filha de Hägar, nos remete a uma jovem americana sempre apaixonada e que aos 16 anos, segundo seu pai, já estava passando da idade para casar, e este é exatamente seu maior medo, estar velha demais para conseguir um marido, com a ajuda da mãe ela está sempre em busca deste marido. Honi está sempre vestida para a guerra, contrapondo seu perfil de moça apaixonada, usa sempre uma saia de conta de malha (!), escudo e espada ou lança, usa também, diferente do resto de sua família, um elmo com asas, referência direta às valkírias da tradição oitocentista

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Assim, podemos perceber como os quadrinhos, bem como outras formas imagéticas, podem ser utilizados em larga escala e com um ótimo aproveitamento no ensino e na pesquisa histórica. A observação sobre a feminilidade nas HQs de Dik Browne realizada neste trabalho é apenas um breve exemplo de utilização dos quadrinhos para analisar aspectos históricos de uma época e de uma sociedade, neste caso de duas épocas ao mesmo tempo, a Era viking e a sociedade americana do século XX e XXI. A importância de se fazer uso de meios que possam estar mais próximos dos estudantes se faz presente, de forma que desta maneira os mesmos poderão mais facilmente compreender as temáticas abordadas em sala de aula ou em material didático. Além disso, a leitura de quadrinhos, independente da idade do leitor, estimula a leitura e a observação, bem como de um olhar crítico acerca de alguns assuntos e mostra além de tudo que diversão não deve jamais estar longe de aprendizado. REFERÊNCIAS BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004. CALAZANS, Flávio. História em Quadrinhos nas Escolas. São Paulo: Paulos, 2004. FERRO, Marc. História e Cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. LUYTEN, Sonia M. Bibe. O Que é História em Quadrinhos. 2. Ed. - São Paulo: Brasiliense, 1987. LANGER, Johnni. O Ensino de História Medieval Pelos Quadrinhos. In: História, imagem e narrativas, Nº 8, abril/2009. 256

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_____. Guerreiras na Era Viking? Uma análise dos quadrinhos “Irmãs de Escudo” (Série NORTHLANDERS). In: Roda da Fortuna: revista eletrônica de Antiguidade e Medievo 1, 2012. _____. Guerreiras de Odin: as valquírias na mitologia viking. Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2009c, pp. 59-78. _____. Fúria Odínica. A criação da imagem oitocentista sobre os vikings. In: Varia História, Belo Horizonte, nº 25, Jul/01, p. 214-230. VILELA, Túlio. Os Quadrinhos na Aula de História. In: Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula / Alexandre Barbosa, Paulo Ramos, Túlio Vilela, Angela Rama, Waldomiro Vergueiro, (orgs.). 4. Ed. – São Paulo: Contexto, 2010 – (Coleção Como Usar na Sala de Aula).

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POÉTICA MEDIEVAL E ICONOGRAFIA MODERNA: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DO CARMINA BURANA E OS CAPRICHOS, DE GOYA Fernanda Alves de Morais (IESP/UFPB) [email protected] Wilder Kleber Fernandes Santana (UFPB) [email protected] Considerações Iniciais Venturosamente, por volta de 1937 o compositor Carl Orff (1895-1984), um estudioso da poesia medieval alemã, arranjou a cantata cênica Carmina Burana, um grande sucesso baseado no manuscrito Codex latinus monacensis, encontrado no Covento de Benediktbeuern, na Alemanha, em 1803. O códice do século XIII que continha 315 composições poéticas, foi denominado Carmina Burana, que em latim significa “Canções de Beuern” e atualmente encontra-se na Biblioteca Nacional de Munique. Utilizando-se das poesias musicalizadas, Orff se tornou um dos compositores alemães mais renomados do século XX, principalmente através da canção poética O Fortuna, velut luna, uma poesia musicalizada de invocação à deusa da fortuna, e que já foi tema de grandes eventos culturais e artíticos de todo o mundo. Foi através de Carl Orff que o Carmina Burana passou a ser conhecido publicamente, pois até então apenas os estudiosos de língua germânica tinham acesso aos comentários e críticas referentes à obra. Aqui no Brasil também se teve um grande estudioso que contribuiu bastante para a popularização do Carmina Burana, Maurice van Woensel, professor da Universidade Federal da Paraíba, que com muita dedicação traduziu a obra do latim clássico para o português. De acordo com WOENSEL (1994, p.14): No ofício de traduzir poesia, invariavelmente se enfrenta a questão: É possível verter um texto poético para uma língua sem que se percam elementos vitais da obra original? De fato, ao ser vertido para outro idioma, uma poesia perde fatalmente boa parte de sua riqueza estética: melodia verbal, jogo de contrastes fônicos, sutilezas e ambiguidades léxicas e sintáticas.

Porém, nota-se que, na presente tradução, o autor manteve uma relevante razoabilidade na tentativa de recriação da poesia original e consequentemente recuperou os efeitos poéticos, que não foram poucos, já que os Goliardos atribuiam muitas alusões e citações da Bíblia e da mitologia greco-romana em seus versos. Anos mais tarde, na Idade Moderna, mais precisamente nos finais do século XVIII, “o Shakespeare do pincel” como era conhecido o espanhol Francisco José de Goya y Lucientes (1746 – 1826), pintou um conjunto de 80 telas intitulado de Os Caprichos, na qual ele representa uma sátira da sociedade espanhola, principalmente da nobreza e do clero. Suas 258

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produções artísticas incluem uma ampla variedade representativa de retratos, paisagens, cenas mitológicas, tragédia, comédia, sátira, farsa, homens, deuses e demônios, feiticeiros, e um pouco do obsceno. Em 1785 tornou-se o pintor oficial do monarca Carlos IV e sua família, passando a receber grandes encomendas da aristocracia. Os Caprichos possuem imagens produzidas através de uma técnica inovadora de pintura de água forte, água tinta e retoques de ponta seca. Goya, muito relacionado aos iluministas, compartilha as suas reflexões sobre os defeitos da sua sociedade. Eram contrários ao fanatismo religioso, às superstições, à Inquisição e algumas ordens religiosas, aspirando a leis mais justas. Tudo isso criticou humoristicamente nas pinturas. Para se proteger das condenações da Igreja, Goya atribuiu certo tipo de ambiguidade nas interpretações das suas telas. Porém, temendo as impressões dos outros contemporâneos iluministas, o pintor retirou a edição precipitadamente por temor à Inquisição. As obras só estiveram à venda 14 dias, e em 1803 Goya decidiu oferecer as pranchas e os 240 exemplares ao rei, em troca de uma pensão vitalícia de doze mil reais anuais para o seu filho. Com o sucesso de Os Caprichos, Goya passou a ser considerado por muitos estudiosos, como um dos precursores da arte moderna. De acordo com BAUDELAIRE (apud WACHT, 2007, p. 64): Na Espanha, um homem extraordinário abriu horizontes novos ao espírito do cômico. Goya é sempre um grande artista e com frequência um artista aterrador. Acrescentou a esse espírito satírico espanhol, primariamente alegre e jocoso, que teve o seu dia à época de Cervantes, algo muito mais moderno, uma qualidade muito apreciada na época atual, um amor pelo indefinível, um senso de contrastes violentos, do aterrador da natureza, dos traços humanos que adquiriram características animais. É estranho que este anticlerical tenha sonhado tão frequentemente com bruxas, aquelarres, magia negra e muitas coisas mais.

MALRAUX (1988, p. 118) considerou Goya como figura central no desenvolvimento da arte moderna, afirmando que nas suas primeiras caricaturas, o pintor ignora e destrói o estilo moralista dos caricaturistas anteriores. Contudo, segue o presente artigo de forma que a primeira parte aborda a caracterização da poesia do Carmina Burana, através dos conceitos de WOENSEL (1994). O segundo capítulo relata a forma pela qual foi realizada a produção das pinturas, Os Caprichos, e o terceiro e último capítulo está subdividido: no tópico inicial há uma analogia no tocante às produções artísticas dos Goliardos e de Francisco Goya, e nos tópicos finais foram realizadas análises comparativas de dois poemas goliardos e duas telas de Goya. A poética dos Carmina Burana A maioria dos poemas do Carmina Burana foi escrito em latim medieval pelos clérigos vagantes da Idade Média, os Goliardos. Tal denominação se deu por uma analogia feita ao gigante “Golias”, um inimigo da fé cristã. A palavra Goliardo tem ainda outra provável origem, a do latim "gula", pela comida e bebida consumida em excesso pelos Goliardos. Segundo SPINA (apud WOENSEL, 1994, p.11): 259

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Os goliardos, uma classe que viveu na marginalidade, fugindo dos mosteiros, dos centros de ensino e devotando-se a uma vida boêmia e contestatória, puseram em relevo nas suas canções tabernárias os desmandos da Igreja, a hipocrisia dos altos prelados eclesiásticos, como se tentassem uma reforma da disciplina religiosa, prenunciando a ideologia luterana e calvinista do século XVI.

A obra é dividida em poesias de caráter satírico e moral; cantos primaveris e de amor; e cantos orgiásticos e festivos. A maioria dos poemas buranos caracterizam as regras da versificação pós-clássica, apresentando ritmo acentual com um número fixo de sílabas. Após uma reconstrução melódica dos versos, notou-se que algumas das composições foram destinadas ao canto, como a cantata arranjada pelo compositor Carl Orff O Fortuna, Imperatrix Mundi, citada anteriormente. Os textos mostram a diversidade da produção goliardesca, apresentando canções amorosas e de erotismo, as paródias blasfemas da liturgia e também a poesia moralística referente aos tribunais eclesiásticos que visavam apenas a busca do poder. Assim diz o CB nº 10 (Soa alto, em campo aberto): “A morte agora reina sobre os prelados que não querem administrar os sacramentos sem obter recompensas (...) São ladrões, não apóstolos, e destroem a lei do Senhor.”(WOENSEL, 1994, p. 29). Na Idade Média só existiam as escolas eclesiásticas que visavam formar clérigos, porém muitos deles não se limitavam apenas à devoção teocêntrica, revelando todos os seus desejos e pensamentos através das canções satíricas. Os Goliardos costumavam deslocar-se pelas várias universidades europeias nascentes, expandindo suas ideias progressistas que se inseriam entre os adversários do crescente absolutismo da Igreja e do sistema monárquico. Pode-se dizer que os Carmina Burana foram uma das primeiras obras que contestaram a sociedade medieval, denunciando o absolutismo clerical, além de ter iniciado a reforma da Igreja, séculos antes de Martinho Lutero (1483 – 1546) e João Calvino (1509 – 1564). E como muitos destes clérigos andantes foram excomungados, eles passavam a viver boemiamente nas tabernas, sustentando-se com as apresentações de tais poemas satíricos e amorosos, atuando no mercado literário paralelo. Embora a temática dessa produção poética tenha sido os prazeres da vida, sobretudo o trinômio bebida, jogo e amor, há vários poemas que também criticavam com veemência os costumes do sistema, visto que o alvo predileto de um poema goliardo era, sem dúvida, o clero secular. Os poetas goliardos escreveram paródias do credo, paródias das missas e mesmo imitações burlescas dos evangelhos; nas suas canções tabernárias, colocam em relevo os desmandos da Igreja, a hipocrisia dos altos prelados eclesiásticos, os paradoxos entre o que a Igreja prega e o que ela fazia, numa tentativa de reforma na disciplina religiosa, prenunciando idéias que posteriormente (século XVI) fariam parte do Luteranismo e do Calvinismo. Ao ler as composições poéticas presentes no Carmina Burana, o leitor pode imaginar que tais textos referem-se ao contexto social moderno, ou até mesmo contemporâneo, visto que o conteúdo das poesias possui recursos satíricos presentes até nos textos atuais. A poesia satírica dos Goliardos na Idade Média, por seis séculos permaneceu escondida, pois eram consideradas obras subversivas e, por isso, proibidas. Nesta época, a Igreja Católica era considerada o canal entre Deus e os homens e consequentemente, o clero possuía plenos 260

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poderes sobre toda a sociedade. Nesta sociedade teocêntrica, o medo de pecar e, portanto, de desagradar a Deus, torna o homem medieval passivo, impotente e, por isso, dominado pelo que a Igreja determina como norma de conduta pessoal e social: o feudalismo religioso, assim, endossa e reproduz as relações vassalagem/servidão, essência do sistema feudal. A esse poder de determinar o pensamento e as ações de toda a sociedade, acrescenta-se ao clero medieval um outro tipo: o poder econômico. Tanto que já no século X, a Igreja tornou-se a classe mais poderosa econômica-política e social. Os Caprichos de Francisco Goya A composição artística Os Caprichos, estética e historicamente, consiste numa série de 80 gravuras do pintor espanhol Francisco Goya, na representação categórica de uma sátira da sociedade espanhola de finais do século XVIII, principalmente da nobreza e do clero. Dividiuse em as gravuras mais realistas e satíricas, com críticas à razão e ao comportamento dos padres e líderes, na primeira parte, enquanto na segunda metade representou o emblema de gravuras no nível do fantástico. Mostrou, pelo absurdo e pelo horror, visões delirantes de seres estranhos. Percebemos bastante, em suas reflexões, os defeitos da sua sociedade. O pintor Francisco Goya criticou estes e outros males de forma radicalmente nova, inaugurando uma visão materialista em contraposição à crítica social paternalista realizada na Idade Moderna, que encaminhava os seus esforços a reformar a conduta errônea do homem, principalmente no que diz respeito a leis clericais, no ato da inquisição. De acordo com COVRE (2010, p. 09): O desenho foi para Goya uma distração que possibilitava representar suas impressões “das coisas bizarras, engraçadas, grotescas e poderosas que via” Hughes (p.207, 2007). Mas não foi um mero desenhista. Para Chabrun (p.101, 1974), foi “um desenhador”. Seus desenhos não são meros esboços, rascunhos apressados ou estudos de quadros. Os desenhos de Goya possuem mais que uma descrição de um fato, eles possuem a opinião do próprio Goya sobre as personagens representadas.

Tal série pictórica influenciou conseguintes gerações de artistas de movimentos bastante divergentes, a exemplo do Romantismo francês, o Impressionismo, o Expressionismo alemão ou o Surrealismo. A relação entre Francisco Goya e os Goliardos Embora de épocas distintas, Francisco Goya e os Goliardos possuem várias características em comum, representadas em suas produções artísticas. Na Idade Medieval, em pleno século XIII, o sistema de ensino, monopolizado pela Igreja e pela cultura antiga cristianizada, era responsável pela formação de jovens que futuramente iriam ingressar no serviço religioso. Porém, muitos dos estudantes possuíam perspectivas racionalistas que levantavam suspeitas sobre o pensamento dogmático da Igreja, e o que até então era indiscutível passou a ser problemático. Esse grupo de mestres e estudantes, tidos como 261

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hereges1, simpatizantes de uma ideologia diferente daquela inculcada pela classe dominante, eram os Goliardos. Os clérigos vagantes, assim como Goya, satirizavam com veemência a vida e o comportamento dos freires, a sociedade em geral e a Inquisição, na Idade Medieval e na Idade Moderna, respectivamente. Foi no século XVIII, que Goya criticou estes e outros males sem seguir uma ordem rigorosa. As obras do artista da corte, denunciavam de maneira sofrida e contundente horrores inerentes a Idade Moderna em pleno século das luzes. É verídica a percepção de que, nestas épocas, as artes invariavelmente se tornaram espaços alternativos de manifestação de preocupação religiosa. Desta maneira, a criação artística tinha por mérito a penetração na qualidade oculta das coisas. Para TILLICH (2000, p. 53): A arte nos faz conscientes de algo que, de outro modo, não atingiríamos. Ela é, portanto, uma das formas pelas quais o ser humano é capaz de transcender sua finitude (...) Por meio dela, aquilo que está enraizado no fundamento do ser é descoberto. Esse é o grande milagre da arte.

O grande valor da arte, consequentemente, é a sua capacidade de expressar as referências que determinada época, cultura ou movimento possui. Contudo, embora em períodos diferentes, os Goliardos, através do Carmina Burana, e Goya, através de Os Caprichos, representaram a manifestação contrária a uma sociedade exclusivamente regrada aos costumes absolutistas da Igreja Católica, e mais que isso, intensificando a relevância do surgimento do Iluminismo e de outros movimentos reformadores. O poema A mesma mão que dá propina e a tela 23 Aquellos polvos Exponha-se um trecho do poema A mesma mão que dá propina, dos Goliardos: A mesma mão que dá propina faz pecar qualquer cristão desavenças elimina, a grana chama a razão, os discordantes ela afina, ao conflito dá solução. O juízo dos prelados depende dos ducados Juízes, vossa sentença a grana não dispensa! (...) (...)Quando a grana é quem manda, a justiça enfraquece, toda causa que desanda vitoriosa aparece, o pobre perde seu direito quando a grana faz o pleito; 1

Eram considerados hereges, pela Igreja Católica, aqueles que possuíam doutrina ou linha de pensamento contrários ou diferentes do sistema religioso padrão. Para acompanhar uma assertiva de Georges Duby, “todo herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos outros” (DUBY, 1990, p. 177).

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seu processo já naufragou se ao juiz nada pagou a justa causa declina só por falta de propina. (CB nº 1)

Tal poema satiriza a avareza dos prelados e, em particular, à corrupção dos juízes e tribunais eclesiásticos desta época. É uma comparação plena feita aos líderes religiosos católicos da Idade Média. A Semântica do poema traz que a mão trazendo propina faz do homem piedoso um ímpio; o dinheiro, quando ministrado de forma errônea, resulta em alianças, torna-se conselheiro e aparador de arestas. Em A mesma mão que dá propina/ faz pecar qualquer cristão/ desavenças elimina/ a grana chama a razão é feita uma analogia plena entre os ricos e os pobres, estando estes últimos na posição dos derrotados, que são injustiçados e nunca têm direitos. Já aqueles, os ricos, que estão envolvidos com a Igreja, tomam o dinheiro como fonte de paz: estes detêm a razão e o conhecimento, segundo a Igreja Católica, e isto é criticado veementemente pelos Goliardos. O juízo dos prelados/ depende dos ducados/ Juízes, vossa sentença/ a grana não dispensa! Nestes versos, percebe-se uma acusação aos graves erros cometidos pelos juízes, que, por dinheiro, julgavam as sentenças, muitas vezes condenando pessoas inocentes. Já na última estrofe, a justiça do prelado é colocada como injustiça, em (des) cumprimento às leis. O dinheiro é visto, no ângulo da ganância humana, como sujeito causador dos males. Em relação a célebre coleção de obras satíricas, Os Caprichos, na tela de numeração 23, Aquellos polvos, o pintor Francisco Goya expõe indignação e reprovação para com a ganância dos inquisidores do seguinte modo: pinta um prisioneiro com as mãos atadas, e cabeça baixa, como se estivesse em plena reverência a excelência católica, ou como se este fosse um ato de autoculpa, na densidade do ter que revelar, ainda que não haja nada a ser dito. Sentado em uma plataforma, de frente para o líder religioso, além de estar perante a população (com algemas e amarraduras, estando sua cabeça afundada no peito em símbolo de vergonha), o homem é obrigado a ouvir a leitura de sua declaração/sentença. Do púlpito para a presença de uma grande camada eclesiástica se constrói um sentimento de pavor e tensão, na espera do que provavelmente aconteceria: o castigo de declaração de morte, ao réu. Aquellos polvos (os pós), traz semanticamente a ideia de que ele, o acusado, trouxe essa lama, ou seja, trouxe o pó/lama – a sujeira de outra cultura, ou de outra prática que não fosse a clerical. O poema Soa alto, em campo aberto e a tela 52 No hubo remedio Segue um trecho do poema Soa alto, em campo aberto dos Goliardos: (...) Aos prelados, a morte espera, nenhum deles de graça opera, nas ordens sacras ingressando, fazem votos, por Deus jurando; uma vez no trono sentados esquecem logo os votos sagrados; a rosa vira planta vulgar, um covil em vez de altar!

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ladrões, maus legisladores, da lei de Deus destruidores (...) (CB nº 10)

O poema, mais precisamente o trecho apresentado, retrata o interesse absurdo dos prelados em vender os dons espirituais, como é ressaltado no exemplo da venda das indulgências. O clero demonstrava, de acordo com as más atitudes da Igreja Católica, uma veemente contradição em relação às juras sagradas antes realizadas. Na linguagem clara do poema, podemos notar que, segundo os goliardos, os prelados faziam da casa de Deus, um comércio, um refúgio de salteadores, ferindo assim a ordem e a lei cristã. É notória a sátira contra a sovinice clerical, principalmente no que se refere ao ato da venda de vantagens espirituais. A interpretação do poema goliardesco é totalmente refletida na análise da tela 52 de Goya, No hubo remédio (Não há remédio), a qual retrata uma mulher pobre, que considerada bruxa, é condenada à fogueira pelo Tribunal da Santa2 Inquisição. A característica da mulher herética, ou seja, possuída pelo demônio, é capaz de produzir tanto medo quanto ansiedade nas pessoas que a condenaram e, por conseguinte, a acompanham para a morte. Considerações Finais Através do estudo elaborado, compreende-se como se deu a construção ideológica, pictórica e literária das críticas estabelecidas entre duas épocas: a média e a moderna, no campo da arte. A representação de como a sociedade foi vítima em épocas remotas é para que, na atualidade, o ser humano possa modificar os costumes que ainda deixam marcas. Quando a Inquisição é posta em temática, objetiva-se que sua representação estética e semântica sensibilize o ser humano em seu mais íntimo nível, no propósito de que ele entenda todo o seu processo de hierarquização apostólica, no território da conduta de expressão. Independente de a poesia goliardesca ser secularmente anterior às produções pictóricas de Francisco de Goya, estes eixos, quando unidos em perspectiva criticista e inovadora, requerem mudança, apelam (através da arte literária e imagética) para que as más condutas humanas sejam modificadas. Não se defende que o único polo antagônico a uma boa vivência social aqui expresso seja o das práticas da Igreja Católica, em seu esconderijo dogmático, mas que este, por ser tão desumano, inundou o homem em seu excesso de angústia e proibições. Portanto, na interação entre palavra e imagem, poesia e pintura (e considerando-se que a história e a literatura são, em grande escala, veículos representativos e/ ou simbólicos da gênese humana) que se estabelece, neste produto, linhas de crítica e protesto contra os falsos testemunhos da Igreja, através do tempo.

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Esta palavra, se observada no contexto histórico, é totalmente adversa às próprias práticas da Igreja. É utilizada para firmar a própria Igreja como “imaculada”, sem erros, a que detém poder, mas também para servir de cobertor de seus absurdos. Bakhtin (1996, p. 9) destaca que a própria Igreja, a princípio, em determinadas festas religiosas, permitia que o sagrado fosse dessacralizado.

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Referências COVRE, B. Os Caprichos de Goya. Revista Os triunfos do Carnaval – MAES. Espírito Santo: UFES, 2010. HUGHES, R. Goya. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. MALRAUX, A. As vozes do silêncio II. Coleção Vida e Cultura. São Paulo: Livros do Brasil, 1988. ROSENFIELD, K. H. A história e o conceito na literatura medieval. São Paulo: Brasiliense, 1986. SARAIVA, A. & LOPES, O. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1975 SPINA, S. A lírica trovadoresca. São Paulo: EDUSP, 1991. TILLICH, P. História do pensamento cristão. Trad. Jaci Maraschin. São Paulo: ASTE, 2000. WACHT, P. Os fantasmas de Goya. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. WOENSEL, M. Carmina burana. São Paulo: Ars poética, 1994.

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UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA FEMININA NAS GUERRAS GERMÂNICAS DO IMPÉRIO ROMANO À ERA VIKING Gustavo Braga Santos (UFMA) [email protected] INTRODUÇÃO O Livro Germânia, publicado em 98 d.C., de Publius Cornelius Tacitus, serve como um tipo de "tutorial" de como viver como um germano. Pois o escritor descreve os hábitos desse extenso povo (alimentação, religião, cerimônias, relações de poder, casamento, criação dos filhos, etc.) composto de dezenas de tribos diferentes e que possuem diferenças entre si também. O texto é dividido em duas partes: uma que se refere aos germanos em geral (I XXVII) e outra que aborda cada povo germânico, sua história e relação com o Império Romano e outras tribos (XXVIII - XLVI). Entre os tópicos descritivos de Tácito, está a figura feminina, com suas admiradas capacidades prognósticas, responsável pelo bem estar da família e do lar, e por incentivar seus maridos e filhos em tempos de guerra. EM TEMPOS DE GUERRA No capítulo VII da obra, Reis, Chefes e Mulheres, é mostrado por Tácito o papel da mulher em tempos de batalha, que fazia ouvir seu lamurio, em conjunto com o de suas crianças, nas adjacências das formações militares. Elas permaneciam ali para prestar a seus filhos e esposos, o apoio de que necessitavam, tratando de seus ferimentos e lhes trazendo comida. “Da constância de suas preces e oferecimento de seus seios”. O incentivo por parte das mulheres em tempos de guerra também é presente no capítulo VIII, Veleda e Aurínia, na qual se mostra o valor da mulher como prova de fidelidade por parte de cidades germânicas, das quais são demandadas, ao invés de homens, mulheres nobres, devido a seu valor. Eles as acreditam como tendo algo de santidade e providência: “Não desprezam seus conselhos nem desatendem suas previsões” (TÁCITO, 98, Cap.VIII) Como extrema expressão do poder feminino, ressaltamos Veleda, vidente líder dos Bructeros e instigadora de uma rebelião contra o Império Romano, então comandado por Vespasiano; por muito tempo adorada como deusa, da qual falaremos com mais minúcia no curso do trabalho.

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Outras mulheres eram também consideradas deidades terrestres, como Aurínia, porém não contemporaneamente nem no mesmo lugar que Veleda. E não o eram simplesmente por lisonja ou por mero "endeusamento", mas por merecimento. ÚNICA ESPOSA As vestes femininas se resumiam geralmente a um vestido simples, sem mangas e com a parte superior do peito descoberta, como descrito no capítulo XVII da obra, Vestuário. Além disso, Tácito aponta os germanos como sendo um dos poucos povos bárbaros que, por via de regra, tomavam para si uma esposa somente; excetuando os casos em que o homem era solicitado por muitas esposas por motivo de nobreza. BOIS, CAVALO, FRÂMEA E GLÁDIO No capítulo XVIII, Do Matrimonio, são expostas as etapas de uma união nupcial, que era dividida em diversos rituais ou cerimônias, não detalhadamente descritas por Tácito, mas que podemos citar: Primeiramente, é o marido quem oferece dote à mulher, não o inverso (lembrando que estamos trabalhando a partir do ponto de vista romano). O dote é direcionado, sobretudo para os pais e parentes da noiva, não para o adorno da nubente ou para a satisfação de sua vaidade, e sim para a manutenção e enriquecimento da família. Eram estes: “bois e um cavalo arreado e um escudo com a frâmea¹1 e o gládio²2” (TÁCITO, 98, Cap. XVIII). Com o aceite por parte da família, é a vez da mulher de oferecer regalos ao noivo: Armas são ganhas pelo prometido, sendo este um dos mais importantes rituais da união, “um designo dos deuses”, no qual a mulher afirma de forma indireta não se julgar alheia aos eventos de guerra e de coragem de seu companheiro. A mulher é advertida de seus deveres para com o marido no curso das próprias cerimônias matrimoniais, e aconselhada a ser “companheira de trabalhos e perigos do marido, com quem deve sofrer e lutar não só na paz como na luta; os bois jungidos, o cavalo equipado, as armas doadas, assim lhe ensinam.” (TÁCITO, 98, Cap. XVIII)

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De acordo com o capítulo VI, A Direção da Arte Bélica, era uma arma germânica de fino e curto ferro, usada na agricultura para fins bélicos quando necessário. Era de fácil manejo, podendo tanto ser utilizada de perto como de longe, dependendo das circunstâncias. 2 Arma relativamente curta, no início porque eram feitas de bronze e mais tarde porque elas eram, raramente, usadas para penetrar armaduras de ferro. A lamina era a espada de perfuração da Roma clássica, o gládio, possuía somente dois pés de comprimento, no entanto, nos anos de crepúsculo do império o gládio foi substituído por uma longa e cortante espada bárbara.

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O ADULTÉRIO Segundo descrito no capítulo XIX, Mulheres e Libertos, era escasso o número de adultérios comparado ao montante populacional, mas quando ocorriam, o marido possuía permissão imediata para punir a esposa: “de cabelos cortados, desnuda na presença dos parentes, o marido a expulsa de casa e a persegue, de açoite por toda a aldeia; não há na verdade perdão, não encontrará marido, nem tendo beleza, nem tendo riqueza.” (TÁCITO, 98, Cap. XIX). Há cidades em que só as virgens se casam e que um é o limite fixado de vezes que uma mulher pode votar. Ensina-se à mulher a ser, em conjunto com o marido, como uma só vida e uma só alma, para que não exceda os limites do pensamento e seu desejo não seja muito intenso. O BEM DA FAMÍLIA O bem da família é muito valorizado nessa sociedade, logo “limitar o número dos filhos ou matar algum nascido é considerado infâmia, pois os bons costumes valem aí mais do que as boas leis.” (TÁCITO, 98, Cap. XIX). Em relação aos filhos, segundo o capítulo XIX, Mulheres e Libertos, as mães não abrem mão de sua alimentação para amas. A puberdade dos jovens germanos é prolongada comparada à romana, pois os garotos conheciam tarde as mulheres e as meninas não eram casadas tão cedo, devendo seu nubente ser igual em corpo, idade e força. Como aponta o historiador italiano Antonio Piccarolo: “abstendo-se de toda relação sexual. Uma das coisas mais feias e reprováveis para eles é ter relação com mulheres antes dos vinte anos.” A casa dos tios é tão estimável como a do pai. Logo, os filhos e irmãos são herdeiros e sucessores do pai sem necessidade de testamento. Não há vantagem para eles em não constituir família, pois a velhice é mais agradável para quem possui mais parentes. OS ESCRAVOS No capítulo XXV, A Direção Dos Lares, seria de se esperar que o papel da mulher fosse abordado mais detalhadamente. Porém, o capítulo se trata da relação senhor/escravo, que Tácito compara à romana. Do lado romano o escravo era oprimido, cruelmente maltratado, considerado objeto de estrita propriedade e uso; enquanto que o escravo germânico era muito semelhante ao liberto, com a diferença de que não possuía autoridade nem mesmo dentro de sua casa, enquanto aquele a tinha, a pesar de nenhuma na cidade. Possuía a posse (porém não a propriedade) de sua casa, sua família e uma terra para lavrar,

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tendo que pagar um tributo em grãos, gado ou em vestes para o seu senhor, enquanto as mulheres e os filhos prestavam outros serviços à casa. “Raras vezes espancam o escravo ou o amarram, ou forçam-no a trabalhar: porque matam-nos, não por castigo, nem severidade, mas quando cegos de paixão ou de cólera como se fora algum inimigo, ainda que o façam sem nenhuma penalidade.” (TÁCITO, 98, Cap. XXV).

"ÀS MULHERES O PRANTO" Com a morte de um importante guerreiro germânico, era feito seu funeral, não muito pomposo. O corpo do ilustre homem era incinerado, sem vestes ou perfumes, lançando-se ao fogo somente suas armas e por vezes seu cavalo. Às mulheres era reservado o pranto; aos homens a memória: Erigem a sepultura de relvas: desprezam a vanglória do lavor dos monumentos como coisa grave e molesta aos defuntos. Deixam bens as lágrimas e os prantos, e tardiamente a dor e a tristeza. O pranto convém às mulheres e a recordação aos homens. (TÁCITO, 98, Cap. XXVII)

AS PROFETISAS GERMÂNICAS Não obstante este trabalho ser concentrado numa sacerdotisa de fato, ou seja, considerada uma por numerosas tribos germânicas da época, às mulheres em geral eram atribuídas capacidades mágicas, mesmo que não gozassem de qualquer proeminência social nesse sentido. O capítulo VIII da Germânia de Tácito (98 d.C), Veleda e Aurínia, aponta o papel das mulheres no incentivo ao combate e o crédito dado a elas por seu poder antevidente: Rememora-se que exércitos indecisos foram incentivados pelas mulheres, da constância de suas preces e oferecimento de seus seios, e pelo cativeiro pressentido próximo, de que se arreceiam muito mais para as suas mulheres do que para eles próprios, de tal modo se demanda com mais eficácia o compromisso das cidades, delas exigindo-se entre as presas moças nobres. Acreditam ainda que elas tenham algo de santidade e de previdência, não desprezam seus conselhos nem desatendem suas previsões. Vimos sob o divino Vespasiano, Veleda considerada pela maioria, por longo tempo, como deusa; e adoraram, também, algures, Aurínia e outras deusas, não por lisonja, nem para endeusá-las. (TÁCITO, 98, Cap.VIII)

Nota-se que até mesmo eram preferíveis mulheres a homens para serem exigidas como demonstração de fidelidade entre as cidades.

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Uma das sacerdotisas mais influentes do primeiro século da Era Comum foi Veleda, da qual mais informação se possui em relação a outras mulheres deificadas pelas tribos germânicas da época. Veleda era uma Volva, da tribo germânica dos Bruteros³3 que conquistou alguma proeminência durante a rebelião dos Bátavos de 69-70 d.C., encabeçada pelo líder bátavo romanizado Gaius Julius Civilis, quando ela corretamente previu o sucesso inicial dos rebeldes contra as legiões romanas. O nome pode não o seu de fato, mas sim um nome profissional, um título genérico para uma profetisa (Nórdico antigo "vala"), significando “aquela que vê”. A antiga população germânica via uma divindade profética nas mulheres e as consideravam profetisas tão verdadeiras como deusas viventes. Na segunda metade do primeiro século d.C., Veleda era considerada como uma deidade pela maioria das tribos da Germânia central e gozava de ampla influência. Ela vivia numa torre próxima ao Rio Lippe, afluente do Rio Reno. Os habitantes do acampamento romano da colônia de Claudia Ara Agrippinensium (atual cidade de Colõnia, Alemanha) aceitaram sua arbitragem num conflito contra os Tenteros, uma tribo não-federada da Germânia (fora da fronteira do Império Romano). Em seu papel como árbitra, os mensageiros não eram admitidos a sua presença; um intérprete levava a ela as mensagens e reportava seus oráculos. Civilis, o líder bátavo, originalmente ofereceu sua força como aliado de Vespasiano durante a disputa de poder romano em 69 d.C., mas quando viu a frágil condição das legiões da Germânia romanizada ele se revoltou abertamente. Não é claro se Veleda meramente profetizou a rebelião ou efetivamente incitou-a; dada a adoração dos Germanos a ela como uma deusa, remota em sua torre, a distinção pode não ter sido clara à época. No começo do ano 70 d.C, a revolta foi aderida por Julius Classicus e Julius Tutur, líderes dos Trevires, que, como Civilis, eram cidadãos romanos. A guarnição romana de Novaesium (hoje Neuss, Alemanha) se rendeu sem mesmo lutar, assim como fez a guarnição de Castra Vetera (perto da moderna Xanten em Niederrhein, Alemanha). O comandante da guarnição romana Munius Lupercus, foi enviado a Veleda, no entanto, ele foi morto na viagem, evidentemente numa emboscada. Mais tarde, quando o tri remo pretoriano foi capturado, ele foi mandado Rio Lippe acima como um presente para Veleda. Uma grande demonstração de força por parte de nove legiões romanas comandadas por Gaius Licinius Mucianus causou o colapso da rebelião. Civilis foi encurralado em sua casa na ilha da Batávia, no baixo Rio Reno, por uma força comandada por Quintus Petilius 3

Os Bruteros foram outrora comarções dos Tenteros: mas agora segundo a narrativa ocuparam suas terras os Chamavos e Angrivários, depois de terem expulsado e destruído totalmente os Bruteros com o consentimento das nações circunvizinhas, ou por ódio que lhe votavam conseqüente de sua soberba ou pelo desejo (prazer) da presa ou por alguma mercê particular que foram servidos de fazer-nos os deuses; já que também não nos negaram o gosto de semelhante espetáculo

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Cerialis; seu destino é desconhecido, mas em linhas gerais Cerialis tratou os rebeldes com surpreendente lenidade, a fim de reconciliá-los às regras romanas e ao serviço militar. No caso de Veleda, ela foi mantida em liberdade por vários anos. Em 77 d.C os romanos a capturaram, talvez como refém, ou para oferecerem-na asilo. Seu raptor foi Rutilius Gallicus. Um epigrama grego, achado na Ardea, a alguns quilômetros a sul de Roma, satiriza seus poderes proféticos. Veleda pode ter agido a favor de Roma quando negociou a aceitação de um rei pro - Roma pelos Bruteros em 83 ou 84 d.C. Ela evidentemente já havia falecido à época em que Tácito escreveu sua Germânia em 98 d.C.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os povos germânicos são responsáveis pela construção de boa parte da História e genealogia da Europa, pois não havia fronteiras para seu avanço, tendo cada país europeu atualmente uma fatia do seu legado. Por intermédio de tão valorosa fonte como a obra de Publius Cornelio Tacitus, fazemse acessíveis informações de igual valor, além do conhecimento da realidade de parte do território europeu da época e os hábitos de vida dos germânicos e romanos. Em relação à mulher, é sempre importante destacá-la como detentora de boa parte da matéria para o funcionamento de qualquer grupo social. À mulher germânica, além de pertencer a edificação de seu lar, pertencia também o futuro. E tal mulher, tendo Veleda como exemplo, se mostra de imenso poder sobre a história de um povo, mesmo que não esteja na linha de frente ou que não necessite mostrar seu rosto. Mas está lá, por trás, emitindo suas parcelas de autoridade no funcionamento da sociedade. REFERÊNCIAS GLÁDIO. TÁCITO, Publius Cornélio. Germânia, 2001. . VELEDA.

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AS VALQUÍRIAS NO IMAGINÁRIO VIKING João Paulo Garcia Teixeira (UFC/Valknut) [email protected] Quando falamos sobre as Valquírias, geralmente a primeira imagem que vem na mente, de pessoas que não tem um estudo aprofundado na mitologia nórdica é aquela imagem mais conhecida que se tem das Valquírias - guerreiras que são servas de Odin e que durante uma batalha, elas levam os guerreiros mortos para o Valhalla, para lá banquetear esperando o Ragnarok ( o destino final dos deuses )- porém, quando passamos a ter um estudo mais aprofundado do assunto, especificadamente sobre as Valquírias, percebemos que na verdade essa é apenas uma de várias outras interpretações que se existiu sobre as mesmas. É esse o objetivo do presente trabalho, mostrar as várias formas nas quais, essas entidades foram representadas e imaginadas pelos povos germânicos, desde o período pré- viking e passando por todo o período viking1 e para isso irei usar como base alguns trabalhos do prof. Johnni Langer, de Hilda R. E Davidson entre outros, bem como a utilização de algumas das principais sagas existentes sobre os Vikings. A sociedade viking era dividida em dois grupos, os karls(homens livres) e os Thrall(escravos), a maior parte dos homens livres, que eram fazendeiros, comerciantes, agricultores, eram mais adeptos ao culto aos deuses Vanir2, justamente os deuses ligados a fertilidade e a prosperidade, e já os membros da aristocracia eram mais ligados aos culto do deus Odin, a quem as Valquírias estão ligados. Essa ligação da aristocracia com os deus Odin e juntamente com ele as Valquírias acabou gerando uma hipótese relacionada as questões de interesse social e político, “Nossa principal hipótese é a de que o mito das Valkyrjor esteve vinculado a certos fatores sociais relacionados com a aristocracia e a realeza – com finalidades de legitimação dos poderes políticos e sociais destas mesmas classes.”(LANGER, Jonnhi.2009,p.59). Existem algumas divergências entre historiadores, a respeito de quantas formas diferentes as Valquírias foram imaginadas, alguns dizem em três imagens, outros falam em quatro, porém em todas essas formas diferentes na qual as Valquírias foram representadas, elas sempre foram ligadas como entidades relacionadas a guerra, a conflitos. Na descrição de Snorri3 da vida no além para os guerreiros, há certos seres que formam um elo entre Odim e os aniquilados, e entre os mundos dos 1

Período que é compreende a expansão viking, começa no ano de 793 com o ataque ao mosteiro de Lindisfarne e se estende até 1066, quando começam as conversões dos pagãos para o cristianismo. 2 Um dos “clãs” pertencentes a religião nórdica, na qual temos os Æsir, que são deuses que residem em Ásgarðr,e são os deuses relacionados com as guerras. Formam também o principal panteão dos deuses nórdicos, nos Æsir incluem-se ai deuses como: Odim,Thor,Heimdall,Loki, Baldr entre outros. Os Vanir são deuses relacionados a prosperidade e a fertilidade, possuíam um grande conhecimento em magia, viviam em Vanaheim, entre os deuses pertencentes aos Vanir estavam: Frey, Freyja, Njord.Além desses dois clãs, existiam ainda as Norns, os Jotnar, dragões e outros seres que hoje em dia são ligados a fantasia. 3 Snorri Sturluson foi um poeta islandês que viveu de 1178 até o ano de 1241, é conhecido como o escritor da Edda em Prosa que é considerada uma das importantes fontes sobre a mitologia nórdica, possui também a autoria

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vivos e dos mortos. São espíritos femininos chamados de Valquírias, que aguardam os guerreiros em Valhalla; e nenhuma descrição dos deuses da batalha estaria completa sem ela. (DAVIDSON, Hilda.2004, p.50)

E o presente trabalho irá explorar todas essas imagens das Valquírias, não se prendendo ao trabalho de apenas um desses historiadores e as suas conclusões a respeito das Valquírias. A palavra Valkyrjor significa “a que escolhe os mortos”, porém desde tempos remotos, os germanos pagãos já acreditavam em uma entidade, que também era relacionada a guerra, que se chamava Wælcyrge, palavra essa que também significava “a que escolhe os mortos”. As Wælcyrge: Valquírias sanguinárias As wælcyrge, correspondem a representação mais antiga das Valquírias, e nessa imagem elas aparecem como entidades sanguinárias, “ferozes espíritos femininos seguindo os comandos do deus da guerra, espalhando a desordem, participando de batalhas, agarrando e talvez até devorando os mortos”(DAVIDSON, Hilda.2004,p.51).Elas também apareciam em sonhos para guerreiros antes das batalhas, a principal fonte que conta sobre essa representação das Valquírias é um poema chamado passagens das lanças (Darraðarljóð), que está presente na Saga de Njal, e nesse poema ele conta que em um sonho de um guerreiro, que estava prestes a travar uma batalha, um grupo de mulheres foram vistas tecendo uma espécie de tapeçaria, que era feita com as entranhas de pessoas mortas: A urdidura é feita de entranhas humanas; Cabeças humanas são usadas como pesos; As varas do tear são lanças encharcadas de sangue; As hastes são firmes, E flechas são as lançadeiras. Com espadas nos tecemos. A teia da batalha (Saga de Njal.Retirado de LANGER, Johnni.2009.p.61)

Tecemos, tecemos a teia da aliança, Enquanto vai adiante o estandarte dos bravos. Não deixaremos que ele perca a vida; As Valquírias têm o poder de escolher os aniquilados... (Saga de Njal.Retirado de DAVIDSON,Hilda. 2004,p.54)

Na primeira estrofe escrita acima, nós podemos ver claramente a questão das entidades sanguinárias, geradoras de carnificina em batalhas. As wælcyrge também aparecem em alguns manuscritos cristãos anglo-saxões a partir do século VIII como por exemplo o sermo lupi, Corpus Christi entre outros, também tendo as características sobrenaturais e sanguinárias, em listas de seres praticantes do mal, junto com pecadores e bruxos.

da Heimskringla, na qual fala sobre os reis escandinavos , é autor de várias fontes sobre os escandinavos utilizados hoje em dia.

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Já na segunda estrofe, é visível também a imagem das Valquírias como agentes do destino da batalha, na qual elas escolhem quais guerreiros irão morrer e assim tendo um certo controle sobre os vencedores e os derrotados , função essa parecida com a das Norns4.Uma hipótese existente sobre essa imagem tão violenta das Valquírias, está relacionado com as sacerdotisas dos antigos cultos para os deuses da guerra germânicos. “Como a maioria desses cultos eram muito violentos, contando em algumas vezes com sacrifícios humanos após os conflitos, o mito de seres femininos sangrentos poderia ser uma lembrança desse aspecto religioso.” (LANGER, Johnni. 2009, p. 61). Sem falar que na maioria das vezes esses sacrifícios humano, a pessoa escolhida para morrer ocorria aleatoriamente, e dessa forma se criava uma situação na qual, parecia que os deuses teriam escolhido os que iriam se sacrificar por intermédio das sacerdotisas. As Valquírias como as guerreiras de Odin Foi com o período viking que as Valquírias tiveram a sua representação menos violenta como foi no passado, a partir de agora as Valquírias se apresentam na sua forma mais famosa, conhecida e popular. Aqui apresentam duas funções, são as guerreiras, que são enviadas por Odin para as batalhas para lá escolherem os guerreiros que irão morrer e serão levados para o Valhalla, e chegando lá passam a exercer uma outra função que é a de servir bebidas aos guerreiros no Salão dos Mortos(Valhalla), como se fossem taberneiras. Existem algumas fontes que trazem justamente essa representação das Valquírias, vestidas com armaduras e possuindo nomes que se referem a batalhas como a Edda poética, porém quando passamos para o lado iconográfico, dificilmente encontramos alguma imagem que relacione as Valquírias como guerreiras, vestidas para a guerra, na sua maioria, as imagens que se conhecem são de mulheres com vestidos e portando um corno de bebidas para servir a alguém, imagem essa de submissão ao homem. Em uma sociedade dominada por uma visão totalmente masculina, a representação da jornada de um guerreiro do mundo dos vivos para o mundo dos mortos não podia ser questionada ou abalada. Caso uma valkyrja fosse representada portando armas e montando cavalos (a exemplo dos guerreiros das estelas), ela seria um elemento contra a ordem de legitimação dos triunfos da realeza e dos heróis. Assim, a sua imagem como serviçal reforça as representações de uma grande recompensa para uma vida marcial masculina, além de manter a ordem odinísta. (LANGER, Johnni.2009, p.64)(Ver anexo no final)

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As Norns são deusas pertencentes a mitologia nórdica, e são responsáveis pelo destino tanto dos homens quanto dos deuses, temos a Urð que é uma espécie de guardiã do passado, é representada como uma mulher bem velha, que guarda o passado, temos a Verðandi que representa o presente, é representado como uma mulher na qual os acontecimentos são tecidos por seus pensamentos e temos Skuld que representa o futuro, é representada por uma virgem e é responsável pelo destino.

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As Valquírias como donzelas-cisnes e protetoras dos heróis Uma outra representação das Valquírias é a das donzelas-cisnes, nesse caso ocorre uma espécie de “domesticação” das Valquírias, elas apresentam um aspecto de cisnes,em algumas fontes que falam sobre a representação das donzelas-cisnes, elas são pegas como esposas de filhos de reis e passam a ter uma vida comum, um exemplo de fonte sobre as mesmas, é a Balada de Volundr (Vöundarkviða). Essa relação entre Valquírias donzelascisnes e o casamento com filhos de reis servem como uma forma de legitimação do poder daquele rei, em todas as narrativas na qual as donzelas-cisnes estão inseridas elas aparecem como filhas de reis e são casadas com outros filhos de reis que mostram ser guerreiros bravos e sem nenhum temor, bem como o simbolismo do animal, que vem da sua cor branca, vincula-se com a manifestação do poder e graça da luz(LANGER, Johnni.2009,p.65). Na Völsunga Saga, em um curto capítulo, nós podemos ver também as Valquírias servindo como protetoras do destino do herói, nesse caso especificamente nós falamos do herói Helgi e da Valquíria Sigrun, na qual depois de se conhecerem e se apaixonarem um pelo outro, Sigrun passa a proteger Helgi nas suas aventuras, a exemplo de uma travessia que era feita por Helgi, onde deu uma forte tempestade deixando o mar extremamente agitado, e quando estavam prestes a morrer devido a tempestade, aparece Sigrun e os salva, levando-os para um porto seguro em terra firme. Além disso, temos também a presença de Sigrun, durante as batalhas travadas pelo seu amado Helgi, sempre tendo o mesmo, aos seus olhos e o protegendo de qualquer ameaça contra sua vida, a exemplo de quando o herói Helgi trava um batalha em um lugar chamado Frekastein, um dura batalha, onde muitos homens foram mortos tanto do lado de Helgi quanto do seu inimigo, até que surgem um grupo de donzelas cavalgando no ar acima deles e uma dessas mulheres era Sigrun, e a partir dai Helgi se lança para o seu inimigo, o rei Hodbrodd, e o mata. As duas partes se encontravam no lugar chamado Frekastein e lá se travou uma dura batalha. Helgi avançou através das tropas inimigas. Muitos homens tombaram mortos. Então eles viram um grande grupo de donzelas cavalgando com escudos, e era como se estivessem olhando para as chamas. Estava lá a princesa Sigrun. O rei Helgi se lançou contra o rei Hodbrodd e o matou sob os estandartes. (Völsunga Saga Traduzida do islandês antigo. MOOSBURGER,Théo de Borba,2009,p.57) As Valquírias na Völsunga Saga Continuando a falar sobre a Saga dos Volsungos, nós já falamos sobre a relação entre o herói Helgi e a Valquíria Sigrun, porém ainda nessa saga nós temos a aparição de uma outra Valquíria, nesse caso a Brynhyldr (Brynhild), que foi imortalizada nas óperas de Richard Wagner, e se tornou a Valquíria mais famosa que se existiu, na saga, após o herói Sigurd, matar e comer o coração do dragão Fafnir, ele passa a ouvir a língua dos pássaros e descobre que no alto da montanha Hindarfiall está uma Valquíria que se chama Brynhyldr, ele vai até lá, consegue encontra-la, nesse momento, ela conta o motivo de estar presa, pois desobedeceu a Odin e a partir daí a história tem o seu desfecho, com os dois se apaixonando, porém certos de que esse é um amor proibido, nesse encontro entre Sigurd e Brynhyldr ela acaba ensinando 275

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para o herói o que sabe sobre as runas e também o aconselhando sobre o convívio, como o que poderia ou não acontecer, dependendo das decisões tomadas por Sigurd.

Runas da fala deves conhecer Se queres que ninguém Com ódio repague-te danos Tens de agitá-las, Misturá-las Dispô-las todas juntas Naquele foro Runas de ajuda deves usar Se quiseres obter auxílio E retirar da mulher a prole. Deves na palma cortá-las E segurar na mão dela E pedir às donzelas ajuda. (Völsunga Saga Traduzida do islandês antigo. (MOOSBURGER, Théo de Borba, 2009, p. 82, 83)

Ainda na Saga dos Volsungos, é possível ver uma dualidade, presente na questão do papel da mulher na sociedade escandinava, de um lado nós temos a irmã de Brynhyldr, que se chama BekkHyldr5, que sempre foi submissa ao seu marido, e sempre se empenhou em fazer as atividades domésticas e de um outro lado nós temos a Brynhyldr, que usa cota de malha, elmo, espada, que não se preocupa com afazeres de casa e também não perde a oportunidade da ir a uma batalha,motivo esse dado por ela ao herói Sigurd para os dois não poderem ficar juntos, pois como ela mesmo diz ela é uma mulher da guerra, mostrando assim uma imagem de não sujeição ao homem. também verificamos que as donzelas-cisnes foram capturadas e tornaram-se simples mulheres com a união matrimonial: ‘casar-se com um homem é, para uma Valquíria, pura punição infligida por Odin’(BOYER, 1997b: 746). Tornando-se apenas reprodutoras da prole real, elas deixam de ser uma ameaça ao ideal guerreiro. (LANGER, Johnni. 2009, p.72)

Com o passar do tempo, nós fomos vendo as várias formas, nas quais as Valquírias foram imaginadas pelo povo germânico, começando com as Wælcyrge na antiguidade, no período viking, passando a ser seletoras dos guerreiros nas batalhas e receptoras dos mortos nas batalhas no Valhalla, passando por donzelas-cisnes, protetoras dos heróis, guerreiras e filhas de reis. No período viking esse mito pode ser um pouco explicado pelo fato de os mitos e as tradições serem feitas oralmente, e certamente sempre houve uma intenção dos contadores de dignificar e glorificar certas histórias, e para isso eles tiveram que também

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Brynhyld, o radical Bryn significa “cota de malha” e isso nós podemos relacionar com a atividade de guerreira, na qual Brynhyldr se dedicava. Bekkhyldr, o radical Bekk significa “banco”, e isso nós podemos relacionar com atividade, na qual Bekkhyldr se empenhava em fazer que era os trabalhos domésticos.

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dignificar a imagem das Valquírias, não deixando elas terem a mesma imagem da antiguidade como agentes sanguinárias e maléficas. Ao mesmo tempo nós temos a questão da ligação das Valquírias com a aristocracia, em nenhuma das narrativas você vê as Valquírias sendo retratadas como escravas, camponesas ou outro membro das classe baixa, mais sim, sempre sendo ligada a filhas de reis e pertencendo a realeza, muitas vezes isso serviria para legitimar os poderes da classe alta e da realeza, pois o rei casado com uma Valquíria daria a impressão de que o próprio Odin teria legitimado aquele rei, como se o rei tivesse sido aprovado por Odin. Com isso, o mito legitima o poder real, o poder do Konungr(rei) e da classe dos Jarls em geral, em detrimento das outras divisões sociais. Colabora coma criação de vínculos odinistas com os guerreiros vivos, a exaltar os feitos gloriosos dos heróis mortos, a estabelecer uma conexão sobrenatural com o poder da classe guerreira e a realeza, a minoria dominante. (LANGER, Johnni. 2009, p.72) ANEXOS

Fig. 1: Pingente de prata (BOYER, 2004, p.29). Esse pingente representa uma das únicas imagens que mostram as Valquírias como guerreiras.Uma portando um escudo e de elmo, e a outra com uma cota de malha(o que dá pra entender sobre o quadriculado embaixo)

Fig. 2: As Valkyrjas, de Ferdnand Lekke, 1889. Depois das óperas de Richard Wagner, principalmente depis de “O Anel do Nibelungos”, as Valquírias passaram a ser vistas com 277

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uma imagem bem fantasiosa de uasr elmos com chifres ou com asas, como dá para perceber nessas imagens das Valquírias, na qual todas elas usam esses tipos de elmo.

Fig. 3: Estatueta de uma Valquíria. (Disponível em: http://www.elo7.com.br/estatuetavalquiria/dp/21D462) Já nessa imagem de Valquíria, nós podemos ver a imagem mais comum eu se tem a mesma, nesse caso, com um vestido, e segurando um corno de hidromel, para servir a alguém, possivelmente um guerreiro no Valhalla

Fig. 4: Brynyldr, de Arthur Rackham. (Disponível em http://pt.encydia.com/es/Valquiria) A imagem ao lado, mostra a Valquíria eternizada por Wagner nas suas óperas, que popularizou a maioria dos estereótipos existentes, nesse caso vemos, como fantasioso a cota de malha, esse elmo com imensas asas na lateral, ou seja todo o seu equipamento militar na condiz com a realidade.

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FONTES Elder Edda. Séc. X-XIII. Versão em Nordico Antigo e tradução em inglês por Benjamin Torpe. Saga dos Volsungos (anônimo do século XIII)/Organização e tradução de Théo de Borba Moosburger. São Paulo, Hedra, 2009. STURLUSON, Snorri. The Prose Edda: Tales from the norse mythology.Introdução, tradução e notas de Arthur Gilchrist Brodeur. New York,Dover publications. 2006 REFERÊNCIAS BOYER, Régis. Mulheres Viris. In: BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. José Olympio. 1997. COTTERELL, Arthur. Enciclopédia de mitologia clássica, nórdica e celta. China, central livros. 1998 DAVIDSON, Hilda Roderick Ellis. Deuses e mitos do norte da Europa. São Paulo: Madras, 2004. DAVIDSON, Hilda Roderick Ellis. Escandinávia. Verbo, 1987. GRANT, John. Introdução a mitologia Viking. Lisboa: Editorial Estampa, 2000 GRAHAM-CAMPBELL, James. Os Viquingues: origens da cultura escandinava I e II. Madrid: Del prado, 1997. LANGER, Johnni. Fúria Odínica: a criação da imagem oitocentista sobre os Vikings. Varia História, UFMG, n. 25, 2001 LANGER, Johnni. Simbolos religiosos dos Vikings: guia iconográfico. História, imagens e narrativas. N.11, 2010 LANGER, Johnni. Deuses, Monstros e heróis: ensaios sobre mitologia e religião Viking. Brasília, Editora da UNB,2009 LANGER, Johnni. Guerreiras na era Viking? Uma análise do quadrinho “Irmãs de escudo” (Série Northlanders). Roda da Fortuna: Revista eletrônica de Antiguidade e Medievo. N.1, 2012. LANGER, Johnni.”A morte de Odin?” As representações do Ragnarok na arte das ilhas Britanicas (séc. X). Medievalista. N.11, 2012 PAGE, Raymond Ian. Mitos Nórdicos. São Paulo: Centauro, 1999.

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ENTRE A AGULHA E A ESPADA: AS MULHERES GUERREIRAS NAS CRÔNICAS DE GELO E FOGO Jackson Franco de Sá Monteiro (UFMA) Johnni Langer Luciana Campos [email protected] A Nova História Cultural, o romance de fantasia e o medievo no imaginário contemporâneo A Nova História Anteriormente limitados às fontes tradicionais (documentos escritos e achados arqueológicos), os historiadores no século XX, principalmente a partir da segunda metade, incorporaram novos tipos de fontes na analise do passado, assim como abrangeram seus objetos de estudo. Parte desse processo de renovação no trabalho historiográfico deve-se à corrente teórica francesa denominada Escola do Annales. Responsável pela aproximação da história com demais ciências humanas; por abordar a história como processos de curta, média e longa duração ("la longue durée"), fundamental para compreender o conceito de mentalidades, que muito contribuirá no desenvolvimento da Nova História Cultural. Segundo Sandra Pesavento, “pode-se dizer que a proposta da História Cultural seria, pois, decifrar a realidade do passado por meio das suas representações, tentando chegar àquelas formas discursivas e imagéticas pelas quais os homens expressam a si próprios e o mundo” (PESAVENTO, 2005, p. 42). Com as mudanças na maneira de abordar a história, tornou-se necessário uma reformulação no arcabouço epistemológico do historiador, desenvolvendo conceitos mais adequados aos novos objetos e problemáticas propostas pela Nova História Cultural. Dois deles foram fundamentais na elaboração deste artigo. O primeiro é o de representações. Para Sandra Pesavento as representações “construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coerciva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade” (PESAVENTO, 2005, p. 39).

O segundo conceito é o de imaginário. Que podemos entender por um conjunto de ideias e representações coletivas que dão sentido ao mundo e desperta algum tipo de sentimento.

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Os romances fantásticos e o medievo no imaginário contemporâneo Existem várias categorias de romances que podem ser enquadrados em um gradiente de maior ou menor teor histórico. No romance histórico, a narrativa reconstroi personagens e acontecimentos históricos (Ivanhoe, Guerra e Paz, Operação Valquíria), era comumente utilizado por autores românticos para uma reinterpretação de fatos e personagens da história nacional, numa idealização e revalorização do passado (Olga, O Guarani, As Minas de Prata). Mesmo em romances completamente ficcionais, muitos autores optam por utilizar representações que remetem a uma determinada época. A idade média, por exemplo, serve como parâmetro na composição do universo de muitos romances fantásticos, como a série Crônicas de Gelo e Fogo, abordada neste artigo. Tal quais os romances de ficção cientifica e de terror, os romances de fantasia, como a série em questão, são um subgênero do Gênero Ficção. Caracteriza-se pela presença de seres mitológicos (dragões, elfos, orcs), magia e outras formas sobrenaturais, e segundo Tuttle, em Writing fantasy and science fiction, é a criação de mundos “(…) talvez o que mais diferencia fantasia e ficção científica de outros gêneros”.1, Moorcock, em Wizardry & Wild Romance2, explica que: This dream-scenery is fundamental to the success of any romantic work, (…); it is often the substance of such work, and no matter how well drawn their characters or good their language writers will appeal to the dedicated reader of romance according to the skill by which they evoke settings, whether natural or invented. Their work may not be judged by normal criteria but by the ‘power’ of their imagery and by what extent their writing evokes that ‘power’, whether they are trying to convey ‘wildeness’, ‘strangeness’ or ‘charm’; whether, like Melville, Ballard, Juenger, Patrick White or Alejo Carpentier, they transform their images into intense personal metaphors (…).(MOORCOK, , pg 46)

Há também subgêneros da Fantasia: Sword and Sorcery, Low Fantasy, High Fantasy, etc. O subgênero Sword and Sorcery, desenvolvido por Robert Ervin Howard, é caracterizado pela ênfase nas batalhas entre o herói (dos quais Conan, o bárbaro, é o mais famoso) e monstros, magos, deuses, etc. Howard foi um dos grandes influenciadores do gênero, tanto na narrativa quanto na estética das personagens, que marcou a estética de muitos filmes nas décadas de 60 e70, assim como HQs e jogos até os dias de hoje. A diferenciação entre Low e High Fantasy decorre de onde a fantasia se desenvolve. Se no próprio mundo do leitor, é denominada Low Fantasy (Harry Potter, Percy Jackson &

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Tuttle, L., Writing fantasy and science fiction. Writing handbooks. (London, 2001, p.30). Este cenário de sonho é fundamental para o sucesso de qualquer trabalho romântico; (…) é com frequência a substância de tal trabalho, e, não importa quão bem elaborados sejam os personagens ou quão boa seja a linguagem, escritores serão atraentes para os leitores fiéis de romances de acordo com a habilidade com que evoquem a ambientação, seja natural ou inventada. Seus trabalhos podem não ser julgados por um critério normal mas pelo “poder” de suas imagens e em que medida sua escrita evoca este “poder”, estejam eles tentando transmitir o “selvagem”, “estranhamento” ou “charme”; se, como Melville, Ballard, Juenger, Patrick White ou Aleko Carpentier, eles transformam suas imagens em intensas metáforas pessoais (…). 2

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the Olympians), e High Fantasy se em um diferente do real, os quais Tolkien definiu como “Mundos Secundários” (Middle Earth do universo Tolkieniano, Westeros e Essos das Crônicas de Gelo e Fogo). Grande parte dos componentes dos universos desenvolvidos pelos autores de Fantasia advém de influências dos mitos e lendas do folclore de variados povos: gregos, egípcios, ameríndios, mas principalmente celtas e germanos. As ambientações, assim como o grau de tecnologia dos povos e a maneira que estão estruturadas as sociedades descritas de alguns mundos secundários refletem tempo e lugares da nossa própria história. Quando tais mundos se assemelham à Europa Medieval e têm grande ênfase em batalhas, tal romance é denominado Fantasia Medieval ou, preferivelmente, Fantasia Épica. A série abordada enquadra-se nessa categoria, uma vez que a sociedade no continente de Westeros assemelhase à da Europa Central na época dos reinos germânicos, com o poder centralizado nas mãos de um rei, porém com senhores vassalos poderosos encarregados da manutenção das terras que controlam (e um dia reinaram), do povo que as habita e do recolhimento dos impostos. O grau de tecnologia também é correspondente ao da Europa medieval, inclusive no quesito bélico, sendo as batalhas ainda travadas corpo a corpo com uso de armas brancas e o corpo protegido por armaduras. Não possuem o conhecimento da pólvora e fabricação de armas de fogo, limitando-se ao uso do arco e balestra (capaz de perfurar armaduras) como armas de longo alcance e o trebuchet como principal arma de cerco. Uma analise das mulheres no medievo por meio de uma comparação com as personagens guerreiras das Crônicas de Gelo e Fogo O universo criado por George R.R. Martin esta repleto de personagens femininas fortes e marcantes, dispostas a lutar, em alguns casos, literalmente, por aquilo que acreditam e por aqueles que amam; Catelyn Stark, Senhora de Winterfell, mesmo abalada pisicologicamente após a morte do marido e incerta quanto à segurança de suas filhas, mantem-se aparentemente segura, alicersando emocionalmente seu filho Robb, que ao herdar a posição do pai, reúne seus vassalos e marcha em busca de vingança. E a rainha Cersei, que para manter a salvo seus filhos e, principalmente, seu posto de Rainha Regente, age deliberadamente não se importando com os sofrimentos daqueles que estão em seu caminho. Neste artigo buscamos fazer um panorama do real papel da mulher de elite na sociedade medieval nos constantes estados de guerra por meio de uma comparação com as personagens (literalmente) guerreiras das Crônicas de Gelo e Fogo. Arya Stark – O ideal e a real dama medieval Filha de Lord Eddard Stark, Senhor de Winterfell e protetor do Norte. Como toda jovem nobre, recebera uma educação distinta, voltada para torna-la uma lady e exercer bem seu papel de esposa, o que incluía os trabalhos com agulha, para os quais, diferentemente de sua irmã mais velha, Sansa, não apresentava nenhum talento ou interesse. Arya preferia acompanhar os treinos de seus irmãos, cavalgar e perambular por Winterfell que cumprir com os ensinamentos ministrados pela septã (religiosa responsável pela educação das garotas 282

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nobres). Foi presenteada com uma espada feita sob medida para ela por seu meio-irmão John Snow, de quem era particularmente próxima, e nomeou-a “Agulha”. Dedicou-se ao treino da esgrima como jamais se dedicara aos trabalhados de tricô. Ao mudar-se para Porto Real, capital dos Sete Reinos, recebeu treinamento particular de Syrio Forel, um espadachim da cidade livre de Braavos, que lhe ensinou o tradicional estilo de esgrima braavosii conhecido como dançarino de água (Water dancer), que diverge do estilo clássico de Westeros. Os acontecimentos que levariam à guerra pelo trono real, como a morte do Rei Robert e de seu pai, Lord Eddard, levaram-na a fugir e sobreviver por conta própria no hostil reino em guerra. Os ensinamentos de Syrio Forel, que dera a vida para salvá-la, foram determinantes para que sobrevivesse às adversas situações que se sucederam. Desta forma, Arya apresenta um perfil contrário àquele idealizado das mulheres de elite tanto da sociedade de Westeros quanto da Europa medieval. Os registros do período informam mais sobre a ideologia dominante do que sobre a possível realidade, pois fornecem uma representação idealizada da mulher aristocrata medieval. Representação esta, condizente com o discurso de retidão moral pregado pela igreja, que era exteriorizada por meio da moderação da dama ao demonstrar suas emoções e interesses, aparência (alguns bispos proibiam o uso da maquiagem), alimentação (visando à fertilidade), gestos, vestimentas, etc. Porém a austeridade excessiva também não era bem vista, pois uma dama devia cuidar da aparência e vestir-se de acordo com seu status social. A mulher era educada desde a infância para o papel de esposa. Havia tutores que auxiliavam na educação (religiosa, literária e cientifica) das jovens, mas cabia à mãe verificar o conteúdo da instrução. As mulheres casavam-se muito cedo, visando a fertilidade e devido à baixa expectativa de vida na Idade Média (aproximadamente quarenta anos), enquanto os homens podiam unir-se matrimonialmente numa idade mais avançada. Com efeito, a família planeava os casamentos desde o nascimento das crianças e a escolha do cônjuge era feita pelo pai, desconsiderando a vontade da nubente. O casamento -sobretudo entre os nobres- era um contrato entre famílias, possuía um carácter prático e essencialmente materialista, tendo por objetivo reforçar alianças ou apaziguar antigas desavenças, visando preservar ou ampliar o patrimônio fundiário familiar, principal fonte de riqueza na Europa medieval. Entretanto, a dama medieval não se limitou a ser apenas a esposa subserviente tecendo enclausurada em seu castelo ou ao que era idealizado nas canções de cavalaria. Na prática, algumas mulheres tiveram poderes amplos e foram administradoras eficientes, uma faceta de sua existência que a literatura medieval tentou esconder, mas que aparece nos documentos administrativos e judciais. (Farguet. Revista História Viva Especial, n° 32, pg 33). De acordo com Macedo (1997), entre os anos de 1152 e 1284, na região de Champagne dos 279 detentores de domínios territoriais, 58 eram mulheres. A palavra dama (do latim domina) remete ao domínio que ela exercia no feudo sob a autoridade do marido e poder inconteste de todos os assuntos relacionados ao feudo durante as constantes ausências do senhor. Portava uma bolsa e um malho de chaves pendurados na cintura como simbolos de seu poder. Entre seus encargos estavam, além da educação das crianças, a administração da propriedade, garantir o bem estar dos familiares e hospedes, obter provisões para o castelo e manter em ordem a economia do feudo, que produzia a 283

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maioria dos produtos consumidos no domínio senhorial (pães, cerveja, queijos, vinhos e carnes, entre outros). Em tempos de guerra, eram responsáveis por levantar o valor cobrado pelo resgate caso o marido caísse refém e por assumir a defesa da família se este fosse morto em combate. As mulheres da Ilha dos Ursos e Brienne de Tarth – Mulheres no campo de batalha Arya Stark foi impelida a lutar devido às terríveis circunstâncias decorrentes do interresse pela posse do Trono de Ferro. Porém, não foi a única nobre a lançar mão à espada nas Crônicas de Gelo e Fogo. As mulheres da Casa Mormont, assim como Brienne, herdeira da ilha de Tarth, não se limitaram ao uso de armas apenas para defesa pessoal. Participaram ativamente na guerra, atuando em campo de batalha. A remota Ilha dos Ursos está localizada no norte da baía do gelo, no litoral ocidental de Westeros. A Casa Mormont, vassala aos Stark, recebeu a soberania sobre a ilha após o rei Rodrick Stark tê-la ganho em um luta corpo a corpo, anexando-a aos domínios do Norte. Tem como brasão um urso negro sobre um fundo de pinheiros e as palavras da Casa são: “Aqui permanecemos”. A ilha é pobre em recursos, porém rica em madeira, até mesmo o hall dos Mormonts é construído de grandes troncos de arvóres. Os habitantes vivem ao longo da costa e sobrevivem basicamente da pesca. Em tempos idos, a ilha sofria com as constantes inscursões saqueadoras dos homens das Ilhas de Ferro e as ainda eventuais incursões dos selvagens da Costa Gelada (Frozen Shore). Devido a essas condições, as mulheres da ilha dos Ursos recebem treinamentos no manuseio de armas para defenderem a si mesmas, as crianças e idosos, enquanto os homens encontram-se pescando no mar. No portão da fortaleza Mormont está gravada uma imagem representando uma mulher vestida em pele de urso amamentando um bebê em um braço e com um machado de batalha no outro em referência a cultura guerreira desenvolvida pelas mulheres da ilha. A Casa Mormont é chefiada por Lady Maege Mormont, que junto com sua herdeira, Dacey Mormont, respondeu ao chamado de Robb Stark para travarem guerra contra os Lannisters. Maege faz parte do concelho de guerra de Robb e Daecy fez parte de sua guarda pessoal, lutando ao seu lado com sua maça, até ser assassinada no Casamento Sangrantento (Red Wedding), tornando Alysane, sua irmã mais nova, herdeira da Casa Mormont. Brienne of Tarth, conhecida como a Donzela de Tarth (Maid of Tarth), ou Brienne, a Bela, é a única filha viva de Lord Selwyn Tarth a Estrela da Tarde (Evenstar), Senhor da Ilha de Tarth. Devido à morte prematura de seu irmão mais velho, Brienne tornou-se a herdeira do Salão do Entardercer (Evenfall hall). Lord Selwyn tentou casá-la por três vezes, tarefa que teria sido complicada devido à sua aparência (que lhe rendeu o sarcastico apelido de Brienne, a Bela), porém Tarth é rica, então não faltaram propostas. Brienne não desejava a vida de lady e rejeitou a todos. Foi treinada por vontade própria pelo mestre de armas de Tarth e em pouco tempo se destacou pela habilidade e porte avantajado (mais alta e forte que a maioria dos cavaleiros). Sagrou-se cavaleiro e tornou-se membro pessoal da guarda de Renly Baratheon, a quem amava, após vencer Loras Tyrell, o Cavaleiro das Flores, em um torneio. Após a morte de Renly, Brienne passa a servir Lady Catelyn Stark, que ao receber a notícia de que seus filhos estavam mortos, a encarrega de escoltar Jaime Lannister até Porto 284

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Real (parte do acordo feito com Tyrion Lannister, que em troca libertaria suas filhas). Ao chegar a seu destino, mesmo sabendo da morte de Catelyn, Jaime pede que Brienne encontre as filhas de Lady Stark, que já não se encontravam na capital do reino e presenteia-lhe com sua espada forjada com aço valiriano, Cumpridora de Promessas (Oathkeeper). Brienne acaba sendo executada a mando da própria Lady Stark (ressuscitada), que não acredita em sua história e ao propor que Brienne mate Jaime para provar sua lealdade, esta se recusa e então é enforcada. Tal como as mulheres da Ilha dos Ursos, as mulheres da nobreza no medievo recebiam treinamento militar, principalmente no manejo de armas de longo alcance (arco, balestra, etc.) para poderem defender os castelos e outras fortificações caso o senhor e seus cavaleiros se encontrasem ausentes.

Nesta iluminura de Walter de Milemete (Mestre, estudioso, eclesiástico e pároco do Condado da Cornualha, famoso por seu manuscrito destinado a apreimorar a educação do Rei Edward III) mulheres defendem uma fortificação (suas roupas e penteados são indicativos sociais de que pertencem à aristocracia). Stefan Ingstrand menciona em Éowyn under Siege: Female Warriors During the Middle Ages que3:

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Fontes das Europa medieval mencionam um surpreendente número de mulheres iclanadas marcialmente durante os séculos X, XI, XII e XIII, mais do que as fontes de períodos anteriores e posteriores.

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Medieval European sources mention a surprising number of martially inclined women during the tenth, eleventh, twelfth, and thirteenth centuries, more than sources from earlier or later eras do. (2009)

A maioria das mulheres descritas nas fontes medievais é pertencente à aristocracia, com excessão da que é provavelmente a mais conhecida guerreira do medievo, Joana D’Arc. Dentre as que se destacaram por seus feitos podemos citar: Æthelflæd, filha de Alfred, o Grande, conhecida como “Lady of Mercians”, governou a região da Mercia após a morte de seu marido. Comandou pessoalmente suas tropas expulsando os vikings dinamarqueses de todo território ao longo do rio Humber. Leonora de Aquitânia, Matilda de Canossa, dentre outras, também ficaram marcadas na história como mulheres poderosas e grande estrategistas. Questiona-se qual seria o real papel da maioria destas mulheres, tanto das nobres como de Joana D’Arc, se limitado a exercer a liderança de suas tropas ou participando efetivamente dos combates. Porém, há fontes que registraram participação femina realmente combatendo: uma mulher carregava o estandarte dos Flamengos em campo de batalha quando Carlos VI marchou contra Flandres (seu filho, Carlos VII, confiou a uma jovem pastora a liderança de seus exércitos). Durante a Cruzada dos Reis, o cronista mulçumano Imad ad-Din al-Isfahani4 menciona que duas mulheres estavam entre os guerreiros cristãos mortos em campo de batalha e posteriormente soube que quatro mulheres haviam tomado parte do ataque. Among the Franks there were indeed women who rode into battle with cuirasses and helmets, dressed in men's clothes; who rode out into the thick of the fray and acted like brave men although they were but tender women, maintaining that all this was an act of piety, thinking to gain heavenly rewards by it, and making it their way of life. Praise be to him who led them into such error and out of the paths of wisdom! On the day of battle more than one woman rode out with them like a knight and showed (masculine) endurance in spite of the weakness (of her sex); clothed only in a coat of mail they were not recognized as women until they had been stripped of their arms. Some of them were discovered and sold as slaves. (GABRIELI .1969, 207) As Serpentes do Deserto e a cultura Roynar - Representações de mulheres guerreiras no imaginário popular Os Rhoynares viviam em Cidades-Estados ao longo da vasta hidrovia do rio Rhoyne, Quando os Valyrianos deram inicio à sua expanção, o Principe Garin liderou 250,000 Rhoynares para a morte ao tentar conter os senhores dos dragões. A rainha guerreira Nymeria uniu as Cidades-Estado e liderou a fuga dos Rhoynares através do narrow sea toWesteros, passando pelos Degraus (Stepstones) até Dorne. Nymeria casou-se com o lord Dornense Mors Martell de Lança Solar (Sunspear) e o ajudou a consolidar seu poder sobre toda a região de Dorne. Os dornenses adotaram muito da cultura rhoynar, que praticam gual 4

Imad ad-Din al-Isfahani, poeta, escritor e historiador. Em suas obras historiográficas descreu a reconquista de Jerusalem pelos exércitos liderados por Saladino. Sua obra Relampago da Síria narra a vida e os feitos do sultão curdo a partir de 1175. Em sua obre faz duras criticas à generosidade de Saladino para com os “francos” derrotados. Também esteve presente na terceira cruzada, quandos os cristãos reconquistam Jerusalém.

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primogenitura, garantindo filho mais velho os títulos do pai, não importando se é homem ou mulher, seus lideres recebem o título de Principe e Princesa. Os Rhoynares também sofreram influência dos Andalos, converteram-se à fé nos Sete, pois seus antigos deuses estavam diretamente associados ao rio Rhoyne, do qual agora estavam muito distantes. As serpentes do deserto (Sand Snakes) são as oito filhas bastardas que o príncipe Oberyn Martell (The Red Viper) teve com diversas mulheres, de septãs a nobres e prostitutas. Sand é o nome dado aos bastardos em Dorne, região mais meridional de Westero e que possui traços culturais singulares devido à influência do Roynares. As quatro mais velhas são tão belas como letais, com habilidades que variam tanto quanto à aparência. Nymmeria é extremamente hábil com facas, Obara com lança e chicote, Sarella é capitã de seu próprio navio e Tyene é famosa por seus venenos e poções. As serpentes do deserto, diferentemente das outras personagens analisadas, são discritas como muito belas, característica comum às personagens guerreiras modernas. Tolkien em The Lord of the Rings desenvolve a personagem Éowín, que derrota o mais terrível dos servos de Sauron. O modelo icônico de heroínas retratadas como belas, sensuais, audaciosas e extremamente hábeis na arte da guerra, foi popularizado na obra de Robert Howard, repleta de belas guerreiras como Valéria e Red Sonja. Conclusão Ao longo da história a guerra foi definida, pela maioria dos povos, como uma atividade masculina. Porém, tanto no medievo quanto nos dias de hoje, nos momentos críticos e que houve necessidade de efetivo humano, mulheres atuaram em batalhas. Na URSS durante a 2ªGG, por exemplo, muitas participaram de regimentos de combate aéreo, sendo o temido 46° regimento de Bombardeio da Guarda Taman, conhecido com as “Bruxas da Noite”, composto inicialmente apenas por mulheres. Apesar de a participação de mulheres em batalha na idade média ser bem documentada, eram um evento incomum e extremamente restrito, limitado na maioria das vezes à defesa de uma fortificação na ausência de homens para defendê-las e na ordenação do teatro de guerra. Com excessão dos regimentos femininos dos reis de Dahomei, no oeste africano, relatos de mulheres guerreiras tendem a ser lendários. Porém, tais representações são uma constante no imaginário social das mais diversas culturas ao longo do tempo e ainda hoje estão presentes em diversos romances, filmes, jogos de RPG e vídeo-games, HQs, mangás, etc. REFERÊNCIAS FARGUET, Severin. Revista História Viva Especial, n° 32, pg 33 GABRIELI, Francesco. Arab Historians of the Crusades. (Berkeley: University of California Press, 1969).

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INGSTRAND, Stefan. Éowyn under siege: female warriors during the Middle Ages. Strange Horizons, 6 april 2009. http://www.strangehorizons.com/2009/20090406/ingstrand-a.shtml Acesso em 23 de maio de 2012. LANGER, Johnni: Guerreiras na era viking? Uma análise do quadrinho “Irmãs de Escudo” (série NORTHLANDERS) Roda da Fortuna: revista eletrônica de Antiguidade e Medievo 1,2012. MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Editora Contexto, 1997, 5° ed). MOORCOK, Michael. Michael Moorcok’s Multiverse, http://www.multiverse.org/fora/show thread.php?t=4075. Acesso em 20 de maio de 2012. MOORCOK, Michael. Wizardry & Wild Romance: A Study of Epic Fantasy (London, 2005) CASINI, Richerly . A Representação da Mulher na Idade Média. http://unemas.com.br/historiauenp/xxiii-semana-de-historia/a-representacao-da-mulher-naidade-media/ TUTTLE, L. Writing fantasy and science fiction. Writing handbooks. (London, 2001). SOUSA, João Silva de. O Casamento em Portugal nos séculos XI a XV. Revista Triplo V de Artes, Religiões e Ciências, 2010.

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O CÁLICE DO DIABO: A FIGURA DE SATÃ NAS MULHERES MEDIVAIS EUROPEIAS José Lucas Cordeiro Fernandes (UFC) 1 [email protected] “Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher foi acusada pelo outro sexo de ter introduzido na terra o pecado, a desgraça e a morte [...] O homem procurou um responsável pelo sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher.” Jean Delumeau

A mulher mediveal sofria com inúmeras acusações pejorativas, ela é constatemente associada ao mal, a destruição do homem e as tentações diabólicas, como as “agentes de Satã”. Esses elementos são imbuidos na mentalidade medieval graças a uma série de discursos, mas principalmente o da Igreja que atua com afinco para tornar a imagem da mulher cada vez mais próxima à Lúcifer. Mas essa ideia da mulher maligna e diabolizada surge com esses discursos medievais misóginos?A misoginia, a recusa ao sexo feminino, não surge propriamente na Idade Média, é sem dúvida um produto do mundo Antigo, de uma série de apropriações das ideías da antiguidade.2 A própria divisão dos sexos, a demostração da diferenciação dos mesmos, feita por Platão e Aristóteles vão alimentar violentamente inúmeros discursos, assim como Hipócrates e Galeno, que vão influenciar principalmente os discursos médicos, onde podemos observar que a cristalização desses personagens foi tão forte que as referências de suas obras são usadas durante a Idade Média e Moderna, para justificar teorias e preceitos. A mulher é vista em tal posição, pois as sociedades em que vivem colocam a mulher constatimente em uma posição inferior. Quando a mulher estava ao lado do homem na tentativa de sobrevivência, seu status era semelhante ao dele, mas com a sedentarização, o surgimento da agricultura, do maior valor as guerras, a figura do homem foi tomando destaque e assumindo uma posição de superioridade em relação à mulher, tal fato que vai refletir na hierarquia social das inúmeras sociedades antigas e medievais. Essa diferença entre gêneros passou a ser usada em elementos ideológicos, com intuito de demonstrar e manter a superioridade do homem sobre a mulher. Logo, os discursos são reflexos da sociedade e que por consequência vai voltar a influenciar a sociedade e povoar o imaginário, permitindo uma continuidade e progressão da força pejorativa contra a mulher, ou seja, uma influência do real para imaginário, assim como do processo reverso3, onde podemos ver na Idade Média um dos cumes mais altos dessa montanha tão antiga. 1

Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará. O presente trabalho é orientado pela Professora Ms. Luciana de Campos. 2 Ver: BLOCH, Howard. A misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro, Ed 34, 1994. 3 Sobre aspectos do imaginário, ver: BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

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A relação da mulher com o Diabo surge nesse âmbito dos discursos da antiguidade, como podemos observar na obra de Tertuliano, O Adorno das Mulheres: Tu dás à luz na dor e na angústia, mulher, sofres a atração do teu marido e ele é teu senhor. E ignoras que Eva tu és? Está viva ainda, neste mundo, a sentença de Deus contra teu sexo. Vive como impõe, como acusada. És tu a porta do diabo. Foste tu que quebraste o selo da árvore; foste a primeira a deserdar a lei divina; foste tu que iludiste aquele que o diabo não pode atacar; foste tu que tão facilmente venceste o homem, imagem de deus. Foi tua paga, a morte, que causou a morte do próprio filho de deus. (ALEXANDRE, 1990, p.511).

Podemos observar que no início do discurso do cristianismo, a mulher vem como grande culpada de trazer o mal para mundo, através da figura de Eva, a primeira “agente” de Lúcifer. Ela é um grande exemplo de como é uma das percepções sobre a mulher medieval. Ela surge em vários momentos como exemplo da força maligna da mulher e como a mesma gerou uma descendência maligna, uma maldição que caí sobre todas as mulheres, ela traz inúmeros elementos da fraqueza da mulher, da inferioridade em relação ao homem, da mente fraca para a tentação do Diabo, da sua perversidade, tudo sendo justificada pela bíblia, o escrito base do cristianismo, ou seja, os discursos misóginos tinham nos escritos sagrados a base para as suas observações, mostrando-nos o nascimento da mulher e como a mesma condenou a humanidade e quais são os castigos divinos para sua fraqueza em relação ao demônio. O homem então disse: Esta, por fim, é osso dos meus ossos E carne da minha carne. Esta será chamada Mulher, Porque do homem foi esta tomada. (Gn. 2,23)

A mulher foi criada do homem, da sua carne, da sua costela, por isso, que ela será vista como as filhas da luxúria, pois da carne vieram e a carne está ligada, sendo mais próxima do terreno, do material e do corporal, a mulher é mais propensa ao pecado por ter a alma mais distante de Deus. O corpo, a carnalidade é a ferramenta máxima da mulher, a tentação suprema em relação ao homem, são seus atrativos físicos que pervertem a mente dos homens com maior facilidade, e por isso que em De planctu ecclesia de 1330 se afirmava: “não há nenhuma imundice para qual a luxúria não conduza”, ou como Vilém Flusser comenta em sua História do Diabo: “O maior dos pecados é a luxúria, pois ela leva a todos os outros.”. Lúcifer usa o “segundo sexo” em uma tentativa de corrupção dos homens, usando o corpo e a carnalidade para atraí-los ao pecado. Lúcifer não pensa na mulher como sua ferramenta maior, pois Satã tenta atacar os homens primeiro, afinal ele é um grande senhor, que naturalmente prefere dominar o homem primeiro, a sua inferior: a mulher. Em peças medievais, como A Queda do Homem de Chester, nos mostra essa ideia de que “a resistência de Adão da tentação realça a própria fraqueza de Eva” (RUSSEL, 2003, p.246), pois Adão não cedeu a Satã, forçando o mesmo a procurar a segunda opção nos ouvidos de Eva. Ela cedeu a lábia de Lúcifer, e com ele aprendeu, usando 290

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sua “lábia” para convencer Adão, ou seja, o demônio perverte Eva que por sua vez perverte Adão, mostrando sua capacidade com as palavras, na arte de seduzir. a mulher [viu] que aquela árvore era para se comer, e agradável aos olhos [...]; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido e ele comeu com ela. ( Gn. 3,6)

Por essas falhas da mulher e o do homem, Deus os condena, assim como toda sua ascendência. O pecado original, a culpa de desobedecer a Deus e acabar com o paraíso terrestre é o castigo d’Ele sobre todos os filhos do homem, ou seja, todos os homens nascem com um pecado, e de certa forma do pecado4, mas tudo por culpa da mulher, que será punida: “‘ Aumentarei grandemente a dor da tua gravidez; em dores de parto darás à luz filhos, e terá desejo ardente de teu esposo, e ele te dominará. ’” (Gn. 3,16). A dor do parto, a angústia e a submissão ao homem é castigo divino por causa dela ser a principal responsável pela queda do homem e do fim do paraíso terrestre. A primeira frase de Tertuliano na passagem supracitada reflete bem esse princípio das escrituras sagradas, Deus permite que mulher viva, mas ela está condenada eternamente pelo pecado de abraçar a serpente, esta que estará ao seu lado por toda a vida, pois o mundo sujo é aberto à força do Satã, onde o homem deve trabalhar para redimir a culpa da mulher.5 A imagem de Eva é importante, pois ela foi usada e expropriada para todas as mulheres, ou seja, a compreensão da imagem dela é de certa forma uma compreensão de uma das imagens na mulher no medievo. A utilização de Eva como o início de uma generalização era comum em discursos misóginos, pois ela é a justificativa máxima, como já foi comentado. Observando a passagem de De planctu ecclesiae, material feito a pedido do papa João XXII para o franciscano Álvaro Pelayo, vemos: Queixa primeira, ao menos ao nível da consciência clara: Eva foi o começo e a mãe do pecado. Ela significa para seus infelizes descendentes “a expulsão do paraíso terrestre”. A mulher é então doravante “a arma do Diabo”, “a corrupção de toda a lei”, a fonte de toda a perdição. Ela é “uma fossa profunda”, “um poço estreito”. “Ela mata aqueles a quem enganou”; “a flecha de seu olhar transpassa os mais valorosos”. Seu coração é “a rede do caçador”. É “uma morte amarga” e por ela fomos todos condenados [...]. (DELUMEAU, 2009, p. 482)

Na passagem acima podemos observar os inúmeros elementos de apropriação da Eva e a generalização em relação a todas as mulheres. “Eva foi o começo e a mãe do pecado”, a culpa primeira é dela que além de ceder ao demônio cometeu o primeiro pecado. Ela condenou todo seu sexo e com isso tornou todas as mulheres “armas de satã”. Observamos que nesse trecho há uma semelhança com a obra de Tertuliano, ou seja, mostra que a ideia da mulher demonizada e da Eva “mãe do pecado” vem desde antiguidade. “Assim, a Idade

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No caso comentamos da relação pecado e sexo, onde observamos que o sexo era visto como “sujo” e que ele em si era um pecado. 5 Sobre o castigo dado ao homem, ver: Gn. 3:17-20

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Média cristã, em uma medida bastante ampla, somou, racionalizou e aumentou as queixas misóginas recebidas das tradições que era a herdeira.” A mulher é às vezes considera como não somente uma ferramenta, mas como o instrumento máximo de Satã, pois as forças dos discursos teológicos estavam cada vez mais fortes, aumentando a imagem da mulher como um demônio, como podemos ver no trecho de Marborde, bispo de Rennes no século XI: Dentre as incontáveis armadilhas que nosso inimigo ardiloso armou [...] a pior é aquela que quase ninguém pode evitar é a mulher, funesta capa de desgraça, muda de todos os vícios, que engendrou no mundo inteiro os mais numerosos escândalos [...]. A mulher, doce mal, ao mesmo tempo favo de cera e veneno, que com um gládio untado de mel corta o coração até dos sábios. (LEFEVRE, 1966, p. 82)

O ponto mais interessante dessa passagem é que podemos compreender o medo e a demonização da mulher. A mulher é doce, mas má, bela e terrível, a mulher é um cálice cheio de líquidos malignos, de temperos do demônio, mas tudo isso está guardado dentre de um cálice de ouro puro. O medo da mulher vem da capacidade de sua tentação em relação aos homens, do seu poder persuasivo e sua capacidade de disfarçar e esconder seus sentimentos, de controlar o ambiente doméstico, o lar, espreitando o homem na fraqueza de seu sono e de seu cansaço.6 Logo, a mulher é uma armadilha perfeita, pois dela nada se identifica ou se percebe, mas ela está em todo lugar, como necessidade do homem e da carne, dominar a mesma é improvável, pois o seu revestimento de ouro nos leva a tentar para o pecado sem perceber o demônio por traz. Odon, abade de Cluny no século X demonstra bem isso: A beleza física não vai além da pele. Se os homens vissem o que está sob a pele, a visão das mulheres lhes viraria o estômago. Quando nem sequer podemos tocar com a ponta do dedo um cuspe ou esterco, como podemos desejar abraçar esse saco de excrementos? (LEFEVRE, 1966, p. 83).

A mulher “é um verdadeiro diabo”, como dizia Petrarca em suas frases contra o casamento e a ligação eterna com mulher e filhos, pois é extremamente perigoso, visto que se “tem uma esposa feia, dela se desinteressa e a odeia, sé é bela, tem um terrível medo dos galantes [...] beleza e virtude são incompatíveis [...]” 7. A beleza da mulher é que permite que a mesma possa de forma tentadora e silenciosa afetar o coração do homem, ao mesmo tempo com um “doce beijo [ela] [...] destila o veneno no silêncio do seu coração!”, a mulher pode de forma sutil envenenar aquele que a ama, por isso que ela é tão perigosa, o ser “mais distante da imagem de Deus.” A mulher é o homem são semelhantes perante Deus? Ambos são frutos da inspiração divina? Estas questões pertinentes são pensadas pelo grande Santo Agostinho, que as responde de forma bem interessante, e bem atrelada à corrente dos monges misóginos. Ele 6

O grande espaço de poder da mulher era a esfera doméstica, pois era ela quem controlava tudo que acontecia na casa. Nesse espaço a mulher poderia através de “lágrimas e palavras” controlar e mudar a direção de muitas decisões e até fazer grandes conflitos. 7 Texto de Roger de Caen, século XI In: DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo, SP: Companhia de Bolso, 2009.

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mostra que a ligação de igualdade ensinada nos evangélicos tem uma ressalva máxima, pois o homem, e somente ele, é a plena imagem de Deus, mas não a mulher, esta que tem apenas a alma ligada com Deus, mas seu corpo é o eterno obstáculo de aproximação da razão, logo, “inferior ao homem a mulher deve ser submissa.”. O decreto Graciano (1140-50), influenciado por Santo Agostinho e Santo Ambrósio traz elementos da imagem de Deus e da mulher: Essa imagem de Deus está no homem (adão), criado único, fonte de todos os outros humanos, tendo recebido de Deus poder de governar, como seu substituto, pois é a imagem do Deus único. E por isso que a mulher não é a imagem do Deus único.

Percebemos que a imagem da mulher não é semelhante à imagem de Deus, pois a mulher como vemos nos escritos sagrados não é fruto do mesmo sopro divino de Adão, mas sim da sua costela, da sua carne, comprovando que a mulher é fruto de outra fonte divina, esta que não reflete a imagem do Deus único. Essa percepção da imagem da mulher submissa e inferiorizada reflete em algumas práticas e discursos, por exemplo: Paulo, determinava que as monjas devessem cobrir os cabelos como sinal de submissão em relação ao homem, mas também para evitar revelar a grande arma de sedução das mulheres, o cabelo, evitando dar ferramentas para o Diabo dentro das paredes dos monastérios. Nos também podemos observar nos discursos de São Tomás de Aquino essas posições pejorativas, que baseado em Coríntios fala: “Eu não permito à mulher ensinar e governar o homem.”. Logo podemos perceber que a posição da mulher, devido à força de Igreja, era bem abaixo ao do homem, servindo exclusivamente para servir e tentar o homem, como um teste da pureza do seu espírito. A Demanda do Santo Graal é bem clara em mostrar como a tentação da mulher é uma prova da pureza do espírito, pois é o cavaleiro eleito que resiste às tentações diabólicas da mulher. Galaaz e Borz quando chegam ao castelo do rei Brutos encontram a figura da “mais formosa donzela do reino de Logres” (DSG, p. 97), que se apaixona pelo puro dos puros, o Galaaz, passando a desejá-lo em seus braços. Esse desejo alimenta as tentativas da mulher contra Galaaz, pois mesmo ciente da não correspondência do sentimento por parte do nobre cavaleiro ela “saiu de seu leito em trajes de dormir, [...], foi a Galaaz, ergueu o cobertor e deitou-se ao lado dele”. (DSG, p.99). Assustado com tal aproximação noturna Galaaz comenta: “Ai, donzela! Quem vos mandou aqui certamente mau conselho vos deu; [...] mais devo recear perigo de minha alma do que fazer vossa vontade”. (DSG, p.100). A donzela, ardilosa, e cheio de desejo por Galaaz ameaça tirar sua vida caso o mesmo não se deite com ele, forçando- o a carregando a culpa da morte da donzela: “e tereis por isso maior pecado do que se me tivésseis convosco, porque sois a razão da minha morte”. (DSG, p.101). Com isso Galazz cedeu, mas na condição de que a mesma não se matasse.8 Nessa passagem observamos como é à força da mulher em relação ao homem, mesmo sendo ele o mais puro de todos os cavaleiros. Este momento da Demanda do Santo Graal o escrito é pejorativo em relação à mulher. Primeiro, ela se apaixona pela beleza de Galaaz, o 8

Ver: GOMES, Janaina Nazzari. Reflexões sobre o desejo e a ideologia na misoginia medieval. Revista do corpo discente do programa de pós-graduação em História da UFRGS. P. 264; MEGALE, Heitor. A DEMANDA DO SANTO GRAAL. Manuscrito do século XIII. São Paulo: T.A. Queiroz/EdUSP, 1988 .

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que não problema, mas esse amor se tornou desejo e luxúria, pois a mesma vai à noite para se deitar com ele. Quando ele nega, a mulher se enche de raiva e orgulho o ameaçando, ou seja, observamos três pecados fundamentais dos princípios cristãos, vemos como a luxúria pode levar para outros pecados. Galaaz, mesmo cedendo não se tornou impuro, pois a vida da donzela é mais importante que a castidade no código dos cavaleiros. Essa atuação da mulher pode ser vista com uma atuação diabólica, como se um demônio estivesse impulsionando a mesma a tentar as virtudes de Galaaz, na obra essa concepção do Diabo fica a caráter imaginativo do leitor, mas é bem fácil relacionar a atitude da mulher ao Diabo, pois “Evidencia-se [...] a tentativa de elevar o caráter correto e tenaz do homem frente a um espírito descontrolado e irracional que quer induzir, como Eva, o homem ao pecado.” 9, se a serpente influenciou Eva pode muito bem ter influenciado a mais bela donzela de Logres. Uma ressalva na produção do discurso sobre Eva é o trabalho de Hidelgarda de Bigen que vai conseguir reduzir, mesmo por pouco tempo essa culpa de Eva, mas Hidelgarda sabia que escrevia no universo de homens é por isso manteve sua escrita com elementos oriundos da tradição masculina, como a afirmação da maior suscetibilidade de Eva em relação ao demônio, como podemos ver no Scivias: A alma inocente de Eva [...] foi invadida pelo diabo através da sedução da serpente para a sua própria queda. Porque isso? Por que ele sabia que a suscetibilidade da mulher seria mais facilmente conquistada do que a força do homem; e vendo Adão, ardendo com tanta veemência em seu amo por Eva, sabia que se ele, o diabo a conquistasse, Adão faria qualquer coisa que ela dissesse. (PIERONI, 2007, p.52)

Hidelgarda traz uma Eva bem diferente, mostrando que a queda do paraíso terrestre é culpa de Satã, que por desejar a sua própria queda influenciou Eva, esta que foi sua escolha por causa do amor entre Adão e Eva, ele sabia que convencendo a mulher o homem a seguiria por causa do seu amor. Vemos que a mulher cedeu ao demônio, mas o homem não sofreu a tentação da mulher e sim o fez por amor, essa interpretação da queda é bem diferente e peculiar, assim como a própria representação de Eva no Scivias, como uma nuvem cheia de estrelas. Hidelgarda serve para mostrar que os discursos misóginos eram uma corrente ideológica que teve muita influência no imaginário, mas não uma totalidade dos discursos. Observando todos esses discursos de monges, literatos e mais futuramente os discursos médicos, como Ambroise Paré, e os jurídicos, como o Anônimo de Artois, compreendemos que eles serão instrumentos de forte subjugação da mulher na sociedade, além de serem responsáveis ideologicamente pela “caça as bruxas”, ou seja, o discurso da antiguidade foi passado para a Idade Média, que com seus monges derivados da grande força do cristianismo, aumentaram violentamente esses discursos misóginos, que só foram fortalecidos pelos médicos, juristas e novos monges na Idade Moderna, proporcionando um aumento violento da força pejorativa contra a mulher. Hoje, século XXI, ainda podemos dizer que tal força ainda tem seus resquícios, não para demonizar ou a relacionar com magia, mas sim para por a mulher em uma posição inferior a do homem. A proposta do trabalho era mostrar através de 9

GOMES, Janaina Nazzari. Reflexões sobre o desejo e a ideologia na misoginia medieval. Revista do corpo discente do programa de pós-graduação em História da UFRGS. P. 264

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fontes como o demônio e a mulher andavam de mão juntas, vendo desde Eva e do mundo antigo essa demonização como instrumento da formação do discurso e da prática misógina, observando como esse “imaginário do discurso” foi capaz de povoar uma realidade com o intuito de subjugar a mulher. REFERÊNCIAS BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. BLOCH, Howard. A misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro, Ed 34, 1994. BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. ______. A sociedade feudal. 2.ed. trad. rev. Lisboa: Edições 70, 1987. ______. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio Franca e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. CERTEAU, Michel de. A escrita da historia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo, SP: Companhia de Bolso, 2009. ______. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente, séculos 13-18. Bauru, SP: EDUSC, 2003. LE GOFF, Jacques. As Raízes medievais da Europa. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. ______. O Imaginário Medieval. Editora Estampa, 1994. ______. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Editora 70, 1990. GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. ______. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1989. FLUSSER, Vilém. A história do Diabo. Editora Annablume, 3°Ed, 2008 DUBY, Georges. A Europa na Idade Media. Sao Paulo: Martins Fontes, 1988. NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986. ______. Bruxaria e História. Editora Unesp, 1ed°, 2008. MESSADIE, Gerald. A História geral do Diabo. Editora Europa, 1°Ed, 2001. ______. A História geral de Deus. Editora Europa, 1°Ed, 2001. MUCHEMBLED, Robert. Uma história do Diabo. Editora Contexto, 1°Ed, 2001. KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia. Editora Globo, 2008. LINK, Luther. O Diabo: a máscara sem rosto. Editora Cia. das Letras, 1° Ed, 1998. PIERONI, Geraldo. (org.). Entre Deus e o Diabo. Editora Bertrand Brasil, 1° Ed, 2007. RISCO, Vicente. Satanás: A história do Diabo. Editora Porto, 1946. RUSSEL, Jeffrey Burton. Lúcifer: o Diabo na Idade Média. Editora Masdra, 2003. ______. ALEXANDER,Brooks.História da Bruxaria. Editora ALEPH, 1ed°,2008. SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feiticaria e religiosidade popular no Brasil colonial. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1986. ______. A feitiçaria na Europa moderna. São Paulo: Ática, 1987. 295

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AMOR E TRANSGRESSÃO: UMA LEITURA COMPARATIVA DAS CARTAS DE SOROR MARIANA ALCOFORADO E DE HELOÍSA Késia Mota (PPGL/UFPB) Leonardo Barbosa (UFPB) Luciana E. de F. Calado Deplagne 1 Introdução Mariana Alcoforado, freira portuguesa do século XVI, relaciona-se com um oficial francês que estava em Portugal a trabalho. Heloísa, do século XII, francesa, amante e depois esposa de Abelardo, torna-se religiosa depois que o seu grande amor é castrado violentamente pelos inimigos. As duas mulheres escreveram cartas em que expressam seu amor latente aos seus amados. Duas mulheres que abraçaram a vida religiosa, capazes, no entanto, de conhecer o amor e experimentar a sexualidade. Mariana, sendo freira, tem um amante que depois a decepciona; Heloísa, mulher cética, depara com a necessidade de se tornar freira depois que o marido é castrado pelos inimigos e decide ser ordenado à vida religiosa, anulando o casamento. A solidão da separação, experiência comum a ambas, promove a elaboração de cartas em que o amor unilateral é relatado. Quatro séculos de distância não alteram muito a expressão do sentimento feminino a respeito da decepção amorosa. Nem mesmo a diferença quanto aos costumes, em relação ao tempo, nem em relação ao espaço tornam as expressões das duas mulheres muito diferentes. Através deste trabalho, as cartas serão comparadas. Espera-se demonstrar que a estrutura linguística tem fortes semelhanças. Estas semelhanças podem estar assentadas no fato de que a expressão do amor feminino é universal e eterno. A representação do amor pelo olhar feminino hoje, em pleno século XXI, seria a mesma? Esta é uma intrigante questão que pode ser considerada em um trabalho posterior. 2 Mariana Alcoforado Mariana Alcoforado (1640-1723) nasceu em Beja, Portugal. Vivendo num convento de Nossa Senhora da Conceição, da Ordem de Santa Clara, desde os 12 anos de idade, foi escrivã e vigária. Em 1663, com 23 anos de idade, portanto, teria conhecido o Marquês De Chamilly, oficial francês a serviço em Portugal por ocasião das guerras da Restauração. As cartas da religiosa, conhecidas como Cartas portuguesas, foram publicadas na França em 1669. São as cartas que Mariana escreveu ao amante, relato unilateral da relação amorosa. (ALCOFORADO, 2010) As Cartas portuguesas, ou Cartas de amor de uma religiosa portuguesa escritas ao cavaleiro de C são relatos de uma tórrida e às vezes até piegas paixão, mas isso não desqualifica a escrita da freira, na verdade torna mais interessante o relato, por se tratar de 297

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uma religiosa e de um tempo em que estes relacionamentos estavam ainda mais suscetíveis à repressão. Tensão, melancolia e amor desesperado predominam na narrativa. Afinal, uma freira que sentia o Eros em constante ebulição certamente se atormentava diante dos dilemas do profano versus divino, em uma vida espiritual tentada pelos prazeres carnais. A história destas cartas começa quando vêm à tona, pela primeira vez em 1669, em Paris, supostamente de um autor anônimo, numa edição francesa, com o título Lettres portugaises traduites em français, publicadas pelo livreiro Claude Barbin. Desconfia-se, no entanto, se a autoria é verdadeiramente da freira. Nesta edição, o editor francês fez a seguinte apresentação: Consegui, à custa de muitos trabalhos e dificuldades, recuperar uma cópia correta da tradução de cinco cartas portuguesas que foram escritas a um nobre gentil-homem que servia em Portugal. Todos os que conhecem os sentimentos do coração humano são unânimes ou em louvá-las ou em procurá-las com tanto empenho que julguei prestar-lhe um bom serviço imprimindo-as. Desconheço em absoluto o nome daquele que as traduziu; mas pareceu-me que não cairia no seu desagrado publicando-as. É difícil que não acabassem por aparecer com erros de impressão que as teriam desfigurado. (ALCOFORADO, 2010: 09-10)

O editor, a princípio, ocultou a autoria das cartas, talvez para que a curiosidade instigasse as pessoas a se interessar por elas. Esta era uma prática comum entre os editores da época. Mas não existe certeza a respeito disso. Chegaram a creditar a autoria a um tal de Guilleragues, na segunda edição, publicada no mesmo ano, só que desta vez na Alemanha, editado por Pierre Marteau. Mas, independentemente disso, grandes autores se interessaram pelas missivas, como Rainer Maria Rilke, Stendhal, Rousseau, Saint-Beuve e outros. Polêmicas à parte, sabe-se que realmente existiu em Beja, Portugal, uma freira chamada Mariana Alcoforado. Em 1810, num antigo exemplar das cartas, encontrado na França, confirmou-se a autoria numa nota que afirmava que a religiosa Mariana Alcoforado as escreveu e que o destinatário era o conde de Chamilly, chamado então de Conde de SaintLéger. (ALCOFORADO, 2010) 3 Heloísa A história de Heloísa deve ser contada a partir da história de Abelardo, seu grande amor. Grande professor de filosofia, Le Goff (1993) o chama de "glória do meio parisiense", primeira grande figura do meio intelectual da modernidade (século XII). Dedicado à vida intelectual, aos 39 anos já era considerado o maior professor da França. Foi nessa época que surgiu Heloísa em sua vida. Aos 17 anos, a jovem já era erudita, sua sabedoria era conhecida em toda a França. Até então celibatário, Abelardo não consegue evitar o interesse por uma mulher tão inteligente. O relacionamento amoroso entre os dois intelectuais foi realmente inevitável. Abelardo torna-se professor de Heloísa e é hospedado pelo tio da moça, Fulbert. Vivendo na mesma casa, apaixonados, a experiência sexual entre eles é vivida intensamente, até que são descobertos. Neste momento, Heloísa está grávida. Abelardo leva a amante para a 298

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casa da irmã, fora de Paris, para que o bebê nasça. Esta cunhada de Heloísa é quem cria o seu filho, Astrolábio. Acreditando que Abelardo, em Paris, enquanto Heloísa estava distante, havia rejeitado a sua sobrinha, Fulbert fica irritado. Para aplacar a fúria de Fulbert, mesmo contra a vontade de Heloísa, que não aceita a ideia do casamento, Abelardo casa-se com ela. No entanto, a contrariedade de Fulbert não é realmente aplacada. Abelardo é castrado em vingança. Desesperado, o filósofo acredita estar sendo punido por Deus e decide anular o casamento para abraçar a vida religiosa. Heloísa, cética, fica ainda mais indignada com Deus, mas segue o conselho do marido e se torna freira. De acordo com o filme Em nome de Deus (1988), que relata a experiência do casal, Heloísa coloca uma pena, caída de um pássaro numa tarde em que estava muito feliz ao lado de Abelardo, no interior de uma imagem de Cristo e fica apegada a esta imagem, não pelo Cristo, mas pelo pequeno objeto que representa o seu grande amor, único senhor a quem ela pretende devotar adoração, Abelardo. Em devoção a Abelardo, Heloísa se torna uma boa freira, dedicada aos serviços da igreja; torna-se abadessa em 1129. A correspondência entre Heloísa e Abelardo, depois da separação, de acordo com Zumthor (2002), começa quando Abelardo escreve uma carta a um amigo, chamada Historia calamitatum1. Esta carta teria sido escrita em 1132, quando Abelardo estava com 53 anos. Heloísa tem acesso a estas cartas e escreve uma carta ao seu grande amor, uma Consolatio. Depois disso, ocorre uma troca de correspondências entre o casal. São três cartas em que os dois relembram os momentos de amor que viveram. Depois destas cartas amorosas, o casal troca correspondências de caráter impessoal, sobre questões administrativas relacionadas ao monastério de Paracleto, que Heloísa comanda. Por fim, Abelardo envia uma Regra para as religiosas do monastério liderado por Heloísa. Segundo Zumthor (2002: 03), é acordo para a maioria dos medievalistas que a Correspondência entre Abelardo e Heloísa constitui um dossiê organizado, "uma 'obra', na medida em que essa palavra implica intenção e estruturação". Para a análise a que este trabalho se propõe, interessam as cartas amorosas, especialmente as que Heloísa emitiu ao seu grande amor, Abelardo. Importa analisar a linguagem e a forma como o amor é representado nestas cartas. 4 Leitura comparativa das cartas de Soror Mariana Alcoforado e de Heloísa As cartas de Mariana Alcoforado e as de Heloísa, apesar de relatarem eventos situados em diferentes momentos históricos e diferentes contextos socio-culturais, possuem consideráveis semelhanças que merecem ser apontadas em uma análise comparativa. As cartas das duas religiosas, igualmente, apresentam diversas antíteses, compreendem sentimento de insegurança, possuem um tom pessimista, expressam uma tentativa de conciliar matéria e espírito, abordam temas religiosos, revelam indiferença em relação à morte e sentimento de culpa cristão. Quanto à estrutura dos relatos, é possível analisar através de diferentes abordagens, inclusive o amor cortês. A cortesia tão bem difundida na época em que viveram Abelardo e 1

História das minhas calamidades. As cartas são todas escritas em latim, língua utilizada pelos intelectuais, no séc. XII, em seus escritos. Heloísa era fluente em latim e em grego.

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Heloísa ainda permaneceu no período das cartas de Mariana Alcoforado. Entretanto, a freira portuguesa não foi agraciada pelo amor cortês do conde de Chamilly. Ela era ao mesmo tempo amante e amada, como se pode inferir do seguinte trecho de uma das suas cartas: Os seus impertinentes protestos de amizade e as delicadezas ridículas da sua última carta mostraram-me que recebera todas as que lhe escrevi e que elas não provocaram no seu coração nenhuma emoção, apesar de as ter lido. Ingrato! E ainda sou tão louca que me sinto desesperada por não poder pensar que elas lhe não tinham chegado e que não lhas tinham entregado! Detesto a sua sinceridade! Acaso lhe tinha pedido que me dissesse sinceramente a verdade? Por que não me deixou a minha paixão? Tudo o que tinha a fazer era não me escrever: eu não procurava ser esclarecida. (ALCOFORADO, 2010: 61–62)

Mariana, ao dizer que não necessitava de esclarecimentos, demonstra submissão, uma relação de vassalagem na qual o que mais a interessava era servir, entregar-se a essa paixão. Quando o conde detalha os assuntos que Mariana considera sórdidos, o sentimento da mulher que ama confunde-se com uma suposta condição de mulher amada e traída pelo seu amante. Heloísa, no entanto, é realmente uma mulher que ama e é amada. Zumthor (2002: 11) comenta que Abelardo chega a ser desviado do seu ensinamento. O filósofo compôs canções de amor para Heloísa. A jovem entendia o mundo cortês como mundo da felicidade, mulher que ama e é amada, lisonjeada. É interessanto notar que Abelardo exerce papel de vassalo não apenas no campo ideológico, mas também social, porque, sendo Heloísa de uma classe social mais favorecida, tanto que Abelardo se propõe a dar lições teológicas e filosóficas apenas em troca de moradia, que foi sob o mesmo teto que sua amada, e por comida. Depois da terrível castração, ainda existe amor entre o casal. É um novo tipo de expressão do amor, para um homem que se tornou eunuco, mas é amor. Na sua carta ao amigo, a Historia calamitatum, Abelardo se refere a Heloísa como irmã em Cristo, mais do que uma esposa (ZUMTHOR, 2002: 77). Heloísa, em resposta, demonstra se sentir agradada em receber o epíteto de amiga: "O nome de esposa parece mais sagrado e mais forte, entretanto o de amiga sempre me pareceu mais doce." (ZUMTHOR, 2002: 94). Isto revela que o amor não deixou de existir e ser correspondido, apenas tomou uma nova forma e passou a conviver com a separação. O amor cortês não está vinculado a dogmas nem a doutrinas filosóficas. A vassalagem não se confunde com a idolatria, pois a relação que se estabelece está mais associada ao Eros platônico. A mulher estava excluída desta espécie de contemplação. O feminino é objeto e não sujeito, porém não seria possível explicar esta manifestação do amor sem a figura da mulher. A condição feminina já vinha evoluindo, sobretudo na nobreza. O cristianismo concedeu uma respeitabilidade desconhecida no paganismo. Foi no exercício poético, na produção lírica trovadoresca, que o amor cortês assumiu o seu termo. A maioria dos poetas tinha formação cristã, mas, ao mesmo tempo, almejava uma ideologia que não era de origem romana. Esta concepção de amor era reprovada pelas autoridades eclesiásticas. O termo ‘amor cortês’ reflete a diferença medieval entre corte e villa. Não o amor villano – copulação e procriação –, mas sim um sentimento elevado, próprio das cortes senhoriais. Os poetas não o denominaram ‘amor cortês’;

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usaram outra expressão: fin’amors, quer dizer, amor purificado, refinado. Um amor que não tinha por fim o mero prazer carnal. (PAZ, 1994: 70)

Ao contrário de Heloísa, Mariana não conhece o amor purificado, refinado. As suas cartas revelam a ideia de que o homem a possuiu por mero desejo de satisfação carnal. Talvez o sentimento de Mariana não seja comparável ao de Heloísa, embora as cartas tenham estruturas discursivas muito parecidas. No seguinte trecho da quarta carta, está claro que o amor de Mariana não é correspondido, pois a religiosa expressa a sua mágoa pelo silêncio do ex-amante: As religiosas, mesmo as mais severas, têm pena do estado em que me encontro e que até lhes inspira uma certa consideração e um certo respeito por mim. Toda a gente está impressionada com o meu amor. Só tu permaneces nessa profunda indiferença, sem me escrever senão cartas frias, cheias de banalidades: metade do papel vem em branco e parece que estás morto por acabar depressa. (ALCOFORADO, 2010: 49)

É possível inferir que o sentimento de Mariana tenha natureza mais de obsessão que de amor, efetivamente. Talvez um estudo psicanalítico revelasse que a sua mágoa estivesse fundada mais na rejeição do amante, no abandono, na falta dos anteriores momentos de paixão e mesmo no sentimento de culpa da religiosa que cometeu o pecado da fornicação, que verdadeiramente no amor. Esta hipótese poderia provocar um outro trabalho de análise literária. O poeta Rainer Maria Rilke comenta: [...] é evidente nessa intensa amante [a freira portuguesa Marianna Alcoforado] e em seu vergonhoso parceiro: que essa relação mostra definitivamente como, por parte da mulher, tudo o que foi realizado, suportado, finalizado no amor se contrapõe à absoluta inacessibilidade ao amor por parte do homem. Numa analogia banal, ela recebe o diploma da arte de amar, enquanto ele carrega no bolso um gramática elementar dessa disciplina, da qual colheu uns poucos vocábulos, suficientes apenas para construir sentenças ocasionais, tão belas e emocionantes como as conhecidas sentenças das primeiras páginas de métodos de língua para iniciantes. (RILKE, 2007: 252)

Na relação de Heloísa e Abelardo, o conhecimento da sexualidade ocorre simultaneamente para ambos. Embora mais velho, Abelardo jamais conhecera o sexo, assim como Heloísa, ainda muito jovem. O sexo era a expressão do sentimento que havia aflorado igualmente para os dois amantes. Mas a mutilação do membro do apaixonado Abelardo transforma a condição do casal. Segundo Zumthor (2002), o amor encontrou um obstáculo absoluto por natureza. Embora consciente disso, Heloísa conserva o amor mesmo sem o outro. "Heloísa vangloria-se de que na falta do prazer a ternura pode ainda fundar uma união. Ela toma inteiramente para si o sacrifício do corpo" (ZUMTHOR, 2002: 15). A respeito da separação, a reação das duas religiosas é também diferente, o que denota o sentimento de cada uma delas. Heloísa, mesmo distante de Abelardo, ainda o ama. Ela revela que sofre mais por causa da violência que o marido sofreu que pela perda, que é a sua própria dor de mulher abandonada: "[...] sofro incomparavelmente mais pela maneira por que te perdi do que pela própria perda". (ZUMTHOR, 2002: 94) 301

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Mariana, porém, sofre pela perda mais do que pela maneira pela qual perdeu o amante. Talvez ela mesma, nos momentos de paixão experienciada, estivesse prevendo a separação. Conjuro-te a que me digas por que é que te empenhaste em me encantar como fizeste, se já sabias que me havias de abandonar? Por que é que puseste tanto empenho em me tornar infeliz? Por que não me deixaste em paz no meu convento? Tinha-te feito algum mal? Perdoa-me! Eu não te culpo de nada! [...] (ALCOFORADO, 2010: 19)

Quanto às antíteses, comuns em textos tão carregados de emotividade, as duas expressaram seus sentimentos contraditórios com palavras contraditórias. Observe-se as palavras de Heloísa: "Tu só, e não um outro, tu só, que és a causa única da minha dor, me trarás a graça do consolo." (ZUMTHOR, 2002: 94) São semelhantes às seguintes palavras de Mariana: "Ama-me sempre e faze-me sofrer ainda maiores males". (ALCOFORADO, 2010: 20). No tocante à abordagem da temática religiosa, enquanto Mariana abdica da religião – "[...] estou encantada por ter feito por ti tudo quanto fiz contra toda a espécie de decoro. A minha religião e a minha honra, faço-as consistir unicamente em te amar loucamente por toda a minha vida [...] (ALCOFORADO, 2010: 26) –, Heloísa expressa o desinteresse pela vida clerical – "Somente uma ordem tua, e não sentimentos de piedade, me conduziram desde a primeira juventude aos rigores da vida monástica". (ZUMTHOR, 2002: 99). A primeira deseja abandonar a vida religiosa em consequência da aventura sexual; a segunda ingressa no convento aconselhada pelo seu amado, fazendo a vontade dele, portanto. Nos discursos de ambas, ocorre a indiferença em relação à morte. Mariana, amaldiçoando a condição em que se encontra, abandonada, afirma: "Estou viva, infiel que sou!, e tanto para conservar a minha vida como para perdê-la! [...] Não valerá mais a morte do que o estado a que me reduziste?" (ALCOFORADO, 2010: 37-38). Heloísa, desejando vida longa a Abelardo, seu grande amor e senhor, ressalta a importante existência deste homem ao declarar que não deseja viver sem que ele esteja vivo, através seguintes palavras: "Possamos nós morrer antes! O simples pensamento de tua morte já é para nós uma espécie de morte". (ZUMTHOR, 2002: 113) 5 Considerações finais O amor revela seus contrastes em Mariana Alcoforado e em Heloísa diante do conflito entre a religiosidade e o prazer carnal. Entretanto, o que prevalece em Alcoforado é o sentimento de abandono e não propriamente o desejo de amar. Em Heloísa sobressai a condescendência as vontades de Abelardo ainda que isso signifique a separação física. REFERÊNCIAS ALCOFORADO, Mariana. Cartas portuguesas. Porto Alegre: L&PM, 2010. DONNER, Clive. Em nome de deus. [Filme]. Direção de Clive Donner. Inglaterra, 1988. PAZ, Octavio. A dupla chama. São Paulo: Siciliano, 1994. 302

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RILKE, Rainer Maria. Cartas do poeta sobre a vida: a sabedoria de Rilke. BAER, Ulrich (org).Mota, Milton Camargo (trad). São Paulo: Martins, 2007. ZUMTHOR, Paul. Correspondência de Abelardo e Heloísa. Trad. Lúcia Santana Martins. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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SUBJETIVIDADE DO HOMEM MEDIEVAL: AÇÃO E INTENÇÃO DO HOMEM NAS OBRAS DE AGOSTINHO E TOMÁS DE AQUINO Khayles N. P. Alves (UFPB) [email protected] Introdução Quando se fala em Renascimento, alguns conceitos são imediatamente trazidos à nossa memória, tais como antropocentrismo, cientificismo e secularização. Entre as inovações culturais surgidas no campo filosófico, ganha destaque a figura do indivíduo, do homem autêntico e dinâmico. Essa nova concepção do humano seria sustentada por fundamentos filosóficos resgatados da literatura clássica grego-romana, que ganhava forte disseminação na Europa e contrastaria profundamente com a ideia medieval do ser humano enquanto membro de uma grande hierarquia universal imutável, elemento de uma coletividade engessada por imposições sociais, morais e religiosas. No entanto, como não se pode falar de fronteiras bem definidas entre determinadas fases da História, e sim da observação de uma mudança gradual do pensamento humano, torna-se imprescindível à compreensão da noção de indivíduo moderno buscar suas raízes na obra dos pensadores medievais. Se, por um lado, assim como na Antiguidade, a liberdade do homem medieval é restrita à obediêcia a uma lei transcedental, seja divina ou natural, autores como Agostinho de Hipona (354-430) e Tomás de Aquino (1252-1226) trazem em seus escritos o gérmen da autonimia do homem: ao concederem destaque à subjetividade, esses autores patrísticos acabam transformando a ação humana em critério determinante dos acontecimentos, fugindo da concepção de destino predeterminado comumente atribuída à visão de mundo medieval. 1. A noção de liberdade na obra de Agostinho Após converter-se ao catolicismo, Agostinho passou a nortear sua vida e seu pensamento pela fé cristã, propondo-se a alcançar o entendimento da mesma pela razão. Suas Confissões, uma espécie de exame de consciência fundamentado na verbalização dos próprios pensamentos, atos e inquietudes, tornaram-se uma obra antológica para a compreensão da visão de mundo medieval e ilustram, com a vida, as escolhas e os questionamentos do autor, o percurso de sua filosofia. Nos escritos permeados de orações suplicando por inspiração divina, que lembram a invocação das musas feita pelos poetas clássicos, Agostinho conjectura sobre a metafísica do ser, da verdade e do bem, contrapondo suas conclusões à narração das próprias inclinações sensuais, expressas em relatos envolvendo desde sua infância até o período posterior a sua conversão. Assim, em sua intenção de alcançar pureza e imortalidade por meio da autodecifração hermenêutica,

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Agostinho não propõe o problema do homem em abstrato, ou seja, o problema da essência do homem em geral: o que ele propõe é o problema mais concreto do eu, do homem como indivíduo irrepetível, como pessoa, como indivíduo, poder-se-ia dizer com terminologia posterior. (REALE & ANTISIERI, 2003, p. 89)

As Confissões podem ser divididas em três partes de acordo com seu conteúdo: os livros de I a IX expõem a vida passada de Agostinho, o livro X fala de sua situação atual como cristão convicto, e os livros de XI a XIII discorrem sobre o primeiro capítulo do Gênesis, procurando desvendar racionalmente as obscuridades do texto bíblico – pelo que suplica por revelação divina. Na primeira parte, é estabelecido o confronto entre a vontade divina e a vontade da carne, que levará Agostinho à descoberta do homem como indivíduo. No livro VII, Agostinho descreve seu contato com o neoplatonismo, mas sem deixar claro por meio de que obras, já que as descreve traduzindo-as em versículos da Bíblia. Ao aproximar as ideias neoplatônicas das cristãs, o autor declara que os textos dos filósofos gregos o prepararam para poder aceitar as verdades religiosas, sem, contudo, fazer menção ao ponto mais importante, a figura de Jesus. Nas palavras de Strefling, “o melhor que a sabedoria antiga pôde fazer era ver a finalidade da humanidade: a união com Deus. Os filósofos não viram qual era o meio para alcançar essa finalidade – Cristo” (STREFLING, 2007, p. 268). Por meio do ensino filosófico, Agostinho pôde estabelecer as bases racionais para a compreensão e aceitação consciente dos dogmas religiosos, uma vez que o mesmo o induzira a buscar uma verdade incorpórea, mas apenas a Bíblia apontaria para a solução desse mistério. Refletindo sobre a origem do mal, Agostinho se firma no pressuposto da incorruptibilidade divina, que devia estender-se, em parte, a suas criações: para serem corruptíveis, é preciso que todas as coisas sejam boas. Se fossem perfeitamente boas, seriam incorruptíveis, como Deus; se fossem más, não poderiam ser corruptíveis, pois só se corrompe o que é bom. Assim, conclui Agostinho que, do ponto de vista metafísico-ontológico, não existe mal, mas um bem imperfeito: mesmo coisas que parecem más sob nossa ótica são componentes de um todo, cuja harmonia deriva do conjunto, sendo boas por cumprirem com um propósito positivo. Para Agostinho, mal não em substância maléfica, mas advém do uso inadequado do próprio livre-arbítrio humano, que produz “perversão da vontade desviada da substância suprema” (AGOSTINHO, 2004, p. 190) para algo inferior. Em O livre arbítrio, Agostinho parte de uma noção de justiça para explicar por que Deus teria concedido ao homem a oportunidade de pecar: a justiça é boa, e portanto, vem de Deus. Nada mais justo do que recompensar a prática do bem e punir a do mal. Contudo, não seria justo recompensar a prática do bem se esta fosse uma condição inescapável da própria existência humana; para que seja justamente recompensada, ela deve partir da vontade livre (Id., 1995, pp. 74-75). Assim, Deus concede ao homem a possibilidade de ter uma vontade voltada para o bem, o que pode ser comprovado pelo próprio fato de que usá-la para o pecado resulta em justo castigo: não havendo nada na natureza do homem nem fora dela que o force a pecar, o pecado torna-se voluntário (Ibid., p. 203). 305

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O livro VIII das Confissões é dedicado justamente ao conflito que se encerra na vontade de Agostinho, já então pendente para a Verdade de Deus, mas ainda aprisionada pelo hábito pecaminoso: A luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contraise o hábito; e, se não se resiste a um hábito, origina-se uma necessidade. (...) Assim, duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal e outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim. (...) O hábito, que combatia tanto contra mim, provinha de mim, porque, com atos da vontade, eu chegava onde não queria. (...) com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pela qual a alma, mesmo contrafeita, é arrastada e presa, mas merecidamente, porque, querendo, se deixa escorregar. (Id., 2004, pp. 209211)

Como para os estóicos, é possível e necessário domar as paixões, pois sua força advém do hábito, mas a vontade fortalecida pode escapar-lhes e subjugá-las. No último capítulo, quando finalmente passa por uma experiência definitiva de conversão, Agostinho declara ter apaziguado esse conflito: a vontade submissa à Sabedoria divina é moderada e abstém-se das paixões, danosas, por um estado de plenitude, de felicidade. Em A Vida Feliz, Agostinho explica que feliz é aquele que possui tudo que deseja. Se a vontade se volta para coisas sujeitas ao acaso e às vicissitudes da vida, ou a pessoa deseja cada vez mais, permanecendo insatisfeita, ou é infeliz pelo medo de perder o que possui. Para ser feliz, portanto, é necessário desejar e possuir um bem permanente e inalterável. Sendo Deus o único a corresponder a esses critérios, é feliz, portanto, quem possui Deus. O que é necessário para possuir Deus? A resposta parte, novamente, dos fundamentos neoplatônicos: sendo o homem constituído de corpo e de alma, ambos precisam ser alimentados, e o alimento da alma é a ciência. Assim como a doença física causa falta de apetite, a alma desnutrida fica fastiosa. No entanto, mais danosa ainda à saúde espiritual é a gula, que, incitando um apetite descomedido, ocasiona má digestão. Para ser feliz, não basta adquirir conhecimento, é preciso ser equilibrado, para não se dissipar em excessos nem contentar-se abaixo de sua plenitude. A moderação do espírito, portanto, é a sabedoria (Id., 1998, pp.128-156). Até aqui, notamos claramente o raciocínio estóico de que Agostinho se apropriou, contudo, reiterando o que nos ensina nas Confissões, o bispo soluciona a questão pelo uso de princípios cristãos: a Bíblia ensina que a Sabedoria de Deus é Jesus, que Jesus é o próprio Deus e que é também a Verdade, logo, a justa medida da alma é Deus. Deus está em nós, assim como está em todas as coisas, e portanto, a verdade encontra-se em nós. Para conhecêLo, portanto, é preciso que o homem se volte para si mesmo, para sua alma. Como a alma não é matéria e não pode ser apreendida pelos sentidos, não é da natureza do que se pode perceber e entender. A alma se encontra no plano do inteligível, e, portanto, conhece a si mesma pelo método da reflexão. Assim, quanto mais nos conhecemos, mais a imagem de Deus pode resplandecer em nós: Conhecer a si mesmo, como o conselho de Sócrates nos convida a fazer, é conhecer-se como imagem de Deus. Nesse sentido, nosso pensamento é memória de Deus, o conhecimento que aí o encontra é inteligência de Deus e o amor que procede de ambos é amor a Deus. Logo, há no homem algo mais

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profundo que o homem. O retiro do seu pensamento (adbitum mentis) nada mais é que o segredo inesgotável do próprio Deus; como a sua, nossa vida interior mais profunda não é senão o desenvolvimento, dentro de si, do conhecimento que um pensamento divino tem de si e do amor que tem por si. (GILSON, 2007, pp. 150-151)

2. A noção de intenção na obra de Tomás de Aquino O pensamento desenvolvido por Tomás de Aquino apregoa que a mente humana interpreta o mundo de acordo com o intelecto, não sendo cabível direcionar a busca da verdade com base na revelação divina, de cunho espiritual. Do mesmo modo, mistérios como encarnação e trindade devem ser aceitos, mas sua natureza sobrenatural não nos oferece possibilidade de compreensão racional. Contudo, assim como trazem enigmas inacessíveis, as Escrituras também contêm aspectos inteligíveis e demonstráveis. Assim, Aquino se propõe a apresentar uma explicação lógica para um considerável número de questões teológicas. Se, por um lado, a filosofia deveria se fundamentar em uma epistemologia empírica, e a teologia na revelação concedida por Deus, por outro, em ambos os domínios, o compromisso com a verdade se faz necessário. Gilson ressalta que “a verdade da filosofia se uniria à verdade da revelação por uma cadeia ininterrupta de relações verdadeiras e inteligíveis, se nosso espírito pudesse compreender plenamente os dados da fé” (GILSON, 2007, p. 656), o que implica que todas as vezes que uma conclusão filosófica discordar do dogma cristão, há indícios incontestáveis de que a mesma seja falsa: a contradição evidencia um erro, e como o erro não pode estar contido na revelação divina, dado o caráter perfeito de Deus, só pode se achar na filosofia. Para Aquino, ao invés de passar por uma longa preparação filosófica, a discussão deveria partir de um fundamento teológico bem estabelecido (CANTOR & KLEIN, 1969, p.15). A primeira revelação concedida por Deus ao homem é a de sua existência, porém, faltalhe evidência, uma vez que ela não se manifesta em matéria. Aquino, contudo, considera falsa a afirmação de que Deus, por seu caráter imaterial, só possa se fazer conhecido por meio da fé. Para ele, se a pessoa de Deus não pode ser demonstrada pelos sentidos, seus efeitos sensíveis podem ser comprovados (AQUINO, 2011). Aquino oferece cinco vias de comprovação da existência de Deus, todas seguindo a mesma lógica: parte-se da constatação de que um determinado ser substancial não contém em si explicação satisfatória da própria existência. O mais evidente desses argumentos se fundamenta no princípio aristotélico do motor imóvel: existe movimento no universo, e todo movimento tem uma causa. A causa do movimento deve ser exterior ao ser: este não pode ser, sob a perspectiva de um mesmo movimento, o motor e a coisa movida. Assim, aquilo que está em movimento é movido por um motor, que é movido por outro motor e assim sucessivamente. Do mesmo modo, o movimento não pode ser infinito, ou não haveria nada que explicasse seu início do movimento. A existência do movimento compreende, portanto, uma Primeira Causa, que não pode ser outra senão Deus, que é eterno. Na questão de número 83 da primeira parte de sua obra máxima, a Suma Teológica, na qual elabora quatro tópicos por meio dos quais pretende conduzir o leitor à compreensão de sua lógica, Aquino teoriza sobre o livre-arbítrio humano. A estrutura de cada questão da 307

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Suma consiste em elencar argumentos que confirmam uma determinada hipótese e, em seguida, argumentos contrários a ela, chegando, por fim, à conclusão do próprio Aquino. Assim, primeiramente, Aquino se propõe a demonstrar que o homem é dotado de livre arbítrio. A justificativa escolhida pelo próprio Aquino é: sendo racional, o homem necessariamente é dotado de livre-arbítrio pois, ao contrário dos animais, que são impelidos pelo instinto natural, o julgamento do homem pode ser direcionado para diversos objetos. Estabelecida essa conclusão, surge um novo ponto a ser esclarecido: o livre arbítrio é um poder, uma ação ou um hábito? Se fosse um hábito, haveria de ser um hábito natural, pois é natural do homem ter livre-arbítrio. No entanto, as coisas para as quais nos inclinamos naturalmente, como o desejo da felicidade, não se submetem ao livre-arbítrio. Além disso, hábito diz respeito a nossa disposição para as coisas, e o livre-arbítrio é indiferente quanto a escolher bem ou mal. Não é, portanto, um hábito; resta-lhe ser uma potência. Mas, sendo potência, trata-se de potência apetitiva ou cognoscitiva? Aquino ressalta que tanto o desejo quanto o julgamento têm seu peso na tomada de uma decisão, porém, o julgamento é influenciado pelo desejo. Dessa forma, o livre-arbítrio, ele é uma potência apetitiva. Por fim, já que se trata de uma potência apetitiva, distingue-se ela da vontade? Embora escolher e querer pareçam atos diferentes, Aquino nos explica que a vontade é o desejo por alguma coisa, enquanto o livre-arbítrio é o poder de escolher o que se deseja. Contudo, como o desejo e a escolha se orientam para um mesmo fim, conclui o autor que vontade e livrearbítrio consistem em uma só potência. No segundo volume da primeira parte da Suma Teológica, Aquino dedica as questões de número 6 a 21 à discussão sobre os atos praticados pelo homem. Uma novidade é introduzida pelo autor na questão 12: a noção de intenção. Para ele, existem três tipos de ação: primeiramente, existem as ações que realizamos com fim nelas mesmas, como o estudo da filosofia. Há também as coisas que fazemos para alcançar um determinado fim, como tomar medicamentos para reestabelecer a saúde. Existem, ainda, conseqüências acarretadas por nossos atos voluntários, as quais podem ser intencionais ou não. Quanto à moralidade, vemos na questão 18 que as ações humanas também podem ser classificadas em boas, más ou indiferentes, levando-se em consideração os elementos de sua execução, ou seja, a intenção com que foram feitas e as circunstâncias com que foram postas em prática. Assim, mesmo uma boa ação, como dar esmola, torna-se má quando a intenção não condiz com seu teor: quem o faz por ostentação, por exemplo, comente uma má ação. Por outro lado, uma má ação pode ser justificada por sua boa intenção, como roubar para dar aos pobres. Em caso de erro, isto é, de alguém que se orienta por uma crença equivocada, sua intenção é avaliada de acordo com sua consciência: em caso de negligência, como o adultério cometido voluntariamente, o agente é considerado culpado; em caso de ignorância, como um homem que se casa com uma mulher sem saber que esta já era esposa de outro homem, não lhe é imputado pecado (KENNY, 1990, pp. 213-214). A moralidade de um ato pode ser, ainda, afetada por suas conseqüências, contudo, as mesmas podem, como vimos, ser ou não ser intencionais.

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Conclusão Ao considerar que o mal do mundo resulta de uma deturpação da vontade divina em função da escolha humana, Agostinho deixa clara a noção de absoluta liberdade humana para agir de acordo com escolhas subjetivas. Além disso, a busca pelo conhecimento interior enquanto forma de conhecer a Deus evidencia o princípio da formação da noção do indivíduo antropocêntrico moderno, uma vez que coloca a descoberta da interioridade pessoal de cada homem como paradigma para aferição das verdades universais. Do mesmo modo, ao considerar o livre-arbítrio humano como a capacidade de escolher de acordo com sua própria vontade e ao problematizar a moral com base em critérios subjetivos, baseados na intenção individual, e não apenas consequência dos atos dos homens, a obra de Tomás de Aquino já contem questões que fundamentarão o pensamento individualista da Modernidade. Notamos, portanto, que as noções de subjetividade que culminarão no surgimento do indivíduo voluntarioso, célebre característica do pensamento moderno, não são produto exclusivo do processo de secularização renascentista. Ainda na Idade Média, com o aproveitamento da filosofia clássica por parte de autores patrísticos, começa a ser delineada uma ideia de liberdade, individualidade e subjetividade que, ainda que devesse ser orientada por principios divinos, não está subordinada a eles. REFERÊNCIAS AGOSTINHO. Confissões. Trad. Jaime Oliveira dos Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 2004. ______. O livre-arbítrio. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. ______. Solilóquios; A vida feliz. Trad. Audary Fiorotti e Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1998. AQUINO, Tomás de. Summa Theologica. Disponível em: . Acesso em: 18 Dez. 2011.

CANTOR, Norman F.; KLEIN, Peter L. (ed.). Medieval thought: Augustine & Thomas Aquinas. Toronto: Blaisdell Publishing Company, 1969. GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. KENNY, Anthony. História concisa da filosofia ocidental. Lisboa: Temas e Debates, 1999. REALE, Giovanni; ANTISSIERI, Dario. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Sâo Paulo: Paulus, 2003. STREFLING, Sérgio Rocardo. A atualidade das Confissões de Agostinho. In: Teocomunicação, Porto Alegre, v. 37, n. 156, p. 259-272, jun. 2007.

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REPRESENTAÇÕES DAS AMAZONAS NA IDADE MÉDIA Marília Colins NEMIS/UFMA [email protected] Luciana Campos Amazonas na Antiguidade As amazonas gregas compunham uma sociedade de mulheres guerreiras, que estariam localizadas na região da Trácia ou das costas meridionais do Mar Negro (Cáucaso). Themiscrya seria o nome da sua cidade hipotética, que estava situada além do Mar Negro, as margens do rio Termodonte. Eram filhas de Ares (deus grego da guerra e filho de Zeus) e da ninfa Harmonia. Veneravam a deusa Ártemis (deusa grega virgem que representa a força feminina). A sociedade das amazonas era geralmente dividida em duas tribos, e cada uma possuía sua própria rainha. Enquanto uma tribo guerreava, a outra mantinha-se sedentária, como uma forma de proteger o povo. As rainhas mais famosas são: Hipólita, que teve seu cinturão roubado por Hércules (há versões que narram que este o recebeu como um presente), e Pentesiléia, que lutou na guerra de Tróia, e foi assassinada por Aquiles. Para Plutarco, e posteriormente para Heródoto, as amazonas seriam ancestrais dos saurômatas. Eram descendentes de três carregamentos de amazonas capturadas por Hércules durante seu Nono Trabalho; elas romperam seus grilhões e mataram os marinheiros que lhes haviam designado como guardiães, mas, como nada sabiam de navegação, elas chegaram à deriva até o Bósforo cimério, onde desembarcaram em Cremni, o país dos citas livres. Lá, elas se apoderaram de uma manada de cavalos selvagens, montaram-nos e se dedicaram a saquear o país. Pouco depois, os citas, descobrindo por meio de alguns cadáveres que caíram em suas mãos que os invasores eram mulheres, enviaram um grupo de jovens rapazes para que dessem às amazonas amor, em vez de guerra. Não foi difícil, mas as amazonas consentiram em se casar com eles somente depois de eles se mudarem para margem oriental do rio Tanis, onde seus descendentes, os saurômatas, continuam vivendo, conservando certos costumes amazônicos, como aquele que obriga cada mulher ter matado no campo de luta pelo menos um homem antes de escolher seu marido. (GRAVES, 1955, p.688)

Heródoto narra que os saurômatas (descendentes da união das amazonas com os citas) deram continuidade aos costumes de seus antepassados, que concediam à mulher certa posição na sociedade. Tanto que uma jovem saurômata não podia pensar em casar, antes de ter matado um inimigo. As amazonas pertenciam ao domínio da transgressão. Segundo Boyer, os gregos concebiam as amazonas como “bárbaras”, no sentido que estas ignoravam e transgrediam as 310

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leis da pólis. Não conheciam a navegação, nem a cultura de cereais, e eram denominadas como devoradoras de carne. Enquanto as virtudes femininas gregas eram a obediência e o pudor, as amazonas desprezavam esses valores. Segundo os gregos, estas eram a mulher como expressão da animalidade. Eram guerreiras, caçadoras, montavam cavalos, sabiam manejar o arco, o dardo, o escudo e o machado de combate. Alimentavam-se de carne crua.

Figura 1: Amazona enfrenta guerreiro, vaso grego da Apúlia, século IV a.C. Fonte da imagem: http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Ficheiro:Amazons5113.jpg A terminologia amazonas causa muita controvérsia. A teoria mais descrita estar ligada a prática que as amazonas possuíam de retirar um dos seios (“a”, sem + “mazos”, seio), com o objetivo de manejar melhor o arco, e deslocar a sua força para o ombro e o braço. Havia também um aspecto simbólico na mutilação do seio: permaneciam mulheres por um lado e tornavam-se homens por outro. Porém, a iconografia existente as mostra com os seios intactos. Outra explicação para o termo amazonas é que este derivaria do nome de um povo iraniano, Há-mazan, que seria traduzido como “guerreiros”.

Figura 2: Amazona preparando para a batalha (Rainha Antíope ou Hipólita?), ou Vênus Armada, Pierre-Eugène-Emile Hébert, França, 1828 -1893. Fonte: http://www.nga.gov/fcgibin/tinfo_f?object=69968 311

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Para manter sua espécie, as amazonas se relacionavam com homens uma vez por ano. As relações aconteciam de forma aleatória e no escuro, para que não reconhecessem o parceiro. De certa forma, eram elas que violentavam e “usavam” os homens. Se ocorresse uma gestação, as crianças do sexo feminino eram criadas com as mães, e os meninos ou eram entregues aos pais ou tornavam-se escravos. Homero denominava essas guerreiras como “antianeirai” (mulheres-homens). O prefixo anti possui sentido duplo: significa que ao mesmo tempo em que as amazonas são iguais aos homens, também são suas inimigas. Elas procuram eliminação ou redução do macho. Ninguém ouve dizer que as Amazonas combatem entre si, ou que enfrentam outros povoados femininos. É sempre em relação ao homem que se exerce sua pugnacidade. E é por isso que recusam o casamento, que seria encarado por elas como uma sujeição. (BOYER, 1997, p. 745)

Estas guerreiras causavam uma mistura de temor e admiração, repulsa e sedução nos homens. Elas os assustavam por possuírem força igual ou superior a deles, e ainda os tratavam como seres descartáveis. Apresentavam uma rivalidade exaltada, que era uma característica masculina. “As mulheres matadoras de homens: desejam tomar o lugar do homem, rivalizar com ele ao combatê-lo, em vez de completá-lo... Essa rivalidade esgota a força essencial própria da mulher, sua qualidade de amante e mãe, o calor da alma.” (DIES, 207) Como não existiam mulheres guerreiras na sociedade grega, o mito das amazonas pode ter sido utilizado como uma espécie de símbolo das gregas contra opressão, visto que a sociedade grega era regida por meio das regras do patriarcado, e as mulheres eram consideradas seres inferiores, e não possuíam o direito de participar da vida política. Amazonas na Idade Média As amazonas no período medieval eram apresentadas como pertencentes a uma nação sinistra, pois a doutrina cristã se sentia desconfortável diante dessa crença que atribuía às mulheres características distintas daquelas aconselhadas pela Igreja. Além disso, a Bíblia não faz menção desse mito. Tradicionalmente a localização das amazonas estava próxima à região das portas caspianas, o que podia inferir que estas fariam parte dos povos impuros presos além do portão de bronze. As portas caspianas, edificadas por Alexandre, o grande, fizeram cerca de vinte e dois povos prisioneiros, entre eles os sármatas, que seriam descendentes das amazonas. Esses povos eram identificados como povos de Gog e Magog. Em um tratado publicado no século XV, Breidenbach afirmou que as amazonas seriam as mensageiras do diabo, e que a rainha destas se tornaria a “capitã das gentes imundas”. A partir daí, se põe em evidência o lado repugnante das amazonas, e elas passam a matar os filhos, que antes eram entregues aos pais. Outra solução encontrada foi a transformação destas guerreiras em um grupo de mulheres exóticas, que vivendo sozinhas, “eram incapazes de prover todas as suas 312

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necessidades”, e por isso, viam a necessidade de recorrer ao auxílio de homens. E em alguns casos, chegavam a se tornar boas cristãs. Marco Pollo faz uma descrição do reino de Resmacoron, e narra que neste reino havia uma ilha habitada somente por mulheres (ilha Fêmea) e uma ilha habitada exclusivamente por homens (ilha Macho). Ele descreve que essas amazonas não são tão “aterradoras”, e que durante três meses por ano, elas se comportavam como boas esposas, e criavam seus filhos até atingirem a idade de quatorze anos, e os seus vizinhos eram os responsáveis pala sua alimentação. Para além do reino de Resmacoron, a cinquenta milhas em alto-mar, se encontram ao sul duas ilhas, distantes entre si por cerca de trinta milhas. Numa habitam homens sem mulheres e ela se chama em sua língua ilha Macho, e na outra, ao contrário, habitam mulheres sem homens, e esta ilha se chama Fêmea. Os que habitam essas ilhas formam uma comunidade e são cristãos. As mulheres nunca vão à ilha dos homens, mas os homens vão à ilha das mulheres e com elas vivem por três meses consecutivos. Cada um mora em sua casa com sua esposa, e, em seguida, retorna à ilha Macho, onde fica durante o resto do ano. As mulheres conservam seus filhos do sexo masculino até os quatorze anos para em seguida enviá-los aos pais. As mulheres dão de comer à sua progenitura e cuidam de certos frutos da ilha, enquanto os homens conseguem alimentos para eles mesmos, seus filhos e suas mulheres. São excelentes pescadores e pescam uma infinidade de peixes, que vendem frescos ou secos aos negociantes; eles obtêm lucros importantes com o peixe, embora reservem uma quantidade para eles mesmos. Alimentam-se de leite, carne, peixe e arroz. Existe, nesse mar, grande abundância de âmbar, e grandes cetáceos podem ser pescados nessas águas. Essa gente não tem rei, mas reconhece como senhor seu bispo, porque são submetidos ao bispo de Scoiram, e possui sua própria língua. Niccolò de Conti, mercador viajante tal como Marco Polo, também narra a lenda das ilhas paralelas, e as localiza a menos de mil e quinhentos metros da ilha de Socotora. Nestas ilhas, tanto os homens visitam as mulheres como vice-versa; no entanto, nos dois casos os visitantes devem voltar às suas casas antes do período de seis meses; do contrário a morte sobrevém. Mandeville descreve que a terra das amazonas estaria próxima a terra da Caldéia. Esta se chamaria terra de Feminia, local onde só residem mulheres. Elas não vivem sozinhas por obrigação, mas porque não querem ser governadas por um homem. Relata-se que num determinado período, o país foi governado por um rei, e ocorriam casamentos. Mas sucedeu que esse rei, chamado Colopeus, foi morto em batalha contra os de Escítia. Com o rei, morreram todos os homens de boa linhagem. Assim que a rainha e as damas ficaram sabendo da morte de seus maridos, desesperaram-se, e armaram-se matando o restante dos homens do país. Depois disso, nenhum homem tem a permissão de viver entre elas por mais de sete dias, e também não permitem que uma criança do sexo masculino seja criada entre elas. Quando precisam de um homem, as amazonas vão até as terras vizinhas e encontram seus amantes, e podem conviver com eles até dez dias. Se nascer um menino, este ou é enviado ao pai ou é morto. Se for menina, esta terá o seio queimado. Se ela pertencer a alta linhagem, perderá o seio esquerdo para carregar melhor o escudo, e se pertencer a uma linhagem inferior, terá o 313

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seio direito queimado para melhor disparo com o arco. O reino é governado por uma única rainha, que é eleita a partir de critérios, como: melhor habilidade com as armas. No que diz respeito às representações iconográficas, as amazonas medievais também são retratadas com os dois seios intactos. REFERÊNCIAS BOYER, Régis. Mulheres virs. In. BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de Mitos Literários; Ed. UNB, 1997. BRANDÃO, Junito de Souza. Volume 3. Editora Vozes, 1987. CHEVALIER, Jean / GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números - 17ª edição – Rio de Janeiro; José Olympio, 2002. MAGASICH - AIROCA, Jorge & DE BEER, Jean – Marc. América mágica: Rio de Janeiro; Paz e Terra, 2000. MANDEVILLE, Jean de. Viagens de Jean de Mandeville./ Tradução, introdução e notas Susani Silveira Lemos França – Bauru, SP: EDUSC, 2007. POLO, Marco. 1254-1323? Viagens de Marco Polo = II Milione/Marco Polo; posfácio de Carlos Guilherme Mota; (tradução N. Meira; revisão Jonas Pereira dos Santos). – São Paulo, Clube do Livro, 1989. SALLES, Catherine. As Subversivas e sedutoras amazonas. Revista história Viva – Mistérios da Arqueologia. Ed.: 77.

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FEIA, FORTE E BOA DE BRIGA: AS REPRESENTAÇÕES DE BRITES DE ALMEIDA, A VALENTE PADEIRA DE ALJUBARROTA, NO IMAGINÁRIO PORTUGUÊS Michel Roger Boaes Ferreira (UFMA – NEMIS) [email protected] Luciana Campos (UFMA – NEMIS – ABREM) INTRODUÇÃO O imaginário popular possui episódios muito emblemáticos e lendas ligadas à efetiva participação de mulheres no campo de batalha, no entanto essas histórias e/ou mitos são tendenciosamente relegados a um segundo plano, pois na tradição popular a virilidade é um atributo melhor vinculado à figura masculina. Brites de Almeida, a Padeira de Aljubarrota, é uma dessas personagens cujo feito de ter assassinado sete soldados do Reino de Castela com uma pá, contado em prosa e cantado em versos, não se sabe até que ponto é lenda ou representação de um fato realmente ocorrido. O nome Brites de Almeida é de certo modo um nome comum no território português, no entanto quando está junto do título A Valente Padeira de Aljubarrota, inspira até hoje forte apelo à luta pela liberdade, muito embora não seja uma unanimidade, já que a veracidade dos seus feitos é bastante contestada, mas ainda assim seu nome jamais foi esquecido, pois ainda é usado para evocar nos lusitanos o espírito de luta contra alguma ameaça a identidade desse povo. A BATALHA DE ALJUBARROTA: A GUERRA REAL POR TRÁS DO POSSÍVEL MITO O contexto dos feitos de Brites de Almeida transporta a mentalidade atual para o Reino de Portugal na segunda metade do século XIV, mais especificamente para a Batalha de Aljubarrota, ocorrida no dia 14 de agosto de 1385. Explicando-se grosso modo, esse conflito foi o desfecho de uma longa crise entre os reinos de Portugal e Castela por conta da disputa da coroa portuguesa. Fernando I de Portugal morreu em 1383 sem deixar nenhum filho homem, apenas a infanta D. Beatriz, esposa do rei D. João de Castela, logo, isso daria direito ao rei de Castela anexar o território português aos seus domínios, no entanto, houve uma forte desaprovação do povo português, sobretudo entre as classes mais abastadas diante dessa possibilidade de anexação dos territórios portugueses por outro reino, acarretando na perda de sua independência diante do governo de um rei estrangeiro (FUNDAÇÃO ALJUBARROTA, 2012, p. 3).

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Com a morte de Fernando I de Portugal, a regência provisória foi delegada a rainha D. Leonor Teles que era acusada pelas camadas mais alvoroçadas da população de ser simpática à anexação de Portugal por Castela. Como fora dito anteriormente, a população não via nenhuma benesse na regência de um soberano estrangeiro e aclamou o mestre de Avis, D. João, filho de D. Pedro I de Portugal, como regedor e defensor do Reino, todavia o rei D. Juan I de Castela não desistiu do seu direito sobre Portugal e ordena um cerco e, posteriormente, uma invasão a aquele território por terra e mar. Os primeiros combates ocorreram em julho de 1384 e a batalha que serve como contexto para este ensaio ocorreu no ano seguinte, em 14 de agosto, após a invasão do território português pelos exércitos de Castela. Não é adequado, nem se faz conveniente explicitar aqui os pormenores das táticas empregadas pelos exércitos nos campos da referida batalha, já que o tema é bastante extenso e merece um estudo exclusivo, contudo é importante salientar que, de acordo com os relatos de (HERCULANO, 1875) os trinta mil soldados de Castela não foram páreo para as estratégias de combate do contingente português de sete mil e trezentos homens. A cavalaria do invasor foi desbaratada pelos besteiros, arqueiros e pelas dificuldades do terreno estreito e cheio de paliçadas. As linhas de infantaria avançaram desordenadamente e foram flanqueadas pelos besteiros e infantes portugueses; assim, vendo suas forças serem destruídas, os castelanos iniciaram uma fuga sem cobertura das linhas de retaguarda, resultando numa enorme matança desses combatentes. Alguns soldados conseguiram encontrar esconderijo e escape momentâneo da fúria dos soldados portugueses que os perseguiam em casas das redondezas de Aljubarrota; e é nesse ponto que aparece Brites de Almeida. SURGE A VALENTE PADEIRA DE ALJUBARROTA: VERSÕES DO MITO SOBRE A PARTICIPAÇÃO DE BRITES DE ALMEIDA NA BATALHA DE ALJUBARROTA Relatos tratados como uma mera lenda, porém defendidos como fatos reais por muitos portugueses, principalmente os habitantes da Vila de Aljubarrota, dão conta de que sete soldados castelanos foram perseguidos e mortos pela padeira a golpes de pá. Outros relatos afirmam que os sete soldados estavam escondidos na sua casa que estava desguarnecida, pois a padeira estaria nas ruas perseguindo os fugitivos. Quando Brites chegou à sua casa, teria desconfiado da presença de estranhos, encontrou os invasores dentro do forno e os intimou a saírem, mas não tendo sua ordem atendida ela se armou com um tipo de pá tradicionalmente utilizada para se retirar os pães do forno, e desferiu violentos golpes contra os cansados e atemorizados soldados até que todos eles estivessem mortos. O trecho a seguir ilustra bem os possíveis acontecimentos daquele dia: Tu, Brites, ouves o fragor da batalha e não te aguentas, o teu antigamente vem à tona. Corres para o campo da peleja, recolhes a espada de um moribundo e tratas de juntar-te à tropa portuguesa e à arraia-miúda que perseguem os fugitivos, quem manda em Portugal são os portugueses, quero lá saber de Leonor Teles, a grande p***, e de Beatriz filha da p***![grifos do autor].

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Desgrenhada, esfarrapada, ensanguentada, ao anoitecer chegas a casa. Estranhas que a porta do forno da padaria esteja fechada quando tens a certeza que a deixaste aberta. Tratas de reabri-la e dentro do forno vês sete soldados castelhanos que fingem dormir. Agarras na pá de ferro e começas a despachá-los, um a um. (PEREIRA, 2012, p.1).

Alexandre Herculano afirma que a menção mais antiga à Padeira de Aljubarrota remete aos escritos do Frei Francisco Brandão, datados de 1642, onde é registrado o costume de guardar a pá de metal com cabo de madeira que pertenceu a Brites nas dependências do Paço do Concelho. E no que diz respeito à veracidade ou não dos feitos da padeira, o mesmo autor escreve: Se a padeira de Aljubarrota é um mito, uma invenção popular do século xv, nem por isso a desprezemos. Um povo que dá a uma mulher ódio bastante contra os opressores estranhos para haver de matar a sangue frio sete desses inimigos; um povo que assim simbolizava o seu modo de sentir a tal respeito devia saber sustentar a independência nacional. Todavia não seremos nós que desterremos para o mundo dos fantasmas a famosa Brites de Almeida, forneira de Aljubarrota. (HERCULANO, 1875).

Quer seja lenda ou realidade, a figura da pá está presente no brasão de armas de Aljubarrota e é exibida encabeçando procissões realizadas no dia 14 de agosto, data de aniversário da grande batalha. No Arquivo da Torre do Tombo de Portugal existe o Auto Novo, e Curioso da Forneira de Aljubarrota, em que se contem a vida, e façanhas desta valerosa Matrona (COSTA, 1743, p. 1-8) que fala sobre os principais acontecimentos da vida pessoal de Brites de Almeida e que trata de descrevê-la fisicamente, além de expor o seu comportamento perante os lusitanos do século XIV. Ela teria nascido em 1350 na cidade de Faro, filha de uma família bastante humilde e desde criança demonstrava ser uma pessoa de extrema coragem. Seus pais possuíam uma taverna e trabalhavam numa modesta vinha para prover seu próprio sustento. A diplomacia não era o forte de Brites que comumente resolvia seus problemas de forma pouco cortês “(...) por qualquer cousa partia huma cabeça, o que fez muitas vezes (...)” (COSTA, 1743, p.1). Ela possuía na adolescência, de acordo com o autor, vigor físico que não era próprio das meninas da sua idade, mas dos meninos, o que lhe valeu o apelido de Maria Rapaz, já que muitas vezes ignorava os convites das outras meninas para brincarem de boneca, preferindo brincar com meninos e “(...) só se inclinava a formar pendências, a fingir desafios, e a jugar murros, e bofetadas, fazendo-se tão temida não só das raparigas, mas ainda dos rapazes, que em ella apparecendo, todos fogião.” (COSTA, 1743, p.1). Aos 26 anos ficou órfã de pai e mãe, as causas não foram citadas pelo escritor, e então gozando de maior liberdade vendeu alguns dos seus bens, investiu o dinheiro em aulas de jogo do pau, um tipo de esgrima com bastões de madeira praticado na Idade Média em Portugal, e na compra de espadas. A essa altura ela já era descrita pelo povo como mulher corpulenta, feia, de nariz adunco, seis dedos em cada mão, boca muito rasgada e cabelos crespos. Estaria então destinada a ser uma mulher destemida, valente e, de certo modo, 317

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desordeira, sem jeito para desenvolver qualquer atividade apropriada para mulheres ditas normais. Os costumes da adolescência de propor e aceitar duelos continuavam mais presentes do que nunca em sua vida, suas habilidades com a espada se faziam notáveis e eram admiradas e temidas por muitos. E diz-se que um desses expectadores, o soldado Hypomenes, nutriu tão profunda admiração por Brites que a solicitou como esposa, causando-lhe espanto, pois até então ninguém havia tido coragem para tal, tanto devido a sua aparência masculinizada, quanto pela sua fama de mulher violenta, a antítese da mulher servil, frágil e obediente ao homem. Ela afirmou que aceitaria a proposta de Hypomenes, desde que ele a derrotasse num duelo de esgrima, no entanto ele acabou ferido mortalmente e os expectadores do duelo passaram a perseguir Brites pelo crime de ter assassinado um oficial do exército. Ela fugiu para a praia e embarcou num batel para fugir dos seus perseguidores. Em alto mar foi capturada por piratas mouros e em seguida vendida como escrava para um homem rico em Argel, onde permaneceu por alguns anos até empreender fuga para Aljubarrota, um vilarejo que hoje faz parte da cidade de Alcobaça, distrito de Leiria, onde arrumou emprego como ajudante de uma velha padeira que faleceu algum tempo depois. Brites se tornou dona da padaria em meados da década de 1380 e se casou com um lavrador local com quem teve filhos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tratar historiograficamente um tema que envolve uma personagem cuja existência encontra muito mais respaldo na memória coletiva e nas quadrinhas populares do que necessariamente em fontes escritas é trilhar por um caminho movediço. Lidar com relatos orais é uma tarefa que exige bastante cuidado por parte do historiador, pois diante da ausência de maiores detalhes da vida da personagem aqui descrita, a mitificação encontra terreno bastante fértil na mentalidade popular. É perda de tempo a tentativa de formar um discurso dito racional sobre a origem desse mito, porque em primeiro lugar muitos desses elementos discursivos sobre Brites induzem os ouvintes a perceber a história da padeira sob a perspectiva do exagero acerca dos seus feitos na Batalha de Aljubarrota. Em segundo lugar, não se sabe ainda da existência documentos contemporâneos a Batalha de Aljubarrota que possam dar conta da vida da padeira. O descrédito pode em parte ser atribuído não à grandiosidade da narração de suas habilidades de guerreira, mas ao fato de se tratar de uma mulher que vivia num contexto bastante masculinizado e, para aquele contexto, era extremamente absurdo uma mulher possuir um objeto caro como uma espada, receber aulas de esgrima, mostrar livremente suas perícias de espadachim em público desafiando e derrotando homens treinados na arte do combate com armas brancas, como no suposto caso do seu duelo contra o soldado Hypomenes. Este ensaio não tem a pretensão de explicar os elementos estereotipados como estúpidos, selvagens e absurdos contidos na narrativa. A intenção é de trazer à tona o mito sobre uma mulher do medievo que se comportava de modo avesso aos padrões da sociedade 318

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lusitana e seria responsável por feitos inatingíveis para a maioria das mulheres daquela época, como ter escolhido seu próprio marido, ser mais hábil com a espada do que com os afazeres domésticos, possuir força física suficiente para desafiar homens em combate. O fato de ela ter executado os soldados extenuados e em fuga que procuraram abrigo em sua padaria pode ser visto, sob um olhar parcial, como algo covarde, mas há de se lembrar de que a situação era de guerra e fazer prisioneiros não era prioridade, já que o grande exército de Castela, apesar da estratégia vexaminosa, foi disposto a tomar a força o trono português e encontrou um contingente menor que seu, mas que possuía um nível de organização superior. Perseguir e matar os soldados espanhóis significava para aquele povo desferir um duro golpe no rei estrangeiro que queria tomar a coroa lusitana e, acima disso, manter um português como regente e defensor de Portugal. Obviamente aos olhos de uma sociedade fortemente masculinizada a narrativa sobre Brites não passa de uma grande tolice, mas se assim não o fosse, o mito não teria tanta repercussão em Portugal, sobretudo na Vila de Aljubarrota; parafraseando DETIENNE (1992, p. 46-47) o mito é o elemento irracional que confronta a razão, é algo incrível, grosseiro, selvagem, infame, absurdo, em suma, algo que traz aversão para aquele que ouve, mas ao mesmo tempo é capaz de exercer sedução e motivar até os dias atuais os moradores da Vila de Aljubarrota a se lembrarem da padeira como uma heroína durante a procissão que comemora a vitória portuguesa sobe os castelanos. REFERÊNCIAS COSTA, Diogo da. Auto Novo, e Curioso da Forneira de Aljubarrota, em que se contem a vida, e façanhas desta valerosa Matrona. Lisboa, 1743. Acessado em 7 de maio de 2012. Disponível em < http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4311394>. DETIENNE, Marcel. A Invenção da Mitologia. Rio de Janeiro: José Olympio/UnB, 1992. FUNDAÇÃO ALJUBARROTA. A Batalha de Aljubarrota – Contexto político anterior à Batalha de Aljubarrota. Acessado em 8 de maio de 2012. Disponível em: HERCULANO, Alexandre. História de Portugal: desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. Oitava edição definitiva conforme as edicões da vida do auctor / dir. por David Lopes. – Lisboa, 1875. Acessado em 5 de maio de 2012. Disponível em: < http://purl.pt/12112>

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MALDITA SEJA A BELDADE DE ISEU: FEITIÇARIA E IMAGEM1 Pâmela Paula Souza Neri (UFPA) [email protected]

1- Introdução Uma das obras medievais mais adaptadas tanto em caráter literário, quanto em mídias diversas foi Tristão e Isolda. A Demanda do Santo Graal apenas faz referências ao romance do casal. Todavia, os poucos trechos evidenciam o julgamento de valor que considera a esposa do Rei Marc maldita e adúltera. Assim, para compreender a visão dada a ela na novela de cavalaria, é preciso desnudar toda a narrativa do amor entre Tristão e a filha do rei Gormond. Em Tristão e Isolda de Joseph Bérdier, versão baseada no texto de Béroul, do século XII, conheceremos a visão de feiticeira atribuída a ela, consequência de seu forte envolvimento com a mãe, rainha da Irlanda, praticante da arte da magia e responsável pelo “filtro do amor”, fator desencadeador do final trágico dos amantes. Outro ponto abordado no trabalho trata da época em que a narrativa foi divulgada, visto que o século XII foi marcado pela imposição moral da Igreja. O resultado, o bom desempenho dos romances de cavalaria que abordam a temática das paixões proibidas na realidade. O mito surge onde a paixão é sonhada, onde o amor fora das convenções é reprimido e a mulher é considerada “portadora da morte” e do inferno na terra. De tempos em tempos a concepção do amor modifica a capacidade de pensamento. A bem da verdade, a paixão possibilita a vontade de querer e desejar. Na Idade Média a paixão fora dos padrões da época tinha forte repreensão pela sociedade e a igreja, indissociáveis na época. Partindo desse pressuposto, o artigo pretende comparar a representação de Isolda na Demanda e em Tristão de Isolda de Joseph Bédier à luz das teorias de Carlos Ginzburg. De igual modo, com os conceitos de Jacques Le Goff e George Duby, contextualizar o mito, como vez de uma realidade não palpável, prática comum e assídua no século XII. 2- Tristão e Isolda: Uma narrativa, várias versões. O mito de Tristão e Isolda tem a sua concepção baseada em lendas que circuncidavam o imaginário do povo celta do noroeste europeu, sendo escrita de modo mais definitivo em obras de autores normandos no século XII. No século procedente foi incluída no Ciclo Arturiano, no qual Tristão passa a incorporar o grupo de cavaleiros da távola redonda a serviço do Rei Artur. O casal, inclusive para muitos teóricos que se debruçam sobre a matéria da Bretanha, fomenta inspiração para outra trágica história medieval, a de Lancelot e a Rainha Genevra. As primeiras obras literárias sobre a lenda chegaram à literatura moderna como dois fragmentos em versos: O primeiro foi escrito por Béroul, com uma biografia quase 1

Artigo orientado pela professora Alessandra Conde, da Universidade Federal do Pará. Mestre em Estudos literários pela UFES. 2 Aluna do curso de Letras da Universidade Federal do Pará, campus Universitário de Bragança.

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inexistente, entre 1160 e 1190, com um teor mais popular e grotesco, possuindo pouca influência do amor cortês, que inclusive, permeia de modo bem mais acentuado o segundo fragmento escrito por Tomás da Inglaterra por volta de 1170 (GOMES, 2012, p 6-10). A primeira versão em prosa da lenda celta data entre 1230 e 1240 com a denominação de Tristão em Prosa, sem autor, escrita em francês antigo, tendo sua primeira parte baseada nos poemas de Tomás e Béroul, seguido por uma mistura com a lenda arturiana. A obra apresenta uma forte influência da primeira prosificação do ciclo Arturiano, denominado de Ciclo do Lancelot-Graal, terminada por volta de 1230, não apresentando nenhuma referência a Tristão. A Demanda do Santo Graal também denominada de Ciclo da Post-Vulgata, já apresenta Tristão como um dos cavaleiros da Távola redonda (BAUMGARTNER, 1975, p. 13). Para entendermos melhor a proposta, conheceremos a visão dada por Joseph Bédier ao mito celta. Em linhas básicas, o romance inicia do seguinte modo. No primeiro capítulo, ocorre a descrição do nascimento de Tristão, que recebeu esse nome da mãe Blanchefleur em alusão à profunda tristeza pela morte de seu marido Rivalen. Embora educado por Rohalt, aprendeu com Gorvenal todos os ensinamentos que transformam um menino em cavaleiro. Todavia, o desenlace inicia quando Tristão é raptado por mercadores irlandeses que o deixam na Cornualha, onde conhece o Rei Marc, seu tio. É nesse momento que a história ganha seu nó narrativo, uma vez que o tio, após várias aventuras do cavaleiro em seu reino, o designa a buscar Isolda, prometida ao Rei em matrimônio. Todavia, durante uma tempestade na volta para a Cornualha, Brangien que era responsável pelo feitiço amoroso preparado pela mãe da Rainha da Cornualha, entrega-o para Tristão e Isolda. A partir daí, a narrativa se desenvolve com a descoberta do amor adúltero do casal e a morte trágica que os escreve nas linhas tristes de exemplos mal fadados das paixões não vividas por completo. 3.1- Representação e abstração: imagem, discurso e feitiçaria. Para Le Goff (1995, p. 43), a representação é a tradução mental de uma realidade exterior percebida e ligada ao processo de abstração. O imaginário faz parte de um campo da representação e, como expressão do pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da realidade. Mas as imagens e discursos sobre o real não são exatamente o real ou, em outras palavras, não são expressões literais da realidade, como um espelho. O termo representação em todas as áreas das ciências humanas, especialmente nos estudos medievais está constantemente pontuando construções de análise. Essa afirmação é defendida por Carlos Ginzburg (2001 p. 85-86), se por um lado, a representação coloca-se no lugar do objeto representado, assim indicando ausência, por outro, torna clara a realidade representada, indicando a presença. Ginzburg cita como exemplo os manequins de madeira usados nos funerais reais na França e Inglaterra. Ora o manequim era depositado no catafalco de madeira, ora o leito fúnebre real vazio era coberto por um lenço que representava o rei morto. A presença mimética no primeiro exemplo está ausente no seguinte. Em Tristão e Isolda a representação mimética e não mimética pode ser salientada, principalmente no que diz respeito à protagonista. No capítulo intitulado “A sala das imagens”, Tristão por padecer 321

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de extrema saudade de sua amada resolve construir um universo mimético, onde reconta por meio de imagens e estátuas suas aventuras, assim como as alegrias e tristezas de seu amor por Isolda. No trecho que segue temos um exemplo de representação mimética, aquela que, segundo Ginzburg, resulta na representação fidedigna do ser representado: A segunda sala estava ainda mais ricamente ornada do que a primeira. O centro era ocupado por uma imagem de Isolda, a loura, de tamanho natural: as proporções e as cores, o rosto, o aspecto e a estatura estavam reproduzidos com tanta arte que, ao vê-la, ninguém poderia duvidar que a vida não lhe corresse no corpo. Dos seus lábios, por meio de um mecanismo engenhoso, escapava-se um hálito tão doce que o seu perfume enchia a sala. Estava tão magnificamente vestida como convinha a uma rainha. Trazia uma larga sobreveste de escarlate bordado, apertada na cintura por um cinto de placas de prata do qual pendia uma escarcela. A cabeça, donde caíam duas longas tranças louras, estava ornada com um circulo de ouro onde se engastavam pedras de todas as cores; um rico colar enfeitava-lhe a garganta, que parecia levantar-se e respirar. Na mão direita segurava um cetro terminado nas flores mais delicadamente trabalhadas. A mão esquerda, adornada com um anel de jaspe verde, desenrolava uma tira onde se liam estas palavras: “Tristão, pega neste anel e guarda-o por amor de mim, a fim de te recordares as nossas alegrias e as nossas dores” (BÉDIER, 1995, p 183).

Durante a ação explicitada, a representação mimética, aquela que possui semelhança com o objeto que substitui, é explicitada pelas várias imagens e esculturas de Isolda. Da mesma forma, a não mimética, constituída de um por um objeto que não possui analogia com ser representado, de tal modo, é ornamentada pelo anel. Isolda durante as incontáveis despedidas diz ao amado: Quando estiver triste, belo e doce amigo, ele far-me-á pensar em ti e o meu coração encher-se-á de alegria. Eu tenho um anel de prata, com o engaste de jaspe verde, cuja pedra possui uma virtude maravilhosa. Dar-to-ei e tu usálo-ás sem cessar no dedo, pois de cada vez que o olhares verás a minha imagem na tua lembrança como se eu estivesse presente ao teu lado (BÉDIER 1995, p 183).

O simbolismo do amor presente no anel fica evidente quando Tristão, já mortalmente ferido, pede para que Gorvenal a busque. Todavia, ele apodera-se de algo concreto, porquanto, entrega o anel para o fiel amigo como uma forma de prova, uma autoridade, para fundamentar sua argumentação, conseguir que Isolda o visite no seu leito de morte. Carlos Ginzburg fala da imagem como autoridade para uma determinada verdade, dando como exemplo os funerais reais em que o monarca, até então passando pelo longo processo de embalsamamento, era substituído por um manequim durante o funeral. O historiador nos ressalta que “a morte não constitui o fim da vida do corpo no mundo: não é o fato

biológico, mas o ato social, os funerais que separam os que vão dos que ficam”. Hertz mostra que a morte, toda a morte, é um acontecimento traumático para a comunidade [...] que pode dominada por ritos que

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transformam o acontecimento biológico num processo social (GINZBURG, 2001, p. 88).

O uso desses manequins era uma linguagem de autoridade, para mostrar aos súditos que a morte havia visitado o reino. O homem precisa ver, possuir a capacidade de tocar; o não visto mesmo quando apenas imaginado, necessita de uma criação (imitação) na realidade para tornar a sua existência lógica. 3.2- O discurso como construção abstrata de representação: Isolda pelo olhar dos outros Carlos Ginzburg discute sobre o poder do discurso para construir uma determinada realidade, haja vista que o historiador é um crítico agressivo no que tange ao discurso do pósmodernismo, que rodeia o relativismo e o positivismo, pois o primeiro abre caminho para uma realidade objetiva dos fatos. No outro extremo, o relativismo compreende uma concepção voltada para as fontes históricas limitando o caminho para a realidade objetiva, consequência da natureza subjetiva, narrativa e discursiva das fontes. O teórico critica o conceito de verdade relativa, porquanto, para o pós-modernismo, a verdade não existe ou é relativa. Uma contradição construindo algo absoluto: a verdade é relativa (GINZBURG, 2002 p. 67). Cícero (ano, p. 81) ao falar sobre o limite da verdade dentro de um fato nos diz: [...] um indivíduo conhecedor das práticas retóricas pode escrever tanto sobre o presente vivenciado quanto sobre o passado cuja maior ou menor escassez de vestígios condicionava a maior ou menor veracidade do relato. O método de trabalho do historiador não mais se centra no estabelecimento de uma verdade que corresponda diretamente à tradução literária de sua apreensão pessoal da realidade, mas à ueritas (verdade) entendida em termos de fides, credibilidade emprestada à narrativa. Enquanto construção retórica, a verdade se situa no plano da plausibilidade que o leitor encontra no relato, e não necessariamente na exata correspondência entre realidade e discurso.

O autor ao falar sobre a verdade do relato, afirma que o narrador de um determinado contexto não precisa necessariamente ter experimentado e vivenciado o que é relatado, todavia busca elementos que condicionem a sua narrativa como verdadeiros, elementos esses retirados da retórica, como a argumentação e a autoridade que determinado fato carrega. De tal modo, a retórica empresta palavras e dá credibilidade à narrativa. A bem da verdade, não é permitido por um fator, intrinsicamente cronológico, voltar ao passado para confirmar os fatos. O uso retórico resolve à problemática. No lugar do verbo “ver”, tem-se os recursos linguísticos, estilísticos, inferências, embelezamentos, entre outros. Assim, a verdade não estaria no fato, mas na retórica usada para expressá-lo, um tipo de autoridade que o legaliza3. Como indaga Carlos Ginzburg em Relações de força. História, retórica, prova: O que é a verdade? Um exército móbil de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em resumo: uma suma de relações humanas que foram reforçadas poética e retoricamente, que foram deslocadas e embelezadas e que, após um longo uso, parecem a um dado povo, sólidas, canônicas e 3

Lima, Francisco Chagas Vieira Jr. A Crítica do Relativismo Histórico em Carlo Ginzburg. História eHistória. Campinas: Grupo de Pesquisa Arqueológica histórica da UNICAMP. 2009

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vinculatórias [...] o verdadeiro significa servir-se das metáforas usuais (GINZBURG apud LIMA, 2009, p. 24).

Isolda na narrativa de Bédier é por várias vezes condicionada como feiticeira, todavia, em nenhum momento é descrita alguma ação em que a filha da Rainha da Irlanda faça algum tipo de feitiço ou algo sobrenatural. Sua identidade mágica se dá apenas através da mãe, pois nas duas ocasiões que Tristão por ela é curado, Isolda apenas acompanha o processo. Nas últimas páginas do romance, Tristão chama por sua amada, pois acredita que apenas a sua presença trará a cura para o seu mal, visto que de modo sobrenatural, embora como já dito, sem uma descrição de alguma ação mágica, sua amante o arrancou por duas vezes dos abraços da morte. O trecho nos diz o seguinte: Toma este anel de jaspe verde que me confiou Isolda, a loura, para que seja entre nós um sinal de reconhecimento. Quando chegares à corte, mal lhe apresentes este anel, ela reconhecer-te-á como meu mensageiro e achará maneira de falar-te comodamente sem que ninguém vos possa ouvir. Depois de a teres saudado da minha parte, diz-lhe que não há para mim nenhuma esperança de cura se ela não me vier tratar em pessoa. A menos que me reconforte com um beijo da sua boca, terei de ir desta para melhor com grande desgosto meu. Recorda-lhe que, por amor dela, me expulsaram e exilaram vergonhosamente em terra estrangeira: passei por tantas dores e lutei tanto que já só tenho um sopro de vida, muito débil (BÉDIER, 1995, p. 185).

A chegada da amada de Tristão tarda por causa de uma tempestade e sua esposa Isolda das mãos brancas o engana, já que foi acordado que se Isolda a loira, estivesse no barco seria estiado uma vela branca. Entretanto, sua esposa o diz que a cor é preta. Quase como um suspiro Tristão pronúncia as seguintes palavras: “Isolda, não quisestes vir para junto de mim! Por vosso amor tenho de morrer hoje!” (BÉDIER, 1995, p. 190)”. O “Romance de Don Tristan de Leonís y de La reina Iseo”, que de tanto amor se guardaron”, faz parte de uma coletânea de 1861, intitulada Romancero General coleccion de romances castellanos; Tristão é atingido por uma lança deferida por seu tio e no leito de morte roga pela presença de Isolda para curá-lo, como descreve o trecho: (CRESPO; FERNÁNDEZ, 2007, p. 117) Mal se queja don Tristán, que la muerte le aquejaba; preguntando por Iseo, muy tristemente lloraba: “¿ Qué es de ti la mi señora? Mala sea tu tardanza, que se mis ojos te viesen, sanaría esta mi llaga”. Llegó allí la reina Iseo, la su linda enamorada, cubierta de paños negros, sin del Rey dársela nada: “¡Quien vos hirió, don Tristán, heridas tenga de rabia, y que no hallase maestro que supiese de sanallas!”

O cavaleiro vê a amada Isolda, ornada com vestimentas pretas, que em uma interpretação simbólica, significaria um presságio da morte que segue o lamento, assim como na versão de Bédier, o não regresso de Isolda seria comunicada por uma vela da mesma cor, o que nos permiti uma leitura intertextual. Todavia, o que nos interessa discutir nesse tópico é como o poder da retórica embasado na autoridade da hereditariedade, pode pelo discurso elevar uma pessoa a determinada denominação, no caso da personagem analisada, em feiticeira. Jacques Le Goff em O maravilhoso e o cotidiano no ocidente medieval trata entre 324

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muitos assuntos, da autoridade que condiciona os marginalizados nascidos na sociedade da época, ou seja, os que não se encaixam na natureza perfeita criada pelos preceitos do clero. Todo o nascimento que resulta em algum desequilíbrio para a ordem natural era questionado e condenado por um tipo de autoridade (auctoritates), cerceadora de qualquer tentativa de fuga da índole herdada por tal nascimento, de modo que, tal tentativa, simbolizava uma atitude contra a ordem estabelecida por Deus (LE GOFF, 1985 p. 172). Desse modo, o ser que hoje “é”, está condicionado pela hereditariedade de quem “foi” e o concebeu. Não existia remissão. Obviamente, esses preceitos de conduta nasciam da memória de uma comunidade, aliada a um discurso que autorizava determinada pessoa a ser considerada marginalizada dentro da sociedade em que vivia. Isolda tem o poder da magia, não porque o manifesta, mas porque é filha de uma. Por duas vezes salvou Tristão de modo sobrenatural, mas nunca praticou nenhuma ação mágica diretamente. Tristão tanto em Bédier, quanto no romance explicitado acima, roga pela presença da amada, pois acredita que isso trará a cura para suas dores. O que é perceptível é que a representação de Isolda como feiticeira é condicionada tanto pelo poder da imagem, como pelo discurso que comunica ao ponto de tornar real e concreto algo que não necessariamente possui uma veracidade no real. A linguagem, seja ela de que caráter for, consegue através de signos tornar palpável o que aparentemente morava apenas no imaginário. 4- Demanda do Santo Graal: O mito do amor cortês A Demanda do Santo Graal apenas contextualiza a história do casal. No entanto, na sua primeira descrição sobre Isolda são proferidas as seguintes palavras: “maldita seja a beldade de Iseu” (1995, p. 35), sendo essa representação mantida durante todas as outras que a procedem. Tristão que na novela de cavalaria é levado a cavaleiro da távola redonda, não alcança a perfeição necessária para se tornar cavaleiro do Graal por seu envolvimento com a esposa do Rei Marc. Isolda como uma representação do que é profano, colocou-se no caminho, impedindo que Tristão, totalmente condizente com o ideal de amor cortês, se tornasse o “cavaleiro perfeito”. Para Marisa Bocalatto (1996), é comum que se acredite em uma ligação indissolúvel entre o amor cortês e o platônico. Contudo, George Duby (1989, p. 10), descontrói o conceito mais difundido do amor cortês, pois a pureza inquestionável do conceito para ele é ilusório. O equívoco segundo o autor está sacramentado no entendimento errôneo que se tem sobre o amor platônico, pois a vassalagem é o respeito incondicional pela pessoa amada, mas não anula o desejo, pautado no imaginar. Em Tristão e Isolda de Bédier e na maior parte das versões, o envolvimento do casal, que releva a própria fidelidade matrimonial de Isolda, assim como a de Tristão para com o tio, é consequência da ação do filtro do amor, que os dois tomam por engano. Entretanto, em uma versão anônima, sem data registrada, Isolda não toma a porção feita pela mãe por engano, muito pelo contrário, usa de ardileza ao dá-la para Tristão, que sem saber a ingere tornando-se ligado a ela para sempre: Isolda chamou Abrangia e ordenou-lhe que lhe trouxesse vinho [...]. Nesse momento o rosto da jovem iluminou-se num sorriso furtivo: tinha entre as

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mãos o meio mais seguro de fazer nascer em Tristão o amor e liga-lo para sempre a Isolda [...] Rainha Isolda tomai está bebida [...] Quanto a Tristão esse julgou ser um vinho de eleição oferecido ao Rei Marcos. Como homem cortês e bem educado, deitou a porção na taça estendeu-a a Isolda, que bebeu a até se fartar. Quando pousou a taça ainda meio cheia, Tristão pegou nela e a esvaziou a até a última gota (TRISTAO E ISOLDA, 1992, p. 46-48).

É possível uma interpretação intertextual entre o episódio e a narrativa bíblica do pecado no jardim do Éden, pois o fruto proibido foi dado por Eva a Adão. Em todas as versões, Tristão, embora de modo mais acentuado ou não, está perfeitamente condicionado ao ideal de Amor cortês, pois na medida do possível mostra ser um homem fiel ao seu tio e acima de tudo totalmente condicionado à vassalagem destinada à amada. Entretanto, Isolda nas versões de Béroul, Thomas da Inglaterra e a anônima aqui apresentada, se mostra ardilosa e retentora do pecado, o que na Demanda legitima sua imagem de maldita e o seu papel na não eleição de Tristão a cavaleiro perfeito. George Duby (2001, p. 116) indaga como poderia um período embasado na contenção do corpo e do desejo, criar tantos exemplos de “Isoldas” e “Genebras”. Para o autor os gestos e os sentimentos atribuídos aos heróis e às heroínas dessa literatura não eram destituídos de relação com as condutas dos homens e das mulheres que os poetas se aplicavam em divertir [...] E tivesse possível identificar-se com eles em sonho. Não eram inimitáveis, brincou-se de imitá-los. Como a vida dos santos, a literatura de divertimento propunha modelos.

Duby nos explica na citação acima, que o contexto do século XII não permitiria normalmente, mediante a forte contenção moral imposta pela Igreja, à difusão de textos tratando do adultério. Tal assunto era proibido. No entanto, os textos de cavalaria parecem ocultar certa cumplicidade com os que viviam ou apenas sonhavam com uma realidade aparentemente distante. Conclusão A representação de Isolda como feiticeira e maldita, respectivamente em Bédier e na Demanda do Santo Graal, com tudo, foi marcada e cristalizada ora fomentada no real, o seu envolvimento com Tristão, ora pautada no imaginário de Tristão e dos personagens da narrativa, por sorte que, Isolda era feiticeira, porque era filha de uma. Sobre esse discurso recai toda a mentalidade de uma época marcada pela força da hereditariedade, misoginia e crenças no imaginário, sobrepostos pela imposição da Igreja. A figura feminina, construída aqui pelas características da Rainha Isolda, retrata a mulher medieval. Embora concebida pelo olhar masculino, não foge do real, pois a feiticeira, vista do âmbito do gênero, possui o papel de fundadora da feminilidade, um dos pilares da concepção da mulher na história.

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O CONVENTO COMO ESPAÇO DE EMANCIPAÇÃO FEMININA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVII Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais Cunha (UFPB) [email protected] Desenvolvimento de uma produção escrita de autoria feminina no meio conventual As pesquisas que se debruçam sobre a autoria no século XVII em Portugal comprovam que a produção literária teve, no meio conventual, grande vigor. Na História da literatura portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, mesmo que se aluda aos escritos das religiosas em termos que não os encarecem, não deixa de se assinalar a atividade intelectual dessas mulheres que habitavam os conventos: É de notar que a marcha para a emancipação intelectual e social das mulheres conheceu na fase final do Barroco um dos seus momentos mais dramáticos, na aristocracia e alta burguesia. Durante os reinados de D. Pedro II e D. João V, cheios de famosos escândalos conventuais, como os das próprias aventuras deste último em Odivelas, travou-se uma luta difícil entre as freiras, que procuravam por todas as formas iludir a clausura, ao menos pelo namoro versejante e confeiteiro, e as autoridades morigeradoras. (Saraiva e Lopes, 1987, p. 478) Na medida em que as religiosas tinham acesso à cultura livresca, os conventos tornavam-se para elas espaços de alguma liberdade, numa sociedade patriarcal em que fazer os votos significava, muitas vezes, proteger os interesses patrimoniais das famílias mais do que a existência de autênticas vocações devotas. A consulta da edição da Fundação Calouste Gulbenkian História e antologia da literatura portuguesa: século XVII, nº 32, de agosto de 2005, faz-nos perceber que existiu, de fato, neste período um clima favorável para a constituição de uma comunidade de freirasescritoras que tiveram acesso à edição, ou, pelo menos, à divulgação de suas obras, as quais circulavam em manuscritos (quando não eram resultado do cumprimento das incumbências da vida conventual), e ao reconhecimento social. Nesta antologia, que se faz acompanhar de um breve estudo crítico, são elencadas obras de autoria de religiosas que produziram uma literatura versando o gênero dramático, a moral, a alegórica, a narrativa ficcional, a epistolografia, a autobiografia, etc. De entre o vasto número de autoras-freiras que compuseram obras de índole diversa, vale a pena referir Sóror Maria do Céu, com Enganos do bosque, desenganos do rio, Aves ilustradas, Triunfo do Rosário, entre outras, predominantemente do gênero dramático, publicadas em castelhano, pertencendo, por isso, também à literatura espanhola. Ana Hatherly traduziu para português e apresentou os cinco autos que compõem o Triunfo do rosário, numa edição de 1992. Vale referir outras autoras, como Soror Madalena da Glória, com Brados do desengano contra o profundo sono do esquecimento, Reino da Babilónia, Orbe celeste; Soror Clara do Santíssimo Sacramento, autora de Autobiografia, obra com edição de 1984 pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, prefaciada e transcrita por João Palma-Ferreira. Destaque-se Soror Violante do Céu, autora de 328

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Rimas várias, obra publicada em Rouen em 1646, e de Parnaso lusitano de divinos e humanos versos, obra póstuma publicada em 1733. Soror Violante do Céu escrevia em português e em castelhano, o que era comum na época, foi uma autora aclamada e muitas das suas composições integram Fénix renascida (1716-28) e Postilhão de Apolo, os principais cancioneiros do barroco português. Margarida Vieira Mendes dedicou a Rimas várias um importante estudo na edição crítica de 1993. Interessa esclarecer a menção a estas escritoras-freiras: a sanha de recuperação de obras de autoria feminina cumpre um dos objetivos da agenda crítica feminista ou ginocrítica, termo cunhado por Elaine Showalter, ainda por realizar na pátria daquelas que escreveram na língua de Camões, isto é, o resgate de obras de autoria de mulheres que permita gizar uma genealogia literária feminina em Portugal. Portugal faz parte do grupo de países que se perfilaram no movimento da ContraReforma, em resposta à Reforma Protestante, iniciada por Lutero a partir de 1517. Não obstante, segundo José Hermano Saraiva, não terá existido neste país um movimento alargado à sociedade da época, tendo “o objecto anti-reformista” em Portugal sido substituído pela “questão judaica” (Saraiva, 2003, p. 182). Convém lembrar que a Bula da Inquisição foi concedida a Portugal em 1536. Hermano Saraiva descreve o cenário intelectual seiscentista português na contracorrente dos ideais reformistas europeus: Durante uma parte do século XVI e ao longo de todo o século XVII, a Inquisição conseguiu manter a actividade cultural portuguesa isolada do movimento das idéias europeias, movimento que precisamente nessa época foi extremamente intenso e inovador. À ampla e aberta importação cultural da época do humanismo sucedeu um perigoso e muito restrito fio de contrabando de idéias e livros. Mas à acção isoladora associou-se a acção intimadora: o escritor sabia que entre ele e o prelo, estava a Inquisição; o primeiro leitor seria o censor. (Saraiva, 2003, p. 184)

As ordens religiosas, cujos membros eram, frequentemente, autores de obras de cunho moralizante que viam na escrita uma forma de propagação da doutrina católica, detinham o privilégio do ensino. Justifica-se, assim, o desenvolvimento de uma literatura produzida no espaço conventual, versada em gêneros tidos por menores, como cartas, autobiografias, vidas de santos, etc, tematizando o amor ao divino, mas também o humano, como é o caso de Rimas várias, de Soror Violante do Céu, ou de Lettres portugaises, as famosas cinco cartas atribuídas a Soror Mariana Alcoforado e endereçadas ao Cavaleiro de Chamily, com quem a religiosa teria vivido uma paixão arrebatadora. Apesar do rigor da vida conventual, a relativa privacidade e autonomia que o afastamento da vida civil e a possibilidade de emancipação intelectual ofereciam a estas religiosas faz com que não seja negligenciável o seu papel no desenvolvimento de gêneros que assimilam a experiência do vivido e de uma expressão que encontra novas soluções para o código do amor cortês. É, portanto, o domínio do privado que aparece plasmado nestes textos de mulheres, as quais usam a escrita para escaparem à clausura e ao destino que lhes estava reservado pela sociedade da época: o casamento imposto, motivado por conveniências políticas, com vista à manutenção do patrimônio das famílias. Por isso, para muitas, os conventos eram vistos como espaços de libertação: do jugo do pai e, posteriormente, do jugo 329

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do marido. Só que estas não eram mulheres quaisquer: eram filhas de bom nascimento que as políticas matrimoniais mantinham afastadas da fortuna das famílias, numa época em que vigorava a lei do morgadio. Os contratos nupciais exigiam o pagamento de dote por parte da família da noiva, o que representava uma ameaça ao patrimônio familiar e prejudicava a fortuna que era, por direito, do filho varão. Assim, quando o ingresso no convento era deliberado, o claustro podia significar uma autêntica vocação religiosa, a escapatória a um casamento indesejado ou a vontade de prosseguir estudos que a vida religiosa proporcionava, pois os conventos ofereciam, para além de livros, alguma privacidade e independência, o que Virginia Woolf irá reivindicar para as mulheres, em 1929, no célebre texto A room of one’s own (1929): “(...) a woman must have money and a room of her own if she is to write fiction (...).” (WOOLF, 2004, p. 4) Por outro lado, é necessário ter em conta que os espaços conventuais eram palco de concursos e de múltiplos eventos abertos à comunidade civil, nos quais as freiras podiam lançar motes para os palacianos glosarem, o que lhe proporcionava um contacto com o ambiente cultural da época: (...) os conventos, intensamente povoados, beneficiavam de um clima palaciano de promiscuidade profana hoje difícil de compreender. Verdadeiros palácios de fé, neles se sucediam as festas conventuais abertas à alta sociedade de ambos os sexos. Encarada numa dimensão de sociabilidade, que hoje em parte se perdeu, a literatura constituía um dos grandes motivos de atracção dessas festas que culminavam nos concursos poéticos, onde cavalheiros glosavam os motes propostos pelas freiras. Sem dúvida que essas manifestações de inventiva poética proporcionaram, senão um clima literário, pelos menos uma certa familiaridade das religiosas com práticas de índole artística. (COUTO, 2003, p. 45)

É de referir, ainda, que os próprios confessores instavam algumas freiras, sobretudo as místicas, isto é, aquelas que experienciavam a união com o divino, a escreverem as famosas autobiografias, gênero com foros de autonomia na época, onde deviam relatar as suas vidas antes e depois de ingressarem no convento. Com efeito, o espaço concedido à escrita nos conventos advinha da necessidade de obras edificantes, que as freiras deviam escrever para ensinamento, ilustração e recreio das outras religiosas: Efectivamente, a quase totalidade da centena de mulheres recenseadas com obra escrita no século XVII são freiras, que, desde tratados sobre a pedra filosofal, a obras de retórica e eloquência, a tratados sobre Arquitectura Civil, Matemática ou Filosofia, versaram os mais diversos assuntos e cultivaram um amplo leque de géneros e formatos literários: teatro, poesia, romance, literatura de feição espiritual e mística. (Galhardo, Labirintos do eros, 68-69) Não se pense, no entanto, que a questão de gênero fica resolvida. Ser mulher, na sociedade misógina de seiscentos, significava não aceder ao espaço público, cuja produção cultural era protagonizada pela “aristocracia ociosa” ou por clérigos que deviam compor uma literatura de cunho moralizante. Não obstante, como mostra ainda Anabela Galhardo Couto, o espaço conventual, a condição nobre e o celibato libertavam estas mulheres dos constrangimentos da vida matrimonial e da reprodução biológica, o que fazia delas excepções 330

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em relação às restantes, surgindo, ademais, a escritora como uma figura “dessexualizada”: “É assim que o seu talento é encarado num plano de excepção face ao ser comum e ao gênero feminino, sendo a escritora, dessexualizada, elevada a uma dimensão mítica e encarada como criatura prodigiosa (...). (Couto, Labirintos do eros, p. 72-73) D. Francisco Manuel de Melo, um dos autores mais renomados do barroco em Portugal, refere-se a Soror Violante do Céu como “10ª musa”, mulher de “raro engenho”, e à sua obra Rimas como “rimas de uma deidade”. Percebe-se, também, que um dos traços caracterizadores da literatura de autoria feminina é o elemento intimista de cunho autobiográfico, dimensão que será assimilada nos romances sentimentais do romantismo, e que tem, por certo, raiz nesta forma de escrita que as mulheres inauguram e que a distingue da literatura canônica. Para além disso, estas autoras conquistaram o espaço possível de liberdade intelectual, num meio que, se as enclausurava, lhe ocasionava meios, tempo e formas de expressão, apesar do fervor religioso que se respirava no período contra-reformista, e que ressuma, diga-se também, na maioria destas obras. No ensaio “Literatura de autoria feminina: um patrimônio da palavra a reinventar” que já citamos, Anabela Galhardo Couto elenca, para além de Soror Violante do Céu (a qual tem sido alvo de estudos e cuja obra já conheceu várias edições, ainda que não lhe seja concedido o espaço merecido na história literária), Soror Maria do Céu, Soror Madalena da Glória, uma galeria de autoras-freiras cuja produção continua inédita e que ajuda a traçar um quadro mais completo do barroco em Portugal, período marcado pela presença da Inquisição e pela hegemonia de um sentimento religioso de preservação da ortodoxia católica, que tem, possivelmente, nos sermões de Padre Antônio Vieira a expressão máxima. O resgate destas obras de autoria feminina, que permanecem inéditas em acervos de bibliotecas, contribui para se “compreender o relacionamento da mulher com o saber e a escrita, com a mentalidade da época e seus condicionalismos” (p. 49), como nos lembra ainda Galhardo, mas também ajuda a perceber como as mulheres se organizavam em comunidades que, de algum modo, faziam parte do tipo de organização social do século XVII. Trata-se, frequentemente, de textos de menor valor literário que informam sobre a vida das religiosas nos conventos, mas nos quais um olhar atento pode perceber ânsias, sentimentos e conflitos interiores, os quais puderam ser expressos em obras que existiram à margem da cultura hegemônica e que dão, por vezes, testemunho de uma sensibilidade nova de mulheres que ansiavam por uma vivência plena numa sociedade que as constrangia, e que tinha na clausura conventual, nas políticas matrimoniais e na censura inquisitorial mecanismos eficazes de repressão e controlo ideológico. O resgate desse enorme manancial de obras que se encontram depositadas em bibliotecas mostra, ainda, que Mariana Alcoforado (muito provavelmente, uma personagem com uma carga de investimento mítico que tem servido a mal disfarçados desígnios nacionalistas e ideológicos, como mostra Anna Klobucka em Mariana Alcoforado: formação de um mito cultural) não é um caso isolado de autoria, mas que existe uma produção importante que merece ser estudada, ao lado de nomes como D. Francisco Manuel de Melo ou mesmo Padre Antônio Vieira. A título ilustrativo, registrem-se os nomes de outras religiosas que deixaram autobiografias, não raro, de grande merecimento literário: Soror Isabel do 331

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Menino Jesus, Soror Francisca do Livramento, Soror Maria da Assunção, Soror Maria Michaela de S. Bernardo, Soror Rosa Maria de Santa Catarina, Antónia Margarida de Castelo Branco ou Soror Clara do Santíssimo Sacramento, Madre Maria Perpétua da Luz, Madre Mariana da Purificação. Anabela Couto menciona, ainda, autoras não religiosas cujas obras a história literária não registrou: Mariana de Luna, D. Luísa Coutinho, Ana de Lima, Isabel Senhorinha da Silva, Brites de Sousa e Melo, Ângela de Azevedo. (Couto, Os labirintos de eros, p. 49) Se é verdade que a obra destas autoras permanece desconhecida ou desvalorizada, apesar dos importantes estudos de investigadoras como Ana Hatherly, Margarida Vieira Mendes, João Palma-Ferreira, Isabel Morujão, Anabela Galhardo Couto e consideráveis pesquisas no âmbito de mestrado e de doutorado, vale lembrar que o barroco enquanto período da historiografia literária continua a sofrer do estigma do excesso e do rebuscamento ao nível das idéias e da expressão, período tido como decadente em relação ao classicismo e obscuro frente ao racionalismo iluminista. Como exemplo da escritora consciente da ousadia que constitui a mulher que escreve e a transgressão que a escrita significa, atente-se nos versos iniciais de Parnaso lusitano de divinos e humanos versos, de Soror Violante do Céu, traduzidos para português da versão original em castelhano: Grande ousadia é que ao Divino Escolha por assunto humano canto Mas maior, Senhor, que aspire a tanto A humildade de um engenho feminino. (Soror Violante do Céu, 1733)

A autora faz uso do tópico da humildade para insinuar o seu canto feminino ao divino, estratégia que os escritores clássicos já empregavam para encarecerem o seu talento, ao mesmo tempo em que se colocavam num estatuto de inferioridade que fazia sobressair a sua competência artística. Esta estratégia será comum na escrita das mulheres ainda no século XX, as quais, se, por um lado, receiam ainda o peso de uma tradição literária que desvaloriza a escrita de mulheres, apodando-a de adocicada ou de exercícios que lembram as prendas manuais, por outro lado, sentem que não têm por modelos obras de mulheres que lhes permitam filiarem-se numa tradição feminina. Sandra Gilbert e Susan Gubar, em Madwoman in the attic, equacionam a questão da autoria feminina em termos de “ansiedade de autoria”, o medo de não poder criar que a escritora experiencia, por contraste com a “angústia da influência”, segundo Harold Bloom, que os autores, edipianamente, sentem em relação aos predecessores. Do século XVII ao século XX Atentemos, agora, em duas composições, um madrigal de Soror Violante do Céu, incluído em Rimas várias, e o primeiro parágrafo da carta primeira de Mariana Alcoforado dirigida ao Cavaleiro de Chamilly:

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Enfim fenece o dia, enfim chega da noite o triste espanto e não chega desta alma o doce encanto; Enfim fica triunfante a tirania, vencido o sofrimento, sem alívio meu mal, eu sem alento, a sorte sem piedade, alegre a emulação, triste a vontade, o gosto fenecido, eu infelice, enfim, Lauro esquecido. Quem viu mais dura sorte? Tantos males, amor, para uma morte? Não basta contra a vida esta ausência cruel, esta partida? Não basta tanta dor? Tanto receio? Tanto cuidado, ai triste, e tanto enleio? Não basta estar ausente, para perder a vida infelizmente? Se não também cruel neste conflito me negas o socorro de um escrito? Porque esta dor que a alma me penetra não ache o maior bem na menor letra, ai bem fazes, amor, tira-me tudo! Não há alívio, não, não haja escudo que a vida me defenda! Tudo me falte, enfim, tudo me ofenda, tudo me tire a vida, pois eu a não perdi na despedida. (Soror Violante do Céu, 1646) Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa. Há-de então este afastamento, para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, não encontrou nome bastante lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria, que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai!, os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que te havias decidido a um afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo. (Alcoforado, [1969] 2004)

Em ambos os textos os sujeitos líricos femininos exprimem a dor da perda, da ausência do amado, tópico presente também na poética maneirista e barroca, em formulações que têm ressonâncias das cantigas de amigo, embora na composição trovadoresca a voz enunciativa seja o travestimento lírico feminino de um autor masculino. Nas composições que trazem inscrito o ponto de vista da mulher e que são de sua autoria, afirma-se um sujeito feminino que ama e se comporta como ser desejante e de textos que são a expressão de sentimentos autênticos ou partem de experiências efetivamente vividas. É evidente que a 333

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expressão artística não se pauta por critérios de verdade ou de falsidade. Não obstante, a muitas obras barrocas perdem-se em jogos de palavras e artificiosismos linguísticos que parecem esvaziar a literatura da função de movere. Por essa razão, parece-nos que estes excertos podem exemplificar uma sensibilidade distinta que projeta o vivido na arte, própria de um sujeito individualizado que será característico da estética romântica. Para terminar, gostaríamos de trazer um excerto de Novas cartas portuguesas (1972), obra do século XX que glosa as Cartas portuguesas seiscentistas, tida como edifício do pensamento feminista. Em Novas cartas, a estratégia epistolar, gênero profusamente cultivado por mulheres, é usada pelas autoras, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, para dialogarem com a sociedade repressora dos anos setenta em Portugal, quando no resto da Europa e nos Estados Unidos se vivia a libertação dos símbolos da sociedade patriarcal. A clausura servir-lhes-á de mote para denunciarem um sistema político que mantém os indivíduos e, sobretudo, as mulheres à margem dos direitos cívicos e humanos de uma sociedade democrática: “Considerai a cláusula proposta, a desclausura”, pois “há sempre uma clausura pronta a quem levanta a grimpa contra os usos.” (Barreno, [1972] 2010: 6) Ainda que o tom combativo desta obra não encontre paralelismo nos textos das religiosas que vimos seguindo, é possível estabelecer pontos de convergência entre eles, se atendermos às várias vozes femininas que irrompem em Novas cartas e que aspiram à universalidade, indo ao ponto de, ficcionalmente, atribuírem textos a Mariana Alcoforado e outras mulheres, religiosas ou não, traçando uma genealogia autoral feminina que se traduz na expressão íntima de sentimentos, frustrações e pensamentos que lhes devolva o direito a uma voz que a história não registrou. Eis-nos de luta expostas sem vencer os dias as verilhas certas no passo retomado o rever das casas e das causas o revolver das coisas que dormiam Diária é a escolha o movimento insano o sossego manso e mais pesado daquilo que desperta e não quebramos daquilo que rasgamos e dobramos carta por carta em seu perfil exacto Fêmeas somos fiéis à nossa imagem oposição sedenta que vestimos mulheres pois sem procurar vantagem

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mas certas bem dos homens que cobrimos E jamais caça seremos ou objecto dado nem voluntário odor de bosque seco vidro dizemos pedra caminhada em se chegar a nós de barca ou vento Remota viração que se reparte esta que usamos em cumprir sustento de pressuposta amarra em que ficamos apartadas dos outros e tão perto (Novas cartas portuguesas, 1972)

Referências ALCOFORADO, Mariana. Cartas portuguesas. Ed. Bilingue. Tradução de Eugénio de Andrade. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004 [1669]. BARRENO, Maria Isabel, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. ed. anotada. Ana Luísa Amaral (org.). Novas cartas portuguesas. Alfragide: D. Quixote, 2010. COUTO, Anabela Galhardo. Literatura de autoria feminina: um patrimônio da palavra a reinventar. In: Zília Osório de castro (dir.), António Ferreira de Sousa e Marília Favinha (orgs.). Falar de Mulheres: Da Igualdade à Paridade. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. CÉU, Soror Violante do. Rimas várias de Soror Violante do Céu. Lisboa: Ed. Presença, 1993. COUTO, Anabela Galhardo. Labirintos de Eros: ruptura e transgressão no discurso amoroso de Violante do Céu. In: EDFELDT, Catharina, COUTO, Anabela Galhardo (orgs.) Mulheres que escrevem, mulheres que lêem: repensar a literatura pelo género. Lisboa: 101 Noites, s/d. SARAIVA, António José, LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 14.ª ed.. Porto: Porto Editora, 1987. WOOLF, Virginia. A room of one’s own. England: Penguin Books, 2004. 335

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NAS BRUMAS DE AVALON: UMA LEITURA DO IMAGINÁRIO SIMBÓLICO DA MULHER/BRUXA NO FILME AS BRUMAS DE AVALON Kelliane Felix Gonçalves UEPB Maylla Rolim de Sousa Araujo UEPB Rafael Francisco Braz UEPB Introdução Dentre o vasto leque de seres estranhos criados pela fantasia humana, a bruxa ocupa lugar entre os mais populares. Sua universalidade é percebida através de sua aparição de diferentes formas em diferentes culturas. Mas apesar de aparecer de maneiras diferentes por influencia da cultura local, a bruxa guarda sempre uma “identidade” que a torna reconhecível. A imagem da bruxa foi se constituindo ao longo dos tempos, desde os cultos primitivos à deusa mãe-natureza, as antigas lendas célticas, a feiticeira medieval fabricada pela Inquisição, e foi ganhando força, ao longo do tempo, através de representações artísticas e, sobretudo, na literatura alimentada pela tradição oral. Este presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da imagem da mulher/bruxa na figura de Morgana e Viviane no filme As Brumas de Avalon. Imagem, Imaginário, Símbolo e Arquétipo Para falar sobre a imagem da mulher/bruxa é necessário que falemos um pouco sobre imagem, imaginário, símbolo e arquétipo. Um dos elementos mais importantes do imaginário é o símbolo, sendo assim grande parte dos autores “relaciona o símbolo com o mundo do imaginário.” (GIRARD, 1997: 25). O simbolista Marc Girard em sua obra Os símbolos na Bíblia (1997) classifica o símbolo em quatro classes distintas, apresentando-as da quarta classe para a primeira. Para ele a quarta classe cabe ao símbolo das ciências exatas, como por exemplo, os “símbolos matemáticos”. Nessa categoria não só o simbolizante, mas também o simbolizado são abstratos: numa equação, f denota todas as formas funcionais possíveis, e x, todos os números possíveis. [...] Nessa categoria [...] existe, portanto, [...] uma dualidade de tipo abstrato-abstrato ou abstrato-concreto. São ajustadas duas coisas que, por si, não se encontram junto. [...] aquilo que nas ciências exatas é chamado ‘símbolo’ equivale, nem mais nem menos, a sinal (não natural, mas puramente convencional).(GIRARD, 1997: 27)

A terceira classe de símbolo para Marc Girard (1997) cabe aos sinais distintivos. Como por exemplo, a bandeira de um país ou de uma região. Aqui nessa categoria também 336

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são ajustadas duas coisas que, por si, não estão juntas. O fundamento da analogia existe na realidade, mas é limitado. Trata-se de símbolos totalmente convencionais. [...] Quanto à escolha da foice e do martelo como emblema soviético, ela decorre diretamente do programa operário rural da revolução bolchevique de 1917. Em suma, na bandeira, um simples desenho concreto representa uma realidade complexa e abstrata (território, nação e até história e cultura). [...] A dualidade vai sempre do concreto (figura) ao abstrato (por exemplo, honra, poder, valor). (GIRARD, 1997: 28) A segunda classe de símbolo para Marc Girard (1997: 29) “abarca todos os emblemas enraizados de alguma forma num simbolismo mais profundo” que ganham proporções universais. Como a representação da paz com uma pomba, de coragem comum leão e do cristianismo, ou do Cristo, com uma cruz. Nessa categoria de símbolo se encontra uma dualidade do tipo concreto-abstrato. A primeira classe de símbolo abarca principalmente os símbolos oníricos (que dão estrutura aos sonhos) e os símbolos míticos y religiosos. Nessa categoria a dualidade é do tipo concreto-concreto. Tomemos o símbolo das asas […] digamos que as asas evocam logo a idéia de vôo, de leveza, de libertação da escravidão da gravidade, de evasão do domínio da matéria e, portanto, a idéia de ascensão do homem para o mundo da plena liberdade e da transcendência. [...] Os onirólogos constatam, entre os humanos, a frequência relativa dos sonhos noturnos de levantar vôo: o símbolo das asas jaz, portanto, no fundo do subconsciente de cada pessoa, antes mesmo que a imaginação individual consciente dos poetas e dos literatos se apodere dele. [...] pertence ao símbolo fundamental das asas tudo o que possui um equipamento de vôo, isto é, a capacidade de elevar-se. (GIRARD, 1997: 31) Nesta primeira classe de símbolos não só o simbolizante é concreto, como também o simbolizado. Mesmo se tratando de símbolos míticos e religiosos que trazem em si realidades concretas que escapam do sentido. Ainda assim se trata de simbolizados concretos, pois Girard (1997: 32) fala que “as realidades divinas correspondem ao que existe de mais concreto, tão concreto que se tornam complexas e inapreensíveis para nossos espíritos limitados, excessivamente inclinados para a análise e a abstração”. Assim, vemos que o símbolo carrega em si simbolizante e simbolizado. E que o símbolo não é arbitrário, pois está ligado a cultura e vivencias de determinada sociedade. Assim, “Os símbolos são esquemas de ações intencionais, produzidas nas interações entre os homens em dada situação social ou no interior do texto de um discurso.” (LAPLANTINE & TRINDADE, 1997: 19). Outro elemento importante para o imaginário é a imagem. As imagens são construídas a partir de experiências visuais e informações anteriores. Para Laplantine & Trindade (1997) as imagens são criadas como parte do ato de pensar e se constituem a partir de como vemos as coisas ao nosso redor. Para Laplantine & Trindade (1997) o símbolo se sobrepõe a imagem, pois, Enquanto a imagem está mais diretamente identificada ao seu objeto referente – embora não seja sua reprodução, mas a representação do objeto – , o símbolo ultrapassa o seu referente e contém, através de seus estímulos

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afetivos, meios para agir, mobilizar os homens e atuar segundo suas próprias regras normativas (LAPLANTINE & TRINDADE , 1997: 13)

Nesse contexto o imaginário emerge do inconsciente universal e a imagem é produto e produtora do imaginário. Pois mesmo sendo individuais, ou seja, a imagem que uma pessoa tem sobre um objeto ou pessoa não é a mesma que outra pessoa tem sobre o mesmo objeto ou pessoa, estão carregadas de sentidos afetivos universais ou arquétipos ligados a estrutura do inconsciente. Para Jung (2002) além das memórias pessoais temos também as possibilidades herdadas da imaginação humana. Essa memória inata constitui as ideias mitológicas e universais que ele chama de arquétipos. Os arquétipos forma uma raiz comum a toda humanidade e é dai que emerge a consciência. A partir disso Jung reconhece duas camadas no inconsciente: a pessoal e a impessoal que ele denomina o inconsciente coletivo. Para ele o inconsciente coletivo corresponde a uma imagem do mundo que foi sendo criada com o passar do tempo e levou eras para se formar. É a parte da psique que armazena e transmite a herança psicológica comum a toda a humanidade. Essa herança psicológica é o que ele chama de arquétipo. Arquétipos são conceitos vazios, não preenchidos. São formas universais coletivas, básicas e típicas da vivência de determinadas experiências recorrentes, que expressam a capacidade criativa única e autônoma da psique. São conteúdos coletivos todos os instintos e formas básicas de pensamento e sentimento, tudo aquilo que consideramos como universal e que pertence ao senso comum.(JUNG, 2002: 136)

Assim, entende-se por arquétipo o potencial para repetir determinada experiência e não a experiência em si. Arquétipo da “Grande Mãe” O surgimento desse arquétipo pode ser observado ao longo da história da humanidade, desde os cultos primitivos a deusa mãe-natureza ou a Grande Deusa. O arquétipo da Grande Mãe assume três formas. São elas a Mãe Bondosa, a Mãe Terrível e a Mãe Bondosa-Má. Esta última “permite a união de atributos positivos e negativos”. (NEUMANN, 2006: 33) No filme As Brumas de Avalon percebemos que a deusa é representada pelo bem e o mal, ou seja, ela é o equilíbrio entre os dois. Percebemos isso quando Viviane pede que Morgana ouça a voz da deusa e lhe diz “A Deusa é tudo que há na natureza e tudo na natureza é sagrado. Ela é tudo o que é belo e também tudo o que é horrível”. E também quando fala que “A Deusa mantém tudo em equilíbrio: o bem e o mal, a morte e o renascimento, o predador e a presa”. Campbell (1990) fala que “Os mitos da Grande Deusa ensinam a ter compaixão por todas as criaturas. Assim você chega a avaliar a verdadeira santidade da própria terra, que é o 338

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corpo da Deusa”, pois como disse Viviane “a Deusa é tudo o que há na natureza e tudo na natureza é sagrado”. Assim, percebemos que em As Brumas de Avalon a deusa é representada pelo arquétipo da Mãe Bondosa-Má. O feminino representa o que [...] chamamos de formas da sensibilidade. Ela é espaço e tempo, e o mistério para além dela é o mistério para além de todos os pares opostos. Assim, não é masculina nem feminina. Nem é nem deixa de ser. Mas tudo está dentro dela, de modo que os deuses são seus filhos. Tudo quanto você vê, tudo aquilo em que possa pensar, é produto da Deusa. (CAMPBELL, 1990: 177)

Segundo Campbell (1990: 176) “A ideia da Deusa se relaciona ao fato de que você nasceu de sua mãe” e segundo ele as sociedades primitivas reverenciavam a figura da Deusa, a Mãe-Terra e isso estava relacionado ao fato de que essas sociedades viviam efetivamente da agricultura. A mulher dá a luz, assim como da terra se originam as plantas. A mãe alimenta, como o fazem as plantas. Assim, a magia da mãe e a magia da terra são a mesma coisa. Relacionam-se. A personificação da energia que dá origem às formas e as alimenta é essencialmente feminina. A Deusa é a figura mítica dominante no mundo agrário da antiga Mesopotâmia, do Egito e dos primitivos sistemas de cultura do plantio. (CAMPBELL, 1990: 177)

No filme objeto desta análise percebemos que o culto a deusa estava ligado sim a agricultura, quando Artur e Morgana, ainda crianças, passeiam a cavalo e presenciam um ritual da colheita oferecido a deusa. “E quando você tem uma Deusa como criador, o próprio corpo dela é o universo. Ela se identifica com o universo. Ela é toda a esfera dos céus que abarca a vida.” (CAMPBELL, 1990: 177). Assim compreendemos o respeito e a devoção que Viviane mostra a Morgana com relação a Deusa.

Deusa Primitiva. Seu corpo como o próprio universo. 339

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As Brumas de Avalon A palavra bruma que é sinônima de nevoeiro que, por sua vez, é símbolo do indeterminado, de uma fase de transição que ainda não se distinguiu. Chevalier & Gheerbrant (2009) classifica esse símbolo como “o período transitório entre dois estados”. E para eles o nevoeiro precede as “revelações importantes; é o prelúdio da manifestação”. Em As Brumas de Avalon as brumas marcam a passagem do mundo humano, no caso a Bretanha que estava sendo invadida não só pelos saxões, mas também pelo cristianismo que desde o princípio da trama já ameaçava o predomínio da deusa, e o Outro Mundo, ou seja, Avalon a ilha sagrada da Deusa. As brumas marcam também a passagem de Morgana de seu mundo de bruxa, com poderes, dados pela deusa, e rituais, oferecidos à deusa, ao mundo dos humanos, pois depois que Morgana da às costas a Viviane e a todos os seus ensinamentos os poderes a abandonam e ela não consegue mais voltar a Avalon e fica perdida nas brumas.

Avalon enredada por suas brumas. Viviane e Morgana a imagem da mulher/bruxa Morgana é conhecida como Fada Morgana e seu nome tem origem celta e significa a mulher que veio do mar. Morgana é peça principal no filme As Brumas de Avalon, pois é ela quem retrata a história do rei Artur, seu meio irmão que nasceu para livrar o povo da Bretanha das mãos dos saxões e garantir que a Deusa de Avalon continuasse a ser cultuada mesmo com a ameaça do cristianismo que já era vivo e ganhava força. Morgana é sacerdotisa de Avalon e está presente em quase todos os episódios, pois é ela que trilha o destino de seu irmão, até quando não se dá conta disso. Morgana é levada por sua tia Viviane a Dama do lago para Avalon e lá é treinada para substituir a tia. 340

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Viviane, por sua vez, é a mais importante sacerdotisa de Avalon e é a responsável por entregar a espada sagrada, Excalibur, forjada em Avalon, a Artur e fazê-lo prometer que quando fosse rei da Bretanha reinaria respeitando os cultos católicos e os cultos de Avalon. A imagem de Viviane e Morgana é facilmente associada a bruxas, pois elas realizavam rituais que já não eram tão comuns e eram dotadas de poderes mágicos com os quais manipulava o destino dos demais. Vemos isso quando Morgana dá um amuleto a Guinevere que faz com que Artur a deixe dormir com Lancelot para que tenham o filho que não se gera de seu matrimônio. Características míticas e simbólicas de culturas pagã e cristã Durante todo o filme percebemos características míticas e simbólicas de culturas pagã e cristã. Um dos pontos principais encontrados é a transição de religiões em que se adorava uma deusa feminina, para adoração de deuses masculinos até finalmente chegar ao estágio onde os dois interagem em uma mesma religião. Em As Brumas de Avalon percebe-se desde o início o medo que as sacerdotisas de Avalon têm a respeito do cristianismo, pois até então as mulheres eram respeitadas como guias espirituais e religiosos e adorava-se a uma deusa. Com o cristianismo passa-se a adorar um deus (masculino) e os líderes religiosos são homens. É possível ver essa transição através de Lancelot que diz a sua mãe Viviane que no mundo dele os homens não precisam esperar por ordens das mulheres e ao final se casa somente com a benção do cristianismo. A terceira fase de transição é mostrada já no final, quando Avalon desaparece e Morgana passeia pelo convento cristão enquanto fala que por muito tempo acreditou que a deusa havia desaparecido nas brumas, mas depois percebeu que ela só mudou de forma. É a partir daí que apresenta-se a Virgem Maria. Uma humana tão pura que foi digna de ser a mãe de Deus. Como fala Campbell (1990: 183) “a Deusa reaparece, sob a forma de um espetáculo casto e puro, escolhido por Deus para sua ação.” Conclusão Assim, percebemos que tanto a bruxa, quanto a Grande Mãe fazem parte do inconsciente coletivo da humanidade, pois diversas culturas e religião se usam de suas características para representá-las. Como fadas, sacerdotisas ou bruxas suas características principais sobrevivem ao longo dos anos e se estendem por distintos povos, distintas culturas e distintas religiões. Referências CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Palas Athenas, São Paulo: 1990. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. José Olympio, Rio de Janeiro: 2009. 341

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GIRARD, Marc. Os símbolos na bíblia. Paulus, São Paulo: 1997 JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2 ed. Vozes, Petrópolis: 2002. LAPLANTINE, François & TRINDADE, Liana. O que é imaginário. Brasiliense, São Paulo: 1997. NEUMANN, Erich. A grande mãe: um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. Cultrix, São Paulo: 2006.

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UMA FLOR DE ALTURA? PERFIL IGNORADO DE LEONOR TELES EM UM ROMANCE DE ANTÓNIO CANDIDO FRANCO Larícia Pinheiro Silva (UEPB) [email protected] Aldinida Medeiros (UEPB) [email protected] O romance de António Candido Franco, Vida ignorada de Leonor Teles (2009), retrata a história de Leonor Teles, que fazia parte da família dos Teles de Meneses, composta por fidalgos, os quais tiveram certa influência na corte portuguesa, principalmente, por ter na sua linhagem um conselheiro real, Afonso Teles de Meneses, assim como também condes e nobres que sempre serviram na dinastia Afonsina. Segundo as crônicas medievais de Fernão Lopes (2000), Leonor Teles era uma mulher esbelta e fogosa como a Vênus, além de ser ardilosa para conseguir o seu intento, chegando a ser fria e repleta de artimanhas para obter o desejado. Casou-se primeiro com um fidalgo chamado João Lourenço da Cunha senhor do morgado de Pombeiro com o qual teve um filho, Álvaro da Cunha, e os deixou para passar uma temporada na corte com sua irmã, Maria Teles. Desse passeio, a Lisboa, hospedando-se no paço da infanta D. Beatriz de Castro, Leonor não mais retorna, deixando a criança juntamente com o pai abandonados, por causa do rei D. Fernando, filho de D. Pedro e Constança Manuel. O rei ordena que se desfaça o casamento dela com o fidalgo e então a desposa. Após certo tempo como rainha, Leonor descobre o casamento da irmã com o cunhado, o infante João, filho de D. Pedro e de Inês de Castro, ficando perplexa por não concordar com esse enlace matrimonial, acaba induzindo o príncipe a matar sua esposa para que assim o mesmo deixasse Portugal, tirando-os do seu caminho no reinado. Depois planejou matar João de Avis e Gonçalves Vasques de Azevedo em nome do rei, por fim, tenta tronar sua filha rainha de Portugal e Castela. Depois de um período foi proposto pelo conselho um novo enlace da rainha Leonor Teles com o novo possível substituto do falecido rei D. Fernando seu irmão bastardo João de Avis. Ficando assim conhecida a jovem dos Teles de Meneses através das crônicas medievais de Fernão Lopes (2000). O romance histórico contemporâneo mostra um fato histórico, mas não através de uma descrição como o conhecemos, pois traz uma nova visão sobre os acontecimentos, com uma releitura do ocorrido, como demonstra esse romance que configura uma nova personalidade para Leonor Teles: sensível, delicada, e sem busca pelo poder, nem vingança. Conforme explica Antônio Esteves (2010), em um ensaio sobre romance histórico: “Segundo mudam as concepções do romance e suas relações com a sociedade, também muda o romance histórico, da mesma maneira que ele se vê afetado pelas mudanças epistemológicas que se verificam na concepção de história”. (ESTEVES, 2010, p. 27). Assim, o romance histórico contemporâneo traz uma nova visão dos acontecimentos, não ficando detido a maneiras de produção do período clássico do romance histórico, pois cria 343

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uma nova forma de retratar a História, diferente do que vinha sendo feito, já que trata de uma inovação na maneira de tornar ficção com aspectos históricos. Além de ter-se uma nova perspectiva sobre a posição do povo nessa história a qual está sendo contada, surgem, então, as pessoas secundárias, como a criada da protagonista, ganhando um enfoque maior nessa narrativa de Franco (2009), e até a própria Leonor, a qual ficou em algumas obras em segundo plano, torna-se a protagonista e a heroína. Em seu ensaio O romance histórico em Portugal (1999), Maria de Fátima Marinho parte dos estudos de Lukács (2011) sobre o romance histórico, e afirma: Georges Lukacs [sic] considera que antes de Scott, os romances que se ocupavam de épocas diferente das dos seus autores se limitavam a uma escolha puramente exterior de temas e de ambientes, sem nenhuma espécie de consciência dos grandes movimentos históricos-sociais [...]. (MARINHO, 1999, p. 13).

Além disso, há a função trans-temporal entre o tempo (presente) do romancista e o tempo (passado) sobre aquilo que escreve. Considerando essa colocação de Maria de Fátima Marinho (1999), pode-se perceber que os autores, atualmente, ao escolher sobre o tema a ser abordado na produção, incrementam os costumes da época aos quais suas personagens vão retomar, pois isso auxilia a se ter uma melhor compreensão do enredo, trazendo certos comentários sobre fatos sociais e históricos que vai retomando no decorrer da narrativa. Principalmente, numa obra como essa de Franco (2009), a qual os conflitos histórico-sociais são tão essenciais para podermos melhor compreender determinados acontecimentos. No romance de Franco (2009), Leonor Teles ganha um novo perfil, em relação a outros romances de outros escritores que a tratam sempre como aleivosa. Cândido Franco traz a sua história retratando-a desde cedo, começando pelo período da morte dos pais, sendo criada pelos tios: Guiomar Pacheco e João Afonso Telo (conde de Barcelos e o primeiro privado do rei Fernando - conselheiro real) na companhia de sua irmã, Maria Teles, e das primas. Era descrita como uma menina recatada, tímida que gostava de evitar o convívio social, detestava festas, reuniões festivas, pois preferia o isolamento da sua alcova onde costumava ficar com sua criada Maria Peres, também confidente e companheira: Leonor olhou-a sem surpresa. Maria conhecia-a melhor do que qualquer outro. Ainda assim, estava longe de perceber o vulcão que ardia dentro dela e sobretudo desconhecia aquele sentido interior que lhe activava a visão mediúnica. A sua discrição era incondicional. Maria Peres era porém para ela nessa época a única ponte com o mundo. — Digo-vos para vosso cuidado. Este mundo me ofende e ensandece. Não lhe pertenço nem o quero. — Falais assim por causa do agravo com vossos irmãos? (FRANCO, 2009, p. 55).

Assim, notamos o quanto Leonor confiava na sua aia, pois a ela contava seus desejos mais íntimos como o fato de não gostar de viver neste universo social, almejando dele um distanciamento. Neste sentido do universo particular de Leonor, na qual sua aia tem importante papel, lembramos as palavras de Fátima Marinho (1999), ao afirmar que o romance histórico português reconstrói “[…] uma época através dos seus fragmentos 344

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textualizados, os autores vão-se movimentando entre personagens referenciais e personagens inventadas, dando primazia a umas ou a outras consoante as suas convicções. [...]” (MARINHO, 1999, p. 21). Na ficção de Cândido Franco (2009), antes de Leonor casar-se e conhecer o infante, a infanta D. Beatriz de Castro, filha de D. Pedro com Inês de Castro, convida as primas e a irmã de Leonor para a corte, onde ficariam como suas damas de companhia e a mais nova dos Teles de Menezes as acompanha. Mas por ser muito recatada e reclusa, acaba voltando para a estância dos tios, os quais a levam para um convento, porém, não passa no teste para se tornar freira. Tempo depois os tios arranjam um casamento com João Lourenço da Cunha, um morgado rico que vivia em Pombeiro, afastado da corte. É nítida a oposição entre a personagem do romance e a rainha descrita nas crônicas medievais que queria um maior envolvimento social e riqueza, já segundo Franco (2009) a protagonista só espera ficar só no seu paraíso imaginário, e através desse e outros argumento o autor consegue compor um novo perfil da personagem, por meio dessa configuração ficcional tornando sua narrativa mais real: O terceiro argumento assenta na natureza de cada componente da retórica, pois a argumentatividade, a figuratividade e a arquitectura dispositiva são propriedades essenciais à construção da ficção, cada uma por razões específicas [...]. (VIEIRA, 2008, p. 137).

Com todas as características expostas por Franco (2009) mostra sua forma de argumentação para conseguir uma construção da figuração da sua protagonista de modo a enobrecer sua heroína, e dar-lhe um novo perfil, através desses novos traços da personagem que ele esboça mostrando-a mais sensível, delicada, mas com a mesma independência e coragem. Assim, auxilia no enaltecimento do romance e torna-o próximo do real. Isto corresponde ao que aponta Marinho, que cada romancista vai escrever a sua versão, “[...] uma outra versão da mesma História, tantas vezes ouvidas e decoradas.” (MARINHO, 1999, p. 234). A Leonor da ficção de Antônio Franco (2009) gostava de refletir sobre a vida, amava a natureza e os seres vivos. Diferente das moças de sua idade, não desejava casar, pois acreditava não ter sido feita para isso. Era a mais nova e a menor das donzelas dos Teles de Meneses. Apresentava a pele branca, cabelos ruivos, olhos verdes como esmeraldas, muito delicada, sensível, religiosa, vegetariana, carinhosa, porém, fingia aspereza quando tinha de comparecer no conselho, reuniões ou qualquer coisa que a levasse ao convívio com outras pessoas. Preferia ficar invisível aos olhos dos demais, para não ter de se relacionar com eles e que não pudessem observá-la, além de almejar uma independência possibilitando controlar a sua vida sem as interferências dos demais, ocultando tais desejos ao conhecer o infante D. Fernando: — Que mãos, Leonor! Nunca as vi assim tão brancas. — Ninguém lhes tocou antes de ti. — Parecem escupidas em mármore raro. — Por ti o desenterrei. — E que olhos Leonor! Têm a beleza e a profundidade do mar.

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— Polidos foram para ti, Fernando. — Os teus olhos são jóias raras. — Guardadas ficaram para que tu as visses. — E os cabelos, Deus meu! São um incêndio de Sol e de luz. — Acesos foram para ti. — Que lábios tão apetitosos! — São teus. — A brancura da pele do teu pescoço seduz mais que pérola. — É tua. (FRANCO, 2009, p. 178).

Este foi o primeiro encontro íntimo entre o infante Fernando e Leonor Teles a sós em Alcobaça, na casa onde viveram Pedro e Inês, além de ser a primeira vez que a via sem sua capa preta de veludo a qual a deixava quase invisível ao resto do mundo. Assim percebemos em Vida ignorada de Leonor Teles (2009) a descrição feita dessa mulher diferente da conhecida até esse momento através das produções de Fernão Lopes (2000), no romance o discurso do autor está voltado para a desconstrução desse ser que até o momento ficou marginalizada. Franco (2009) apresenta Leonor como um ser místico e romântico, distinta da figura histórica que foi tida como uma pessoa sem nenhum caráter, nem princípios e através desse novo perfil pode mostrar o oposto, como ter casado com o infante não por interesse mais por amor: — E as pintas... as pintas do teu rosto são mais belas e profundas que as luzentes estrelas do verão. — ... — E que hálito, Santa Maria! — Sopra para ti. — E o teu peito, Leonor... Que peito! Nunca o descobri mais alvo e delicioso. — Esperava por ti. — E o teu perfume! O teu perfume embriaga mais que mirra e incenso. — Sê certo, que só para ti o destilei. — Que perfeito é o teu corpo, meu amor! — Dele haverás quanto quiseres. — Leonor... Leonor... Morro nos teus braços. (FRANCO, 2009, p. 178179).

Nesse fragmento mostra o quanto D. Fernando e D. Leonor Teles se amaram, no romance, diferentemente da descrição nas crônicas de Fernão Lopes (2000) que coloca a protagonista como uma mulher interesseira casando-se com o infante só para tornar-se rainha sem o amar. Mas antes do casamento entre o infante e Leonor foi sua irmã Maria Teles, viúva de fidalgo bem apessoado da corte morto numa guerra com o qual tem um filho, que tem um caso com Fernando, pois o conhece no paço da infanta D. Beatriz de Casto e como era costume da época as mulheres, as quais já foram casadas eram alvos fáceis para as volúpias, o infante por ser fogoso gostava de aproveitar desses favores e muito deitou com ela, isso revela os costumes da época como aponta Esteves (2010): Embora narrativas fictícias tratadas de fatos ou de personagens históricas tenham existido praticamente desde a Antiguidade, costuma-se apontar o nascimento desse gênero no início do século XIX, durante o romantismo,

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pelas mãos de Walter Scott (1771-1832). Foi resultado de uma série de eventos históricos, como a Revolução Francesa e as consequentes campanhas napoleônicas, que levou o homem da época ao despertar de certa consciência de sua condição histórica. E coube a Scott, no processo de afirmação do romance como epopeia da burguesia, criar essa nova variante narrativa, cujos personagens, ao mesmo tempo que estão profundamente inseridos no fluxo da história, atuam de modo que seu comportamento explicite as peculiaridades da época apresentada. (ESTEVES, 2010, p. 31).

Com isso, notamos as diversas retomadas de costumes da época em estudo, no romance, não apenas essa questão dos prazeres com as viúvas, mas das mancebias, dos paços como a sua maneira de ser organizado e ornamentado, e a questão das jovens fidalgas serem encaminhadas aos paços das princesas para servirem de companhia. O infante após certa viaje acaba com sua mancebia com Maria Teles, a qual se sentindo rejeitada pede ao tio para trazer a irmã de modo que essa possa ajudá-la a superar sua solidão, no entanto, tudo não passava de uma artimanha sua para vingar-se do futuro rei. Mas o infante ao conhecer Leonor apaixonase e manda desfazer a união dela com João Lourenço, visto que o casamento da jovem não se havia consumado, para ele, Fernando, casar-se com ela. Isso deixa Maria Teles desapontada, então, ela retoma um antigo envolvimento com um dos irmãos do infante de modo que ninguém percebesse o quanto ela estava revoltada com aquela situação e planeja matar o rei: — Fernando!... Fernando, meu amor! — Leonor... Leonor... Que desgraça aqui se ordenou em nosso desfavor? — Santa Maria val! Estás vivo e entendes a portuguesa faladura! — Mas que aflição aqui se vazou, diz-me? — Alguém armou o braço de peçonha para te matar na alcáçova de Santarém. — Pardiez! Por quê? Não posso crer. Que fiz eu? — Sossega, só a traição pode estar por trás dum tal golpe. — E que novas de mim houve após tal perfídia? — Morreste e voltasse à vida! — Ó alto Deus, que me concedes a graça que a meu pai deste. Bendito seja Ele. — Bendito seja Ele, que nos mostrou que aquele que morre pode voltar à vida. [...] — Recordas por onde tua alma andou fugida? — Lembro apenas de ter despertado ao teu contacto. — Não quero perder o teu amor. — Sem ti, Leonor não teria regressado. — Não posso viver sem a tua adoração. É ela que me move. (FRANCO, 2009, p. 219-220).

Esse momento é quando Leonor consegue por meio do seu mundo invisível trazer D. Fernando a vida, após o atentado cometido por Maria Teles, dessa forma o autor inocenta a protagonista de ter tentado matar seu marido, pois é através de um veneno na carne do rei que a irmã da rainha envenena o infante. Ao refazer-se do atentado o rei passa o trono para Leonor, quando ele estivesse morto, para ela governar independente mesmo sem ter um rei ao lado e divide toda sua riqueza de modo a deixar sua amada e sua filha, amparadas e 347

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protegidas, além de arranjar o casamento da filha com o rei de Castela para acabar com as inimizades. Sem deixar de notar a grande relação de poder existente no fato citado posteriormente que foi a quase morte de El-rei Fernando, resolvendo definir sua herança de modo a acabar com os conflitos de guerra e até visando à questão econômica da filha e da esposa após sua morte: — Filha, mais do que falar me parecia que havíamos de pôr um espaço de paz na desordem desta guerra. — [...]. — Senhora, se assim sóis teúda [sic], sabei que daqui não iremos sem havermos o reino que meu pai me deixou por sua morte, pois outro filho de vós não havia. E daqui não iremos sem termos nossa vingança do mestre pelos tão nojosos gestos que ora se fazem em tantas cidades e vilas do reino e de que vós tendes melhor notícia do que nós. — Grão mal fazeis dessa guisa a vossa mãe. Cismava eu na vossa lembrança e na vossa pouca idade para vos abraçar como filha e não para vos falar como rainha, disputando convosco a herança de vosso pai. (FRANCO, 2009, p. 307-308).

Mostra nesse fragmento este conflito de interesses, tanto sociais como econômicos após a morte de D. Fernando, através de uma conversa entre a rainha Leonor Teles e sua filha, rainha de Castela, que trata da vontade do rei de Castela de governar Portugal. Depois do falecimento de D. Fernando, começa uma briga pelo poder, alguns fidalgos convencem seu meio irmão, o conde de Avis a casar com a rainha e governar o trono, porém, ela não aceita, criando-se um motim. O rei de Castela genro de Leonor exige o trono, mas ela deixa bem claro que não dará, ele a convida para uma conversa e ao não conseguindo seu intento, a prende. Depois manda a esposa para convencer a mãe, no entanto, também não obtendo nada, deixam-na reclusa numa masmorra. Muitos anos depois Leonor com a morte do genro é libertada, ela volta para Alcobaça onde ficava a casa construída por Fernando para eles dois amarem-se, perto da de Pedro e Inês, mas tudo tinha mudado e a casa não mais a pertencia. Ela cruza o mar seguindo para uma ilha, ficando lá dentro de uma caverna, longe de tudo e de todos, até que um dia avista o Mestre de Avis, neste momento o rei de Portugal. Leonor volta para falar com El-rei o qual tenta dissuadi-la a ficar com ele, ela recusa, segue para terras desconhecidas e perigosas de onde não mais volta nem se tem notícias, mesmo com todas as tentativas do Mestre para reencontrá-la. Com isso notamos quão diferente é este perfil traçado por Franco (2009) daquela Leonor descrita nas crônicas medievais ou em textos que têm por fonte o cronista português Fernão Lopes (2000): E, durante assi per tempo, a rainha nom perdia cuidado da fazenda do infante e de sua irmã, pensando todavia que per tal casamento se lhe poderia seguir desfazimento de sua honra e estado. E, pera desviar isto de todo ponto, azou de fazer entender ao infante que lhe prazeria de o ver casado com a infanta Dona Beatriz, sua filha. E falou todo seu cuidado com D. João Afonso Telo, seu irmão, que lhe era muito obediente por muitas mercês que dela recebia,

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que encaminhas-se como o infante houvesse disto algum conhecido. (LOPES, 2000, p. 74-75).

Lopes, por conseguinte os cronistas que o tomam como fonte, descreve Leonor como uma mulher interesseira, fria e sem sensibilidade, ressaltando sobretudo seu desejo pelo poder, ficando mais evidente seu ato de planejar a morte da própria irmã, Maria Teles, sem sentir nenhum remorso. Essas diferenças entre a Crônica e modo de escrever o romance histórico contemporâneo – as quais podemos denominar como liberdade do romancista – evidencia essa nova maneira de se produzir ficção com conteúdo historiográfico, através da qual alguns personagens não conhecidos ou pouco conhecidas, ganham uma oportunidade de poder ser conhecidas, como as pessoas que estão por trás dos grandes e poderosos, como é o caso de Maria Peres e João Afonso Telo, aqui com maior destaque no romance de Cândido Franco (2009): — Desconfia, já que a maravilha dum casamento del-rei de Portugal com uma Teles de Meneses é esmola por de mais grossa para ser verdadeira. Mas fica atenta, porque o amor é cego e não vê o que nós vemos.” (FRANCO, 2009, p. 170).

Dessa forma, demonstra a importância do tio de Leonor que é um personagem secundário, mas contribui para a ocorrência de fatos significativos dessa história. Assim, o autor dá voz ao povo, ou a personagens que sempre estiveram no âmbito secundário das narrativas, para poder mostrar sua intervenção em alguns fatos. Franco (2009) faz uma retomada de um fato histórico e uma releitura na qual a sua mundivisão é que determina os fatos do enredo. Através dessa obra sempre poderão rememorar transmitindo para as pessoas que conhece o seu saber e as relações sociais decorrentes deste período da existência de Leonor, retomando questões históricas desde o reinado de D. Pedro, D. Fernando e até a revolução que culmina na dinastia de Avis, com D. João de Avis sendo conduzido ao trono por nobres e populares. Nesse sentido, há toda uma retomada da História e Memória de Portugal. E como aponta Le Goff (1982): “[...] a memória colectiva formada por diferentes estratos sociais sofre na Idade Média profundas transformações” (LE GOFF, 1982, p. 27). Percebemos que a narrativa sempre aborda questões ligadas ao personagem e sua convivência com diferentes grupos sociais e até o isolamento, mostrando diversos aspectos da cultura do reinado Português de D. Fernando, suas crenças, bem como os costumes durante aquele período. No romance de Cândido Franco, D. Fernando governa tudo sozinho e após sua quase morte Leonor começa a acompanhá-lo nas decisões do reino. Ao contrário disso, nas Crônicas a rainha, com grande sede de poder, sempre acompanha seu marido e sempre o auxiliava nas decisões, além dele não ter sido envenenado por Maria Teles. Em ambos ele organiza a união da sua filha com o rei de Castela, mas o diferencial é que em Lopes (2000) é uma decisão em comum acordo planejada de certa forma por a rainha de Portugal, enquanto Franco (2009) coloca como sendo de responsabilidade exclusiva do rei. O que mostra essa disparidade entre a historicidade e a ficção, de acordo com Esteves (2010) e Marinho (1999) vendo essa mescla entre fatos reais historicamente expostos e os que são apenas criação do imaginário do autor 349

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que os utilizou para dar uma maior coerência e coesão para narrativa, como o fato da omissão, no romance, da prisão do Mestre de Avis e ao mesmo tempo a morte de João Fernandes Andeiro. Enfim, como podemos notar, a obra literária de Franco (2009) demonstra não apenas a narração de um fato histórico, mas inova na maneira de fazê-lo, promovendo uma releitura da História que acaba por trazer inovação na produção de sentido, dentro daquilo que aponta Luckács (2011) em seu estudo sobre o romance histórico. Além de proporcionar uma oportunidade para os personagens secundários de expressarem-se de sua perspectiva sobre os acontecimentos, como afirma Marinho (1999) e Esteves (2010), como o autor vem revelar a respeito “dessa” Leonor Teles, a qual até então não era conhecida, se não através das crônicas medievais que têm como fonte Fernão Lopes (2000). Vista sempre como uma mulher sem coração, incapaz de demonstrar qualquer amor, a Leonor de Cândido Franco recebe um perfil que retoma, em certos aspectos, uma visão romantizada, com algumas das características presentes em alguns romances do início do século XX. Esta é uma escolha do autor, que opta por uma linha mais saudosista da História, sem a necessidade de se ver obrigado aos estatutos de uma romance mais verossímil, porque histórico, respeitando o contrato mimético, mas privilegiando a ficção com uma Leonor Teles Flor de Altura. REFERÊNCIAS ESTEVES, Antônio R.. O romance histórico brasileiro contemporâneo. São Paulo: Ed. UNESP, 2010. FRANCO, António Candido. Vida ignorada de Leonor Teles. Lisboa: Ésquilo, 2009. GOFF, Jacques Le. História e memória: memória. II v. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1982. LUKÁCS, György. O romance histórico. (tradução Rubens Enderle). São Paulo: Boitempo, 2011. LOPES, Fernão. Crónicas de Fernão Lopes: Introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 2000. MARINHO, Maria de Fátima. O romance histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras, 1999. VIEIRA, Cristina da Costa. A construção da personagem romanesca. Lisboa: Colibri, 2008.

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SUTIÃ DE AÇO: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER GUERREIRA NO FILME COMO TREINAR SEU DRAGÃO Ricardo Wagner Menezes de Oliveira (UFC/Valknut)1 [email protected]

Figura 1: Poster do filme no Brasil. Detalhe para o elmo de Soluço feito a partir do protetor de seios de sua mãe. Pensar em viking é pensar em bárbaros robustos com enormes machados nas mãos e elmos com um par de chifres prontos para velejar e pilhar alguma aldeia, no entanto esta imagem que temos é fruto de muito tempo de representações. Desde 793 d.C. até os dias atuais, a imagem dos vikings vem sendo construída e reconstruída de acordo com vivências, ideologias e intenções de povos e épocas diversos. Na realidade, apenas uma porção relativamente pequena de seus membros se atirava aos saques e às aventuras de colonização. Em sua maioria, o povo viking se dedicava à agricultura, à pecuária, à pesca e ao comércio nas terras localizadas ao extremo norte e nordeste da Europa, principalmente em uma região conhecida como Escandinávia. Eles colonizaram a Islândia, a Normandia, a Grã-Bretanha, a Groelândia, a Irlanda e até a América do norte 500 anos antes do período das “Grandes Navegações”. O termo “viking” ainda é motivo de debate entre estudiosos, porém a origem mais provável é que seja um desenvolvimento da palavra vik que significa baía/enseada, local onde os navios eram atracados para que pudessem descansar ou emboscar outras embarcações. De qualquer forma, a palavra viking moderna é proveniente do termo em nórdico antigo vikingr, utilizado para designar piratas, aventureiros e mercenários.

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Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará. Coordenador do Valknut: Grupo de Estudos Vikings.

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Durante muitos anos os povos vikings comercializaram, saquearam e colonizaram diversos territórios pelo mundo. Muito se discute acerca das razões que levaram os escandinavos a realizar suas incursões, sendo consideradas mudanças climáticas e superpopulação (DUBY 1980), divergências legais e sociais, condições mercantis, tecnologia náutica avançada e até disputas por poder. (LANGER, 2009) Sua sociedade era estratificada, cada região possuía sua organização, porém não possuía estrutura muito rígida, de forma que a mobilidade social era algo comum, podendo um fazendeiro se tornar nobre e um escravo comprar sua liberdade. Acima de todos estava o rei, chamado de Kunungr. Este seguia a tradição germânica de ser o primeiro entre os iguais, seguido pelos nobres Jarls, chefes locais que forneciam suporte militar ao rei, a camada mais numerosa dos Karls, composto por homens livres em geral e por último os escravos chamados de Thrall, que foram algumas das mercadorias mais populares para o comercio com os árabes. A educação das crianças vikings era responsabilidade do pai e às vezes de um poeta (Skald) que o ajudava contando histórias e lendas para as crianças. O trabalho infantil era comum e variava de acordo com o sexo e a idade da criança. As crianças iam gradativamente sendo apresentadas às atividades que cabiam ao seu sexo, como a arte da ferraria para homens e a tecelagem para as mulheres. A infância durava até por volta dos 15 anos, quando os meninos começavam a sua participação na política e nas guerras e as meninas se preparavam para se casar. A mulher viking gozava de uma ampla liberdade, se comparada com a mulher europeia em geral. Podia possuir terras e outros bens, cultivar, comercializar e era dela a escolha de casar ou não com o pretendente designado pelo pai, tinha o direito de pedir divórcio e poderia até possuir um status elevado herdando bens de um marido falecido. Entretanto poderia perder a liberdade e a vida caso cometessem crimes, como o adultério, que dava direito ao seu marido de executa-la. Eram destinadas a ela as tarefas domésticas (GRAHAM-CAMPBELL, 1997). O papel da mulher era cuidar dos afazeres domésticos cuidando das crianças, preparando os alimentos, limpando a casa, lavando a roupa, dedicando-se a tecelagem sendo também de sua responsabilidade ordenhar as vacas, fazer queijo e manteiga, preparar remédios e tratar dos doentes e feridos (MALTARO, 2005). Na ausência do marido, a mulher tem total controle sobre os bens da casa, sendo atribuído a ela o símbolo das chaves (LANGER, 2010), além de assumir as responsabilidades do marido nos assuntos externos da casa. Não existe nenhuma evidência arqueológica da existência de mulheres vikings guerreiras, há sim escavações nas quais foram encontrados corpos de mulheres sepultadas junto a armas e armaduras, mas a presença de tais artefatos está ligada à representação um status social elevado desta mulher, uma vez que possuir tais equipamentos custava caro. Da mesma forma, não há menção a mulheres guerreiras na maioria das sagas islandesas, tanto de família quanto as contemporâneas2, salvo alguns casos de autodefesa, como o famoso caso da

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As sagas de famílias e as sagas contemporâneas possuem um caráter mais crível, pois o termo saga advém do verbo Sjá que significa “aquilo que foi visto”, portanto ligada a memoria.

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Freydís Eiríkdóttir, tendo aparições apenas nas sagas lendárias3, nas quais a representação feminina está voltada para o modelo mítico das valquírias (LANGER, 2012). Existe na obra Germânia de Tácito algumas passagens em que se fala de mulheres em guerras, mas essas também estão ligadas a autodefesa ou casos raros e até mesmo a mitos. Reza a tradição que, muitas vezes, quando as batalhas perigavam o fracasso se aproximava, as mulheres restauravam as linhas rompidas, obrigando o esquadrão a retornar a frente, quando em fuga, com a persistência das suas súplicas, opondo-lhes feitos e amedrontando-os com o cativeiro como consequência (...) (TÁCITO).4 As representações modernas no cinema, nas HQs e outras produções culturais de massas acerca da mulher viking estão recheadas de fantasia. Atendendo às necessidades de mercado, a indústria se volta ao apelo da sensualidade e da violência em suas produções, destinando seus produtos para o público jovem.

Figura 2: Reprodução da personagem Freya do filme "Outlander, Guerreiro vs Predador".

Figura 4: Xena, a Princesa Guerreira.

Figura 3: Capa do HQ Red Sonja.

Símbolo desta tendência é a HQ criada em 1982, por Roy Thomas, chamada “Red Sonja”. Inspirada nos contos de Robert E. Howard, Red Sonja é uma guerreira de força e destreza descomunais, ela se equipa com armas enormes e uma espécie de biquíni de metal como armadura, atingindo, em cheio, os objetivos de vendas e fixando a imagem da mulher sensual e belicosa. Outros exemplos dessa imagem é a série de TV “Xena, a princesa guerreira” de 1995, a personagem Freya do filme “Outlander: Guerreiro vs Predador” de 2008 e, não se pode desconsiderar no que concerne à cultura de massas, os diversos jogos de RPG, que tem grande popularidade entre os jovens (LANGER 2012). Todas estas representações modernas tiveram duas grandes influências. A primeira, de cunho mais ideológico, surgiu com o feminismo pós-Segunda Guerra, quando as mulheres, 3

As sagas lendárias, como o nome já sugere, diverge das outras sagas por está repleta de elementos fantasiosos, portanto menos digna de confiança no que se refere ao real. 4 Temos esta passagem como ligada à lendas, posto que Tácito utiliza os termos “Reza a tradição”.

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que ocuparam os mais diversos setores econômicos enquanto os homens haviam sidos enviados para a batalha, foram sendo empurradas de volta ao trabalho doméstico depois que a guerra terminou e os soldados quiseram ocupar seus antigos postos de trabalho. Este sentimento da mulher como capaz de realizar as mesmas tarefas que o homem, mesmo utilizando sapatos de salto alto, logo fora absorvido e ascendeu às produções de sua época. Um bom exemplo é o filme “The Saga of the Viking Woman” de 1957, na qual as mulheres vikings são postas como intrépidas e completamente independentes, construindo seu próprio navio e indo se aventurar nos mares até encontrar a grande serpente marinha. Temos também o filme “The Viking Queen” de 1967 que, apesar de se tratar de Boudica, uma líder celta que tenta resistir à invasão romana na Grã-Bretanha, é chamada de viking por sua posição de guerreira. Outra personagem que não se pode esquecer é Éowyn*, da trilogia literária “O Senhor dos Anéis” de 1955 escrito pelo aclamado J. R. R. Tolkien, onde ela mesmo sendo uma dama da corte de seu povo, desobedece seu tio e rei e se traveste de guerreiro, monta um cavalo e cavalga para batalha. A segunda grande influência está ligada ao romantismo oitocentista na produção artística e as aspirações nacionalistas dos estados nacionais em formação do Séc. XIX. Os pintores e músicos desta época buscaram realizar em suas obras um enaltecimento de um passado glorioso e que pudessem se orgulhar e se identificar. As modernas imagens sobre os bárbaros europeus foram criadas com o romantismo oitocentista. Respondendo aos diversos anseios nacionalistas, as antigas paisagens e os personagens medievais foram resgatados para construir identidades modernas: os celtas para os franceses; os teuto-saxões para os alemães e os vikings para os escandinavos (LANGER, 2009). Para os artistas escandinavos, os ancestrais vikings foram logo sendo resgatados e acabaram estrelando a maioria das produções destes anos. Grandes pintores como Peter Arbo, Johanes Flintoe e W.G. Collingwood realizaram belíssimos trabalhos com representações do povo escandinavo, tendo como a mais popular e famosa pintura de sua época a tela “Funeral de um viking” de 1893 do pintor Francis Dicksee, porém esta pintura apresenta os vikings com uma grande carga de estereótipos, onde guerreiros enormes portando elmos com chifres empurram um navio-tumulo incendiado com o corpo de um líder dentro. Mas de todos os artistas que ganharam fama e reconhecimento, o mais importante foi o maestro, compositor e teatrólogo alemão W. Richard Wagner, que compôs uma grande quantidade de musicas e óperas, que ficaram conhecidas em todo o mundo e se tornaram a maior referencia da imagem dos vikings para o mundo moderno. “Foi somente com Richard Wagner que se instaurou a moderna representação dos mitos germânicos e, ao mesmo tempo, fundiram-se representações específicas advindas do mundo celta” (LANGER, 2009). Richard Wagner, juntamente com o pintor T. Pixis, que pintou os cenários de suas óperas, criaram uma atmosfera que ilustra o imaginário viking até o nossos dias com a composição do “Ciclo do Anel”, uma narrativa adaptada de uma das mais famosas sagas lendárias, a Volsungasaga. Escrita no Séc. XIII essa saga conta a trajetória de um herói Sigurðr, o matador de dragão e relata a participação de três mulheres que estão diretamente ligadas à história do herói: Brynhilðr, Guðrun e Grimild. Na narrativa, Brynhilðr (uma das personagens centrais do “Ciclo do Anel” de Wagner) se apresenta como uma guerreira divina que portava 354

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equipamento de guerreiro completo, mas que desobedeceu a uma ordem de Odin e recebeu como punição a proibição de lutar e agora teria de se casar e assumir as atividades domésticas (MALTARO, 2005), entretanto seu passado guerreiro foi que a deixou famosa e esta foi a imagem que ficou. Wagner a imortalizou em suas operas e desde então sempre se recorre a ele quando se busca a imagem de uma guerreira viking. As outras duas estão presentes mais na esfera doméstica, sempre ligadas às tarefas familiares e à magia. Também assumem o papel de incitadoras de conflitos e manipuladoras, utilizando-se dos mais diversos meios para convencer seus maridos e parentes a fazer o que elas quisessem.

Figura 5: Anton Van Rooy como Wotan na ópera de Wagner.

Figura 6: Atriz desconhecida interpretando Brynhilðr na ópera de Wagner.

A recente produção cinematográfica “Como Treinar seu Dragão” (2010) conta a história de Soluço (Hiccup, no original), um garoto viking que sonha em conseguir renome em sua vila, mas para isso ele deve matar um dos vários dragões, arqui-inimigos de seu povo. Ele entra para o grupo de aprendizes guerreiros e encontra vários amigos, incluindo Astrid, uma jovem garota dedicada a aprender as artes vikings de como matar um dragão. Esse filme é um caso interessante no que diz respeito às representações modernas da mulher viking. Apesar de reproduzir muitos estereótipos, a animação, baseada em uma série de nove livros da escritora infantil Cressida Cowell, atingiu uma boa receptividade pelo público e este fator contribuiu para reforçar o imaginário coletivo. O enredo deste filme segue cheio de uma grande mistura de estereótipos, tanto glorificantes como pejorativos, por um lado tratando a sociedade viking como destemidos matadores de dragões, hábeis artesãos e exímios guerreiros e por outro lado representa os vikings como uma sociedade de guerreiras e guerreiros sedentos por batalhas, péssimos em diplomacia e com costumes pouco refinados.

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Figura 7: Stoico, o Imenso. Pai de Soluço, ele encarna o estereótipo do viking oitocentista.

Nesta produção, as mulheres que aparecem em diversas cenas, são sempre representadas por mulheres corpulentas, com armas, elmos chifrudos e armaduras, entretanto o maior foco é dado à Astrid.

Figura 8:Mulheres vikings em campo de batalha trajando armaduras e protetores metálicos nos seios.

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Estando sempre vestida para batalha, Astrid mantém a postura agressiva mesmo quando está em uma conversa amistosa, mudando de postura apenas quando se apaixona por Soluço. Logo vemos uma referência com a Brynhilðr da Volsungasaga, que muda da esfera guerreira para a doméstica ao se casar com Sigurðr. Mas as semelhanças não param por aí: já para o desfecho final do enredo, Soluço se vê sem solução para seu problema, e é quando Astrid, ao conversar com ele, começa a insuflar algumas ideias de modo indireto, instigando Soluço a cometer uma atitude desesperada e ao mesmo tempo heroica, manipulando-o, atitude semelhante ao que fizeram Brynhilðr, Guðrun e Grimild. Outro ponto importante é o lado sensual da personagem, que, apesar de ser uma produção inspirada em livros infantis, se faz muito presente, pois já esta sendo comum para as animações contemporâneas incluir um pouco de atrativo para o público jovem e adulto. Temos como exemplo disso a primeira cena em que Astrid é apresentada ao público, na qual a vila está queimando sobre o ataque de dragões e Astrid aparece caminhando de forma sensual ao lado de outros jovens guerreiros mal encarados enquanto uma bola de fogo explode logo atrás dela.

Figura 9: Astrid como a mulher sensual e belicosa.

Sob este contexto, Astrid representa um grande misto de estereótipos e referências às diversas mulheres guerreiras que se fazem presentes na cultura popular e no imaginário. Ora representando a participação secundária, mas não menos importante, das mulheres incitadoras de conflitos das narrativas escandinavas, ora representando o produto moderno de grande sucesso que é a mulher sensual e belicosa, Astrid se torna uma rica fonte de estudo acerca da imagem da mulher viking, podendo ser usada como uma importante ferramenta na desconstrução de estereótipos. REFERÊNCIAS BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru, SP : EDUSC, 2004 FERRO, Marc. História e Cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 GRAHAM-CAMPBEL, James. Os Vikings. Origens da cultura escandinava. Lisboa, Edições del Prado, 1997 357

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LANGER, Johnni. Guerreiras na Era Viking? Uma análise dos quadrinhos “Irmãs de Escudo” (Série NORTHLANDERS). In: Roda da Fortuna: revista eletrônica de Antiguidade e Medievo 1, 2012 _____. Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2009 _____. Fúria Odínica. A criação da imagem oitocentista sobre os vikings. In: Varia História, Belo Horizonte, nº 25, Jul/01, p. 214-230 _____. O perigo dos estereótipos. In: História Viva, nº 18, Abril, 2005, Duetto. Disponível em: http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/o_perigo_dos_estereotipos.html _____. Metodologia para análise de estereótipos em filmes históricos. In: História Hoje, São Paulo, nº 5, 2004 MALTAURO, Marlon Ângelo. A Representação da Mulher Viking na Volsunga Saga. In: Brathair nº 5, 2005

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O EROTISMO MÍSTICO NA POESIA DE TERESA DE JESUS: ANIQUILAMENTO E ÊXTASE NA BUSCA DO ABSOLUTO Maria Graciele de Lima (UECE) [email protected] Introdução Ler poesia é um trabalho desafiador e instigante. Mais ainda quando se trata de poesia místico-erótica e que se encontra dentro do que se pode chamar de escrita feminina, pois, as sutilezas e inesperados encontros subjetivos desafiam os trabalhos de análise interpretativa. A produção escrita de Teresa de Jesus foi vasta: desde seu diário, até textos sobre as muitas fundações de mosteiros sob sua orientação, cartas, meditações, entre outros tipos de textos. Para este trabalho, no entanto, destacamos sua poesia místico-erótica, evidenciando dois aspectos dentro da experiência de encontro com o Amor Maior e que saltam aos olhos: o aniquilamento e o êxtase. Importa realizar uma leitura da referida obra com o objetivo de compreender de que maneira a poética em questão possui sua identidade intensamente marcada pelas experiências que a autora viveu como monja carmelita descalça, o que imprime ao seu trabalho as marcas da inegável experiência mística. Esta se liga aos caminhos do erotismo, formando dois aspectos que se entrelaçam no mesmo conjunto subjetivo cheio de arrebatamentos, desde seu nascedouro até seu todo poético. Além disso, é válido ressaltar o reconhecimento de que a obra literária é vestida do que habita a alma, não somente de quem produz Literatura, mas, também (e especialmente), de quem a aprecia. Neste sentido, as leituras são inesgotáveis e importantes no que concerne à ideia de que, lendo e analisando, descobre-se cada vez mais do universo explorado. Para tanto, a teoria de Georges Bataille sobre o erotismo sagrado1 oferece apoio à discussão aqui apresentada e guia as reflexões propostas. Sendo de cunho filosófico, o ensaio O erotismo (2004) escrito pelo teórico mencionado traz um conjunto de pareceres sobre o tema em questão construindo/desconstruindo caminhos interpretativos. Mística e erotismo: a busca do insondável e da plenitude Todo ser humano, salvas raras exceções, possui o desejo de transcender. Tal desejo tem buscado sua realização das mais incontáveis maneiras, desde a expressividade física (as danças ritualísticas de algumas tribos indígenas, por exemplo) até a experiência com o inefável por meio da vivência mística, como também não se pode esquecer, por meio da prática artística. Assim, é importante elucidar uma compreensão teórica sobre mística, aqui

¹ No presente trabalho, usa-se a expressão “erotismo místico” por se encontrar ligada à ideia de contato com o mistério sagrado.

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relacionada a uma experiência vivida pelo humano que é pautada no desejo de contato com o inefável, o divino. Desde que tomou consciência das realidades que existem ao seu redor e de que têm um nexo entre eles mesmos, os humanos foram místicos. E o fato de muitos terem perdido o uso da mística quando encontraram algumas explicações racionais não acabou com ela(CORRÊA PEDROSO, s/d, p. 4).

Significa dizer que desejar o além de si é natural no humano. Trata-se de uma espécie de insatisfação mediante o conhecido e uma necessidade irresistível de tocar o desconhecido2. Nesse sentido, mudam-se as épocas e os conceitos, mas esse aspecto da subjetividade humana tende a permanecer como elemento de sua identidade íntima. Segundo Miralles (2011, s.p.), “o termo grego μυστικός, mystik€s, indicava a iniciação a um mistério religioso, na experiência sentida como incomunicável ou inefável”. Esse tipo de vivência tem motivado a construção de uma história religiosa humana repleta de beleza e entrega anímica e que, por essa razão, tem propiciado o aparecimento de obras artísticas de raro valor. Quando se trata de experiência mística, é necessário mencionar que esta não depende necessariamente de uma instituição religiosa. O ser humano tem em sua potencialidade simbólica um aspecto naturalmente capaz de buscar a transcendência. Na Idade Média, por exemplo, grupos de pessoas que não se adequavam às propostas de vida mística da Igreja de Roma e, ao mesmo tempo, não podiam conter seu desejo de transcendência, organizavam comunidades espiritualmente afins, comumente perseguidas pela Inquisição, como foi o caso das Beguinas3 e dos Alumbrados4. Sobre o erotismo, consideramos que a palavra “[...] surgiu no século XIX, a partir do adjetivo erótico, este derivado do grego Eros, deus do desejo sexual no sentido mais amplo.” (MORAE; LAPEIZ, 1983, p. 109). Erotismo refere-se, de maneira ainda mais ampla, a uma energia impulsionadora de experiências subjetivas que, segundo Bataille (2004), pode ser categorizada sob três aspectos: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o erotismo sagrado. (p. 26). A esse “erotismo sagrado”, chamaremos, neste trabalho, de erotismo místico pelo fato de ele se dar por meio da experiência mística. Em O que é erotismo (1983), Lúcia Castello Branco traz à tona o mito da criação de Eros que está contido no diálogo de Platão intitulado O Banquete.

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Neste contexto, ‘o conhecido’ relaciona-se a tudo o que é palpável e físico e ‘o desconhecido’ refere-se ao inefável e inacessível ao plano terreno. 3 “O movimento das Beguinas surgiu por volta de 1170 na região da Bélgica. Eram “mulheres religiosas” que viviam sem uma regra determinada, assumindo apenas um “propósito de vida”. Em geral formavam comunidades, onde se dedicavam à oração, ao trabalho manual e a obras de assistência.” BRUNELLI, Delir. Clara de Assis e o movimento religioso feminino nos séculos XII e XIII. In: Ciclo franciscano, 2002, p. 18. Disponível em . Acesso em: 18 out. 2011. 4 Alumbrados foi o nome dado a um movimento espiritual que possuía forma de vida independente das exigências eclesiais. Nele havia a presença de muitos cristãos novos e sua mística muito se assemelhava à mística do Judaísmo. GÓES, Clara de. Aspectos da espiritualidade feminina em Teresa d’Ávila. In: Ciclo franciscano, 2002, p. 141. Disponível em . Acesso em: 18 out. 2011.

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[...] antes do surgimento de Eros, a humanidade se compunha de três sexos: o masculino, o feminino e o andrógino. Os seres andróginos eram redondos e possuíam quatro mãos, quatro pernas, duas faces, dois genitais, quatro orelhas e uma cabeça. Esses seres, por sua própria natureza, se tornaram muito poderosos e resolveram desafiar os deuses, sendo, por isso, castigados por Zeus, que decidiu cortá-los em duas partes. Assim, eles ficaram fracos e úteis, porque seriam mais numerosos para servirem aos deuses (CASTELLO BRANCO, 1983, p. 66).

Ainda em O que é erotismo, enfatiza-se que esses seres incompletos lançaram-se à procura de suas metades e quando se encontraram, entrelaçaram-se intensamente desejosos de se unirem por toda a eternidade. Desse reencontro, nasceu Eros, o irresistível impulso de busca pela antiga perfeição. Evidentemente o mito agora citado não se distancia de nenhuma forma de vivência erótica, pois toda ela está pautada no desejo de “reencontro”, senão, simplesmente no desejo do “encontro perfeito”. Nesse contexto, pode-se enquadrar a necessidade que o ser humano possui de viver uma experiência mística. Mas, o que é desejado num processo de experiência mística? Este questionamento considera que o ser humano é, em essência, incompleto e, portanto, desejoso da completude. É dentro dessa característica inerente à natureza humana que se percebe o papel do divino como paradoxo do incompleto, isto é, o divino é a extrema completude. Nesse caso, não pode estar preso a um determinado gênero. Deus, no caso do cristianismo, não pode ser homem e nem mulher, mas uma divindade andrógina, completa, perfeita. Se o divino é a essência da completude e é também mistério, desperta assim, o interesse de ser conhecido. E como é capaz de minimizar a incompletude humana, provoca o que se pode chamar de amor, um querer estar junto e dentro, assim como o desejo de também o sentir dentro. É, portanto, essa completude, o que é desejado na experiência mística. No Libro de La vida (1974a, p. 55), Teresa de Jesus expressa essa vivência quando trata de “[...] un sentimiento de la presencia de Dios, que en ninguna manera podía dudar que estaba dentro de mí, u yo toda engolfada en El.”5 O “estar dentro” e o estar “toda engolfada n’Ele” sugere que a experiência de contato com a “presença de Deus” provoca o sentimento de completude porque nesse instante é possível embrenhar-se n’Ele, e portanto, ir além de si. Se for possível estar embrenhada em Deus, a extrema completude, pode-se dizer que há o experimentar de uma parte dessa inteireza pelo fato de existir a fusão, o entrelaçamento próprio da experiência do erotismo místico. É erótico porque é fusão e é místico porque é o tocar e o experimentar o mistério divinal. Quando esse encontro entre a alma e o Divino acontece, surge para a alma o sentimento de bastar-se, “Solo Dios basta” 6 (JESUS, 1974b, p. 514). É a confiança e calmaria após a vivência da euforia do encontro e do entrelaçamento, a plenitude do gozo místico que acontece por “[...] unas vias que solo quien goza de ello lo entiende”7 (1974a, p. 34). Assim

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“[...] um sentimento da presença de Deus, que de nenhuma maneira podia duvidar que estava dentro de mim e eu toda engolfada n’Ele.” [tradução nossa]. 6 “Só Deus basta” [tradução nossa]. 7 “[...] caminhos que somente quem o goza é que o entende.” [tradução nossa].

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sendo, é preciso considerar que a experiência à que chamamos de mística é uma das vias pelas quais o ser humano pode viver o erotismo, essa busca incessante pela transcendência. Entretanto, para compreender essa busca, é necessário levar em consideração que, por ser mística, não é óbvia. Como afirma Bataille (2004, p. 57), “o erotismo e a religião são inacessíveis para nós na medida em que não os situamos resolutamente no plano da experiência interior.” Essa afirmação deixa claro o caráter interior e íntimo da experiência citada, embora não haja necessariamente uma ligação entre vida mística e religião, mesmo que a primeira, na maioria dos casos, esteja relacionada à segunda. Poesia e experiência místico-erótica Para se referir ao perfil de escrita de Teresa de Jesus, é necessário considerar algumas características de sua mística que é norteada pelo amor esponsal apresentado no livro bíblico chamado Cântico dos Cânticos e atualizado na ideia de um matrimônio anímico entre Jesus e as almas que lhe são fieis. De fiel, a alma feminina entregue a Jesus, passa a ser esposa, amando-o e conhecendo os gozos espirituais que lhes são revelados por meio da oração e do conhecimento evangélico do Amado. “A mística nupcial se refere preferentemente ao simbolismo do amor e das bodas. Cristo é o noivo(como em Jo 3, 29) e a alma fiel é a noiva (2Cor 11,2 e Ef 5,25)”8. Assim, a experiência mística teresiana nasce da entrega da almanoiva ao mistério do amor divino, buscado na figura de Jesus Cristo, sendo este, o principal exemplo de vida mergulhada no mistério. Sendo Jesus o noivo divino, seu comportamento torna-se o principal inspirador do que se compreende por mística. Ora, uma das formas mais expressivas de contato com o mistério sagrado é a oração, especialmente aquela em que a pessoa aceita mergulhar no mais íntimo de si para aí encontrar o Amor Maior. Nesse sentido, a conduta de Jesus pode ser considerada o modelo mais expressivo para os cristãos, por razão de sua constante prática da oração. Assim, o Esposo Divino é amado, admirado e seguido pela esposa, alma humana, que é aprendiz imperfeita, mas aspirante da perfeição. Sobre a vida de oração de Jesus, é possível saber que […] there were mystical experiences of Jesus. There was his baptism in the Jordan when the Spirit descended like a dove and the voice of the Father was heard. There was his transfiguration on the mountain […] when his clothes became dazzling white and there appeared to him Moses and Elijah speaking of his departure [...] which he was to accomplish at Jerusalem. There was his prayer at the Last Supper when he gave them his body and blood. There was his dark night of agony in Gethsemane when he sweated blood; and there was his prayer on the cross when he forgave his enemies and with the psalmist cried out: ‘Lama Sabachthani(JOHNSTON,1996, p. 15).9 8

Disponível em: Acesso em: 20 abr. 2011. 9 [...] houve experiências místicas de Jesus. No seu batismo no Jordão quando o Espírito Santo desceu em forma de pomba e a voz do Pai se fez ouvir. Na sua transfiguração na montanha [...] quando suas roupas tornaram-se brancas e brilhantes e apareceram-lhe Moisés e Elias falando-lhe de sua partida que haveria de se cumprir em Jerusalém. Ele orou na Última Ceia quando deu seu corpo e sangue. Orou na sua noite escura de agonia no Getsêmane quando suou sangue; e ele orou na cruz quando perdoou seus inimigos e com o salmista, exclamou: ‘Lama Sabactani’. [Tradução nossa]

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Portanto, a identidade da vida mística tem em seu modus vivendi a prática constante da oração, uma das atividades primordiais à espiritualidade cristã inspirada na conduta do próprio Jesus, que mesmo em momentos profundamente difíceis, buscou o contato oracional com o Divino. Para Teresa de Jesus e para outros mais escritores que viviam (ou vivem) a experiência mística, torna-se impossível não levar para a sua obra literária muito desse conhecimento divino10. Por essa razão, Teresa de Jesus poetisa é a mesma Teresa de Jesus carmelita e viceversa. Mas, é válido dizer que embora sua escrita traga muito de sua pessoa, justamente por ser literária, segue por caminhos impossíveis de ser conhecidos plenamente porque tem em si a liberdade de significar e de motivar outras liberdades de interpretação. Aniquilamento e êxtase na poesia de Teresa de Jesus Teresa de Cepeda e Ahumada é o nome de nascimento de Teresa de Jesus. Por haver nascido na cidade de Ávila, Espanha, ficou conhecida como Teresa d’Ávila. Para os católicos de Roma ela é Santa Teresa d’Ávila, doutora da Igreja. No presente trabalho, referimo-nos a ela como Teresa de Jesus, o nome que ela mesma adotou ao se tornar monja carmelita. O fenômeno chamado de erotismo constitui-se como um universo possuidor de muitas faces e expressões, desde o apelo à vida até o mergulho na ânsia de morte. Suas faces, por se formarem na incompletude, muitas vezes se escondem no que parece não lhe pertencer. Mas, vale dizer que dentro do âmbito do erotismo, os conceitos são elásticos. Assim, morte e vida são aspectos do mesmo fenômeno que é o de se perder na busca da completude absoluta, ou seja, é possível enxergar dentro desse fenômeno a face da vida que somente é quando morre, assim como também é possível tratar da morte que só é quando gera vida: “Do erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte” (BATAILLE, 2004, p. 19). No caso da experiência mística, o fenômeno do erotismo pode ser descrito como aquele que possui duas fases, que não necessariamente acontecem em sequência. A primeira fase (consideremos especialmente aquela a qual se referem os poemas de Teresa de Jesus) diz respeito ao aniquilamento. Entenda-se esse aniquilamento como a entrega do ser ao Nada para que possa ser capaz de encontrar o Tudo. É o esvaziamento da alma amante para que nela habite unicamente o Amado, aquele que comete a violação a fim de habitá-la. É somente na violação – à altura da morte – do isolamento individual que aparece essa imagem do ser amado que tem para o amante o sentido de tudo o que é. Para o amante, o ser amado é a transparência do mundo (BATAILLE, 2004, p. 34).

Entre muitos poemas que trazem a ideia de aniquilamento para a entrega ao Amor Maior, podemos citar Muero porque no muero11: 10

O termo “conhecimento” aqui está empregado no sentido bíblico de “coabitar”, de “ter vida conjugal”, e não no sentido puramente intelectual. Assim como se pode ver em “Como acontecerá isso, pois não conheço homem?” (Lc 1, 34) 11 Morro porque não morro [tradução nossa]

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Vivo sin vivir en mi Y tan alta vida espero Que muero porque no muero. Vivo ya fuera de mí Después que muero de amor, Porque vivo en el Señor Que me quiso para Sí.12 (JESUS, 1974b, p. 502)

No poema acima, a alma reconhece a morte como sendo o fim de algo que nela mesma (a alma) já não satisfaz, pois espera uma “alta vida” e para alcançá-la, morre em si mesma, aniquila-se para viver fora dela, isto é, no seu Senhor. Dessa forma, saborear o Absoluto é entrar em comunhão com o Amado, o Divino esposo. No que concerne à referida comunhão, é possível dizer que aí se encontra a outra fase que pertence à experiência mística: o êxtase. Ao tratar do termo êxtase, não raro, surge a ideia de orgasmo, como uma espécie de fim (objetivo e/ou culminância) de uma experiência no âmbito físico, embora, neste contexto, não se esteja desconsiderando a importante função psicológica da citada experiência. Trata-se do que Bataille (p. 156) cita como “pequena morte”, a ultrapassagem dos últimos limites em busca da continuidade naturalmente perdida, ausente do fazer-se humano, mas é válido afirmar que existem outras vivências de transposição de limites que, mesmo possuindo parte de suas expressões no corpo físico, podem ser consideradas essencialmente psíquicas. Das vivências dessa natureza, este trabalho se refere às que podem ser chamadas de êxtase místico e neste contexto, restringimo-nos a citar a escrita de religiosos católicos da Igreja de Roma, como uma forma de situar a escrita de Teresa de Jesus dentro de outras manifestações da escrita sobre o êxtase espiritual. No que se refere à escrita teresiana sobre êxtase místico, pode-se dizer que quando a carmelita trata da sensação de estar toda “engolfada” em Deus e Deus dentro de sua alma, está tratando de um sentimento de êxtase, pois, naquele instante, o Absoluto lhe preenche as lacunas anímicas e lhe farta do mais precioso que é a sua presença amorosa. Nesse sentido, é possível considerar que o êxtase místico se dá no momento do encontro da alma amante com o Amor Maior que lhe preenche as incompletudes. Sendo uma relação entre humano e divino, carnal e espiritual, é uma relação que supera o natural das coisas terrenas. É, portanto, uma vivência que toca o que se pode chamar de sobrenatural. Assim, para tratar do bastar-se no Amado, escolhemos o poema Nada te turbe13 que se tornou uma espécie de referência da escrita poética teresiana. O texto se desenrola num tom de bênção, aconselhamento e a defesa da totalidade absoluta presente em Deus: Nada te turbe, Nada te espante, Todo se pasa, Dios no se muda, […] Quien a Dios tiene 12

Vivo sem viver em mim/ e tão alta vida espero/ que morro porque não morro./ Vivo já fora de mim/ depois que morro de amor,/ porque vivo no Senhor/ Que me quis para si. [tradução nossa] 13 Nada te perturbe [tradução nossa]

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Nada le falta: Sólo Dios basta. […] ¿Ves la gloria del mundo? Es gloria vana; nada tiene de estable, Todo se pasa. Aspira a lo celeste, que siempre dura; fiel y rico en promesas, Dios no se muda. […] siendo Dios su tesoro, Nada le falta. […] aunque todo lo pierda, SóloDios basta.14 (JESUS, 1974b, p. 514)

Os versos 6, 7 e 8 declaram que o Amado é tudo e basta. Já nos versos seguintes, a alma amante, da qual o eu-lírico se veste, defende que tudo é vão e passageiro, somente Deus é imutável e quem O tem por tesouro, jamais sofrerá faltas, pois, “Sólo Dios basta”. Ao compararmos as leituras dos dois poemas, deparamo-nos com a ideia de que a alma que canta ao seu Amado quer morrer enquanto ser imperfeito a fim de exaltar o que é perfeito e, dessa forma n’Ele viver, tendo-o por tesouro para, assim, completar-se amorosamente, pois sabe que essa aspiração lhe dará o que é verdadeiramente estável, fiel, rico em promessas, enfim, bastante para responder a todas as incompletudes da alma humana. Considerações finais A poesia de Teresa de Jesus é portadora de intensos rasgos místicos e eróticos. Embora produzida, cronologicamente, no chamado Siglo de Oro, carrega muito do arrebatamento espiritual próprio da época anterior conhecida como Idade Média. Apesar de, muitas vezes, a referida época ser considerada uma parte infrutífera na história da humanidade, o período medieval, na verdade, assistiu a um largo percurso de experiências políticas e religiosas que, evidentemente, tiveram continuidade nas épocas posteriores, em cada momento novo, entretanto, vestindo-se das novas necessidades culturais. A partir desse pensamento e do que foi discutido, é possível compreender a existência de aspectos místicos e eróticos na poesia teresiana e como esses aspectos traduzem o processo da busca edo contato com o Absoluto. Nesse sentido, pode-se conceber a Literatura como linguagem carregada de possibilidades interpretativas e capaz de provocar sempre novos olhares, sem que os já existentes, necessariamente, esgotem-se.

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Nada te perturbe,/ nada te espante,/ tudo passa,/Deus não muda,/A paciência tudo alcança;/Quem a Deus tem/Nada lhe falta:/Só Deus basta./[...] Vês a glória do mundo?/ É glória vã;/ Nada tem de estável/ Tudo passa./Aspira ao que é celeste,/ Que sempre dura;/ Fiel e rico em promessas,/ Deus não muda./ [...]Venham-lhe desamparos,/ Cruzes, desgraças;/ Sendo Deus seu tesouro,/ Nada lhe falta./Ide, pois, bens do mundo;/Ide, destinos vãos;/ Mesmo que tudo se perca,/ Só Deus basta.[Tradução nossa]

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É necessário ainda lembrar que o cerne dos aspectos místicos e eróticos da poesia teresiana desenrola-se através do aniquilamento e do êxtase como sendo fases de um mesmo fenômeno, o chamado erotismo místico. Nos poemas Muero porque no muero e Solo Dios basta, o aniquilamento é morte para se chegar à vida e o êxtase é a vida plena porque cheia da completude absoluta. Portanto, estudar poesia místico-erótica é uma atividade inesgotável, afinal, trata-sede perceber e relatar possibilidades metafóricas, voos subjetivos. Nesse sentido, nenhuma análise é completa e, por essa razão, mais possibilidades interpretativas podem e merecem surgir. REFERÊNCIAS BATAILLE, Georges. O erotismo.Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: ARX, 2004. BÍBLIA sagrada. 50. ed..Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. BRUNELLI, Delir. Clara de Assis e o movimento religioso feminino nos séculos XII e XIII. In: Ciclo franciscano, 2002, p. 18. Disponível em . Acesso em: 18 out. 2011. BURNS, Edward Mcnall. História da civilizaçãoocidental: do homem das cavernas às naves espaciais. Tradução de Donaldson M. Garshchagen. 29. ed. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1986. v. 1. CASTELLO BRANCO, Lúcia. O que é erotismo. São Paulo: Círculo do Livro, 1983. (ColeçãoPrimeirosPassos, v. 11). ______. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991.(ColeçãoPrimeirosPassos, v. 251) CORRÊA PEDROSO, José Carlos, Fr.Espiritualidade dos Esponsais: Clara e os Místicos de seu tempo,OFMCap. Disponível em: Acesso em: 13 maio 2011. GÓES, Clara de. Aspectos da espiritualidade feminina em Teresa d’Ávila. In: Ciclo franciscano, 2002, p. 141. Disponível em . Acesso em: 18 out. 2011. JESUS, Santa Teresa de. Libro de la vida. In: OBRAS Completas. 4. ed. Madrid: La Editorial Catolica, 1974a. ______. Poesias. In: OBRAS Completas. 4. ed. Madrid: La editorial catolica, 1974b. JOHNSTON, William. Mystical Theology: the Science of love. 2. ed. London: Harper Collins Publishers, 1996. MIRALLES, Alicia Silvestre. “Místicas: voz, silêncio, liberdade”. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL MULHER E LITERATURA. HOMENAGEADAS: ESCRITORAS NEGRAS, 14., 2011, Brasília. Anais eletrônicos… Brasília: Unb, 2011. Disponívelem:. Acessoem: 11 out. 2011.

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ORDEM DOS CARMELITAS DESCALÇOS. Fundamentos, governo e presença no mundo. Disponível em: Acesso em: 16 out. 2011.

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FACES DO MEDIEVO NO ‘RETÁBULO DE SANTA JOANA CAROLINA’, DE OSMAN LINS Rosana Maria Teles Gomes (IFPE) [email protected] O teocentrismo favoreceu ao homem do Medievo uma visão de mundo aperspectívica. Isso significa que as coisas não eram vistas como pertencentes a um lugar, um indivíduo, um tempo apenas, pensava-se na vida para além do presente. Pensava-se na vida em continuidade. Acreditava-se que o ser humano era parte integrante do cosmos; estava, então, inserido em um contexto de harmonia muito maior do que a capacidade humana poderia alcançar. Um objetivo característico da sociedade medieval era garantir a salvação da alma. Disso decorria uma postura de resignação perante as intempéries da vida material. As orações se multiplicavam, gerando uma energia coletiva, uma ânsia de equilíbrio. A fé em Deus e a certeza de que não se estava só no mundo acarretavam uma maior espiritualidade e faziam nascer uma coragem superior ao desânimo e aos possíveis momentos de revolta. E a arte, como não podia deixar de ser, refletia essa cosmovisão. Todavia, esse modo espiritualizado de olhar a vida foi se perdendo desde o Renascimento, visto que nesse período o teocentrismo foi substituído por uma postura predominantemente antropocêntrica. Em decorrência, as questões do espírito pouco a pouco foram deixando de ter o devido valor, e o homem começou a contemplar o mundo por meio de uma visão mais fragmentada, mais material, mais ligada ao momentâneo. Contudo, alguns artistas têm buscado retomar o valor atribuído ao universo espiritual, numa provável tentativa de renegar a supervalorização do poder, do consumo, do meramente corpóreo, traços tão comuns ao homem contemporâneo. Esse é o caso de Osman Lins. A influência do Medievo é bastante visível na obra desse escritor, a exemplo de Retábulo de Santa Joana Carolina, texto pertencente a Nove, novena. O título da narrativa já permite perceber uma relação com o Catolicismo. Retábulo é uma espécie de quadro religioso colocado no altar de uma igreja. No caso do texto osmaniano, o quadro tem natureza narrativa e traz relatos da vida de Joana Carolina, figura para quem o retábulo é dedicado. O texto foi estruturado em doze mistérios, em analogia aos mistérios medievais, nos quais se exploravam os elementos teatrais da liturgia. Pode-se até afirmar que essas partes da narrativa de Osman Lins constituem pequenos quadros, os quais, juntos, formam o quadro maior que é o retábulo. Cada mistério é narrado por um personagem diferente, o que dá à obra uma visão globalizante, não unilateral, aperspectívica. Assim, o leitor, ou mais precisamente o contemplador, sabe de Joana a partir de uma ótica múltipla. Cada mistério é ornado com um parágrafo inicial que suscita aspectos do cosmos ou da cultura, como se o autor intencionasse retratar a relação entre o homem e o Universo. No primeiro ornamento, o qual inicia não só o primeiro mistério como também toda a narrativa, tem-se uma “pintura” cujo tema são os elementos cósmicos. Nesse parágrafo, é apresentada ao leitor a composição do Universo. A inclusão da distância, do peso e dos números revela uma cosmovisão semelhante à que se tinha na Idade Média. Para o homem medieval, o 368

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número era subjacente ao ritmo cósmico, por isso a matemática era a disciplina que compunha o quadrivium, uma vez que aritmética, geometria, música e astronomia eram consideradas subdivisões da matemática. Após a apresentação dos elementos constitutivos do Universo, narra-se uma cena de nascimento, o de Joana Carolina. Acompanhei, durante muitos anos, Joana Carolina e os seus. Lá estou, negra e moça, sopesando-a (tão leve!), sob o olhar grande de Totônia [...]. Totônia acabará seus dias na pobreza [...]. Para enlutar os filhos, Joana Carolina, já viúva, comprará fazenda negra a crédito. (LINS, 1994: 72-73)

A voz narrativa é da parteira, uma negra amiga da família da criança. Por ela, toma-se conhecimento de alguns dados acerca das condições de vida de Joana: nasceu franzina, pobre, tinha uma mãe revoltada com os homens, um pai omisso e irmãos com um destino já previsto, não haveria brilho. Na fala da negra, bem como na dos outros narradores dessa história, a linha temporal é aperspectívica. As formas verbais “acompanhei”, “estou” e “acabará” testemunham que o tempo da narrativa busca se aproximar da temporalidade cósmica, na qual presente, passado e futuro se fundem. O segundo mistério é ornado com um parágrafo que, de certa forma, mostra aspectos culturais do homem, seu modo de lidar com uma das necessidades primárias, a habitação. Nele, há a visão de que, apesar das paredes, o homem continua ligado ao cosmos e, como parte integrante, a ele retorna, dele regressa. O nascimento, o amadurecimento não cortam, não devem cortar essa espécie de cordão. Observa-se também a condição de vida retratada, a pobreza de uma casa cuja mobília é mesa, cama e fogão, apenas os utensílios essenciais. Nada além. Considerando-se esse ornato uma sequência do primeiro, percebe-se que existe um vínculo semântico entre eles. No anterior, foi exibida uma pintura do cosmos, a que sucedia uma cena de nascimento, da vida acontecendo; neste, a temática foi o desenvolvimento humano. O homem em busca de proteção, de adequação às condições, ao passo que se mostra capaz de fazer ressurgirem cidades, por meio de seu nome. A importância da palavra começa a ser delineada. Neste mistério, o foco narrativo está centrado no tesoureiro da igreja. É ele quem traz detalhes da infância de Joana, do seu vínculo com a igreja, do seu espírito solidário, da sua natureza sublime. Com ele, inclusive, descobre-se em Joana uma certa tendência à reclusão, uma forma de existir e ser diferente dos outros que encontravam no material satisfações, prazeres. A sua satisfação estava em duas coisas que não exigiam gastos: acompanhar enterros de crianças e brincar com os escorpiões que encontrou no quintal. Como se vê, a menina Joana lidava desde cedo com a penúria, inclusive nas alternativas de divertimento. A espontaneidade no trato com escorpiões evoca uma ideia de evolução espiritual, visto que aquilo que às outras pessoas parece assustador, a ela parece simples, natural. A alusão ao escorpião pode simbolizar uma vida de sacrifícios; no caso de Joana, enfrentada com firmeza e equilíbrio. O ornato que anuncia o terceiro mistério retrata outra necessidade humana: a comunicação. A temática é de encontro, diálogo com os iguais e com Deus. A dupla aparição 369

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do vocábulo “perguntas” em relação a apenas uma de “respostas” deixa nítido o limite humano em questionar mais do que compreender. A enumeração de palavras relacionadas à Igreja – “templo”, “rezas”, “sermões”, “procissões”, “sinos” – denuncia uma aura de religiosidade que envolve o lugarejo onde Joana passa sua vida. O mistério é apresentado sob a ótica de Jerônimo José, marido de Joana. É ele quem relata o primeiro encontro entre os dois, ou talvez, quando e como ele a encontrou. Ela estava doente, com trajes brancos, como habitualmente convém a um anjo. Para protegê-la, cobriram seu corpo com uma toalha de crochê decorada de centauros. Seriam eles uma indicação de que a doença representava a natureza humana em Joana, a sua porção de pecado? O fato é que ela ficou quase cega, sem forças, e em busca da cura, a mãe fez até promessa de andar pelas ruas, em procissão e com velas. O milagre aconteceu. Foi nesse contexto que Jerônimo viu a pessoa por quem se encantou. Na realidade, Joana seria uma vítima desse homem, como ele mesmo afirma. Vítima da fraqueza que lhe era própria, da sua “falta de vida”, da pouca proteção. No caso do quarto mistério, a ornamentação retrata o vento e toda a sua força, o seu vínculo com os oceanos, com as folhagens, com os animais voantes, com bichos de grande porte. Sugere que o vento, por um lado, faz parte do ritmo cósmico, quando se presentifica nas folhagens, nas artérias, no caminho para o voo e envolve a Terra. Por outro, está associado à instabilidade da vida. Ele também é cólera de redemunhos, de tornados e pastor de dinossauros. Por esse prisma, ele pode ser a manifestação da quebra de rotina, de mudança, de imprevisibilidade. Ele pode, então, sinalizar o tormento, tanto que o quarto mistério, narrado por Álvaro, filho de Joana, mostra uma vida de privações e perdas. Perda de dinheiro, de sons, de saúde, de vida, de Maria do Carmo, única filha de Joana até então. Neste mistério, a tristeza é atemporal, porque ela está simultaneamente no passado, no presente e no futuro. Está, por exemplo, nos meninos, ao sentirem o odor dos próprios corpos cobertos de úlcera. Em semelhança ao ornamento do quarto mistério, o do quinto trata de um elemento da natureza, a água, e seu poder também é abordado em duas vertentes: a calmaria e a cólera. A água é apresentada como símbolo de vida, de origem, ao mesmo tempo em que é colocada como anunciadora ou provocadora de calamidades. É exposta em sua ambivalência: doce e salgada, alto – chuva – e baixo – mar; fecunda, mas, na mesma proporção, engolidora. À simbologia da água funde-se a do peixe, representação do espírito, pois Cristo andou sobre as águas; mas também do impuro, já que ele pode viver nas águas subterrâneas. Na narrativa em questão, eles − água e peixe − ora manifestam a fertilidade, ora a absorção. No relato feito por dona Totônia, a revolta, a amargura e uma certa falta de esperança são visíveis. O seu marido não fora um homem presente, na realidade, destacava-se apenas como varão. Nisso era bom, tanto que ela não resistia, mesmo sabendo que poderia ter mais um filho, mais uma marca desse homem com perfil de visitante noturno, não de companheiro ou de pai. [...] parecia andar no mundo só para aprender artes noturnas [...], de modo que eu cedia sempre à sua ordem, me abria igual ao mar Vermelho diante de Moisés – sabendo que em nove meses teria mais um filho com boca e intestinos, e nenhum níquel a mais – e ele me atravessava com as suas hostes

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de fogo e de alegria, desfraldadas nos mastros as bandeiras mais vivas. (LINS, 1994:81)

A referência a Moisés e ao Mar Vermelho estabelece uma relação de intertextualidade com as Sagradas Escrituras. Em Êxodo, 14:15-21, livro bíblico, consta “E tu [...] estende a mão sobre o mar e divide-o, para que os filhos de Israel passem pelo meio do mar em seco. [...] Então, Moisés estendeu a mão sobre o mar, e o Senhor [...] fez retirar-se o mar, que se tornou terra seca, e as águas foram divididas”. Assim como o mar abriu-se para a passagem de Moisés e do povo de Israel, dona Totônia se abria para que seu marido passasse, com fogo e alegria, e deixasse aberto o caminho para os filhos deles dois. O sexto mistério tem um ornato montado numa estrutura dialógica, que discute as ações do homem e a relação deste com os que, numa escala de valores, são considerados inferiores − os outros animais. Neste ornato, a discussão apontada permite perceber uma influência do Medievo. No fato de que os animais aparecem em locais invertidos, possivelmente há um intertexto com os adynata, de Carmina Burana (SCHUMANN, nº 37, apud CURTIUS, 1996:142), em que a inversão da ordem natural exemplifica o “mundo às avessas”: “o gado fala; o boi é atrelado atrás do carro; o capitel e a base da coluna estão trocados; um insensato ignorante se faz prior” (CURTIUS, 1996:142). Os adynata serviam para se fazer censura ou lamentar os costumes da época. No texto osmaniano, a inversão denuncia o fato de o homem, em necessidade, tornar-se capaz de tudo para suprir suas carências. Este mistério comprova que o homem é passível de inverter ou deturpar valores, basta que se toque nos seus anseios, nos seus brios, na sua precisão. O narrador é um senhor de engenho que desejou Joana, e para realizar seu objetivo feriu a ética, o bom senso. Ele, inclusive, se descreve semelhante ao Diabo, com o aspecto físico de despertar repulsa. Outro sinal de relação com o imaginário medieval, no qual Satanás era de aparência horrenda, suja, muitas vezes retratado com chifres, além de estar associado à lascívia. É como esse senhor de engenho se vê. O seu perfil é de um homem luxurioso, que deita com qualquer mulher, tem vinte e dois filhos, quase todos de mães diferentes. Ele foi responsável por muitas das desgraças enfrentadas por Joana. Mais de sete anos passou aqui em Serra Grande. Quando se foi, tinha envelhecido vinte[...].Vinha, de dentro dela, uma serenidade como a que descobrimos nas imagens de santo, as mais grosseiras. Um som de eternidade. [...]Nunca me pediu um grão de milho, uma folha de capim. Como podia viver? Multiplicava os pães, os peixes? Absurda mulher. (LINS, 1994:86)

Mais um intertexto com a Bíblia. Uma referência ao episódio em que Jesus multiplica os pães e os peixes e consegue matar a fome de quase cinco mil homens. Joana conseguia, dentro das parcas condições e com muito sacrifício, evitar que seus cinco filhos morressem de fome. Enquanto ela − por firmeza, trabalho e fé − multiplicava o pão, o patrão − por desejo − multiplicava os filhos. Ele procurava nas outras mulheres o que elas jamais poderiam ser: Joana Carolina. E como ela ignorou todos os seus cortejos, ele, à maneira do mundo às avessas, colocou-a para morar na estrebaria. 371

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Sétimo mistério. A temática é o tecer. Uma vestimenta? O texto? O ornamento, centralizado no vocábulo “lã”, suscita leituras. A disposição das palavras na frase e das frases no texto expressa um trabalho de tecelão. Parece coerente o ornato se referir à tecedura do texto, posto que o trabalho do escritor é comparado ao de um tecelão. Ao passo que este entrelaça os fios, aquele entrelaça as palavras, para compor o tecido verbal. Com ela – a palavra – o escritor ata, une, ordena, cria, ilumina, ressuscita. À maneira dos fios que, dispersos, trazem a marca do informe e, unidos, ganham o brilho da urdidura, a palavra, lã essencial, enredada, oferece a vida ao vácuo. Na analogia escritor/geômetra, evidencia-se um pensamento contíguo ao dos estudiosos medievais, os quais destacavam na geometria a necessidade de rigor e harmonia, elementos imprescindíveis ao trabalho com a forma. Este mistério é narrado por Laura, filha de Joana. O relato foca tanto o sofrimento da mãe quanto o seu desvelo no trato com os filhos. O período do qual fala a narrativa de Laura fora entremeado por provações, e a principal delas era a luta diária contra a morte. Como comiam pouco, era comum que os filhos, mais frágeis, adoecessem. Joana não tinha com quem contar. Cuidava dos filhos sozinha, com remédios caseiros, em condições limitadas, cansada, mas a atenção e a determinação eram tão intensas que ela conseguia se pôr em pé e continuar a sua missão. Viviam com tudo pela metade: “meia laranja, meio pão[...], um sapato no pé e outro guardado. Só calçávamos os dois quando ela nos levava à cidade, para receber seu ordenado, três léguas para ir e três para voltar” (LINS, 1994:89). Essa era outra provação para Joana, ir todos os meses ao centro da cidade, andar seis léguas, considerando-se ida e volta. Ela corria riscos, expunha-se ao sol e à chuva, preocupava-se com os filhos que ficavam em casa. Além de tudo isso, ela ainda enfrentou a morte de outra filha, também chamada Maria do Carmo. [...] Maria do Carmo [...] morrera daquela doença cujo nome não soubemos. Nela é que mamãe está aplicando o clister, com a bexiga de boi na extremidade do canudo de carrapateira. [...] Sou eu a de tranças. Nô, Álvaro e Téo não aparecem. Mas estavam aí amontoados conosco nessa peça, todos queimando de febre. Tínhamos sido obrigados a deixar a casa onde morávamos, ir para essa na mata: aí se isolavam os bexiguentos. Não tínhamos bexigas. Mas estávamos de cama, todos, com doença forte e que podia alastrar-se. (LINS, 1994:92)

O Medievo se presentifica nesse excerto transcrito. O isolamento dos bexiguentos, a consequente solidão na doença, o medo da contaminação remetem ao contexto em que a peste negra foi vivenciada. Foram milhares de mortos e a rapidez com que a doença se propagava levou muitos a praticamente se encarcerarem, por receio de contraírem a doença. Contudo, como consta em Georges Duby (1999:89), “pessoas apresentavam-se como voluntárias para enterrar os mortos, tratar dos doentes. Sabiam muito bem que arriscavam sua vida, mas o faziam. Os laços de solidariedade estreitaram-se diante da calamidade”. Não foi esse o caso de Joana; era só que ela cuidava dos filhos, da casa, da vida, até da morte. Nunca, porém, perdera a firmeza e, ao contrário de muitos, não alardeava a sua realidade, por vezes, de miséria. A marca do medieval também está na materialização que Laura faz do retábulo, como se ela estivesse diante dele; apontando para ele. O trecho “Sou eu a de tranças. Nô, Álvaro e 372

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Téo não aparecem. Mas estavam aí amontoados conosco nessa peça [...]” (LINS, 1994:92) sugere que o retábulo está exposto, no altar, para contemplação dos cidadãos do estado, do país, do mundo. Talvez o ornamento que antecede este mistério retrate o retábulo sendo tecido. Os fios podem corresponder aos anos vividos por Joana, os quais, unidos, atados por um artesão com rigor e técnica digna de um geômetra, constituem esse grande quadro que é o Retábulo de Santa Joana Carolina. Os substantivos enumerados que compõem o ornato do oitavo mistério retratam o ambiente de um engenho de açúcar, sem deixar de mencionar a hierarquia senhor/servo. Apesar de os verbos não serem empregados nessa enumeração, os substantivos reunidos dão ao ornato uma ideia de ação, comuns ao dia a dia em um engenho, onde a produção é constante. Os “utensílios” do trabalho, nos quais se incluem as pessoas, estão permanentemente em cena, daí a possibilidade de omissão de formas verbais. Quando se mostra o açúcar, por exemplo, já se tem o produto da ação, do mesmo modo que, quando se fala em senhor, já se pressupõe o subordinado a servir. Este mistério, narrado por uma negra, põe em cena o abuso de poder de quem muito tem diante daqueles cuja vida foi sempre servir. Dona Totônia morrera na casa de Joana, seu único arrimo. Com ela findava também a alegria dos netos. Só quando a avó os visitava eles tinham algumas mordomias: bolo, doces, o que festejar. O nono mistério traz um ornato em que a palavra é mais que o eixo temático, é vista, é sentida, é trabalhada. Cultuada. Esse culto à palavra teve um início sutil no ornato do segundo mistério. No do sétimo, o elemento cultuado foi – plasticamente – sendo tecido diante de seus adoradores. Nesse nono mistério, a palavra irrompe com uma força extraordinária, divina, e se impõe como o Verbum. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. [...] A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram sobre ela” (JOÃO, 1:1-5). Assim como Deus enviou Seu Filho à Terra e permitiu que Ele se fizesse Verbo e habitasse entre os homens, faz o artista com o ornato que anuncia o nono mistério, entrega a Palavra, para que ela, com sua luz, ilumine as trevas do caos. Nessa visão acerca da palavra, vislumbra-se mais um indício da influência do Medievo. Os homens da Idade Média viam-na como a encarnação de Deus; ela era o oposto do profano, portanto. Além disso, só por meio dela tornou-se possível a existência do livro, para eles, também sagrado, pois a Bíblia era o modelo de escrita que eles guardavam. A disposição das palavras nesse ornato e a variação de tamanho da letra empregada também trazem características do Medievalismo. A exploração do elemento visual era muito intensa; os pergaminhos e as iluminuras exigiam habilidade e rigor. Muitos textos eram escritos em colunas, com letras ornadas, como se fossem, de fato, desenhadas. A primeira coluna do ornato que apresenta o nono mistério é composta por letras que aparentemente estão soltas. Contudo, um olhar atento percebe que elas formam palavras e que todas têm vínculo semântico com a temática abordada no texto da segunda coluna. Na ordem em que foram dispostas, aparecem: palavra – capitular – palimpsesto – caligrafia – hieróglifo – pluma – códice – livro – pergaminho – alfabeto – papel – pedra-estilete – iluminura – escrita. Todos esses vocábulos estão relacionados ao uso da palavra, seja indicando um 373

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utensílio o qual permite que ela tome forma no espaço vazio, seja indicando a própria criação. Alguns desses vocábulos, inclusive, eram comuns ao contexto medieval. Neste mistério, a narrativa é feita a duas vozes, ora a de Cristina, ora a de Miguel, ora a dos dois em uníssono. Eles contam a perseguição de que foram vítimas. Fugiram de casa porque o pai dela, o Senhor Antônio Dias, era homem de posses e não queria que a filha casasse com alguém que não estivesse no nível da família. Como os dois se amavam muito, deixaram para trás fortuna, proibições, materialismo, medo; levaram apenas o amor, o único bem do casal. Sabendo da fuga, o pai da moça colocou para encontrar os amantes capangas que nunca tinham perdido uma rês. É em uma igreja vazia, de uma cidade abandonada, que o casal se entrega ao amor e, diante do altar, oficializa o casamento, feito por eles e testemunhado por Deus. É notável a presença forte do Catolicismo nessa cena; presença, aliás, que perpassa todo o Retábulo. Os amantes saem da igreja, ninho de um amor puro e intenso, e vão, sem rumo, apenas indo. Na ânsia de fuga da morte para ele e do castigo para ela, os dois acabam chegando à casa de Joana, a que lhes dá abrigo, proteção, confiança. Não demora mais que uma noite para os capangas descobrirem os fugitivos. Mas Joana, com sua firmeza e precisão no uso da palavra, consegue dos “caçadores” a promessa de entregar o casal ao pai da moça, desde que a vida seja garantida. Nesse contexto, as palavras proferidas, chamando atenção para os bens do espírito, tocam tanto o pai de Cristina que ele faz uma carta na qual pede Joana em casamento, pois desde que ficara viúvo, ninguém tinha falado a ele do alto e com justiça. Mas ela não pôde aceitar o pedido, não poderia jamais. Consagrou-se ao marido, já morto há anos, no entanto bem vivo no coração da esposa. A consagração foi para toda a vida. “[...] muito me honra a sua proposta, amável e generosa. Ela significa, se eu a aceitasse, amparo e estabilidade pelo resto dos meus dias. Mas, então, o que seria de minha alma?” (LINS, 1994:105). O mistério seguinte, o décimo, tem um ornamento que destaca o planeta, o homem e questões culturais. As alterações no planeta, os terremotos, os vulcões podem sinalizar grandes mudanças na vida humana. Por outro lado, também suscitam as marcas da passagem do homem pela Terra. Uma fusão entre os processos de transformação do planeta e as civilizações. Este mistério é contado por várias vozes. São, provavelmente, mulheres que moram nas proximidades da casa de Joana, pessoas da comunidade. Um traço cultural é notável, as conversas sobre a vida alheia, com suposições muitas vezes contadas como verdades incontestáveis. Ou ainda, o comentário acerca de algo que não se sabe exatamente como foi, onde, quando, nem com quem. De certo, sabe-se que Joana, mesmo sem prever, salvara a vida de um garoto. Era um menino com deficiência física e que dormia em um banco próximo a uma porta na qual ele batia durante o sono. O vizinho, incomodado, parece ter falado em matar o menino. Mas Joana, tomando conhecimento de que o menino dormia em um banco alto, com risco de cair e se machucar, decidiu cortar os pés da cama improvisada. Foi com esse gesto que impediu que o garoto fosse vítima de uma bala saída da arma desse homem que diziam já ter matado muitos. O gesto foi associado a um milagre. A essa altura, Joana já estava velha, e a velhice vinha lhe tirando a saúde, a mobilidade, os dentes, a memória, o sono. Joana estava chegando ao fim do ciclo. 374

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O décimo primeiro mistério é ornado com um parágrafo em estrutura de adivinhação, como se intencionasse sugerir uma premunição. O elemento fogo é o objeto temático deste ornato. Ele devora tudo, vive a consumir outrem. No entanto, ele também é símbolo uraniano da purificação, da iluminação, por isso ele também evoca a ideia de vida. No contexto da narrativa osmaniana, o fogo manifesta a ascensão espiritual de Joana, a sua purificação, relatada pelo padre da comunidade. A vida de Joana foi uma chama, no sentido de que ela agia com pureza d’alma, mas firme, sempre a iluminar os que estavam a seu redor. Por vezes, foi a vida quando o contexto era de morte, a esperança e a obstinação, quando tudo levava ao desespero. Diante do padre, Joana deseja se confessar. O quê? Disse o padre que quem muito fala, muito erra, e ela quase não falava. Durante os seus oitenta e seis anos, agiu, ouviu, viveu, em parcas condições. Chegara a sua hora, o vento estava fortalecendo o fogo que era a luz de Joana na hora da partida. Os cavalos já estavam a galope, para conduzir o carro apolíneo no qual ela seria conduzida à vida espiritual. Joana partira sem o peso da morte, com a leveza do espírito. “Populus, qui ambulabat in tenebris, vidit lucem magnam” (Ibid: 112-113). Mistério final. Não há parágrafo para ornamentá-lo, a “lucem magnam” já abrilhanta este mistério. A voz narrativa é múltipla, coletiva. Um coro fecha os mistérios e a passagem de Joana pela Terra. Este mistério deixa claro um tom de revolta. Sem dúvida, há muito o que denunciar, a omissão dos poderosos, a opressão, as condições subumanas em que muitas pessoas vivem. A fome, o trabalho escravo, o egoísmo, a miséria que parece genética. A seca até de lágrimas. A fartura de dor. Terá sido este, então, o objetivo do tecelão desse Retábulo, suscitar a indignação diante da violência que massacra, que mata os menos favorecidos? Para Joana, “quantas vezes o mundo [...] foi estéril e cegante, uma cidade de sal [...]? Quantas vezes [...] viver mais um ano, um dia, um instante, foi como avançar sobre as afiadas lâminas de faca?” (Ibid: 115). O círculo de Joana se fecha. Ela vai acompanhada com o silêncio tão característico seu, o silêncio dos sem voz social. A ela é oferecido um buquê que serve de ornato ao fim deste mistério. O ramalhete, à maneira de todo o Retábulo, é “tecido” com palavras, que dão às flores a estabilidade, para sempre estarem com Joana. O Retábulo de Santa Joana Carolina é “urdido com fios medievais”. Todo o texto se assemelha a uma hagiografia. A santa, inclusive, não tem voz narrativa. Todas as suas falas são reproduzidas pelos diversos narradores. São eles que em micro-histórias, com começo e fim, independentes umas das outras, exibem a sublimação de Joana, um anjo que veio à Terra para cumprir uma missão. Ao mesmo tempo, essa estruturação do texto confere um olhar aperspectívico para ela, e através dela, para o mundo do qual ela fazia parte. As cenas retratadas revelam pobreza, penúria e, em se tratando de Joana, a solidariedade como um traço comum. Um quadro bem semelhante ao que a sociedade medieval enfrentava. Ao senhor de engenho, corresponde o senhor feudal. O trabalho na terra era praticamente o mesmo, com charrua, carro de boi, empregado, sol. Em contrapartida, a fé, a reza, a Igreja, a proteção de Deus, a lei de “agir sempre como se o impossível não fosse” (Ibid: 97). Aos doze mistérios protagonizados por Joana Carolina, em uma quase paixão, podem ser comparados os Passos de Cristo. O numeral doze tem uma vasta simbologia para os cristãos. Doze são os apóstolos; doze são os filhos de Israel; doze estrelas na cabeça tem a 375

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mulher que sente as doze dores de parto, no Apocalipse (12:1-2); doze também é o numeral da Jerusalém celeste: “Tinha grande e alta muralha, doze portas, e, junto às portas, doze anjos, e, sobre elas, nomes inscritos, que são os nomes das doze tribos dos filhos de Israel” (21:12). Doze é o número do Zodíaco, “roda da vida”, segundo ressalta Durand (2001:324). Conforme convém a uma santa, Joana não morre, ela cumpre o seu ciclo, seus doze mistérios, em contiguidade ao fechamento do círculo anual. Por esse prisma, é possível afirmar que ela volta ao seu estado primeiro, luz, anjo. Em sendo luz, é a representação divina na Terra. Por fim, não seria arriscado afirmar que Retábulo de Santa Joana Carolina é o texto de Nove, novena que encerra com mais precisão os objetivos de Osman Lins: “caminhar para a conquista de uma visão singular e intensa do Universo” e “criar uma obra que, na sua totalidade, transmita essa visão e seja, ao mesmo tempo, a história nova da sua conquista” (LINS, 1979:132). REFERÊNCIAS Bíblia de Estudo Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. Bíblia Sagrada. Trad. dos Monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico. São Paulo: Parma, 1971. CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Europeia e Idade Média Latina. São Paulo: Hucitec Edusp, 1996. DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: UNESP, 1999. DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário: introdução à arquetipologia geral. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. LINS, Osman. Nove, novena: narrativas. 4ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ______. Evangelho na Taba. Outros Problemas Inculturais Brasileiros. São Paulo: Summus, 1979.

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INTRODUÇÃO À TEORIA DOS VÍCIOS EM TOMÁS DE AQUINO Sebastiana Inácio da Silva (UEPB/Principium/CNPq) [email protected] Maria Simone Marinho Nogueira (UEPB/Principium/CNPq) [email protected] INTRODUÇÃO Partindo das leituras introdutórias para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), surgiu a ideia de se trabalhar a questão dos vícios em Tomás de Aquino. No início surgiram muitos questionamentos no que se refere ao tema, visto que o maior número de trabalhos encontrados sobre a Suma Teológica aborda a questão das virtudes. Desta forma, o tema sobre os vícios se torna importante, dentre outras coisas, pelo fato de ser pouco discutido e, por isso, o número de produções sobre tal assunto é escasso. Os vícios capitais é um assunto que faz parte também da ética e, portanto, é relevante ser investigado. Nesse trabalho foram elencados e descritos de forma breve os sete vícios capitais elencados por Tomás de Aquino no De Malo e na Suma Teológica. O artigo está dividido em duas partes: a primeira, 1. OS VÍCIOS CAPITAIS: breve incursão e a segunda, 2. OS SETE PECADOS CAPITAIS E SUA DESCRIÇÃO. A primeira parte faz uma introdução acerca dos vícios, sua importância e o que significa vício capital e qual a origem do termo; a segunda parte apresenta a descrição dos vícios e do comportamento do sujeito viciado ou pecaminoso, além de mostrar como cada vício gera outros à medida em que o homem vai dando vazão as concupiscências. Como foi enfatizado, ainda estamos em fase de pesquisa acerca do tema, o que impede de chegar a algumas conclusões. Para a concretização desse trabalho, utilizamos a pesquisa bibliográfica. É importante ressaltar que temos por objetivos específicos refletir sobre os vícios capitais e sobre o que deles derivam e descrever de forma breve cada um deles. 1. OS VÍCIOS CAPITAIS: BREVE INCURSÃO Aqui falaremos acerca dos vícios capitais de forma mais descritiva, a partir da compreensão tomista, abordada no De Malo. Na enumeração de Tomás, os vícios capitais são: vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Hoje em lugar da vaidade, a Igreja coloca a soberba e em lugar da acídia, a preguiça. Os vícios capitais segundo Tomás de Aquino “recebem esse nome por derivar-se de caput: cabeça, líder, chefe (em italiano ainda hoje há a derivação: capo, capo-máfia); sete poderosos chefões que comandam outros vícios subordinados”. (LAUAND, 2004, p. 67). Os vícios capitais indicam a sua posição, em relação ao comando dos vícios que decorrerão deles, dependendo do tipo de vício que seja cometido e a que fim se quer chegar.

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Além de ser o princípio, é o que tem a direção de todo animal, conforme cita na Suma Teológica: […] Metaforicamente, todo princípio chama-se cabeça, e também os homens que dirigem os outros e os governam são ditos a cabeça dos outros. Portanto, chama-se vício capital, de um modo enquanto deriva de cabeça em sentido próprio; assim chama-se pecado capital o que pune a pena capital […] Se diz vício capital aquele que dá origem a outros vícios, principalmente enquanto causa final, que é a origem formal, como já foi dito. Assim o vício capital não é somente o princípio de outros vícios, mas ainda os dirige e de certo modo os guia. (ST, I – II, q. 84, a.3, rep.)1.

O vício capital, segundo Tomás, deriva de “cabeça,” do latim capite e tem três significados distintos: cabeça como parte do corpo dos animais, cabeça como qualquer princípio e, por último, cabeça no sentido de governante ou chefe do povo. Para ilustrar essas ideias ele cita alguns versículos das Escrituras em que aparece cada um desses significados para a palavra cabeça. Quando Tomás aplica o termo capite, seja em qualquer dos três sentidos, ele está querendo chegar à questão de um pecado poder derivar-se de outro de quatro modos: pela supressão da graça, por modo de inclinação, propiciando-lhe matéria para outro pecado e quanto à finalidade. O primeiro modo de um pecado derivar-se de outro é através da supressão da graça. Vejamos o que diz Aquino: “a graça mantém o homem afastado do pecado, como se lê em I Jo 3,9. Todo aquele que é nascido de Deus não peca porque a semente de Deus permanece nele [...]” (DM, 2004, p. 79). O pecado que suprime a graça é causado pelos pecados que se seguem. Contudo, qualquer pecado pode culminar na causa de outro pecado e assim por diante. O segundo modo do pecado derivar-se de outro é a inclinação, ou seja, um pecado causa um hábito ou uma disposição para pecar, cada pecado causa sempre outro semelhante quanto a sua espécie. O terceiro modo é a causa de propiciar matéria para outro pecado através da derivação, como o caso da gula que gera matéria para a luxúria e a avareza que culmina com a discórdia. O quarto e último modo é um pecado causar outro quanto à finalidade. Se dá quando um homem para obter o fim de um pecado acaba cometendo outro pecado. Tomás cita o exemplo da avareza que causa a fraude, que é o desejo desmedido de ganhar dinheiro. Por isso, quando um pecado causa outro, tendo os seus subordinados, é denominado de capite (cabeça). Um pecado pode dirigir-se a outro pecado de dois modos: por parte do sujeito que peca, estando sua vontade mais voltada ao fim de um pecado do que a outro; e o modo que decorre das próprias características dos fins, isto é, são tão articulados que se dirigem a um mesmo fim, como o caso do engano que é proveniente da fraude e dirige-se a acumular riquezas que é a finalidade da avareza.

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A partir daqui citaremos a Suma Teológica utilizando as letras ST para identificar melhor, visto que utilizaremos, também, citações do De Malo. Quando a referência for da Suma Teológica incluiremos ST e quando for do De malo, DM. As citações do De malo são retiradas da tradução de LAUAND, 2004, as da Suma teológica são da seleção de textos de Os pensadores, 2004.

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2. OS SETE PECADOS CAPITAIS E A SUA DESCRIÇÃO Nesse tópico aborda-se os vícios capitais a partir da obra de Tomás de Aquino denominada De Malo, que segundo Lauand: Parecem ser questões disputadas em Roma durante o ano letivo 1266-7 ou, segundo outros críticos contemporâneos, em Paris, no ano letivo de 1269-70. Boa parte desse tratado é dedicada aos pecados capitais e se articula com a discussão dos mesmos na segunda parte da Summa Theológica (escrito não entes do De Malo). (LAUAND, 2004, p. 71)

Dessa forma, cita-se nesse texto, trechos da Suma Teológica e do De Malo, para que seja compreendida a questão dos vícios capitais nas duas obras. Tomás de Aquino inicia o artigo sobre a descrição dos vícios capitais discorrendo acerca da soberba (superbia). Para ele, a soberba tem três significados: o apetite desordenado, um certo desprezo atual de Deus e um certo desprezo da natureza corrompida a esse desprezo, que é o início de todo pecado. Embora sejam verdadeiros, esses significados não são “segundo a intenção do sábio, que disse: 'o começo de todo pecado é a soberba'. […] eis porque se deve dizer que a soberba […] é o começo de todo pecado. (ST, I – II, q. 84, rep.). É possível observar que a soberba, na visão tomista, é um vício que atenta contra a excelência divina, portanto, tido como o princípio de todo pecado. A soberba é também uma não submissão do homem a Deus e, sem essa submissão, o homem quer sua própria excelência nas coisas desse mundo. No que se refere à vaidade, Tomás inicia dizendo que para discutir sobre essa questão é necessário conhecer o significado de glória e em seguida a vaidade, que ele chama de vanglória “glória vã” (DM, 2004, p. 82) e só a partir disso verificar se a vaidade é pecado. A glória pode ser considerada de três formas: 1. no bem de alguém que se manifesta às multidões, 2. o bem de alguém que se manifesta a poucos ou a um só e 3. no bem de alguém considerado por ele próprio. Já a vaidade (vanglória), a palavra vão admite três significados: vão é aquilo que não tem subsistência (às coisas falsas chamamos vãs), é aquilo que carece de solidez e consistência, vão é algo que não é capaz de realizar o fim devido. Baseado nesses significados, Tomás vai falar da vaidade a partir de três sentidos: quando alguém se gloria falso (de um bem que não tem), quando alguém se gloria de um bem que passa facilmente e quando a glória não se dirige ao devido fim. Finalmente, ele responde que a vaidade em qualquer uma das suas formas é pecado. Após afirmar a natureza pecaminosa da vaidade, ele passa a enumerar as filhas da vaidade. São filhas da vaidade: desobediência, jactância, hipocrisia, contenda, pertinácia, discórdia e presunção de novidades. A lista de filhas da vaidade reforça de forma clara a afirmação de que um vício é cabeça e mãe de outro vício. As filhas da vaidade são os vícios pelos quais o homem tenta manifestar a sua própria excelência. Essa manifestação pode se dar de maneira direta ou indireta, de forma direta temse como exemplo a jactância, a presunção de novidades e a hipocrisia; e de forma indireta se dá de quatro formas: 1º - através da inteligência e pertinácia, 2º - da novidade e da discórdia, 3º – contemplada e 4º - a desobediência. 379

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A inveja para Tomás é pecado mortal, suas filhas são: murmuração, detração (difamação), ódio, exultação pela adversidade, aflição pela prosperidade. Movido pela inveja, o homem tende a fazer coisas contra a ordem moral para atingir de forma danosa ao próximo. Portanto, a inveja é vício capital e nesse impulso ela proporciona princípio e termo final. O princípio é o desejo de impedir a glória do outro, essa glória entristece o invejoso que começa a depreciar o bem do outro falando mal de forma disfarçada. O intuito principal do invejoso é o ódio pela superioridade do outro e o desejo maldoso para com a vítima da sua inveja. Também quando o invejoso não consegue alcançar o propósito de destruir a glória do próximo, ele se entristece e aí é gerada mais uma filha da inveja, denominada aflição pela prosperidade do próximo. A acídia é um pecado que tem como suas filhas: desespero, pusilanimidade, torpor, rancor, malícia, divagação da mente. Tomás vai dizer que a acídia, segundo João Damasceno, é uma tristeza e o objeto da tristeza é o mal presente. E o próprio Tomás também afirma que “[...] e como os homens fazem muitas coisas por causa do prazer – para obtê-lo ou movidos pelo impulso do prazer - assim também fazem muitas coisas por causa da tristeza: para evitála ou arrastados pelo peso da tristeza [...]” (DM, 2004, p. 94) também movem os homens e isso é a acídia. Também é usado o pensamento de Aristóteles que afirma ser desaconselhável ao homem viver muito tempo apenas em tristeza e sem prazer, pelo risco de não encontrando as alegrias do espírito ir buscar as alegrias do corpo. É possível compreender a acídia como sendo uma forma de depressão, na linguagem contemporânea, um estado de espírito que repercute em sintomas psicossomáticos. Para ilustrar esse comentário vejamos o que diz o texto: Por sua vez, a luta contra os bens do espírito que, pela acídia, entristecem, é rancor, no sentido de indignação, quando se refere aos homens que nos encaminham a eles: é malícia, quando se estendem aos próprios bens espirituais, que a acídia leva a detestar. E quando movido pela tristeza, um homem abandona o espírito e se instala nos prazeres exteriores, temos a divagação da mente pelo ilícito [...]. (DM, 2004, p. 94-95).

Agora será tratado sobre a ira. Tomás inicia essa questão falando sobre uma controvérsia acerca da ira por parte dos filósofos estóicos e peripatéticos. Para os estóicos, toda ira era viciosa, já os peripatéticos defendiam que algumas iras eram boas. Para compreender essa discussão é preciso levar em conta que toda paixão pode ser considerada sob dois aspectos: “formal e material”. (Cf. DM, 2004, p. 95). A ira quando inflamada por uma causa nobre ou uma vingança de acordo com a ordem da justiça, seria uma atitude virtuosa. Porém, quando a ira provém de uma vingança fora da ordem jurídica e pretende mais o extermínio de quem comete o erro do que a punição do erro cometido, isso já é irar-se contra o irmão. A discussão dos estóicos e peripatéticos não é nesse viés. A argumentação dos estóicos é deficiente porque não distingue o que é melhor em termos abstratos e o que é melhor para uma pessoa concreta. Não reparam no fato de que a ira e outras paixões semelhantes podem se relacionar com a razão no sentido antecedente e consequente. Assim, não consideraram acertadamente a ira e as outras paixões.

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A ira, assim como os outros vícios capitais, e como já dissemos, possui suas filhas. Tomás diz que as filhas da ira “apontadas por Gregório (Mor. XXXI, 45) são seis [...]: rixa, perturbação da mente, insultos, clamor, indignação e blasfêmia”. (DM, 2004, p. 99). A ira é vício capital porque ela pode ser considerada de três modos: de acordo com o que ela é no coração, na boca e nas ações. De acordo com o que a ira é no coração, surge dela um vício que tem seu fundamento na injustiça sofrida, pois o dano sofrido faz com que surja a ira e o que sofre o dano requer vingança; a ira também surge no falar, seja contra Deus ou contra o próximo; outro grau de ira nas palavras é quando alguém fala palavras injuriosas para o próximo com o objetivo de insultá-lo. Por fim, quando a ira chega ao seu ápice causa a rixa e assim derivam dela, por exemplo, ferimentos e homicídios. A avareza, de acordo com o Aquinate quanto a sua significação originária, está ligada a uma desordenada ambição de dinheiro: […] Como diz Isidoro no livro das Etimologias (X, 9), avarus é como que avidus aeri, ávido de dinheiro (cobre), em consonância com a palavra correspondente em grego filargiria, amor à prata. Ora, sendo o dinheiro uma matéria específica, parece que a avareza é também um vício específico, segundo a imposição originária do nome. Mas, por extensão, avareza é tomada também como desordenada cobiça de quaisquer bens e, nesse sentido, é um pecado genérico, pois todo pecado é um voltar-se desordenadamente a algum bem passageiro. (DM, 2004, p. 100).

Assim é possível compreender a avareza no sentido que Tomás vai trabalhar na sequência. Ele vai afirmar que, como o pecado é o oposto da virtude, é preciso considerar que a justiça e a generosidade (liberalitas), cada uma das suas formas fala acerca das posses ou do dinheiro. As filhas da avareza, de acordo com Gregório (Mor. XXXI, 45) “[...] a traição, a fraude, a mentira, o perjúrio, a inquietude, a violência e a dureza de coração." (DM, 2004, p. 102). A dureza de coração é o oposto da misericórdia, nesse caso, o avaro endurece seu coração e não utiliza os seus bens para auxiliar misericordiosamente uma pessoa necessitada. O avarento, por sua vez, também fica inquieto em cuidar dos seus bens, preocupado em cada vez juntar mais, nunca saciando o seu desejo, além de ser capaz de atos violentos ou enganosos para lucrar e adquirir mais bens materiais. Um exemplo de avareza citado por Tomás de Aquino é o caso de Judas que se tornou traidor de Cristo. Já a gula, de acordo com o Aquinate, refere-se às paixões e é o oposto da temperança no que tange aos prazeres do comer e do beber. Ele afirma que o vício da gula, segundo Gregório, nos tenta de cinco maneiras: “levando-nos a antecipar a hora de comer, a exigir alimentos caros, a reclamar requintes no preparo da comida, a comer mais do que o razoável e a desejar os manjares com o ímpeto de um desejo desmedido” (DM, 2004, p. 104). Podemos observar que as razões enumeradas aí não constituem o alimentar-se por necessidade, mas o desejo incontinente de sentir prazer. Quando estamos famintos não precisamos de comidas requintadas para saciar a fome, nem de alimentos caros, ou bem preparados, o alimento mais simples sacia a fome de um indivíduo, sem ser necessariamente com esses atributos elencados. 381

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A gula, por sua vez, também tem suas filhas que são: imundície, embotamento da inteligência, alegria néscia, loquacidade desvairada, expansividade debochada. É interessante observar o que diz Tomás acerca da gula: […] Quanto à razão, cuja agudeza se torna obtusa pelo excesso de quantidade ou de solicitude no comer, pois quando se perturbam as potências inferiores corporais pelo consumo desordenado de alimentos também a razão fica obstruída e, assim, o embotamento da inteligência é considerado filho da gula. (DM, 2004, p. 105).

Pelo exposto, fica claro que Tomás de Aquino considera o prazer pelo excesso de alimentos um prejuízo à inteligência. O homem movido pelo desejo descontrolado de comida não consegue refletir e perde o controle até dos seus membros, ficando impedido de usar a razão. Tomás de Aquino também discorre um pouco acerca da desordem nos atos da vontade, surgindo daí a alegria néscia, causado pelo adormecimento da razão. A desordem no falar (loquacidade desvairada) e a expansividade debochada são outros problemas apontados, como a razão é a responsável por ponderar o falar, o homem se dispensa em falatórios sem nexo e pela falta de razão também perde o controle dos membros exteriores começando a agir com certa desordem. A luxúria tem como matéria os prazeres sexuais. O indivíduo luxurioso é aquele que se encontra dissolvido nos prazeres, e são os prazeres sexuais os que mais dissolvem a alma do homem. Tomás da Aquino vai afirmar que a ordem das coisas se divide para um fim, e assim como o alimento destina-se a conservar a vida do indivíduo, o uso dos atos sexuais tem o objetivo de conservar a espécie do gênero humano. A luxúria é viciosa porque afasta o indivíduo da ordem da razão e transgride essa ordem e esse modo da razão, portanto é considerada por Tomás como vício e pecado capital. No caso da luxúria ele vai afirmar que ela é pecado e vício capital, vejamos o que diz o texto: […] É o caso da luxúria que, por definição, transgride a ordem e o modo da razão no que diz respeito aos atos sexuais. E assim, sem dúvida, a luxúria é pecado. […] Vício capital é aquele cujo fim é muito desejável, de tal modo que, por desejá-lo; o homem é levado a cometer muitos pecados e todos têm origem naquele vício principal. Ora o fim da luxúria é o prazer sexual, que é o máximo. E sendo este prazer o que exerce maior atração ao apetite sensível, quer pela veemência, quer pela conaturalidade dessa concupiscência, é manifesto que a luxúria é vício capital. (DM, 2004, p. 107).

Observamos que Tomás de Aquino mostra nesse trecho um pouco da diferença que há entre pecado e vício capital. Ali fica claro que pecado e vício capital são coisas distintas e precisam ser explicados (embora este não seja o objetivo deste estudo). Sendo assim, voltemos à questão da luxúria. A luxúria como os outros vícios capitais também possui as suas filhas, são oito o número de suas filhas, vejamos: cegueira da mente, irreflexão, inconstância, precipitação, amor de si, ódio de Deus, apego ao mundo, e desespero em relação ao mundo futuro. Para o Aquinate é evidente que, 382

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[...] quando uma alma está voltada para um ato de faculdade inferior, as faculdades superiores se debilitam e se desorientam em seu agir. No caso da luxúria, por causa da intensidade do prazer, a alma se ordena às potencias inferiores, isto é, a razão e a vontade, sofrem uma deficiência (DM, q. 15, a. 4).

O prazer sexual exerce sobre o homem o poder de afastá-lo da razão e dessa forma prejudica sua reflexão e seus atos são voltados para a perversão dos atos razoáveis. A razão, segundo Tomás, dirige os atos humanos de quatro formas: 1. Julgar retamente a respeito do fim, como princípio do agir; 2. A deliberação, que fica obstruída pela concupiscência do amor libidinoso; 3. O juízo sobre como se deve agir é impedido pela luxúria e o homem é levado a um juízo precipitado sem esperar o juízo da razão; 4. Mandar o que se deve fazer, o homem não persiste naquilo que tinha decidido, portanto, é inconstante. O homem movido pela luxúria não se preocupa com os outros, é egoísta, desenvolve o ódio por Deus, se apega ao mundo e se desespera em relação ao mundo futuro, ou seja, as preocupações de um indivíduo luxurioso são apenas com a sua satisfação egoísta, deixando de lado a espiritualidade e o amor ao próximo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esperamos que esse texto sirva de ponto de partida para uma maior investigação acerca dos vícios. Sabemos que não é possível contemplar cada particularidade acerca desse assunto num trabalho de tal porte, porém, o que foi abordado é fruto das leituras introdutórias, como dissemos, com vistas a um Trabalho da Conclusão de Curso (TCC). Esse trabalho também pode servir como ponto inicial de futuras pesquisas sobre o tema, entre alunos de graduação em Filosofia que se interessem por temas voltados à ética na Filosofia Cristã Medieval. Essa pesquisa, embora introdutória, revela possibilidades de se desenvolver ao longo dos próximos estudos, visto que é um assunto que oferece inúmeras potencialidades no que se refere a futuras investigações. Além disso, como pudemos perceber, a teoria dos vícios em Tomás de Aquino revela um profundo estudo e conhecimento sobre o ser humano e, como tal, mantém-se atual. REFERÊNCIAS CUNHA, Paulo Ferreira. O comentário de Tomás de Aquino ao livro V da Ética a Nicômaco de Aristóteles. Faculdade de Educação da USP, 2002. Disponível em: http://www.hottopos.com/videtur14/paulo2.htm> Acessado em 08 de abr. de 2012. 18 h. SILVA, Cláudio Henrique. Virtudes e vícios em Aristóteles e Tomás de Aquino:

oposição e prudência. Boletim do CPA, nº 5/6, Campinas São Paulo, 1998. Disponível em: http://venus.ifch.unicamp.br/cpa/boletim/boletim05/08silva.pdf Acessado em 08 de abr. de 2012. 17 h 50. TOMÁS DE AQUINO. Os sete pecados capitais. Tradução e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 383

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TOMÁS DE AQUINO. A Suma Teológica. Seleção de textos. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

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ANAIS DO I SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS NA PARAÍBA ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE LES SERMENTS DE STRASBOURG Ana Cristina Bezerril Cardoso1 O desejo de conhecer a origem da língua que ensinamos foi o que nos motivou a realizar este trabalho. Quanto mais o tempo passa, quanto mais experiência e conhecimento gramatical e lingüístico adquirimos, mais necessidade sentimos de voltar às origens. Como compreender o estado presente da língua sem compreender sua formação, seu começo? Embora não seja fácil de se determinar um momento exato para o nascimento da língua francesa, podemos dizer que foi a partir dos Juramentos de Strasbourg que a língua francesa passou a existir “oficialmente” como tal. Os Juramentos de Estrasburgo datam do século IX, e são considerados o primeiro documento da língua francesa. Trata-se de um documento curto, mas de extrema importância para a consolidação do francês. Eles estão registrados dentro da obra, Histoire des fils de Louis, le Pieux, do historiador Nithardo. Esse livro foi escrito todo em latim salvo o trecho dos Juramentos de Estrasburgo que está em proto-francês e em alemão. Objetivamos compreender o porquê de esse registro ter sido realizado nessa língua e não em latim, como era o costume da época. Para um melhor entendimento do momento histórico em que foram proferidos os Juramentos de Strasbourg do século IX, voltaremos no tempo. Nossa história dos Juramentos começará então com o surgimento da Francia no final do século VIII. Carlos Magno e os Juramentos de Estrasburgo Em 768 morre Pepino, o Moço, e o reino franco é divido entre seus filhos Carlomano e Carlos Magno. Em 771, Carlomano falece e Carlos Magno assume o poder de um reino franco unificado. Grande conquistador, Carlos Magno tomou a Itália dos lombardos, combateu contra os muçulmanos na Península Ibérica e conquistou a Saxônia. Cristão fervoroso, guerreou levando sempre consigo o cristianismo aos povos conquistados. No ano de 800, em Roma, foi coroado imperador pelo Papa vindo a falecer em 814. Além da expansão do cristianismo, Carlos Magno criou escolas e promoveu a renascença carolíngia, uma tentativa de revalorização das letras greco-latinas que haviam perdido valor durante todo o período das invasões germânicas, época em que os dialetos germânicos logicamente predominavam. Os merovíngios, descendentes de Clóvis, assim como os próprios carolíngios, eram povos de língua germânica, teudisca lingua. Segundo Renée Balibar (apud PERRET, 2003, p.34), existia, à época de Carlos Magno uma grande diferença de status entre as línguas germânicas, “línguas dos senhores”, que gozavam de 1

Prefessora substituta de língua francesa do DLEM- UFPB e-mail: [email protected]

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grande consideração, e o falar dos povos romanos: “falar dos servos e dos vencidos” e “jargão agrícola”. Foi justamente graças à renascença carolíngia, com a retomada dos estudos de textos em latim clássico, que surgiu a consciência de que a língua falada pelo povo havia sofrido tantas modificações que já não podia ser mais reconhecida como latim, conforme se pode ratificar pelas palavras de Perret (2003, p.35): Avec Charlemagne, qui rétablit l’Empire d’Occident, une influence civilisatrice et la renaissance des lettres latines furent paradoxalement à l’origine de l’apparition d’une nouvelle langue écrite, qui deviendra le français. Charlemagne reconstitua un empire d’Occident qui comportait le territoire de la France (à l’exception de la presqu’île bretonne), celui de l’Allemagne et une grande partie de celui de l’Italie (un peu plus bas que Rome), vaste espace qu’il administrait et gouvernait efficacement: il tentait aussi de redonner à ses peuples la civilisation qu’ils avaient perdue.2 Ainda se pode verificar uma reforma na organização educacional da época, instaurada pelo monge Alcuíno, segundo também se pode confirmar na passagem a seguir (Idem, ibidem, loc.cit): Il fit venir d’Angleterre (York) le moine Alcuin pour mettre en place un enseignement en latin pour les moines qui n’arrivaient plus à comprendre le texte de la Vulgate (nom donné à la traduction de la Bible en latin par saint Jérôme, vers 400). Sur son conseil, l’empereur mit en place un enseignement à trois niveaux.. Au niveau supérieur, l’école palatine d’Aix-la-Chapelle formait les élites intellectuelles; au niveau intermédiaire, des écoles épiscopales ou monastiques, dont l’abbaye Saint-Martin-de-Tours, dirigée par Alcuin, formaient les adolescents. Dans les campagnes, une initiation des enfants au calcul et à la grammaire aurait dû être faite par les curés, mais cet enseignement de premier niveau ne put s’établir durablement. C’est alors que les nouveaux lettrés, qui avaient réappris le latin classique, commencèrent à se moquer des barbarismes du latin mérovingien de leurs prédécesseurs. Mais, tandis que la langue simplifiée, pleine de termes populaires des scribes mérovingiens, était encore accessible au peuple, les lettrés carolingiens prirent conscience que la langue parlée avait tellement évolué qu’il était maintenant impossible de faire comprendre un texte de vrai latin à qui ne l’avait pas étudié”(PERRET, 2003, p.35)3. 2

Uma influência civilizadora e o renascimento das letras latinas, provocados por Carlos Magno, que restabeleceu o Império do Ocidente, foram paradoxalmente a origem do aparecimento de uma nova língua escrita que viria a ser o francês. Carlos Magno reconstituiu um Império do Ocidente reunindo o território da França (com exceção da quase ilha bretã), o da Alemanha e uma grande parte do território da Itália (um pouco mais abaixo de Roma), vasto espaço que ele administrava e governava com eficácia: ele tentava também dar novamente a esses povos a civilização que eles haviam perdido. 3 Ele trouxe da Inglaterra (York) o monge Alcuin para implantar um ensino de latim para os monges que não conseguiam mais compreender o texto da Vulgata (nome dado à tradução da bíblia em latim por São Jerônimo, por volta do ano 400). Sob seu conselho, o Imperador instaurou um ensino em três níveis. O nível superior da escola palatina de Aix-la-Chapelle formava as elites intelectuais; o nível intermediário, das escolas episcopais ou monásticas, entre elas a abadia de Saint-Martin-de-Tours dirigida por Alcuino formavam os adolescentes. No campo, uma iniciação das crianças ao cálculo e à gramática, teria sido realizada pelos padres, mas esse ensino de primeiro nível não pôde se estabelecer de forma duradoura. Foi então que os novos letrados, que tinham reaprendido o latim clássico, começaram a zombar dos barbarismos do latim merovíngeo de seus predecessores. Mas, enquanto que a língua simplificada repleta de termos populares dos escribas merovíngeos ainda era acessível ao povo, os letrados carolíngeos tomaram consciência de que a língua falada havia evoluído tanto, que

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Como ressalta e explica Perret, por volta do ano 800, o latim do norte da Gália, isto é, da Francia, já possuía características bastante particulares e não se confundia mais com o verdadeiro latim. Tanto é assim que, em 813, os bispos, reunidos em Concílio na cidade de Tours, decidiram que os padres deveriam fazer seus sermões na língua materna do povo, “in rusticam romanam linguam”, ou seja, em língua românica. Na realidade, esta data marca o primeiro reconhecimento oficial da língua românica que viria, posteriormente, a ser o francês propriamente dito. Contudo, o que era considerado assunto importante e sério como história, filosofia e teologia era escrito em latim. Segundo Wright (apud PERRET, 2003, p.35), teria ocorrido uma reforma na pronúncia do latim durante o período carolíngio e esse fato teria favorecido a própria crise da língua latina. Melhor dizendo, a pronúncia do latim escrito, que se apoiava nos falares da época e de cada região, com a reforma carolíngia, deveria tornar-se homogênea, posto que era a língua oficial do Império. O latim deveria então ser lido pronunciando-se todas as letras, o que evidentemente não foi possível e o tornou incompreensível para o povo. “En voulant éduquer les foules, on avait recrée une élite” (WALTER, 1988, p.67).4 Essa língua românica falada no século IX, que provém do latim e de outras línguas indo-européias, como o gaulês e o frâncico, já nessa época, havia sofrido tantas modificações que seria impossível não lhe conceder o status de língua independente do latim, diferentemente do italiano ou o espanhol, por exemplo, que ainda estavam bem próximos da língua latina. Como observa Perret (2003, p.37), não houve descontinuidade entre o latim falado por Júlio César e a língua falada na Frância do século X. O que houve, com efeito, foram mudanças resultantes de influências recíprocas entre a língua do invasor romano e os vários dialetos existentes na Gália, desde a invasão de César até a época de Carlos Magno. Foi o retorno às origens que evidenciou a existência de duas línguas: o latim - língua oficial -, e uma língua materna - a língua românica. Durante a Idade Média, essa romana lingua abrigava grande variedade de dialetos; no final do século XII, pode-se, no entanto, perceber um uso comum entre eles no momento em que surge a chamada langue d’oïl no Norte do território, a langue d’oc no Sul e ainda dialetos franco-provençais na região de Lyon, Genebra e Grenoble (WALTER, 1988, p.52). Essa língua vulgar não obedecia à regra alguma, assim continuando até o século XVI quando foi normatizada. Os primeiros escritos que atestam a existência dessa língua românica, desse protofrancês, são vocabulários. Tritter, na sua Histoire de la langue française (1999, p.15), afirma que, desde os séculos VII e VIII, se escreveu em proto-francês, à época roman primitif; todavia, devido a tantas guerras e percalços, poucas foram as provas que chegaram aos dias atuais. Os testemunhos mais antigos da existência de uma língua românica escrita são na realidade os glossários, dentre os quais o mais famoso é o Glossário de Reichenau, do final do século VIII e início do século IX, que traduz em língua românica aproximadamente 1.300 termos latinos difíceis da Vulgata de São Jerônimo, a versão latina da Bíblia. Não se trata de era impossível, naquele momento, fazer compreender um texto em verdadeiro latim a quem não o tinha estudado. 4 Desejando educar a massa, havíamos recriado uma elite.

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um texto e sim de um léxico. Do mesmo gênero são as Glossas de Kassel, as Glossas de Paris, o Vocabularius optimus, entre outras. Sem desmerecer os glossários, é, porém, em 14 de fevereiro de 842 5 que começa oficialmente a história da língua francesa com os Juramentos de Estrasburgo. Desse famoso texto existem duas cópias apócrifas conservadas na Biblioteca Nacional da França. A mais antiga6 é do final do século IX (Vide fac-símile, figura 1) e a outra é uma cópia7 incompleta da precedente feita no século XV (HAGÈGE, 1996, p.19). Considerado a certidão de nascimento do que viria a ser o francês, esse documento foi escrito em língua românica e em língua tedesca, ou seja, alemã. Os Juramentos de Estrasburgo são o marco que consolidou a existência de uma língua francesa. Trata-se de um documento “curto mas precioso”, como bem assinala Vasconcelos nas suas Lições de filologia portuguesa (s.d., p.208). Segundo Walter (1993, p.12-13 apud http://www.restena.lu), durante a Idade Média (século V- X) só se escrevia em latim, língua oficial da Igreja e do poder. Os Juramentos de Estrasburgo são o testemunho oficial da importância conferida às línguas vulgares ao reproduzir essas línguas por escrito. A autora reconhece a pouca espontaneidade do juramento como também sua forma ritual; no entanto afirma que nem por isso a língua vulgar deixa de revelar uma situação geolingüística nova que aparece no momento da divisão do Império de Carlos Magno. Um bloco romano e um bloco germânico tomaram consciência coletiva de suas diferenças. Esse sinal de relativa heterogeneidade cultural estava prestes a transformar-se em clivagem política. Les Serments de Strasbourg sont le symptôme d'une fracture géopolitique et géolinguistique dans l'Europe du IXe siècle8 (idem). Esse fato histórico chegou até os tempos atuais graças ao historiador Nithardo, outro neto de Carlos Magno. Sua obra Histoire des fils de Louis le Pieux9 foi toda escrita em latim, salvo o trecho dos Juramentos de Estrasburgo, que foi transcrito nas línguas em que foram pronunciados, ou seja, língua românica e língua alemã. O documento é um texto jurídico de apenas algumas linhas, que não somente tem importância para a história da língua francesa, visto que contém numerosos indícios da evolução da língua, como também possui grande valor histórico-político para a França, já que estabeleceu a primeira unidade do país como nação. Michel Zink comenta no seu livro Littérature française du Moyen Âge (1992, p.26), que os Juramentos de Estrasburgo não pertencem de forma alguma à literatura, mas nem por isso deixam de merecer atenção: 5

Em todos os livros que pesquisamos, a data oficial dos Juramentos de Estrasburgo é o dia 14 de fevereiro do ano de 842, ou seja, a data correspondente no calendário atual ao 16º dia das calendas de março do calendário romano, aquele adotado por Nithardo. 6 Manuscrito latino n° 9768 do cadastro da Biblioteca Nacional da França. 7 Arquivos latinos n° 14663 do cadastro da Biblioteca Nacional da França. 8 Os Juramentos de Estrasburgo são o sintoma de uma fratura geopolítica e geolingüística na Europa do século IX. 9 Adotaremos a edição da coleção Les Classiques de l'Histoire de France au Moyen Age, Paris, Librairie ancienne Honoré Champion, editor, 1926, páginas 101 à 109 (apud http://www.langue-fr.net/d/origines/sermentstrasbourg).

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non seulement parce qu’ils constituent le premier monument de la langue française, mais encore parce qu’ils invitent à réfléchir sur leur nature de texte. Prêter serment en langue vulgaire est une chose. Reproduire ce serment sous la forme d’un texte en langue vulgaire à l’intérieur d’un ouvrage à caractère historico-politique, en latin bien entendu, comme le fait Nithard, en est une autre.10

Figura 1.: Fac-símile do manuscrito dos Juramentos de Estrasburgo do final do século IX da Biblioteca National da França. (TRITTER, 1999, capa). Segundo Houaiss (2001, p.1693) o elemento latino de composição jur-, originalmente, deve ter tido sentido de “fórmula religiosa”, daí o emprego do plural jurā, “o que diz a fórmula da justiça”. Jūs orāre, jūs jūrāre significa ‘pronunciar a fórmula sacra que engaja’. O verbo jurar deriva do latim jurō que quer dizer: pronunciar a fórmula ritual dos juramentos. Fazer um juramento é, por conseguinte, assumir um compromisso solene e sagrado. Essa promessa ou afirmação é pronunciada geralmente em público e pode ter caráter pessoal ou recíproco. O ato de jurar tem como condição sine qua non a boa-fé. O caráter sagrado do juramento está bem explícito no termo francês que designa juramento, ou seja, serment que 10

Não somente porque eles constituem o primeiro monumento da língua francesa, mas também porque eles são um convite à reflexão sobre sua própria natureza como texto. Fazer juramento em língua vulgar é uma coisa. Reproduzir esse juramento sob a forma de um texto em língua vulgar no interior de uma obra com caráter histórico-político, em latim claro, como o fez Nitardo, é outra coisa.

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vem do latim sacramentum, de sacrare, tornar sagrado. O primeiro registro escrito desse vocábulo na língua francesa data justamente de 842, ano dos Juramentos de Estrasburgo (LAROUSSE, 1993 p. 1727). Na Teogonia (HESÍODO, 1944, p. 60-1, v. 775-808) encontramos a explicação mitológica da origem do grande juramento dos deuses. Para honrar e recompensar Estige, filha mais velha de Oceano e Tétis, pelo auxílio que esta lhe prestou, Zeus a transformou no hórkos, o grande juramento dos deuses. Quando qualquer um dos imortais queria se unir através de um juramento solene, Zeus enviava a mensageira Íris para trazer num jarro uma porção da água do Estige, que corria fria de um alto e abrupto rochedo. A água era o próprio hórkos dos deuses e possuía potência divina carregada de malefícios para aqueles que não cumpriam o juramento. O perjúrio era uma falta muito grave que era punida terrivelmente pelos deuses. Benveniste (1985, p. 176) comenta que o castigo pelo perjúrio não era um assunto humano. Segundo ele, “nenhum código indo-europeu antigo prevê sanções para o perjúrio”. O perjúrio era um delito contra os deuses, logo, supunha-se que o castigo viesse deles. O ato de se comprometer com um juramento era “sempre se expor de antemão à vigança divina, visto que se implora aos deuses que ‘vejam’ ou ‘ouçam’, que estejam, em todo caso, presentes ao ato de comprometimento” (BENVENISTE, 1985, p. 176). Outro exemplo do valor sagrado do juramento e do poder que o jurar possuía na cultura grega está na Ilíada de Homero. No canto III é feito um juramento e no canto IV esse juramento é quebrado. A quebra do juramento traz uma condenação à morte para todos aqueles que violaram o pacto sacrossanto. Canto 3 :Anúncio do juramento feito por Heitor: “Ora, guerreiros Troianos, grevados Acaios, vos digo / o que vos manda propor Alexandre, fautor desta guerra:/ Pede que todos os homens Aqueus e Troianos deponham / as belas armas na terra, nutriz de infinitos guerreiros, /para que possa no meio do campo lutar com o discípulo / de Ares, o herói Menelau, por Helena e suas riquezas. / O que provar que é mais forte, vencendo o adversário na luta, / leve consigo os tesouros e a casa conduza consorte. / Com juramento firmemos nós outros a paz duradoura”. (HOMERO, 2005, p.106, v. 86-94) Canto 4: Idomeneu diz a Agamémnone: “Filho de Atreu, Agamémnone, fiel companheiro hei de ser-te, / tal como sempre me viste e de acordo com o meu juramento. / Trata, porém, de espertar os demais combatentes Aquivos, / para que logo comece a batalha, uma vez que as sagradas / juras os Teucros violaram. A Morte a eles todos espera, / por terem sido os primeiros a os pactos violar sacrossantos”. (HOMERO, 2005, p.125, v. 266-71)

O caráter sacro no ato de jurar permaneceu no século IX e pode ser constatado através dos Juramentos de Estrasburgo de 842. Fazer um juramento significava prometer a Deus. Ao transcrever os Juramentos nas línguas em que foram pronunciados, Nithardo reproduziu ipsis verbis as promessas feitas pelos netos de Carlos Magno. A escolha do historiador pela manutenção das línguas originais dos Juramentos dentro do seu livro todo em latim teria como possíveis explicações: primeiro, as línguas faladas eram as línguas vulgares e, para 391

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serem compreendidos, os Juramentos tiveram que ser ditos em língua românica e tedesca; segundo, o desejo de o autor manter-se fiel aos acontecimentos. Para melhor entender a situação histórica em que foram proclamados os Juramentos de Estrasburgo, retornaremos ao ano de 814, ano em que Carlos Magno faleceu depois de coroar seu único filho varão sobrevivente, Ludovicus Pius ou Luís I, o Piedoso. Segundo Hagège (1996, p.13) Luís I já teria resolvido a sua sucessão desde 817, 23 anos antes da sua morte. Ele teria legado aos seus filhos Lotário, Pepino e Luís II, do seu primeiro casamento com Ermengarda, o governo de um reino dividido. Pepino e Luís II seriam subordinados a Lotário, que seria o imperador depois da morte do progenitor. Porém, esse projeto de sucessão não foi realizado porque, em 838, Pepino faleceu antes mesmo do seu pai. Luís I ficara viúvo em 818, e contraíra segundas núpcias em 819 com Judite da Baviera. Desse segundo matrimônio nasceu Carlos, o Calvo. Assim sendo, em 840, quando da morte de Luís I, o Piedoso, cada um de seus filhos vivos lutou pela conquista do Império Carolíngio (Vide figura 2). Família de Carlos Magno Pepino o Moço (715 - 768)

Carlos (772 - 811)

Carlos Magno (744 - 814)

Carlomano (751 - 771)

Pepino (773 - 810)

Luís o Piedoso (778 - 840)

Casa-se em 794 com Ermengarda (+ 818) Lotário I (795 - 855)

Pepino Casa-se (+ 838)

Casa-se 819 com Judite da Baviera Luís II o Germânico (808 - 876)

Carlos o Calvo (823 - 877)

Figura 2.: Árvore genealógica da família de Carlos Magno. Depois de muitas discórdias, Carlos, o Calvo, e Luís II, o Germânico, filhos de Luís I, o Piedoso, decidiram se juntar para selar aliança contra Lotário, o irmão mais velho. Eles assinaram um tratado em latim como de costume e, em seguida, fizeram um juramento. Os Juramentos de Estrasburgo foram pronunciados em proto-francês e em língua tedesca pelos dois monarcas. Cada um jurou na língua do outro, ou seja, Carlos, o Calvo, em língua alemã e Luís, o Germânico, em língua românica, a fim de que todos compreendessem. Já os soldados juraram fidelidade nas suas próprias línguas. Como comenta Hagège (1996, p. 16), a fronteira lingüística entre uma zona ocidental de língua romana e uma zona oriental de língua germânica já havia sido fixada entre os séculos IV e VI, momento da romanização dos francos ocidentais. A única unidade lingüística entre essas duas partes do antigo império de Carlos Magno era feita pelo latim, mas tratava-se, contudo, de um código escrito adotado pela Igreja e pela administração, e não de uma língua falada pelo povo.

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Os Juramentos de Estrasburgo são, em resumo, o pacto no qual Carlos, o Calvo, Luís II, o Germânico e seus respectivos soldados, juraram ajuda e fidelidade mútuas contra Lotário. Foi através dos Juramentos de Estrasburgo de 14 de fevereiro de 842 que Carlos, o Calvo, e Luís, o Germânico, pressionaram Lotário e conseguiram a divisão do Império. A querela entre os três irmãos só foi realmente resolvida um ano mais tarde, em 843, com o Tratado de Verdun que dividiu o Império em três partes, como se pode ver na figura 3. Carlos, o Calvo, ficou com a Frância ocidental; Luís, o Germânico, com a Frância oriental; e Lotário, que detinha o título de Imperador, com o centro da Itália indo até a Frísia. Na realidade, o Império deixado por Luis I, o Piedoso, já estava de uma certa maneira esfacelado, pois faltava aos povos que o compunham, três elementos essenciais para a unificação; interesse, cultura e língua comuns.

Figura 3.: A divisão do Império Carolíngio depois do Tratado de Verdun. (GRIMAL, 1960, p.14). O território que constituiria a França atual alcançou uma verdadeira unidade com o Tratado de Verdun, visto que, até então, só tinha sido dividido em pequenos reinos gauleses ou então tinha feito parte do Império romano, do Império franco e do Império germânico. Pode-se afirmar, então, que os Juramentos de Estrasburgo de 14 de fevereiro de 842 são, sem sombra de dúvidas, considerados um monumento, o primeiro, da língua francesa. A grande importância do documento é confirmada pelo enorme interesse e a vasta bibliografia que tem suscitado desde muito tempo. Seria tarefa hercúlea citar todos os estudos já realizados sobre o tema. No entanto, não se pode deixar de lembrar a tese de Tabachovitz Étude sur la langue de la version française des Serments de Strasbourg (TABACHOVITZ, 1936), os artigos de Castellani, Le problème des Serments de Strasbourg (CASTELLANI, 1956), de Hilty Les Serments de Strasbourg (Hilty, 1973), de Deloffre A propos des serments de Strasbourg de 842: les origines de l'ordre des mots du français (Deloffre,1980), de Droixhe Les Serments de Strasbourg et les débuts de l'histoire du français (Droixhe,1987), o livro de Balibar L’institution du français. Essai sur le colinguisme des Carolingiens à la 393

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Republique (Balibar, 1985), e o livro de Cerquiglini La naissance du français (Cerquiglini,1991). 11 REFERÊNCIAS ANDRIEUX-REIX, Nelly. Ancien Français – Fiches de vocabulaire. 6ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. BENVENISTE, Émile. O vocabulário das instituições indo-européias. Vol.2. Trad. Denise Bottmann. Campinas: Editora da Unicamp, 1995. BRANCO, Bernardes. Diccionario Português-Latino. 3ª ed. Lisboa: Livraria Rerreira, 1897. BURNEY, Pierre. L’orthographe / Que sais-je ? Paris: PUF,1970. CALLOU, Dinah. e LEITE, Yonne. Iniciação à fonética e à fonologia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. CARRETER, Fernado Lázaro. Diccinario de terminos filologicos. Madrid: Editorial Credos, 1953. CERQUIGLINI, Bernard. La naissance du français / Que sais-je ? Paris: PUF,1993. CÍCERO. Epistulae ad Familiares XXI. apud http://www.thelatinlibrary.com FARACO, C. A. (1991) Lingüística histórica. São Paulo: Ática. FARIA, Ernesto.org. Dicionário escolar latino-português. Rio de Janeiro: MEC, 1955. GREVISSE, Maurice. Le bon usage. Paris-Louvain-la-Neuve : Duculot, 1993. GRIMAL, Henri. e MOREAU, Lucien. Histoire de France. Paris: Nathan, 1960. HACQUARD, Georges. Florilège du Moyen Age. Paris: Librairie Hachette, 1949. HAGÈGE, Claude. Le Français, histoire d’un combat. Le livre de poche. Paris: Éditions Michel Hagège, 1996. ______. Le français et les siècles. Paris: Éditions Odile Jacob, 1987. RAYNAUD DE LAGE, Guy. Introduction à l’ancien français 2ª ed. revista e corrigida por Geneviève Hasenohr, Paris: SEDES, 2000. HÉSIODE. Théogonie – Les travaux et les jours – Le bouclier. Texte établi et traduit par Paul Mazon. Paris: Les belles lettres, 1944. HILTY, Gerald. Les serments de Strasbourg. In Melanges de linguistique française et de philology et literature mediévales, p. 511-524. Paris: Klincksieck, 1973. HOMERO. Ilíada (em versos). Trad. Carlos Alberto Nunes. 5ª ed, Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. HUCHON, Mireille. Histoire de la langue française. Le Livre de Poche. Paris: Librairie Générale Française, 2002. MICHAËLIS VASCONCELOS, Carolina de. Lições de filologia portuguesa. Lisboa: Martins Fontes, s.d.

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Embora não tenhamos tido acesso às obras citadas, elas são referendadas em Wagner (1995, p. 6), conforme consta nas referências.

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PERRET, Michèle. Introduction à l’histoire de la langue française. Paris: Armand Colin, 2003. ROUQUIER, Magali. Vocabulaire d’ancien français. Lassay-les Châteaux: Colin, 2005. RUHLEN, Merritt. L´origine des langues. France: Belin,1997. TRITTER, Jean-Louis. Histoire de la langue française. Paris: Ellipses, 1999. WAGNER, Robert-Léon. Textes Littéraires Français. Textes d’étude (ancien et moyen français). Genève: DROZ, 1995. WAGNER, R. L. & PINCHON, J. Grammaire du Français. Paris: Hachette, 1962. WALTER, Henriette. Le Français dans tous les sens. Paris: Éditions Robert Laffont, S.A., 1988. ______. L’aventure des mots français venus d’ailleurs. Paris: Éditions Robert Laffont, S.A.,1997. WRIGHT, Roger. La période de transition du latin, de la lingua romana et du français. Médiévales, 45(2003)Disponível em: Acesso em: 5 junho 2007. ZINK, Gaston. Que sais-je? L’ancien français. 5ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2000. ZINK, Michel. Littérature française du Moyen Âge. 1ª ed. “Quadrige”. Paris: Presses Universitaires de France, 2004. < www.herodote.net/histoire02140.htm > Acessado em 04 nov. 2006. < http://philologie.historique.net/serments/ > Acessado em 04 nov. 2006. < http://www.languefrancaise.net/dossiers/ > Acessado em 05 nov. 2006. < http://www.filologia.org.br/viisenefil/09.htm > Acessado em 20 set. 2006. < http://jfbradu.free/celtes/sixiemes/gaule-avant2 > Acessado em 11 out. 2006. < http://www.tlfq.ulaval.ca/axl/francophonie/francophonie.htm > Acessado em 07 set. 2006. < http://www.agence.francophonie.org > Acessado em 22 jan. 2007. < http://www.espacoacademico.com.br > Acessado em 22 jan. 2007.

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A TRADUÇÃO DA DIDAQUÊ (CATECISMO CRISTÃO DO II SÉC.) Fabricio Possebon1 [email protected] Introdução O texto grego da Didaquê foi encontrado em 1873, na Biblioteca de Constantinopla, e apresentado ao público cerca de dez anos depois. As edições críticas que apareceram normalmente o dividem em 16 capítulos, de tamanhos desiguais, mas respeitando os assuntos tratados. Quanto ao conteúdo, pode-se dividir o texto em três partes: a primeira (do capítulo 1 ao 6) apresenta o conceito de um caminho, que teologicamente pode ser da vida ou da morte: “Há dois caminhos, um da vida e outro da morte, e muita diferença entre os dois caminhos”, Didaqué, I,1. Segue uma série de prescrições para aquele que vai seguir o caminho da vida, começando por Deus: O caminho da vida é este: primeiro amarás Deus, o que te fez; em seguida, o teu próximo como a ti mesmo; todas as coisas quantas quiseres que não sucedam a ti, também não as faças ao outro. (Didaqué, I,2)

E uma série de advertências para o que segue o caminho da morte. Os valores cristãos são defendidos nesta primeira parte, como a humildade, a caridade, o temor a Deus, etc. A segunda parte (do capítulo 7 ao 15) trata da organização da comunidade, sob diversos aspectos, a saber, como celebrar o batismo: E a respeito do batismo, assim batizai, todas estas palavras dizendo, batizai em nome do pai e do filho e do espírito santo, na água corrente. Se não tiveres água corrente, com outra água batiza, e se não puderes na água fria, na quente [batiza]. Se ambas não tiveres, derrama na cabeça, três vezes, água, em nome do pai e do filho e do espírito santo. (Didaqué, VII, 1, 2, 3)

Como jejuar: Antes do batismo, jejuem o que batiza e o batizado e se alguns outros puderem, e ordenas que o batizado jejue um ou dois [dias]. E os jejuns vossos não sejam com os hipócritas, pois jejuam no segundo [dia] da semana, e no quinto; mas jejuai vós, no quarto e no parasceve. (Didaqué,VII, 4, VIII, 1)

Como orar o Pai-nosso, que abaixo veremos, e como fazer a eucaristia: Primeiro a respeito do cálice, rendemos graças a ti, ó pai nosso, pela sacra vinha de Davi, o filho teu. A ti a glória para a eternidade.

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Professor do PPG em Ciências das Religiões e do PPGL. E-mail: [email protected]

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E a respeito do pedaço [de pão e de peixe]: rendemos graças a ti, ó pai nosso, pela vida e conhecimento, o qual tu nos fizeste conhecer, por meio de Jesus, o filho teu. A ti a glória para a eternidade. (Didaqué, IX, 2, 3)

Há, finalmente, um tratamento para os apóstolos, profetas, bispos e diáconos, ou seja, como identificá-los, como recebê-los e até como expulsá-los, se for o caso. A última parte contém apenas o capítulo 16, dedicado exclusivamente ao tema da volta do Senhor, isto é, a parusia. Num tom apocalíptico, anunciam-se os sinais que mostrarão a chegada dos novos tempos: expansão do céu, o som da trombeta e a ressurreição dos mortos. As especulações à respeito de datação e autoria são as mais controversas, pois é no próprio texto que devem ser encontradas tais informações. Assim, a primeira grande discussão é quanto às fontes da Didaquê. Seria ela uma fonte dos textos evangélicos ou o contrário, os evangelhos é que lhe serviram de modelo. Há passagens similares em todos os textos, assim a solução que parece razoável é adimitir que tanto a Didaquê quanto os evangelhos tiveram uma fonte comum, talvez o suposto texto conhecido como “Q”. A partir desses pontos de vista, deve-se supor para a Didaquê a mesma idade dos textos evangélicos, ou seja, do ano 70 a 90 depois de Cristo. A lacuna existente entre a morte de Cristo (no ano de 33, tradicionalmente aceito) e a redação dos primeiros textos (excetuando as cartas) é explicada pelo próprio conceito de parusia. Acreditava-se que a vinda do Senhor seria imediata, portanto não se sentia necessidade do registro dos ensinamentos, todavia como o tempo passava e nada ocorria, entendeu-se que a vinda era certa, mas em hora incerta, portanto devia-se guardar a memória de Cristo com o devido ensinamento. Outros pesquisadores, entretanto, não aceitam uma data tão recuada para a Didaquê e, de maneira geral, a situam no segundo século. É a opinião mais aceita, a qual colocamos no título de nosso trabalho. Quanto à autoria e local da redação, as incertezas se avolumam, mas algo parece razoável: foi escrita por um líder de uma comunidade primitiva, em algum lugar em que essas comunidades já haviam sido relativamente bem estabelecidas. Não faz sentido a Didaqué ser uma obra de um cristão isolado, em algum retiro. As comunidades cristãs primitivas, por si só, são uma grande discussão. Imaginamos terem existido, organizadas idealmente em torno de um sistema de produção comum, em que todos dividem os trabalhos e, na hora das refeições, sentam-se juntos à mesa, oram e repartem os alimentos. Os membros da comunidade escolheriam aqueles que tivessem maior conhecimento e autoridade moral para serem os líderes e as decisões eram tomadas em comum acordo. Esse modelo ideal tem alimentado muitos sonhos, embora saibamos as limitações práticas de sua realização. Questões pontuais na tradução As questões são inúmeras, todavia vamos nos limitar a algumas mais singulares. O texto grego, escrito naquela variante chamada koiné, não apresenta grandes dificuldades, todavia alguns termos-chaves são particularmentes importantes. O título Didaqué é um termo comum que significa “instrução”, “ensinamento”. Quando as traduções possíveis para o termo mostram-se limitadoras, ou seja, parecem não corresponder a toda a amplitudde de significados, então se prefere manter o original grego, 397

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efetuando-se uma mera transcrição com o alfabeto latino. É o caso aqui, pois o sentido verdadeiro do termo implica um ensinamento que não é o comum, mas pautado pela revelação cristão. Seguimos a tradição, mantendo Didaqué, cuja grafia também pode ser Didaquê. O subtítulo da obra indica a quem se destina: “Ensinamento do Senhor, por meio dos doze apóstolos, aos povos”. O termo grego tà éthna significa “povos”, “nações”, “estrangeiros”, “pagãos”, “gentios”, “convertidos”. Com tal abrangência, não nos foi possível saber exatamente a quem se destina a obra. Nossa opção de tradução foi neutra, deixando ao leitor a indeterminação da passagem. No capítulo IX, que trata da chamada eucaristia, há dois pontos de nota: o primeiro é o próprio termo eucaristia, transcrição quase literal do grego eukharistía. Seu significado é “agradecimento”, todavia um “agradecimento ritual”, ao que parece. Preferimos manter a neutralidade do “agradecimento” a invocar o termo “eucaristia”, como é entendido hoje pela Igreja, o que já significa uma longa evolução e interpretação do rito. Não estamos seguros o quanto o rito primitivo subsiste na modernidade. No terceiro versículo do mesmo capítulo, há o termo “pedaços”. Mas pedaço do quê? Passagens evangélicas citam “pedaço de pão” e, em Marcos 6, 43, “pedaço de pão e peixe”. Optamos por essa última solução, por entendermos ser o Evangelho de Marcos omais antigo, embora reconheçamos que, materialmente falando, o uso do pão no rito não apresenta dificuldade, mas o peixe, sim. O capítulo XV começa assim: “Designai para vós mesmos, bispos e diáconos, dignos do senhor, homens humildes, não ávidos por dinheiro, verdadeiros e experimentados, pois a vós eles celebrarão a liturgia dos profetas e mestres”. Qual seria o significado de “bispos” e “diáconos” nessa comunidade cristã primitiva? Os termos modernos evocam já todo um paramento, uma hierarquia e formalismo, estranhos ao mundo primitivo. Todavia, com qual termo moderno poder-se-ia traduzir as idéias da Didaqué? “Chefes”, “guias”, “líderes” são muitos vagos. Nossa solução foi deixar “bispos e diáconos”. Sobre outras traduções disponíveis no mercado Conhecemos duas traduções, ambas em catálogo, nas livrarias: DIDAQUÉ. O catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. Tradução do Pe. Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin, publicado pela editora Paulus, com muitas edições, e Didaqué. Catecismo dos primeiros cristãos. Prefácio, tradução do original grego e comentário de Urbano Zilles, pela editora Vozes, em muitas edições também. A primeira, como o próprio subtítulo diz, propõe um texto em linguagem simples e coloquial, com amplo uso do pronome de tratamento “você”, aproximando assim leitor e texto. Já a segunda segue o paradigma da norma culta e procura, na medida do possível, aproximar o texto traduzido da tradição já conhecida das traduções bíblicas em língua portuguesa. O texto, portanto, se apresenta como familiar para aqueles já acostumados com a Bíblia. Recomendamos ambas as edições, quer pela qualidade das traduções, quer pelas notas e explicações que acompanham o texto.

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Sobre a nossa tradução Nossa tradução, por outro lado, pretende aproximar o leitor ao texto original grego. Assim, muitas vezes, a ordem das palavras não parecerá familiar. Deliberadamente escolhemos o vocabulário menos usual e conhecido da tradição das traduções portuguesas, pois queremos “romper” os modelos mentais já existentes, os quais, muitas vezes, favorecem uma leitura fluente, todavia sem uma reflexão mais aprofundada. Sirva de exemplo a oração do Pai Nosso. É bem conhecido, pela consagrada tradução de Almeida, o texto de Mateus, VI, 9-13: Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal [pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém]!

Mas em nossa tradução, Didaqué, VIII, 2: Ó pai nosso, o qual estás no céu, santificado seja o nome teu, venha o reino teu, faça-se a vontade tua, tanto no céu como sobre a terra. O pão nosso cotidiano dá-nos hoje, e quita-nos da dívida nossa, como também nós quitamos aos devedores nossos, e não nos conduzas à tentação, mas libertanos da maldade, porque tua é a força e a glória, para a eternidade.

Ao propor um texto aparentemente novo, pretendemos que o leitor seja “desperto” do automatismo e reflita um pouco mais sobre o contéudo doutrinário. Chamamos, finalmente, a atenção do leitor para o fato de o texto original oscilar entre segunda pessoa do singular e segunda do plural, como, por exemplo, na Didaqué, XIII, 4 e 5: Se vós não tiverdes profeta, dai aos mendigos. Se tu fizeres comida, a primícia tomando dá, segundo o mandamento.

A tradução respeitou essas “estranhezas” e também outras oscilações entre modos e tempos verbais. A base do texto grego utilizada foi a edição de Funk/Bihlmeyer de 1924. Conclusão Muitas são as questões e as possibilidades envolvidas na tradução de um texto antigo, todavia nosso artigo se restringiu a uns poucos pontos cruciais. As informações sintetizadas neste artigo foram colhidas de nossa obra: DIDAQUÉ: ENSINAMENTO DOS DOZE APÓSTOLOS. I - Parte: Texto original, tradução e comentários por Fabricio Possebon e Severino Celestino da Silva. II – Parte: Análise de textos sagrados por Severino Celestino da Silva e Paidéia e Didaqué: formação, ensinamento e instrução humanos por Sérgio Pereira da Silva. Editora Universitária UFPB.

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REFERÊNCIAS BAILLY, A. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 1950. BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature. Traduzido e adaptado ao inglês por William Arndt e Wilbur Gingrich. Chicago: University of Chicago Press, s.d. BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA. Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006. RUSCONI, Carlos. Dicionário do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003.

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MEDIEVALISMO E MODERNIDADE EM MAURICE VAN WOENSEL Francisco José Gomes Correia (Chico Viana)1 Inicialmente quero louvar a iniciativa dos responsáveis por este evento. Nada mais adequado para homenagear Maurice do que um congresso cujo tema seja a Idade Média. Esse período histórico o fascinava, e não apenas por razões afetivas ou estéticas. Maurice tinha consciência de que o essencial das manifestações artísticas do Brasil, e especialmente do Nordeste, enraíza-se no Medievo. E tinha razão. Segundo Afrânio Coutinho, a literatura brasileira nasce sob o signo do Barroco. E o que é o Barroco, se não o efeito da cultura medieval sobre a visão de mundo herdada do Classicismo? Barroco é dualismo, agonia, antítese; o que anima a alma barroca é o impulso cristão de contestar o racionalismo e o humanismo da Grécia e de Roma. Para contestá-los procuramos os modelos teocêntricos de vida e arte vigentes na Idade Média, de cujo imaginário se embebeu nosso espírito latino. Maurice tinha consciência disso. Sabia, ainda, que o mais característico desse período se refugiara nos rincões interioranos do Brasil. Daí sua admiração pela cultura popular, depositária de mitos, lendas, histórias que, em seu dramatismo simples, revivem a saga de reis e rainhas; os amores trágicos de casais fadados à eterna separação; os conflitos íntimos de religiosos divididos entre os apelos de Deus e os do mundo; mas sobretudo as artimanhas do homem simples para sobreviver num mundo violento e desigual. Segundo o professor Eduardo Hoornaert, Maurice “...entra no rol dos medievalistas brasileiros (..) com uma originalidade: ele sempre procurou aplicar os estudos medievais à realidade nordestina. Isso já se percebe na sua dissertação de mestrado, de 1978, que é uma análise de A Pedra do Reino de Ariano Suassuna e onde aparece um sertão habitado com sonhos medievais. Maurice acerta de cheio: há uma correspondência entre cultura nordestina e cultura medieval”. (HOORNAERT, p. 1)

Certo dia Maurice me falou que ia submeter ao CNPq um projeto de pesquisa sobre a influência da poesia medieval na poesia moderna, e me perguntou se eu queria participar. Eu sabia pouco dos seus estudos e quase nada conhecia da Idade Média. Mas defendera havia dois anos tese sobre a melancolia em Augusto dos Anjos, o que me levara a ler, por exemplo, sobre a acedia nos mosteiros. Determinado poema de Augusto me fizera pesquisar sobre a barcarola e outras espécies medievais que chegaram aos dias de hoje. A esses rudimentos de informação acrescentei leituras de Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Onestaldo de Pennafort, e me senti em condições de preparar um plano de trabalho e me propor como pesquisador-adjunto. Deu certo; o CNPq aprovou nosso projeto, intitulado “Precursores medievais da poesia moderna; leitura e tradução de textos”, no qual trabalhamos por cerca de 5 anos. Durante esse período muito aprendi com o homem e com o erudito. Maurice era uma pessoa de convivência fácil, amena, porém firme em suas opiniões. Embora fosse especialista ¹ Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba. [email protected]

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nos assuntos que estudávamos, acolhia com respeito minhas propostas. Cada um seguia com independência o seu caminho – eu, investigando os elementos temáticos e formais que atestavam a influência do Medievo em alguns dos nossos poetas modernos; ele, entre outras inúmeras tarefas, pesquisando a poesia dos goliardos – uma de suas paixões. Maurice produziu muitos trabalhos na área dos estudos medievais. O mais importante deles, certamente, foram as traduções de Carminha Burana, publicadas em 1994 pela Editora Ars Poética. Na apresentação que escreveu para essa obra, o eminente medievalista Segismundo Spina saudou-a com entusiasmo: “Felizmente a bibliografia brasileira pode orgulhar-se de ingressar no campo da erudição literária medieval com a presente tradução (...)”. E frisava, adiante: “Maurice Van Woensel (...) é a pessoa mais autorizada no Brasil a falar sobre esse movimento poético medieval”. A expressão Carmina Burana significa “canções de Beuern”, pois foi na abadia beneditina de Benediktbeuern, na Baviera, que se encontrou o manuscrito posteriormente musicado por Carl Orff. Esse manuscrito continha poemas e canções compostos pelos goliardos, ou clérigos vagantes. Os goliardos eram religiosos que, no século XIII, vagavam pelas estradas do Medievo executando suas canções. Alguns deles tinham uma espécie de vida dupla, pois, ao mesmo tempo em que cantavam nas ruas e tabernas, participavam dos ofícios litúrgicos. A goliardia é um desses fenômenos que atestam a multiplicidade da visão de mundo medieval. Os clérigos vagantes não eram rebeldes apenas no plano artístico; vinculavam suas críticas e sátiras a uma ostensiva rebeldia de comportamento, adeptos que eram das tavernas e de outros ambientes que à Igreja soavam suspeitos. Não eram apenas contestadores intelectuais de um ambiente em que não raro surpreendiam o excesso dogmático conjugado à hipocrisia e ao abuso de poder; buscavam por meio do comportamento anárquico denunciar tais excessos. A tarefa de traduzir os Carmina Burana demandava não apenas o esforço de um pesquisador, mas também o discernimento de um erudito e a sensibilidade de um poeta. Era preciso paciência e persistência para coligir os originais e escolher, entre as muitas versões existentes, aquela que melhor representasse o espírito da goliardia. Mas era preciso, sobretudo, conhecer a cultura medieval cristã e, dentro dela, os aspectos da vida nos mosteiros capazes de esclarecer a tensão revelada nos textos – muitos deles paródias bíblicas. Para traduzir os Carmina Burana, enfim, era preciso sintonizar-se com ímpeto de rebeldia dos clérigos sem ignorar as determinações da hierarquia monacal, a fim de surpreender no embate entre essas instâncias o sentido maior da revolução goliárdica. Era preciso sentir os motivos e os propósitos desses aventureiros da fé, ressentidos com a ausência das prebendas e ansiosos por mudar a ordem das coisas. Era preciso ter, em alguma medida, uma alma goliarda. O fato de muitos dos textos compostos pelos goliardos serem paródias dos hinos litúrgicos explica o tom aparentemente solene de algumas letras, que nada tinham de piedoso. E como poderiam ter, se o objetivo das canções era, muitas vezes, combater os abusos das autoridades religiosas? Ou ironizar aspectos da liturgia, contrapondo a eles o prazer da embriaguez nas tabernas? Como uma pequena amostra, veja-se a estrofe XIII do poema “Me arde dentro do coração”: “A lamparina de minha alma/com vinho se acende,/esse néctar ela 402

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sorve,/da terra ela ascende;/pra mim, o vinho da taberna/não tem rival,/nada a ele se compara/na mesa episcopal” (p. 121). Quem lê os versos de Carmina Burana se espanta com a atualidade da crítica aos (maus) costumes da época – por sinal, muito parecida com a nossa. Naquele tempo também havia, por exemplo, corrupção no Judiciário: “Quando é a grana que impera/ o direito degenera./ Ao indigente é negado/ o direito comprovado;/ para o rico não falta juiz/ a venderse por pratas vis;/ para o rico, o juiz bonzinho/ sempre dá algum jeitinho;”. E a juventude, tal como hoje, não gostava de estudar: “nos tempos bons de outrora/ se estudava a toda hora;/ aos noventa, tão-somente,/ aposentavam um discente./ Mas agora, aos dez de idade,/ jovens passam por abades,/ bancam eles os professores:/ de cegos, cegos condutores.”. Não foi à toa que Maurice van Woensel se saiu tão bem da empreitada. Ex-padre, ele conhecia as normas clericais e o aparato litúrgico, que, mesmo passados tantos séculos, não deixam de refletir o velho ambiente dos mosteiros. Maurice era um espírito livre, aberto aos apelos do mundo e capaz, portanto, de se sensibilizar com as inovações trazidas pela goliardia. Em alguma medida, vibravam nele a inquietação e o impulso contestatório próprios dos clérigos marginais – no sentido genuíno dessa palavra. Outro trabalho importante seu foi a tradução de composições do bestiário medieval. Elas estão no livro Simbolismo animal medieval: Os Bestiários. Um safári literário à procura de animais fabulosos, que foi editado pela Editora Universitária da Universidade Federal da Paraíba. A tradução desses textos absorveu Maurice nos seus últimos anos de vida. Certa vez ele me disse que o trabalho vinha sendo feito havia anos, mas o nosso projeto lhe deu o ensejo de terminá-lo. Visando à publicação desse “livro de bichos”, ele inclusive mantivera contatos com uma editora do Sul do país. Pouco mais de três meses após essa conversa o livro veio a público – publicado pela editora da UFPB, como foi dito – e se confirmou como inestimável obra de pesquisa e de criação artística. De pesquisa e criação, sim, pois não se sabe o que mais admirar nesse trabalho: se o levantamento das fontes, com a rigorosa caracterização tipológica dos bestiários – se o esforço de recriação poética com que Maurice procura verter para o português o ritmo e as imagens através das quais a alegoria animal aparece como reflexo dos defeitos e das virtudes humanas. Nesse livro o exegeta minucioso convive com o versejador bem-humorado, o que dá à obra uma leveza que não nos deixa sentir, na amplitude do acervo pesquisado, o peso da erudição. Os bestiários constituem uma das melhores concretizações do preceito de Horácio segundo o qual a arte deve “ensinar deleitando”. Trata-se de textos alusivos, que tomam os bichos como imagens, metáforas, representações deformadas dos seres humanos. E assim permitem ao homem um distanciamento que o torna desarmado para absorver, sem maiores defesas narcísicas, as intenções críticas e moralizantes que neles se expressam. Não é difícil reconhecer em certos termos e construções dos textos traduzidos o espírito agudo e bem-humorado do autor. Em algumas passagens parece-me que eu o ouço falar, repetindo expressões e imagens que me eram ditas em conversas amenas e informais – às vezes ao som de um bom vinho, de uma rodada de salgadinhos ou de uma tépida fondue de queijo. Maurice não era desses que, escrevendo, sacrificam a naturalidade do colóquio em 403

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prol da correção ou de uma obtusa e falsa profundidade. Seu texto é corredio, pitoresco, e reflete a bonomia que era uma das marcas de seu espírito. Não é à toa que subintitulou o seu livro de “um safári literário”, propondo ao leitor, em vez de um roteiro acadêmico e erudito, uma excursão zoológica. Excursão para aprender o que então se aprendia pela voz dos clérigos, poetas, reis, que, utilizando os bichos como motivos ou modelos, davam lições como estas – e aqui retiro aleatoriamente do livro um ou outro exemplo. Vejam como, num bestiário medieval francês, faz-se referência à lebre: “Minha vida é dos cães fugir,/ pois minha carne é deliciosa;/ quanto mais alguém possuir,/ tanto mais vê gente invejosa.”. Ou à águia: “Sou o rei de todas as aves;/ eu vôo a tamanha altura/ que percebo o sol sem entraves./ Ver a Deus, que boa ventura!”. Essas quadras, referidas aqui mais por sua brevidade, constituem um exemplo típico da estrutura dos bestiários, nos quais à descrição dos animais segue-se uma reflexão de caráter didático ou moral – sempre com o intuito, repita-se, de condenar o pecado e exaltar a grandeza de Deus. O livro não se limita a exposição e comentário. Com o rigor de um historiador da literatura, Maurice mostra como esse tipo de composições atravessa o Medievo, a Renascença, os estilos de época posteriores ao Barroco, e chega à modernidade. É claro que, na visão dos autores modernos, essa espécie literária veio a adquirir outra configuração. Não interessava mais a referência animal como instrumento de edificação das almas, e sim como objeto lúdico ou reflexivo a partir do qual o homem melhor dimensiona a sua humanidade. Na pena de um Manuel Bandeira, de uma Cecília Meireles, de um João Cabral de Melo Neto e outros, conforme demonstra Maurice, a pintura dos bichos serve à caracterização às vezes jocosa, às vezes dramática, de situações em que o homem encontra no ser vivo irracional um espelho, mesmo que deformado, da sua própria natureza. Como o trabalho de Maurice é o de um intérprete literário e o de um historiador erudito, ler a sua pesquisa sobre os bestiários é adentrar o universo cultural da Idade Média e depreender-lhe hábitos, práticas sociais e filosofia de vida. A pretexto de orientar os homens sobre o que não deve ser feito, essas composições deixam entrever o que se faz ou, o que dá quase no mesmo, o que se é tentado a fazer em detrimento da moral e dos bons costumes. Na medida em que aparecem como um espelho do comportamento humano, constituem uma forma de catarse ou exorcismo. O homem da Idade Média debatia-se entre os apelos divinos e as chamadas tentações bestiais. Devia triunfar sobre essas últimas, mas a batalha sabe-se que não era fácil. Os bestiários constituíam uma tentativa jocosa e irônica de ele se defrontar com a besta que nele habita, identificando literalmente num bicho os traços que o diminuíam e amesquinhavam perante a divindade. Juntamente com a literatura dos goliardos, eles constituem um veio paródico que revela o outro lado, leigo e mais humano, de um universo ensombrecido por exigências tirânicas e medos irracionais. O grande mérito do trabalho de Maurice é extrapolar esse referencial místicomoralizante e apresentar as composições ligadas aos animais como uma espécie literária que transcende as épocas históricas; remontando à Bíblia, ela atravessa o Medievo, chega ao Classicismo através dos livros de emblemas, ou mesmo de Camões, e a partir de Apollinaire atinge a Modernidade. 404

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É óbvio que, nas realizações modernas, o espírito, a figuração, o molde narrativo/descritivo com que se apresentam os bichos diferem em muito da forma como eles apareciam nos textos medievais. Se antes a preocupação era de ordem basicamente instrutiva e moral, e os animais apareciam como símbolos de defeitos humanos, com o tempo eles foram adquirindo autonomia em relação às fraquezas que deviam representar e servindo a caracterizações positivas da vida e da natureza. Como bem observa Maurice, parece ter concorrido para isso a preocupação ecológica dos tempos modernos, em função da qual ocorreu uma espécie de reabilitação simbólica de alguns vilões clássicos – como, por exemplo, o lobo mau. Pela originalidade do tema e pela forma como o autor o domina e desenvolve – com uma leveza quase coloquial e o bom humor de um scholar sem preconceitos –, esse livro seguramente se constitui em referência para quem quer conhecer ou estudar os bestiários. Ao subintitulá-lo de um “safári literário”, como dissemos, Maurice se propôs uma espécie de guia nessa excursão por entre a selva de bichos. Poucos teriam feito melhor, e assim ficamos a dever-lhe não apenas nós, os viajantes, mas também os próprios bichos, que o autor generosamente resgata nesse painel da literatura de todos os tempos. Por tudo que produziu, Maurice se constitui, de fato, em referência sobre os estudos medievais entre nós. Mas seus trabalhos sobre esse período histórico, tão mal compreendido por intelectuais que ainda tendem a vê-lo como uma época de retrocesso e trevas, não se limitaram ao âmbito acadêmico ou artístico. Ele também foi capaz de transmitir o seu entusiasmo a toda uma geração de alunos, bolsistas, orientandos, que hoje de alguma forma prolongam o seu legado. Como bem lembra Eduardo Hoornaert, Maurice “soube dialogar com a geração emergente na Universidade Federal da Paraíba e formar um grupo de jovens que, com ele e por meio dele, assimilou uma nova visão da Idade Média, e chegou a produzir em tempo record alguns bons trabalhos”. (HOORNAERT, p. 2) Peço licença para encerrar este depoimento transcrevendo parte do texto que elaborei por ocasião da sua morte. Não acho palavras que possam defini-lo melhor do que essas, escritas num momento de saudade e comoção:

O que eu aprendi com o intelectual foi muito pouco em relação ao que aprendi com o homem. Maurice Van Woensel era um compêndio de tolerância, generosidade e bom humor. Poucos conheci (vá lá o plural, para não dizerem que quero mitificar meu ex-amigo) com tal pureza de espírito. Sabia ser firme sem ser rude, sério sem ser antipático, alegre sem ser frívolo. Jamais ouvi dele um juízo malévolo sobre alguém. No máximo, quando por força de um comentário meu ele era obrigado a se manifestar, ria encabulado e sem jeito como se procurasse desculpar o outro.

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A baixeza ou a indignidade alheia pareciam desconcertá-lo. Imagino que o intrigava que as pessoas antepusessem a má vontade, a antipatia, o rancor a sentimentos como a fraternidade e a concórdia. O lado mesquinho e hostil do semelhante, ele parecia afrontosamente desconhecer. Estaria nesse desdém, já que ninguém é santo, o seu único traço de arrogância. Uma arrogância gentil.

Muito obrigado. REFERÊNCIA HOORNAERT, Eduardo. A obra medievalista de Maurice van Woensel. (Texto enviado ao autor através da internet).

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A POESIA FEMININA DE AL-ANDALUS NO SÉCULO XII Iranice Gonçalves Muniz Introdução O presente ensaio tem como objeto de estudo a poesia feminina de al-Andalus. Por alAndalus se conhece o território da Península Ibérica que desde o ano 711 a 1492 esteve dominado pelos mulçumanos. Hoje denominada comunidade autônoma de Andaluzia na Espanha. O objetivo principal é resgatar a presença feminina, na poesia, no século XII. As mulheres poetisas de al–Andalus se atreveram a romper as regras de seu tempo, a partir do século IX até o século XIII, em plena Idade Média, com suas poesias do tipo épico, lírico, amoroso e satírico. Pois, em al-Andalus era possível uma cultura mulçumana: mais aberta, mais livre. Devido a esse atrevimento, essas poesias passaram a ser um sopro de luz na alma feminina, que sem sombra de dúvidas abriram portas para atualidade . A poesia de al-Andalus deixa marcas que semeia o imaginário de liberdade e igualdade de algumas mulheres. Teresa Garulo em uma importante antologia catalolou trinta e nove poetisas de al-Andalus, oito dela viveram no século XII. Sem desmerecer a contribuição das trinta e uma poetisas de al-Andalus, catalogadas por Garulo, principalmente às oito, que viveram no século XII, tomo como referência a poesia de Hafsa Bint al-Hayy ar-Rakuniyya [1135-1191] devido o maior número de poemas. Hafsa foi uma poetisa hispanoárabe famosa no século XII, e de quem se conserva o maior número de poemas registrados. O registro e a conservação desses poemas deve-se em parte ao interesse da família do poeta (seu amante), Abu Ya’far Ibn Said, por ela [ GARULO,1998]. Dividimos este trabalho em três breves partes: no primeiro item procuramos de forma sintética descrever, a contribuição árabe no território al-Andalus na Idade Média. No segundo lance tentamos situar, as mulheres e a poesia de al-Andalus no século XII, e por último apresentamos Hafsa: poetisa de al-Andalus, suas poesias estão em espanhol respeitando a tradução (do árabe para o castellaño) feita por Teresa Garulo. 1. Contribuição árabe no território Al-Andalus na Idade Média A idade Média é reconhecida a partir da queda do Império Romano até o Renascimento no século XV. Porém, a unidade da Idade Média como período histórico é objeto de contestação por parte de diferentes historiadores. Segundo HAUSER ela se divide em três períodos culturais muito distintos: a economia natural da fase inicial da Idade Média; a cavalaria galante da Idade Média; e a cultura burguesa urbana do final da Idade Média. Para o 1

Doutoranda em Direito Público pela Universidade Pompeu Fabra – Barcelona, Espanha. Para Le Goff, a bela Idade Média é a de incomparável eclosão artística: é a época do gótico. Uma arte introduzida na igreja abacial de Saint-Denis [Le Goff 2008:59]. É de salutar importância destacar aqui que a divisão do trabalho, a cidade, as novas instituições, são os traços essenciais da nova paisagem intelectual da cristandade ocidental no fim do século XII. Sobre o tema ver Le Goff, Os Intelectuais da Idade Média, [2006:8] 2

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autor, as divisões entre essas três épocas são muito mais profundas do que marcam o começo e o fim da Idade Média como um todo [HAUSER, 2003:123-124]. HAUSER destaca que: Os acontecimentos que separam esses períodos – o surgimento da cavalaria aristocrática, a par da mudança da economia natural para a economia monetária urbana, o despertar da sensibilidade lírica e a ascensão do naturalismo gótico, a emancipação da burguesia e o começo do capitalismo moderno – são mais importantes para explicar a moderna concepção de vida do que todas as realizações espirituais da Renascença [HAUSER, 2003:123].

LE GOFF, em sua obra Os Intelectuais da Idade Média, acrescenta que “fazer o novo, serem homens novos – disso os intelectuais do século XII tiveram vivo sentimento [LE GOFF, 2006:34]. Do ponto de vista transformador, à al-Andalus do século XII devemos a introdução dos textos de Aristóteles no ocidente através das traduções latina de filósofos árabes. Não se pode negar que com a chegada dos árabes à Península Ibérica algo mudou, ou seja, a alAndalus, não foi mais a mesma. Eles influenciaram as letras, as artes, a filosofia e as ciências. Segundo Le Goff, [..]junto com as especiarias e a seda, trazidas de Damasco, de Bagdá, de Córdoba, os manuscritos trazem ao ocidente cristão a cultura grego-árabe, e são na verdade, um intermediário, numa instância inicial. As obras de Aristóteles, de Euclides, de Ptolomeu, de Hipócrates de Galeno acompanharam no Oriente os cristãos heréticos – Originais árabes, versões árabes dos textos gregos, originais gregos são então traduzidos, freqüentemente por equipes ou por uma pessoa isoladamente. Os cristãos do Ocidente utilizam-se de assistentes espanhóis que viveram sob o domínio mulçumano, os moçárabes, como também, utilizam-se de judeus e até mesmo de mulçumanos [Le Goff, 2006:38]

As obras científicas de al-Andalus eram traduzidas para o latim, do mesmo modo como se conheciam os contos orientais. Assim, a “Espanha” miscigenada do século XII, no mínimo era bilíngüe, já que os setores eruditos saberiam não só o andaluz, como o árabe clássico, o hebraico e o latim[SLEIMAN, 2000:36-40]. E neste sentido SLEIMAN argumenta que: O elemento que influenciara o pensamento artístico e filosófico da Europa não seria outro senão o andaluz: na sua versão madura resultante da mescla dos três seguimentos que compunham a Andaluzia – cristãos, judeus e mulçumanos [SLEIMAN, 2000:36].

Para GARULO, no território Al-Andalus era possível uma cultura mulçumana: mais aberta, mais livre, e diferente dos béberes do norte da África, diferente da dinastia abácida

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que ficou em Damasco e Bagdá, acredita-se que ali era mais livre, e tanto que possibilitou durante séculos aquela convivência de tolerância. Em palavras de GARULO, normalmente, as pessoas acham que por estar em território europeu, essa foi uma fatia não árabe, ou menos árabe, e é o contrário. Toda música e a poesia que se desenvolveu em al-Andalus era uma fusão de elementos do oriente, que foram sintetizados junto com as culturas cristã e judaica que estavam ali também, há anos, mesmo antes da chegada dos mulçumanos”. Assim, grande era a influencia da poesia árabe na poesia medieval provençal européia [GARULO,1998]. [Tradução Livre]

Pois bem, entre o século XI e XII se registra um grande número de mulheres, na vida literária, e não só aristocráticas mas, também as escravas [GARULO, 1998]. E isto se dá, segundo MARIN, devido ao desenvolvimento das artes e das ciências, ao notável esplendor cultural que se produz em ambos os séculos. Nossa atenção estará voltada para as poetisas do século XII. 2. As mulheres e a poesia de al-Andalus no século XII No ocidente, no século XII, nos encontramos com uma surpreendente quantidade de Mulheres de fama e renome, por méritos próprios, como a historiadora Anna Comnena autora da obra “la Alexada”, a filósofa Eloísa, a escritora Maria de Francia, a rainha Leonor de Aquitania ou a mística e música Hildegarda Von Bingen [MARIN 2000:46]. É neste mesmo século XII, que surge uma forte corrente antimarital. As mulheres se libertam, o casamento é objeto de descrédito, tanto nos meios nobres (o amor cortês, o amor carnal ou esperitual, só existe fora do casamento: Tristão e Isolda, Lancelote e Genoveva) como nos meios dos colégios, nos quais se cria uma teoria do amor natural (Romance da rosa de Jean de Meung já no século XIII) [Le Goff: 2006-64]. As mulheres de al-Alndalus não estavam excluídas da sociedade, e portanto, participavam da vida cultural através das poesias do canto e do ensino. Como partícipe dessa sociedade é que podemos dizer que elas influenciaram, também, outras culturas, devido em parte, o prestígio da cultura de al-Andalus extrapolar as fronteiras ibéricas [SLEIMAN, 2000]

Para Garulo [1986....] as relações comerciais e os casamentos mistos promoveram o contato entre os cristãos e mulçumanos. Os casamentos foram numerosos e os encontramos na própria aristocracia: governadores árabes se casaram com nobres cristãs, reis mouros se casaram com princesas espanholas e reis cristãos se casaram com filhas de emires árabes. Quiçá isto tenha contribuído para uma convivência de tolerância. Sobre o estudo metódico e sistemático da gramática e do léxico árabe-andaluz, veja CORRIENTE, Fraderico, A Grammatical Sketch of the Spanish Arabic Dialect Bundle. Prólogo de Emilio Garcia Gomes, Madrid, Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1977. Segundo Seiman [2000: 47,48] o árabe- andaluz seria uma forma de neo-árabe em várias interferências estáticas, sendo a mais notável delas a substrática, como conseqüência do impacto do romance dos autóctones da península sobre o neo-árabe de uma minoria, quando, entre os séculos VII e IX, este foi substituindo aquele. Numa sociedade em que o prestígio maior recai sobre os teóricos homens, em sua maioria seguidores de Aristóteles, para quem a mulher era um ponto inferior ao homem.

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Sabe-se hoje, que em al-Andalus, entre os séculos XI e XII se documenta um número elevado de mulheres que participavam da vida cultural. MARIN contabilizou 296 nomes neste período, segundo a autora a maioria são: poetisas, pedagogas, cantoras [MARIN, 2000:47]. Segundo SLEIMAN a mescla dos três segmentos presente em al-Andalus – cristãos, Judeus e mulçumanos no século XII é o elemento que influenciara o pensamento artístico e filosófico da Europa [SLEIMAN 2000:36]. Em se tratando das poetisas de al-Andalus,Teresa Garulo em uma importante antologia aponta que somente encontrou “trinta e nove mulheres de quem se pode dizer que eram poetisas ou que compunham versos ou de que se conservem poemas”. A pesquisa de GARULO, Diwãn de lãs poetisas de Al-Andalus, aponta que durante o século XII em al-Andalus viveram em torno de poetisas (que tem registros): 1.Amat al-Aziz, 1153-1235; 2. Asma al-Aniriyya, que escreveu um verso ao califa almohade Abd al- Munin (1130 – 1163); 3. Hafsa Bint al-Hayy ar-Rakuniyya, partencia a uma família nobre e era conhecida em Granada como uma mulher bela, inteligente e culta; Hamda Bint Ziyad, seu pai era professor de literatura; 4. Muhya al-Garnatiyya nada se sabe sobre sua vida no século XII; 5. Nazhun Bint al-Qalaiyya, são poucos os poemas conservados, era natural de Granada, não se conhece a data de nascimento nem de sua morte, sabe-se que viveu em meados do século XII; 6. Qasmuna Bint Isma’il al Yahudi pertenceu a uma família de grande tradição literária em árabe; 7. As-Silbiyya, não se conhece o real nome dessa poetisa, sabe-se que escreveu uns versos ao califa almoade Abu Yusuf Ya qub al-Mansur para se queixá-se da atuação dos governadores de sua cidade e do encarregado dos impostos (1184-1199) e Warqa bint Yintãn, nada se registra dessa poetisa exceto seu nome. A pesquisadora assinala que: maioria das poetisas de al-Andalus exerceu suas atividades literárias em Córdoba, Sevilla e Granada por se tratar de cidades mais importantes de al-Andalus. Entretanto, o que se sabe da maior parte dessas poetisas de al-Andalus se limita a poucos registros de suas existências. São poucas as poetisas que têm dados bibliográficos. Para a pesquisadora GARULO, as fontes árabes na maioria das vezes não indicam a idade, o estado civil, e tão pouco revela se viveram muitos ou poucos anos. Sabe-se que a grande maioria das poetisas são mulheres livres, e com freqüência pertencem à linhagem de famílias importantes ou nobres. No século XII a poesia parece mais livre. As poetisas dão a impressão de se mover mais espontaneamente em suas manifestações literárias e isto se observa no relativo encanto e leveza de alguns poemas, especialmente nos poemas de amor. Entretanto, em determinados poemas algumas poetisas recorrem ao estilo antigo para queixar-se dos governantes e dos males causados a sua pátria [GARULO, 1998:51]. Também no século XII já se sentia – sobretudo nas poesias de al-Andalus o imaginário feminino das poetisas, e fortemente na poesia de Hafsa a necessidade de uma identidade própria de mulher, com sentimentos de desejos e ciúmes compartidos com seu amado. Entretanto, esses sentimentos às vezes colocam na sombra, indevidamente, o comportamento feminino nas obras medievais [GARULO, 1998]. O amor, o ciúme o desejo e o protesto estão presentes na poesia feminina de al-Andalus, principalmente na poesia de Hafsa fonte de inspiração para este ensaio. 410

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3. Hafsa: poetisa de al-Andalus Hafsa bint a Hayy [1135-1191], é a poetisa árabe–andaluza que mantém o maior volume de sua produção poética, ao todo, são 17 poemas, registrados e conservados até nossos dias, graça, principalmente, ao interesse de seus biógrafos e da família do poeta Abu Ya’far Ibn Said. Segundo GARULO para alguns autores sua obra é literatura de alta qualidade. Seus biógrafos elogiam sua cultura e a denominam de mestre do seu tempo [GARULO, 1998]. Hafsa, conhecida como a poetisa al-Rakuniyya, era filha de uma família nobre de origem beréber, nasceu em Granada, na Espanha no ano de 1135, segundo a maioria de seus biógrafos, e ali passou sua infância e juventude. Em um contexto de intensa agitação política, Hafsa assistiu a queda do império Almorávide e a instauração do Califato Almohades. Ela viveu em um ambiente cortesã e conheceu o poeta Abu Ya’far ibn Said, e com ele manteve uma forte e complicada relação afetiva. [GARULO, 1998:]. Hafsa era uma mulher conhecida em sua região. E, em 1156 chega a Granada o Governador almohade, o príncipe Abu Said Utmãn, filho do Califa Abd al-Mumin, que logo se apaixonou pela poetisa, no início foi rechaçado por ela, mas, logo depois se converteu em sua amante. Esta situação originaria um conflituoso triangulo amoroso (a poetisa – o poeta – e o príncipe, governador de Granada). A poetisa era tida como uma mulher inteligente, bela e culta. A inteligência e cultura de Hafsa, não só lhe permitiram freqüentar as rodas dos poetas e nobres e desenvolver uma intensa atividade literária e educativa que lhe possibilitou alcançar a fama, como também lhe permitiram participar de missões diplomáticas. Por exemplo, participou em 1158 de uma missão diplomática com um grupo de poetas e nobres de Granada ante o califa Abd alUm’min, em Rabat. Se nesta ocasião ela recitou alguns de seus poemas não se têm notícias [GARULO, 1998]. Herdeira da tradição poética árabe, Hafsa, ao contrário do que era habitual, foi capaz de expressar, com grande beleza, os seus verdadeiros sentimentos [GARULO, 1998]. Os 17 poemas que restam foram traduzidos para o espanhol pela pesquisadora Teresa Garulo como um presente feminino que nos legou o século XII. Estes poemas, segundo a pesquisadora GARULO são resultado do relacionamento da poetisa entre os seus dois amantes, o príncipe Abu Said Utmãn e o poeta Abu Yafar ibn Said, período em que desenvolveu uma intensa troca de poemas de amor, e que foram preservados até os nossos dias [GARULO 1998:74-84]. O período em que viveu a poetisa Hafsa, como dito antes existiu uma forte corrente anti-matrimonial. O século XII foi um período em que a mulher se “liberta”, em que não é mais considerada uma propriedade do homem ou uma máquina de fazer filhos, em que não se pergunta mais se ela tem uma alma – é o século do rápido desenvolvimento marial no ocidente [LE GOFF, 2006:64]. Hafsa freqüentava a Corte dos almoades em Granada. Sabe-se que ela teve um lugar de destaque em al-Andalus, com vários episódios. Como poetisa, a maior parte de seus poemas são poemas de amor dirigidos ao poeta Abu Ya’far ibn Said, embora haja alguns 411

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satíricos, quase todos relacionados aos sentimentos de amor, ciúmes e desejos [GARULO, 1998]. O episódio mais marcante na vida dessa poetisa foi seu amor com o poeta Abu ya’far Said, cujo dramatismo atraiu a atenção de quase todos os seus biógrafos. Segundo GARULO, o biógrafo Di Giacomo acredita que esta relação amorosa deve ter começado por volta do ano 1154, com altos e baixos, até a morte do poeta em 1163, e que essa relação foi uma das causas da execução do mesmo (executado a mando do Governador de Granada). Muitos dos seus poemas são frutos dessa relação amorosa [GARULO,1998], alcançando o máximo de inspiração nos que se lamenta da prisão e morte de seu amado e amante. Este fato a poetisa registra no seguinte poema: Por vestirme de luto me ameazan por um amado que me ham muerto com la espada !Que Dios tenga clemência com quien sea liberal con sus lágrimas, o con quien llore por aquél que mataron sus rivales, y que las nubes de la tarde, con generosidad como la suya, rieguen las tierras donde quiera que vaya!

Vislumbra-se aqui a irreverência da poetisa Hafsa, que nos seus versos vai além da poesia . Sabe-se, hoje, que não só de poesia nos falam os poetas e as poetisas do século XII muito mais do que os desinformados pretendem minimizar sob o rótulo de “medieval” na acepção vulgar do termo. No século XII segundo CAMPOS, a livre concepção de amor de seus poetas, desrecalcando a repressão religiosa e alçando a mulher a posição de relevo e de dignidade que lhe eram negadas na sociedade patriarcal, pode ser lida como signo subversivo de ideologias mais generosas, direcionadas para o futuro [CAMPOS,1987:29].

GARULO destaca que HAFSA foi uma mulher extemamente famosa em Granada, esta afirmação está apoiada no fato de que uma nobre dama granadina pedira um autógrafo à poetisa e ela escreveu de seu punho e letra o seguinte verso: Dama de la hermosura y la nobleza, cierra los párpados, benévola, ante las líneas que trazó mi cálamo, y míralas con ojos de cariño, sin prestar atención a los defectos del contenido y de la letra.

Hafsa sentiu-se viúva e colocou luto por seu também amante o poeta Abu Yafar ibn Said apesar das ameaças do Governador. E, se retirou da corte e se dedicou ao ensino. Em 1184 aceitou o convite do Califa Yaqud al-Manur e partiu para Marrakech para dirigir a educação das princesas almohades. Ali permaneceu até sua morte em 1191. Poema de num. 17 (na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:84]. Poema de num. 1(na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:74]

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Em um poema dirigido ao poeta Abu ya’far Said a poetisa de Granada se mostra em pé de igualdade com seu amado e amante: Tu que reclamas ser el primero en el amor y en la pasión de las mujeres, tu poema ha llegado mas no me satisfacen tus palabras. Desesperar de conseguir al amado ¿romperá las riendas de quien reclama amor? Completamente te equivocas, y no te vales tu nobleza; desde que estás en la carrera te ha acompañado el éxito hasta que has tropezado y te avergüenza descubrir tu cansancio. Por Dios, en todo tiempo muestran las nubes su llovizna y los azahares abren a cada instante sus corolas. Si conociera mis razones Apartarías de mí la espada del reproche.

Hafsa é a mostra da mulher independente e culta da época de esplendor de al-Andalus, esta poetisa foi muito respeitada, apesar de suas aparentes liberdades, em sua época e por biógrafos posteriores, que a consideraram como uma grande poetisa [GARULO, 1989]. Os poemas de amor que são dirigidos ao poeta Abu Yafar Said expressam também o sentimento de desejos. Esse sentimento foi uma marca fundamental na poesia feminina de AlAndalus, porque a partir daí se conhece uma nova versão da mulher como um ser capaz de amar, não só fisicamente como espiritualmente [GARULO, 1989]. Elogio aquellos lábios porque sé Lo que digo y conosco de lo que hablo, Y les hago justicia, no miento ante Dios: En ellos he bebido una saliva Más deliciosa que el vino.

Herdeira da tradição poética árabe, mesmo assim, Hafsa é capaz de expressar, com grande beleza e leveza, seus sentimentos reais em uma linguagem espontânea [GARULO, 1989:81]. A Abu Ya’far Van a verte mis versos, Deja a sus perlas que adornen tus orejas. Así el jardín, pues no puede ir a verte, Te envía su perfume.

Seu amante, o poeta Abu Yafar ibn Said, que havia sido amigo e secretário do príncipe, fez deste objeto de suas sátiras e participou de uma rebelião política contra o Governador Abu Said e acabou sendo preso e executado em Málaga em 1163. Poema de num. 8 (na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:81] Poema de núm. 9 (na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:81]

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Rigorosamente contemporânea, a granadina Hafsa vive e parece aproveitar desse ambiente “novo” do século XII quiçá, devido a sua formação cultural, e o espaço propício em território al-Andalus, seus sentimentos jorram em versos que nos parecem atrevidos em busca da liberdade e da igualdade entre mulheres e homens. Por exemplo, num outro poema de amor, dirigido a seu amante e poeta Abu Yafar ibn Said se coloca : A Abu Ya’far

¿Voy a verte o vienes a mi casa? Mi corazón siempre se inclina a tus deseos. Te encontrarás a salvo de la sed y del ardor del sol cuando me des la bienvenida: mis labios son aguada dulce y fresca, y dan las ramas de mis trenzas densas sombra. Contéstame deprisa; no es un favor, oh, mi Yamil, hacer que espere tu Butayna.

Existe um poema de Hafsa, o único, segundo GARULO, que tem um corte satírico que pode indicar-nos o que havia convertido a poesia satírica no fim do século XII, mas também, nos indica a coragem de uma mulher contrapondo as normas, se enfrenta a um homem, neste caso de certo renome por sua atividade poética e sua cultura e o faz sem o menor recato utilizando-se de total liberdade de expressão em plena idade média, que faz com que cada parte e cada palavra do poema contribua para esta leitura: Dili a esse poeta de quien nos há librado el que se haya caído sobre mierda: vuelve a tu pozo, hijo de mierda, igual que hace la mierda. Y si vuelves a vernos algún día, verás, oh tú, el más despreciable y vil, sin discusión, de entre los hombres que esa es la suerte que te espera si andas medio dormido. ¡Barba que ama la mierda y odia el ámbar, que permita dios que nadie vaya a verte hasta que te hayan enterrado.

A sátira na Idade Média foi demasiado violenta. A Sátira serviu, ora como instrumento de ataque ao clero, à Cúria romana, ora ao ataque político, ora para expressar os sentimento mais brutais do ser humano [SPINA: 1973: 43]. É certo que a poesia amorosa e satírica de al-Andalus que se há conservado em Hafsa e em outras poetisas da Idade Média é mais que suficiente para confirmar a liberdade que gozava a mulher de al- Andalus. As produções poéticas destas poetisas abriram uma janela ou dera um sopro de luz na alma feminina, que a história oficial não deve se furtar. No mínimo, a poesia de al-Andalus ajudou a desenvolver uma nova visão do papel feminino na Europa, por que a mulher era muito mal considerada, a mulher era tida, dentro da tradição cristã mais antiga e da Idade média, como um ser incapaz de amar verdadeiramente, Poema de num. 13, traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:83].

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mais como alguém ligado à perdição do homem, sobretudo do homem puro. Essa idéia de que o homem puro pode ser também guiado pela mulher, pelo amor, pelo afeto feminino é uma marca al-Andalus”. Essa visão vai entrar, pelo menos é uma das vias, na nova concepção de amor e da mulher que vai se espalhar na Europa a partir do século XII. Sabemos que a poesia lírica, cujo primeiro foco, tão disputado pelos arabistas, teria sido a Andaluzia dos princípios do século XI, com as formas dos cantos moçárabe [SPINA,1973:22]. E que contribuição das mulheres na cultura ocidental é um tema de fundamental importância quando se fala de Idade Média, principalmente na al-Andalus. A presença dessas mulheres na poesia de al-Andalus está marcada pela “liberdade de seus versos”, e, transcende as fronteiras de Andaluzia e da Idade Média através dos tempos, causado interesses em vários pesquisadores da atualidade. Considerações finais Apesar dos estereótipos que temos das mulheres islâmicas não sem razão houve em alAndalus poetisas importantes que escreveram com suma liberdade e em considerável competência com os poetas homens . Pois bem, o fato de haver mulheres poetisas, como Hafsa, nos faz ver a ruptura dos cânones, ou as transgressões do que era habitual ou correto na Idade Média. Assim, o mérito da poesia de Hafsa enquanto poetisa medieval é exatamente a sua sensibilidade frente aos sentimentos humanos como amor, ciúmes e desejos que tanto os homens como as mulheres são portadores. Podemos dizer, com GARULO [1998], que o século XII marca a era do esplendor de al-Andalus e, Hafsa foi altamente respeitada em seu tempo e ainda ronda entre muitas mulheres poetisas de todo o mundo. Porém, não podemos esquecer, em nenhum caso que Hafsa foi uma mulher de família nobre com um status que se distancia do comum das mulheres de sua região e do seu tempo. REFERÊNCIAS CAMPOS, Augusto de: Mais provençais, São Paulo, Editora Schwarcz Ltda.,1987. Di Giacomo, L.: Une poétse andalouse du temps des Almoades: Hafsa bint al-Hayy al Rakuniyya, Madrid, Hesperis, 1947. 9-101. GARULO T: Diwan de las poetisa de al-Andalus, Madrid, 1986, pp.71 -88 . HAUSER, Arnold: História Social da Arte e da Literatura, Martins Fontes, São Paulo, 2003. (Trad. Álvaro Cabral). LE GOFF, Jacques, Os Intelectuais na Idade Média, Rio de Janeiro, José Olympio editora, 2006. ______. Uma longa Idade Média, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008. MARIN, Manuela, Mujeres em al-Ándalus, Madrid, CSIC, 2000, p.165. SPINA, Segismundo, Iniciação na cultura literária medieval, Rio de Janeiro, Grifo, 1973.

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ANÁLISE SEMIÓTICA DO POEMA CANTAR DE AMOR Maria Elizabeth Baltar Carneiro de Albuquerque1 Maria Nazareth de Lima Arrais2 1 Trovadorismo Ao sermos convidadas a participar do Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais (GIEM), o desafio estava posto. A distância temporal nos instigou a conhecer o sentido de nossos dizeres de amor e nos levou a pesquisar sobre esse universo que delegou aos homens a conquista feminina e às mulheres o pudor e a descrição nos gestos de amor. Ao iniciarmos os estudos sobre o “amor cortês”, percebemos que algumas questões se impunham como necessárias para compreendermos um período e uma sociedade por meio de sua produção literária: o trovadorismo. O Trovadorismo surgiu no século XII como a primeira manifestação lírica da Idade média. No âmbito da poesia, surgem as Cantigas, enquanto na prosa as Novelas de Cavalaria. Os poemas produzidos eram cantados por poetas e músicos e recebiam o nome de Cantigas, porque eram acompanhados por instrumentos de corda e sopro. Essas cantigas, no caso da literatura galego-portuguesa, mais tarde, foram reunidas em Cancioneiros: o da Ajuda, o da Biblioteca Nacional e o da Vaticana. No Trovadorismo galego-português, as cantigas eram classificadas em dois gêneros literários: Satíricas (Cantigas de Maldizer e Cantigas de Escárnio), cujo objetivo era ridicularizar e criticar pessoas de forma sutil ou grosseira, a vida social e a política da época, sempre num tom de irreverência; e as Líricas (Cantigas de Amor e cantigas de Amigo), tendo como temática o amor. As Novelas de Cavalaria, originárias das canções de gesta francesas, havia sempre a presença do cavaleiro medieval, concebido segundo os padrões da Igreja Católica, que lutavam para defender a honra cristã. O cavaleiro medieval, nessa concepção, opunha-se ao da corte, sedutor e envolvido em amores ilícitos. Compreender a diversidade trovadoresca significa perceber que vários poetascantadores desempenhavam funções diversas nas sociedades em que circulavam, como Santos (2007, p.1) tão bem expressa: Um dos temas mais importantes que formam os grandes gêneros da literatura é o Amor – fulcro da poesia lírica -, e a Luta – núcleo da matéria épica. O Amor, na lírica trovadoresca é apresentado sempre como a tentativa de união entre o homem que solicita a mulher que nega. A Luta está presente à volta do desenrolar dos feitos realizados tanto por deuses do paganismo germânico das epopéias nórdicas, como nas canções de gesta na luta contra o infiel, no qual o fulcro é a defesa da fé cristã. Amor e luta vão se encontrar no final do século XII nos romances de aventura das novelas cortesãs, cavaleirescas, ou

¹Professora do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. ² Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba

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seja, a vrase amour dos Trovadores do Sul da França alimentará a prosa sob a cor do amor cortesão, a fine amour estimulado pela cortesia.

Certamente, os trovadores medievais ajudaram a escrever um dos capítulos da História da Cultura da idade Média, transformando sua própria vida em uma obra de arte. 1.1 Discorrendo sobre o Amor Cortês O amor cortês surge no sul da França, na região da Provença, no século XII, como um modelo de relação e de conjunção de sentimentos e corpos entre o homem e a mulher. A condição feminina na época medieval é vista por alguns autores, como uma promoção da mulher, já que a dama é quem ocupa o centro desse amor. Essa criação literária é fruto do poder que a corte dava aos poetas em alimentar seus sonhos e que levassem para longe suas inquietações e ciladas da vida diária. Evidentemente, a corte foi o lugar onde o jogo do amour courtois (amor cortês) ou fin’amours (fino amor) tomou forma. Os homens procuravam tratar as mulheres “com um refinamento, demonstrando sua capacidade de capturá-las, não pela força, mas por carícias verbais e manuais [...]” (DUBY, 1993). Percebe-se então que, os modos de sentir e suas formas de expressão indicam o Amor Cortês como um momento inovador na complexa história humana, onde “A súplica amorosa é calcada no modelo feudo-vassálico, [...] o poeta está ao serviço da dama como o vassalo ao do senhor [...]” (RÉGNIER-BOHLER, 2006, p. 48).

As relações de fidelidade entre o Senhor Feudal e os Vassalos, na sociedade medieval, são expressas na literatura, onde a dama ocupava o lugar do senhor para quem o vassalo prestava cortesia. Na canção de amor, o homem expressa o seu amor pelo “senhor”. Percebese que a fidelidade secreta do amor cortês contrasta com a fidelidade vassálica, esta declarada publicamente, enquanto que o nome da dama é preservado. [...] ao falar de seus próprios casos amorosos, mesmo que de maneira cifrada, o trovador trai a sua própria Dama; ao falar dos casos alheios, destinados a ensinar os aprendizes do amor a trilhar o caminho da cortesia, o trovador acaba se comportando como um daqueles losengiers – fofoqueiros da vida amorosa que estão sempre prontos a tornar público um segredo de amor (BARROS, 2008, p. 7)

Dessa forma, o Amor Cortês desempenha uma função social e lúdica na sociedade da corte que emerge a partir da sociedade feudal. Representa uma revolução imaginária dos modos de pensar e de sentir, sem deixar os padrões repressores de seu tempo. O que se convencionou chamar de jogo do amor cortês apresenta-se como uma doutrina da sedução, na medida em que corresponde a regras de conduta amorosa e determina o que deve ou não ser dito por aqueles que desejam a arte de seduzir (DOMINGUES, 2006, p. 12).

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Portanto, a posição submissa da mulher passa a ser uma fonte de inspiração de um amor capaz de reconduzir a personalidade do homem diante da autoridade que o descaracteriza. Daí, o amor cortês que surgiu e desapareceu na Idade Média ainda ecoa na literatura até os nossos dias, nos nossos dizeres cotidianos de amor, “como objeto de avaliação e abordagens interpretativas muito vivas” (RÉGNIER-BOHLER, 2006, p. 54) como atestamos através do poema “Cantar de Amor” de Manuel Bandeira, objeto de análise desse estudo. Antes de fundamentarmos o poema, é relevante destacar que a “expressão trovadoresca na Moderna Poesia Brasileira é uma realidade” como assevera Almeida (1993, p. 125). É o caso de Manuel Bandeira, em que ele próprio comenta sua inspiração para compor o poema e seu amor pelo medievalismo: O ‘Cantar de Amor’ foi fruto de meses de leitura dos cancioneiros. Li tanto e tão seguidamente aquelas deliciosas cantigas, que fiquei com a cabeça cheia de ‘velidas’ e ‘mha senhor’ e ‘nula ren’ [...]. O único jeito de me livrar dessa obsessão era fazer uma cantiga [...] (BANDEIRA apud ALMEIDA, 1993, p. 143)

2 Percurso gerativo da significação Na sintaxe da estrutura fundamental estão as relações de oposição que podem ser representadas pelo quadrado semiótico idealizado por Greimas, apresentando eixos semânticos com dois tipos de relação lógica: 1. Contradição. É a relação que existe entre dois termos da categoria binária asserção/negação. Esta relação é descrita como a oposição entre a presença e a ausência de um sema. 2. Contrariedade. Dois semas de um eixo semânticos são contrários se um deles implica o contrário do outro. As relações estabelecidas na estrutura fundamental fazem surgir mais quatro termos numa posição superior, que são os metatermos. Estes resultam em um octógono, originando a terminologia octógono semiótico, utilizada nos trabalhos do brasileiro Cidmar Pais, cujos estudos, baseados na semiótica greimasiana, dão, na atualidade, uma visão ampla do que seja a ciência semiótica. Vejamos um exemplo através do octógono semiótico:

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Classe Social

Nobreza

alta

não-plebe

Plebe

baixa

não-nobreza

Ø Na semântica fundamental percebemos as qualificações semânticas euforia versus disforia. Por eufórico tem-se a qualificação positiva e por disfórico, a qualificação negativa. Ainda existe a aforia que se refere à qualidade de neutro. A sintaxe narrativa apresenta um sujeito à procura do seu objeto de valor. A relação entre sujeito e objeto, comumente, situa-se no eixo do desejo. A busca do sujeito pode, também, situar-se no plano puramente cognitivo, na busca de um saber. Os actantes ou sujeitos da narrativa, quando separados do objeto de valor, estão em relação de disjunção e quando unidos estão em relação de conjunção. Disjunção, transformação e conjunção de actantes são as fontes básicas de qualquer desenvolvimento narrativo. A semântica narrativa está voltada para os valores do sujeito semiótico. O enunciado narrativo que liga o sujeito-objeto subdivide-se em dois grupos: enunciados de estado que designam o estado em que se encontra um sujeito; e enunciados do fazer que seria o movimento, na tentativa do sujeito passar de um estado para outro. Os enunciados de estados podem ser de dois tipos: conjunto, quando o sujeito está em relação de conjunção com o objeto, ou disjunto, quando o sujeito está separado do objeto. A passagem de um enunciado de estado a um outro (da disjunção à conjunção, por exemplo) implica uma transformação que toma a forma de um enunciado do fazer e que teve a intervenção de um sujeito do fazer. O sujeito age de maneira a transformar um estado: ele faz-fazer. Desta forma, a relação entre o sujeito e o objeto se situa no eixo do desejo, quando o sujeito se põe à procura de um objeto, isto é, quando ele exerce um fazer transformador para atingir um estado de conjunção (ou disjunção) com o objeto. Na sintaxe discursiva ocorre, segundo Greimas, o processo de localização dos atores narrativos no tempo e no espaço da enunciação e do enunciado. O discurso, ao ser construído, é, pressupostamente, estabelecido um contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário, determinando, dessa forma, a veracidade ou não do texto. A semântica discursiva tem como componente a tematização - elementos abstratos presentes no texto - e de figurativização - elementos concretos presentes no texto - que revestem um esquema narrativo. As figuras do texto formam uma rede, uma trama e para entender esta trama é necessário conhecer primeiro o nível temático, que, como o nível 419

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figurativo, são palavras e expressões que apresentam traços comuns de significação e que podem ser agrupados. Esses traços comuns podem ser reduzidos a uma oposição semântica. É a partir desta oposição que se constrói a estrutura fundamental. 3 Análise do poema “Cantar de Amor” Segmentação: Sg 1 – Pedido de inspiração para o canto de amor; Sg 2 – declaração de amor; Sg 3 – demonstração do sentimento de angústia; Sg 4 – desejo de morte; Sg 5 – aceitação do sofrimento de amor.

Na análise da segmentação do texto observamos a existência de um monólogo lírico em que o enunciador cria seu poema, numa linguagem poética, ludicamente, reconstruída, como observamos na epígrafe que introduz o poema de Bandeira: ‘Quer’eu en maneyra de proençal Fazer agora hum cantar d’amor ... (D.Dinis)!

A análise se centraliza no fazer do sujeito semiótico (S1), figurativado por um eulírico, tendo como Objeto de Valor (Ov) o amor da dama que, de acordo com o modelo atuacional, encontra-se em harmonia com a natureza do discurso: “Mha SENHOR, com’oje dia son, Atan cuitad’e sem cor assi! E par Deus non sei que farei i, Ca non dormho à mui gran sazon.

Temos assim, na narrativa do poema, um contrato, que chamamos de “contrato de amor”. D1 (destinador)

Ov

O amor

Eu-lírico

D2 (Destinatário)

Dama

Sujeito

Ao eu-lírico compete um Querer-Poder-Amar-Sofrer e é o seu Querer que determina o percurso narrativo e preside a sua realização. O destinatário irá confirmar seu Querer à vontade do destinador, cujo Poder o sujeito se valerá. A argumentação poética percorrerá o caminho por ela traçado: o amor cortês. 420

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É portanto um sujeito (S1) de um Poder-Amar-Sofrer, observado no refrão, que reitera o sentimento de angústia do eu-lírico: Mha senhor, ai meu lum’e meu ben, Meu coraçon non sei o que tem.

O enunciador (eu-lírico) está embreado no discurso, uma vez que se instaura num agora. E par Deus non sei que farei i,

Vivendo um amor cortês, o enunciador tem como objetivo principal a conquista da mulher por quem sofre de amor. Deixando-se dominar pela emoção, o eu-lirico perde a razão até chegar a um momento de profunda angústia em que a morte seria uma saída, caso não conquistasse o amor da mulher amada. Ca non dormho à mui gran sazon. [...] Noite dia no meu coraçon Nulha ren se non a morte vi,

O vocativo expresso no refrão mostra o desejo reiterado da conquista do amor da mulher a quem ele caracteriza com atributos positivos. Mha senhor, ai meu lum’e meu ben, Meu coraçon non sei o que tem.

A temporalização no discurso é marcada pelas palavras noite e dia, indicando uma continuidade do sofrimento. Ininterruptamente, o enunciador é invadido pelo sofrimento que o faz sofrer, sentindo-se assim prisioneiro desta vida. Dês oimais o viver m’é prison

O discurso, pela projeção do tempo do agora, projeta um aqui subentendido. No momento presente, ele enuncia seu sofrer que é manifestado num tempo anterior. Está portanto, em processo. No poema podemos encontrar o tema amor presente em todo o texto no sentimento do eu-lírico em relação ao desejo. ‘Quer’eu en maneyra de proençal Fazer agora hum cantar d’amor ... (D.Dinis)!

Conectado ao tema amor está o tema sofrimento. Amar para o eu-lírico implica sofrer justificado pelo tipo de construção amor cortês um amor ainda não efetivado, mas esperançoso, intensamente almejado. 421

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A morte também flui como tema, uma vez que não conseguir a mulher amada provoca no eu lírico o desejo de não viver, porque lhe é angustiante a ausência de quem ele ama. Nulha ren se non a morte vi,

Ao tema morte faz emergir o tema vida. A presença da mulher amada é sinônimo de vida, bem, luz. Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,

O quadrado semiótico de Greimas nos apresenta eixos semânticos com dois tipos de relação lógica: 1. Contradição. É a relação que existe entre dois termos da categoria binária asserção/negação. Esta relação é descrita como a oposição entre a presença e a ausência de um sema. Desta forma, um sema S1, “amor” é oposto a seu não-S1 “desamor/desilusão” contraditório (S1), “desamor”, “desilusão” (no qual o sema “amor está distante”). 2. Contrariedade. Dois semas de um eixo semântico são contrários se um deles implica o contrário do outro. O contrário de S1 “amor”, é S2 “desamor” (desilusão). O resultado é uma constelação de quatro termos, na qual um novo tipo de relação, implicação ou completariedade surge entre os termos S1, e S2 ou S2 e S1 (“amor” implica “não desamor”, “desamor” implica em “não amor”. Este quadrado é visualizado abaixo: Asserção (amor)

Negação (desamor)

S1

S2

S1

S2

(não-desamor) Não-asserção

(não amor) não-negação

No quadrado semiótico acima, visualizamos a estrutura elementar da significação. As relações estabelecidas pelos quatro termos, na estrutura fundamental, fazem surgir mais quatro termos numa posição superior, que são os metatermos. Estes resultam em um octógno, originando a terminologia octógno semiótico.

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Tensão dialética Amor cortês

Amor correspondido

Amor idealizado

vida

morte

Amor não-idealizado

amor não-correspondido

Ø

Assim como nas cantigas, no poema estudado, encontramos os principais sintomas da paixão trovadoresca, sofrer pelo amor não correspondido, irrealizável, a “coita” que só lhe resta Noite dia no meu coraçon Nulha ren se non a morte vi, E pois tal coita non mereci, Moir’eu logo, se deus mi perdon

Percebemos então que a adesão ao amor cortês se efetiva. “A alegoria do deus Amor serve para revelar a submissão ao sentimento que, doravante, é a única razão de viver do poeta” (RÉGNER-BOHLER, 2006, p. 49) O tema global, a significação de uma narrativa, por exemplo, o tema Amor em relação ao desamor (amor distante, não correspondido). Estas categorias de oposição semânticas se articulam em euforia (valor positivo = amor) ou disforia (valor negativo = desamor/amor distante) e formam a base do texto, constituindo relações lógicas elementares que são analisadas em forma de quadrados semióticos. Considerações Finais Ao estudarmos as cantigas de amor e as regras do código do amor cortês, encontramos a importância literária dessa produção e a ideologia que dominava o universo cultural da França do século XII e que inspira poetas do século XXI a focalizar o Amor Cortês em seus poemas. O poema analisado é tema relevante para Trovadorismo, retomado por autores da poesia modernista brasileira a exemplo de Manuel Bandeira. Apresenta um eu-lírico que sofre 423

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por amor a uma mulher que não se apresenta como sujeito semiótico, posicionando-se apenas como enunciatária do discurso. Ela, embora seja motivo de sofrimento para ele, é também motivo de vida, portanto, almejada. Há no discurso os temas amor vs desamor, vida vs morte.. A emoção e o sentimento são melhores expressos na língua comum do povo, como é o caso do poema aqui estudado. O modo de falar de uma língua, sua estrutura, o ritmo e o som expressam a personalidade do povo que a utiliza. Referências ALMEIDA, L.A.de. O trovadorismo português na moderna poesia brasileira. Recife: Fasa, 1993. BARROS, J. D’Assunção. Os trovadores medievais e o amor cortês – reflexões historiográficas. Alhqeia, v. 1, n. 1, p. 1-15, abr./maio 2008. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. DOMINGUES, A.B.F.F. Na corte do amor: um estudo semiótico do Tratado do Amor Cortês. 2006. 188 f. Tese (Coordenação de Pós-Graduação em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006 DINIZ, Maria Lucia V.P. Semiótica: um novo paradigma para a leitura do verbal, não-verbal e sincrético. Disponível em: Acesso em: 09 fev. 2006 DUBY, G.; PERROT, M. História das mulheres do Ocidente. Lisboa: Afrontamento, 1993. ELIOT, T.S. De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1996. ORLANDI, Eni Pulcineli. Discurso e leitura. Campinas: Ed.Unicamp, 1993. PAIS, Cidmar Teodoro. Literatura oral, literatura popular e discursos etno-literários. In: ESTUDOS em literatura popular. João Pessoa: Editora Universitária, 2004. POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 2006. O QUE é cordel. Disponível em: Acesso em: 25 jan. 2006. RÉGNIER-BOHLER, D. Amor cortesão. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2006. ROCHA, K. I. Semiótica discursiva: figuratividade literária. Rabiscos de primeira, v. 4, n. 4, p. 18-21, mar. 2004. SANTOS, L. Q. dos. O fino amor. Disponível em: Acesso em: 6 out.2008 Cantar de Amor – Manuel Bandeira ‘Quer’eu en maneyra de proençal Fazer agora hum cantar d’amor ... (D.Dinis)! “Mha SENHOR, com’oje dia son,

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Atan cuitad’e sem cor assi! E par Deus non sei que farei i, Ca non dormho à mui gran sazon. Mha senhor, ai meu lum’e meu ben, Meu coraçon non sei o que tem. Noite dia no meu coraçon Nulha ren se non a morte vi, E pois tal coita non mereci, Moir’eu logo, se deus mi perdon Mha senhor, ai meu lum’e meu ben, Meu coraçon non sei o que ten. Dês oimais o viver m’é prison: Grave di’aquel en que naci! Mha senhor, ai rezade por mi, Ca per’ço sem e per’a razon Mha senhor, ai meu lum’e meu ben, Meu coraçon non sei o que ten.”

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A DEMANDA DO SANTO GRAAL: UMA PROSA MEDIEVAL NA LITERATURA DE CORDEL Maria Nelcimá de Morais Santos1 A Demanda do Santo Graal, possivelmente, uma das mais famosas e populares das novelas de cavalaria, tem sua origem na obra “Perceval ou Le conte du Graal” de Chrétien de Troyes escrito no século XII. Chrétien de Troyes escreveu cinco romances sobre os personagens da Távola Redonda e esse último trabalho ficou inacabado. O clérigo Robert de Boron, no final do século XII, desenvolveu o tema Cálice Sagrado, a partir do romance inacabado de Chrétien, ligando-o à tradição arturiana e introduzindo tal elemento de cristianização. Uma lenda que, inicialmente foi glosada em versos e pertencia às canções de gesta francesas - poemas medievais cantados em linguagem popular – narrava os feitos heróicos dos reis e de seus cavaleiros e apresentava Percival como cavaleiro que "daria fim à Demanda do Graal". Essas canções, de caráter noticioso, narravam de perto o acontecido, tendo como predominante o cavaleiro medieval que está diretamente incluído no combate em defesa da Europa Ocidental, sempre instigando a fé cristã e obtendo a aprovação da população em favor do movimento. Por volta de 1220, na França, o tema é colocado em prosa e essa lenda, que antes era pagã situa-se como cristianizada; e é transformada em novela de cavalaria, mística e simbólica. Os cavaleiros passavam por situações perigosíssimas para defender o bem e o mal. Percival, anteriormente o escolhido, é substituído pelo cavaleiro Galaaz na busca pelo Santo Graal, transformando alguns símbolos, dentre eles: o Vaso e a Espada, em objetos de valor místico. Ana Maria Machado (1997:01) diz que “inúmeras versões foram feitas para outras línguas, e cada país europeu somou suas próprias lendas às aventuras do Rei Artur e seus cavaleiros”. O tema estudado é bastante utilizado nos escritos da literatura e cobiçado entre os críticos literários. Por ser bastante complexo, deixa asas para uma vasta interpretação. Beliza (2001:145) encontra na Demanda do Santo Graal brechas para enfocar a presença feminina no universo cavalheiresco, quando observa que “a mulher representa a passagem para a atividade do cavaleiro como herói combatente e, assim, introduzi-lo a uma das mais relevantes ordens da sociedade medieval: a ordem do terceiro estado”. Ela ainda faz o seguinte comentário: A demanda é a busca da experiência humana com o Feminino enquanto vaso procriador da vida. Buscá-lo, demandá-lo é procurar a nutrição: “abastecer tôdalas mesas” [ com o ] manjar “Característica do estágio matricial, o Grande Feminino, representado pelas oposições da vida e da morte, de Eva e da Virgem Maria [...]

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Cordelista e pesquisadora do GIEM. E-mail: [email protected]

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Aos olhos de Zilma, A Demanda do Santo Graal é um texto de cunho religioso, onde a autora enfatiza com grande exaltação o herói Galaaz na busca pelo Cálice Sagrado – o cálice que Jesus usava na santa ceia. Não tinha ouro nem prata O penhor da Caridade O Cálice da Aliança Relíquia da Cristandade! A taça que guarda o sangue Que salvou a humanidade.

Os cavaleiros, na sua maioria, eram homens voltados para a comunhão, onde apenas um deles, Galaaz, obteve a sua realização. Jovem reconhecido como o "puro dos puros", o próprio Messias, simboliza um novo Cristo, atingindo o fim almejado depois de inúmeras aventuras – algumas relatadas no desfecho do cordel de Zilma Ferreira Pinto - que põem à prova todas as suas virtudes. Tinha o porte de um Apolo O rosto de um querubim A força dos santos mártires E a proteção de Merlim Galaaz é o seu nome E o Santo Graal o seu fim.

O poema inicia-se com a descrição do espaço desencadeador da narrativa, seguido das características que envolvem a história e seus elementos heróicos. Seu personagem principal é Galaaz que ao lado de Boors e Percival recebia instruções de Merlim, um feiticeiro. A busca pelo Santo Graal inicia-se quando Galaaz chega à Corte do Rei Artur. Era um domingo de Pentecostes e o jovem toma posse de um assento, conhecido como cadeira perigosa junto aos cavaleiros da Távola Redonda. Posteriormente acontece um milagre: o jovem herói consegue arrancar uma espada, ação impedida por outros cavaleiros, porque essa era uma das provas para avaliar o poder de Galaaz. A partir deste momento, os cavaleiros partiram para a demanda do Santo Graal enfrentando inúmeros obstáculos comuns aos combates medievais. Somente doze deles chegaram a Corberique e assim, como o Santo Graal não podia ser visto por todos os cavaleiros, ficou apenas Galaaz. O feitiço que perdurava no recinto é quebrado e o jovem encontra o Vaso Sagrado. Ao adentrar na sala do castelo, o jovem é dominado por uma força espiritual que o encoraja a retirar a Relíquia, momento no qual surgem vozes angelicais, Em seguida, Galaaz é transportado para longe do castelo, onde o esperam Boors e Percival. Ao narrar toda a sua experiência aos seus amigos, pairou no meio deles uma comoção e logo fizeram adoração a Deus em agradecimento pelo objetivo alcançado. E preparando-se para regressarem a Logres, onde o Rei Artur e toda a sua corte os esperavam; foram presos na cidade de Serraz, terra de povo pagão. Ficaram presos, mas não se desgrudaram da Relíquia. Foram absolvidos, entretanto impedidos de continuar o recurso de volta à Corte. O rei de Serraz, faz de Galaaz o seu herdeiro e, aclamado soberano, o herói torna-se um rei prisioneiro; até o dia de sua morte. Em seguida, uma mão desce das nuvens e arrebata o Santo Graal para o céu, motivando a conversão dos pagãos. Depois de algum tempo, Percival também morre e somente Boors volta à Corte do Rei Artur para narrar os 427

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fatos históricos. A demanda do Santo Graal, a partir daí, passou a ser instrumento de literatura para os trovadores medievais. O poema é concluído com as justificativas de Zilma, onde afirma veemente, a sua fidelidade com o texto-matriz e apresenta uma despedida emocional, na qual o leitor/ouvinte vai sentir a veracidade da narrativa. A DEMANDA DO SANTO GRAAL NA LITERATURA DE CORDEL Na busca pela relação existente entre a nossa literatura popular e a medieval, vários vestígios são encontrados, nos quais se percebe que é inegável essa existência. Há inúmeros registros de que a nossa literatura tem ramificações de nossos antepassados lusitanos. Para Maurice (1998:13), “nunca houve ruptura entre as tradições literárias do Velho Mundo e seus brotos ultramarinos em nossas plagas: mesmo à distância, e desenvolvendo uma linguagem e expressividade própria sob o sol tropical, as nossas letras continuam florescendo enquanto ramo importante, na família neo-românica”. Campos (1988, p. 257), um poeta moderno que transpôs em riquíssimos versos muitos poemas dos troubadors, ficou curioso e perplexo ao comprovar os pontos de semelhança entre a poética dos trovadores medievais - pioneiros da poesia moderna - e, por outro lado, a arte dos poetas populares do Nordeste, afirma que: Essa poesia caminha inexoravelmente para a absolescência, à medida que as tradições rurais vão sendo engolidas pelas novas modalidades da arte popular urbana trazidas pelos modernos meios de comunicação de massa – o rádio, a televisão, o cinema – não necessita de muletas, nem de caridade. Anda por seus próprios pés. Possui técnicas e excelências nada desprezíveis e por vezes surpreende o poeta cultivado não só pela diretidade de sua linguagem, como pela sutileza e achados imprevistos. No poema popular, A Demanda do Santo Graal, vários aspectos podem evidenciar a relação entre as literaturas medieval e popular, pois o folheto é produzido com uma adaptação onde são preservados alguns caracteres herdados do texto-matriz, a novela de cavalaria portuguesa. São respectivamente: 1- a religiosidade – nas amostras que evidenciam a presença do religioso, prática comum do poeta popular. Galaaz não é citado com as aventuras próprias de um combate, apenas citações dos seus valores positivos, para fazer crer no leitor que eles tornam o homem habilitado para a purificação da alma. A Galaaz não faltava Nenhuma das qualidades Instruído por Merlim Na ciência e na Bondade Era um anjo justiceiro Uma flor de castidade.

Linduarte Pereira (2006, p. 2) faz a seguinte reflexão: “O motivo dessa expressiva religiosidade dos cordelistas se dá pela força coercitiva que procede do meio onde estão inseridos. Se impressionam pela criatividade”. 428

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2- o maravilhoso – o poema é recheado de expressões relatando o maravilhoso, são dados concretos que permitem acompanhar toda uma concepção de mundo além do modelo retórico.  Merlim: feiticeiro, imortal, conselheiro. Deduz-se pela leitura do poema que ele conhecia os segredos do céu e da terra, da vida e da morte, do homem e dos deuses. Merlim era um feiticeiro Talvez um mago bretão. Ninguém sabe a sua idade, Mas naquela ocasião Era jovem e se encontrava Naquele país pagão.

 Cálice: encantado e desencantado por um herói, sobrenaturais, deslumbrante, acompanhado de duendes e feiticeiros.

trazido

por

mãos

O Santo Graal lá se achava Como nos tempos primeiros Esperando que chegasse O maior dos cavaleiros Rodeada de duendes Guardada por feiticeiros.

 Espada: um símbolo enaltecido no poema, um objeto que através dos versos, abaixo, detectamos a sua nobreza. Utensílio medieval “heroizado”, cujo poder é imensurável tornando-se a prova concreta de que Galaaz é mesmo o herói escolhido para a demanda. “Na composição do combate cumpre a espada o papel de objeto ritual, sacral e simbólico” (JERUSA, 1993, p. 97). Espada miraculosa Muito mais que Escalibur Com ela o herói vencia Feitiçaria e tabu Contra a força dessa espada Não podia Belzebu.

São nestes elementos que se evidenciam traços que admitem detectar uma relação entre os ciclos carolíngios e os arturianos. A referência se faz inequívoca pela aura de encantamento e magia que resumam da Matiére de Bretagne revelada em seus constitutivos básicos, num texto como A Demanda do Santo Graal, e que difusa, mas efetivamente comparece nos apontados Clarimundos, Amadises e Palmerins. Observa-se, aqui como lá, toda a máquina sobrenatural, a freqüência de situações, em que as mais perigosas tarefas são confiadas ao herói, a presença do amor como força impelente à demanda de aventuras, tendo como prêmio a bela noiva meta e conquista. Tudo isto nos fala, não somente da matéria arturiana, mas de uma complexa teia de varias tendências imbricadas, do mito ao ponto popular (JERUSA, 1993, p. 42). 429

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3- o exagero: o poema já é iniciado com uma expressão exagerada, recurso típico do poeta popular, com o intuito de intensificar a narrativa; método usado, geralmente, na amplificação épica. Eu vou contar uma história Que é mais que uma epopéia Tem Jesus e tem milagres Mas não foi na Galiléia Foi passada na Bretanha Uma nação européia.

Outros versos também comprovam uma constante hiperbólica. Vejamos: Enfrentaram mil perigos Por mil caminhos andaram Impossível descrever Os feitos que praticaram Mas somente doze deles A Corberique chegaram

”Essa colocação de exagero, para afirmação de proezas, é a própria essência do fenômeno cavalheiresco, o que também parece coincidir perfeitamente com as tendências mais espontâneas do sertanejo, em seus relatos orais ou disputas, cantadas, quando para sobrepujar os heroísmos e convencer os ouvintes são os extremos conduzidos dentro deste tom superlativo e amplificados”, Jerusa (1993:84) Estabelecendo uma forma de engrandecer a figura do jovem heróico, glorificando o seu heroísmo, vemos:  Galaaz - dotado de qualidades que elevam o seu poder, chegando a ser comparado com Jesus Cristo por sua perfeição inigualável. Tinha o porte de um Apolo O rosto de um querubim A força dos santos mártires E a proteção de Merlim Galaaz é o seu nome E o Santo Graal o seu fim.

4- as redondilhas - No medieval, a escrita se organizava de forma rítmica e reiterada. Eram usados refrões na elaboração de documentos, nos rituais, na composição de hinos com a intenção de facilitar a compreensão e memorização de seus conteúdos, esta última, presente no verso é chamada de função mnemotécnica. A poesia palaciana apresenta seu próprio ritmo e melodia, obtidos a partir da métrica, da rima, das sílabas tônicas e átonas. Os versos mais comuns no Cancioneiro Geral são as redondilhas: redondilha maior (versos de sete sílabas poéticas) e redondilha menor (versos de cinco sílabas poéticas). Na literatura de cordel, as redondilhas fazem parte da métrica utilizada pelos poetas. Todas as estrofes do poema, em

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discussão, são reconhecidas como estrofes de rimas isométricas e classificadas como rimas ABCBDB, são versos formados em redondilha maior ou setissílabas. O poema A Demanda do Santo Graal é uma novela de cavalaria em cordel. Adaptando um texto erudito, substituindo a forma proseada pelo verso, a autora procurou reescrevê-lo com bastante fidelidade, embora utilizando os recursos característicos do poeta popular: restringir ou intensificar conteúdos. Não mudei a narrativa Nada inverti da mensagem Em tudo exalto a bravura O bem, a fé e a coragem De um cavaleiro que foi De Jesus Cristo a imagem.

Para Sílvia Nemer (2005:02), referindo-se ao cordel A História do imperador Carlos Magno e os doze pares da França, “os poetas populares costumam escolher as passagens que mais lhe agradam para, a partir destas, produzir o seu relato que pressupõe reduções, supressões, adoções ou ênfase sobre determinados aspectos do texto-matriz”. Num trabalho acrescido do charme da linguagem poética onde se percebe uma construção versos / imagens, a autora, com a sua criatividade, vai tecendo o poema, às vezes, restringindo ou intensificando conteúdos, que para ela convém apresentar. Diz-se que, nenhum poeta começa um bom folheto indo direto ao assunto, sem acrescer um charme estilístico; é a função estética do folheto, um elemento de atração, da qual um dos resultados é o ludismo e o entretenimento. “É precisamente este processo de juntar a história, isto é, os fatos históricos e a liberdade de invenção que dá ao poeta a flexibilidade na sua narração e a oportunidade de criar arte por meio de seus próprios talentos (CURRAN, 1973)”. A Demanda do Santo Graal, publicado em 1978, é um poema composto em sextilhas com versos tradicionais, rimados e metrificados cuidadosamente nas 79 estrofes distribuídas por 27 páginas. A capa em xilogravura, confeccionada por Pádua Belmont, artista plástico, compositor e cantor da música popular, já expressa um teor medieval, onde se configura um cavaleiro e o “Cálice Sagrado”. Esta reflete uma síntese do conteúdo e sugere um acontecimento medieval, aonde vai abrindo um leque para nossa imaginação.

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Sua composição deixa evidência das três partes que a compõem. A primeira parte vai da 1ª à 23ª estrofe. Nas duas primeiras, a autora faz um imenso suspense, nas quais, inconsciente ou não, talvez pelo fato de ser historiadora, induz o leitor a revisar o seu conhecimento geográfico; é uma verdadeira busca ao mapa-múndi, para entender o espaço desencadeador da narrativa medieval. Eu vou contar uma história Que é mais que uma epopéia Tem Jesus e tem milagres Mas não foi na Galiléia Foi passada na Bretanha Uma nação européia. Foi passada na Bretanha Mas ali não começou Começou na Palestina Na Europa terminou Era um cálice encantado Que um herói desencantou.

Na estrofe nº6, a autora suspende uma descrição para chamar a atenção do leitor/ouvinte, apresentando, numa verdadeira afirmação, a relação do cálice com a taça que pertencia à Ceia Sagrada. O leitor já tem ouvido Falar da ceia sagrada O Santo Graal é a taça Por Jesus abençoada E servida aos doze apóstolos Por Jesus depois guardada.

Volta à narração para na estrofe nº13 falar sobre o Rei Artur e seus cavaleiros na Távola Redonda. A segunda parte expressa a chegada do jovem Galaaz, o herói, à Corte, que surge no poema a partir da 24ª estrofe. Nelas encontramos não somente versos, mas 432

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versos/imagens que sugerem um desencadeamento de combate real. Na estrofe de nº35, a autora volta a suspender a narrativa para mostrar ao leitor/ouvinte que o herói era familiarizado com aquele local. O que o herói não sabia, Talvez não saiba o leitor É que se achava no Reino Do seu falecido avô De onde fora retirado Quando criança menor.

Estas interrupções fazem parte das características do poeta popular, quando querem expor as suas próprias idéias sobre o assunto em questão. Na estrofe de nº 75, a narração da demanda é encerrada. A partir daí, vemos a conclusão do poema que, nesta, Zilma, emocionalmente, apresenta as relações do poeta popular com o medieval, através das omissões, da fidelidade, da exaltação e da sua paixão pelo medievalismo. Galaaz foi o modelo Do cavaleiro cristão. Esta foi a sua história A qual não faltou vilão E que eu contei resumida De uma velha tradução. Não contei com os detalhes, Mas contei o essencial. Teve bem e teve glória Quem achou o Santo Graal. Deixo Galaaz gozando A glória celestial. Não mudei a narrativa, Nada inverti da mensagem. Em tudo exalto a bravura, O Bem, a Fé e a coragem De um cavaleiro que foi De Jesus Cristo a imagem. De Sir Boorz e Percival Paladinos verdadeiros!! Não queria despedir-me De nenhum desses guerreiros Da corte do Rei Artur Os galantes cavaleiros!! Não queria despedir-me, Mas me despeço afinal, O lápis treme na mão Botando o ponto final Tão comovida me deixa A história do Santo Graal.

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A autora Poetisa e trovadora, autora de cantigas e romanceiros, Zilma Ferreira Pinto tem obtido vários prêmios, como o “Prêmio Nacional de Poesia - 1999” – da Academia Friburguense de Letras com o romanceiro Isabel Nossa Princesa. Zilma nasceu na antiga Vila de Tacima, distrito de Araruna, localizada na região do Curimataú do estado da Paraíba. Licenciada em História pela UFPB, exerceu o magistério no interior e na capital do estado. Iniciou, na literatura, com o livro Cancioneiro Experiencial (1987), pelo qual já se notava a sua inspiração trovadoresca, este, que pôs em evidência o seu estilo. Membro da Academia Paraibana de Poesia (cad. 15), do Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica, da Associação Paraibana de Imprensa e da União Brasileira de Trovadores (PB), além de autora, a professora Zilma é também uma estudiosa da Literatura de cordel. Vários depoimentos são encontrados sobre o trabalho desta poetisa. A prof. Neuma Fechine cita no prefácio do Cancioneiro Experimental :“Os poemas aqui reunidos, embora estejam na sua maioria umbilicados formalmente à estética tradicional, notadamente no que concerne à observância métrica e rítmica, traz inovações à sua produção de significâncias que os filiam à poética modernista... feitos sobretudo para serem cantados, por serem melodiosas cantigas que se mesclam a cadência encantadora das paralelísticas medievais, ibéricas, e dos motes da nossa “cantoria de viola”. Outro depoimento que deve ser registrado é o da escritora e historiadora Socorro Xavier (2002, p. 181): “[...] surgiram outras publicações, diversificadas entre a poesia, a ficção e as pesquisas histórico-antropológicas e de Genealogia”. “Igualmente diversificada ainda tem sido, a produção poética, elaborada, com igual maestria, em duas fontes inspiradoras: a poesia erudita e a poesia popular e regionalista, notadamente o cordel”. Antônio Soares (1997) também faz uma referência à autora dizendo que “Zilma se evade ou se aerifica nas asas da alucinação emocional... Ora, é uma alucinação cósmica... Ora, uma alucinação estilo medieval”. Segundo estes e outros subscritos, é evidente a existência de uma relação medieval x Zilma, seja na prosa, seja no verso. CONCLUSÃO Ao concluir este trabalho, quero registrar mais uma vez a comprovação de que narrar um grande feito histórico, em verso, é uma grande arte do poeta popular. Ele vai tecendo o seu texto com restrições pela necessidade de limitação de páginas, suprimindo, adicionando ou enfatizando trechos que possa achar mais interessante, sempre preservando a origem do texto-matriz. Jerusa denomina este processo de “servilismo ao texto matricial”. Fazendo adequação à poética da Literatura de cordel, a poetisa usou rimas e ritmos que fracionaram a comunicação, dando uma verdadeira volta à Idade Média. Entretanto, numa adaptação textual que a torna compreensível a todo leitor. Não podemos negar que das epopéias, dos romanceiros e dos trovadores ficaram marcas impressas de grande valor na poesia ocidental concretizadas até os nossos dias.

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No poema, A Demanda do Santo Graal, vê-se uma construção poética que coloca num mesmo nível o clássico e o popular tendo como objeto de suas reflexões a relação entre o humano e o divino. Um tema que, por mais que façamos a sua leitura constante, observamos grandes dificuldades de nos concentrarmos em apenas um trecho ou um personagem dessa narrativa. Isso ocorre, certamente, pela magia com que ela nos envolve, interferindo em variadas faces do poema e nos fazendo sentir ora num reino encantado, ora numa batalha onde prevalece uma doutrina com religiosidade profunda. REFERÊNCIAS ÁUREA, Beliza. Da demanda do Santo Graal à busca de si - mesmo. In: LEON, A.de.; MALDORADO, S.C. (orgs.). Saberes emergentes. João Pessoa: Manufatura / PPGS, 2001. CURRAN, Marck J. A literatura de cordel: antes e agora. Recife: Universidade Federal de Pernambuco. 1973. ______. Jorge Amado e a literatura de cordel. Salvador: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1981. FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel. São Paulo: HUCITEC, 1993. LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean Claude. Dicionário temático do Ocidente. São Paulo: Edusc, 2006. MALORY, Thomas. O Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. São Paulo: Scipione, 1997. MENDONÇA, M. B. de. Uma voz feminina no mundo do folheto. Brasília: Thesaurus: 1993. NEMER, Sílvia. O ideal cavalheiresco: entre o romanceiro medieval, o cordel e o cinema. 2005. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005. PINTO, Zilma Ferreira. A Demanda do Santo Graal. Literatura de cordel. João Pessoa, 1978. RODRIGUES, Linduarte Pereira. O apocalipse na literatura de cordel: uma abordagem semiótica. 2006. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Paraíba, 2006. SOARES, Antônio. Cadernos Psicoliterários, n. 5, João Pessoa, 1997. WOENSEL, Maurice Van; VIANA, Chico. Poesia medieval ontem e hoje: estudos e tradições. João Pessoa: Ed. Universitária, 1988.

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"ROSVITA DE GANDERHEIM E LOURDES RAMALHO: O FEMININO NA DRAMATURGIA OCIDENTAL" Petra Ramalho Souto (UFPB) [email protected] No presente artigo serão abordados os pontos de encontro e/ou divergência entre textos da escritora medieval Rosvita de Ganderheim (935-1000) e de Lourdes Ramalho (1922-), dramaturga norte-rio-grandense radicada na Paraíba há mais de 30 anos. Será focalizado neste trabalho a presença de traços de crítica social - e em especial as questões de gênero que perpassam essa crítica. Serão analisados dois textos, a saber: Sabedoria, de Rosvita de Ganderheim e Guiomar, sem rir, sem chorar de Lourdes Ramalho. Rosvita e Lurdes estão distantes no tempo e no espaço – a primeira viveu na Alemanha medieval e a segunda ainda vive no Nordeste brasileiro –, mas ambas apresentam em suas obras críticas ácidas contra a dominação masculina sobre a mulher. As mulheres, desde a Antiguidade é representada como um ser dicotomizado (ou santa ou prostituta) e, em geral, como um ser inferior -em qualidades físicas e morais- ao homem. Segundo a tradição cristã, as mulheres, só poderiam se equiparar moralmente aos homens enquanto fossem virgens, ou seja, tivesse virtus ("virtude", também associada à virilidade.). "As virgenes (virgens) são vistas pela antiguidade cristã como equiparadas ao homem, vir, e por isso elas podem possuir virtus (=virtude, ou, antes, masculinidade) e como se diz em conexão com os padrões de pensamento neopitagóricos e estóicos, superar sua `feminilidade´ (=carne, fraqueza, imperfeição)"1

Portugal, país eminentemente católico que no século XVI estava no primeiro lugar da lista dos conquistadores marítimos, não oferecia às mulheres boas condições de expansão na vida pública. Apesar de serem relatados casos de mulheres independentes que viviam em boas situações financeiras e administravam negócios e terras sem ajuda de qualquer figura masculina, as portuguesas medianas -até meados do século XVIII- eram dependentes e encarceradas. "No século XVI, as donzelas portuguesas só saíam para irem às igrejas, e de véu sobre o rosto para não serem vistas; as esposas eram escravas do lar, numa terra onde os mouros permaneceram demasiadamente e à qual legaram preconceitos e restrições nefastas em relação às mulheres"2

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LOBO, Luiza. A gênese da representação feminina na literatura ocidental: Bíblia, Cabala, Idade Média In: “Seminário Nacional Mulher e Literatura”. 7: 1997. Niterói – Rio de Janeiro. Universidade Federal Fluminense. VIANNA, Lúcia Helena e PORTO, Maria Bernadete (orgs.). Niterói: EdUFF. 1999. 2v, p. 569-571. 2 MAIA, João Domingues.”Questões femininas na obra de Gil Vicente” In: Flores verbais. Jürgen Heye (org.). Rio de Janeiro. Editora 34. p. 335-361. 1993. Disponível em: http://www.ipn.pt/opsis/litera/letras/ensaio41.htm. Acessado em 21/11/03.

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Segundo cronistas da época, as mulheres casadas nascidas em famílias mais abastadas que saíssem desacompanhadas de amas ou escudeiros poderiam adquirir má fama. Viúvas e noivas ou esposas de homens que se demorassem em missões deveriam se vestir luto e não aceitar outros homens como amantes ou maridos. As mulheres portuguesas viviam, então, sob o signo de Eva e só poderiam ser plenamente feliz (de acordo com as representações da época) e salva dos pecados, depois que contraíssem núpcias e fossem mães. 1. Hrosvitha de Ganderheim (935-1000) A história das origens de Rosvita - ou Hrotsvit ou Hrotvitha ou Hroswita ou Rosvita ou Rosvita - de Ganderheim é pouco conhecida. Sabe-se que é, provavelmente, filha de uma família rica e que foi Canonesa do monastério Beneditino de Ganderheim (Alemanha). Ficou conhecida como a primeira mulher poeta alemã e primeira dramaturga conhecida no Ocidente depois da Era Clássica. Além de estudos matemáticos, Rosvita deixou um legado de uma obra literária escrita em Latim, em vários gêneros: crônicas, lendas religiosas, peças em prosa rimada e poemas históricos. Apesar da versatilidade, Rovista ficou famosa na história da literatura ocidental pelos seus textos dramáticos. As seis peças que chegaram aos dias de hoje - descobertas no Século XVI foram: Gallicianus, Dulcitibus, Sabedoria, Callimachus, Abraão e Paphnutius. As três primeiras são consideradas peças de martírio, pois retratam a luta entre ideais cristãos e pagãos, durante a qual os/as que defendem as idéias cristãs são martirizados(as) e mortos(as). Nelas, Rosvita propaga as idéias cristãs, como por exemplo a salvação da alma pelo sacrifício do corpo. 2.1 Sabedoria de Rosvita de Ganderheim 2.1.1 Sobre o texto Em Sabedoria- peça escrita em Latim e dedicada, assim como todas de Rosvita, a Gerberga, a abadesa de Ganderheim - Rosvita apresenta uma versão para a história de Santa Sabedoria e de suas três filhas: Fé, Esperança e Caridade, que, acusadas de praticar a fé cristã num reino onde deuses pagãos eram adorados, são martirizadas até a morte. De forte influência popular, a peça oscila entre o cômico e o trágico e apresenta a mulher como ser superior ao homem em sabedoria e nobreza. Nesta peça Rosvita também apresenta, com fins claramente didáticos, princípios matemáticos que ela própria desenvolveu. 2.1.2 Trecho de Sabedoria Nesse trecho da cena IV do texto Sabedoria, Rosvita apresenta o debate entre o Imperador Adriano e a sua heroína, Sabedoria, que ao chegar em nas terras governadas por Adriano, enfrenta a ordem religiosa da cidade para manter sua fé cristã. Rosvita também 437

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estabelece uma relação de desigualdade intelectual entre o Imperador e Rosvita, ao apresentar o Imperador como um déspota ignorante da sabedoria que sua opositora demonstra. ADRIANO: Ilustre matrona, com bons modos convido-te a dar culto aos deuses, para que possas gozar de nosso favor. SABEDORIA: Não pretendo de modo algum prestar culto a teus deuses, nem morro de vontade de ganhar o teu favor. ADRIANO: Até aqui, refreei minha ira, e não me movi de indignação contra ti. Antes, pelo teu bem e o de tuas filhas, adoto uma conduta de amor paterno. SABEDORIA (sussurrando): Não vos deixeis, minhas filhas, enganar pelas seduções ardilosas desse Satanás; antes, fazei como eu: rejeitai-as. FÉ: Rejeitamos e, valorosamente, desprezamos essas coisas frívolas. ADRIANO: Que é que tu estás cochichando? SABEDORIA: Falava um pouco a minhas filhas. ADRIANO: Pareces ser de alta estirpe, mas quero saber com mais exatidão sobre tua pátria, tua família e teu nome. SABEDORIA: Embora a nobreza do sangue seja, entre nós, de pouca importância, no entanto, não nego ter uma origem ilustre. ADRIANO: O que não me surpreende. SABEDORIA: Pois, de fato, foram meus pais os mais eminentes gregos e meu nome é Sabedoria. ADRIANO: A nobreza refulge em teu rosto e a sabedoria do nome brilha na face. SABEDORIA: Em vão bajulas, não nos dobramos a tuas falas persuasivas. ADRIANO: Dize, que vieste fazer entre nós? SABEDORIA: Nenhuma outra coisa a não ser conhecer a doutrina da verdade, para o aprendizado mais pleno da fé que combateis e para consagrar minhas filhas a Cristo. ADRIANO: Dize os nomes delas. SABEDORIA: A primeira se chama Fé; a segunda, Esperança; a terceira, Caridade. ADRIANO: Quantos anos têm? SABEDORIA: (sussurrando) Agrada-vos, ó filhas que perturbe com um problema aritmético a este tolo? FÉ: Claro, mamãe. porque nós também ouviremos de bom grado. SABEDORIA: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade tem por idade um número deficiente que é parmente par; Esperança, também um número deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número excedente mas imparmente par. ADRIANO: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são! SABEDORIA: Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos números e não há uma única resposta. ADRIANO: Explica de modo mais claro, senão não entendo. SABEDORIA: Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança; 2 lustros; Fé, 3 olimpíadas. ADRIANO: E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2 lustros são números deficientes? E por que o 12, que perfaz 3 olimpíadas, se diz número excedente? SABEDORIA: Porque todo número, cuja soma de suas partes (isto é, seus divisores) dá menor do que esse número, chama-se deficiente, como é o caso de 8. Pois os divisores de 8 são: sua metade - 4, sua quarta parte - 2 e sua oitava parte - 1, que, somados, dão 7. Assim também o 10, cuja metade é 5,

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sua quinta parte é 2 e sua décima parte, 1. A soma das partes do 10 é portanto, 8, que é menor do que 10. Já, no caso contrário, o número diz-se excedente, como é o caso do 12. Pois sua metade é 6, sua terça parte, 4, sua quarta parte, 3, sua sexta parte, 2 e sua duodécima parte, 1. Somadas as partes, temos 16. Quando, porém, o número não é excedido nem inferado pela soma de suas diversas partes, então esse número é chamado número perfeito. É o caso do 6, cujas partes - 3, 2, e 1 - somadas, dão o próprio 6. Do mesmo modo, o 28, 496 e 8128 também são chamados números perfeitos. ADRIANO: E quanto aos outros números? SABEDORIA: São todos excedentes ou deficientes. ADRIANO: E o que é um número parmente par? SABEDORIA: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes em duas iguais, e assim por diante, até que não se possa mais dividir por 2, porque se atingiu o 1 indivisível. Por exemplo, 8 e 16 e todos que se obtenham a partir da multiplicação por 2, são parmente pares. ADRIANO: E o que é parmente ímpar? SABEDORIA: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já não admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os que se obtêm, multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do tipo de número anterior, porque naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível; neste, só o termo maior é apto para a divisão. No caso anterior, tanto a denominação, como a quantidade, são parmente pares; já aqui, se a denominação for par, a quantidade será ímpar; se a quantidade for par, a denominação será ímpar. ADRIANO: Não sei o que é isto de denominação e quantidade. SABEDORIA: Quando os números estão em "boa ordem", o primeiro se diz menor e o último, maior. Quando, porém, se trata da divisão, a denominação é quantas vezes o número se der. Já o que constitui cada parte é o que chamamos quantidade. ADRIANO: E o que é imparmente par? SABEDORIA: É o que - tal como o parmente par - pode ser dividido não só uma vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a indivisibilidade (por 2) sem chegar ao 1. ADRIANO: Oh! que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da idade destas menininhas! SABEDORIA: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e a Ciência admirável do Artífice do mundo: pois, não só no princípio criou o mundo do nada, dispondo tudo com número, peso e medida, como também nos deu a capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes liberais, até mesmo sobre o suceder do tempo e das idades dos homens. ADRIANO: Muito agüentei a tua "calculeira" para fazer com que me obedeças. SABEDORIA: Em que? ADRIANO: No culto aos deuses. SABEDORIA: Nisto, certamente não consinto. ADRIANO: Se teimares, sofrerás torturas. SABEDORIA: O corpo sim, podes fustigar com suplícios; mas a alma, não conseguirás forçar a ceder.3

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http://www.hottopos.com/spcol/rosvita.htm-acessado em maio de 2007, às 22h42

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2. Lourdes Ramalho: a mulher do povo Maria de Lourdes Nunes Ramalho, ou Lourdes Ramalho, nasceu a 23 de agosto de 1923 em Jardim do Seridó, próxima a Caicó/RN em uma família de artistas e intelecutais [3]. Foi estimulada desde jovem a escrever para o colégio pequenas peças e tendo sido uma delas o motivo de sua expulsão de um dos colégios onde estudou, por tratar de maneira polêmica de temas ligados à religião católica. Lourdes Ramalho teve oportunidade de crescer em contato com cantadores de viola, cordelistas e contadores de história, o que lhe permitiu captar procedimentos próprios da literatura popular que viriam a aparecer mais tarde em sua obra dramática. A professora, poeta e dramaturga foi assistida por sua mãe -a também professora e dramaturga Ana Brito- em seus primeiros estudos. Com incentivo dela e de seus familiares aprendeu desde menina a amar a terra e o povo e a registrar no papel, de forma dramatizada, hábitos, falares e visões de mundo de mulheres e homens comuns da sua região, foram feitas ainda na adolescência, com o incentivo da mãe e de outros familiares, também envolvidos com teatro. Sua paixão pelo teatro toma impulso e novos rumos a partir da década de 1970, momento em que são retomadas as propostas da dramaturgia nacional-popular difundida na década anterior, que ganhara força com a estréia de Ariano Suassuna no Sudeste do país, com o Teatro Popular do Nordeste (TPN), o Teatro de Arena de São Paulo e os CPC's. Na esteira desse processo, desponta no cenário teatral do país a autora cujos textos teatrais recriam, criticamente, o universo da gente comum do sertão nordestino, enfatizando as relações de tensão e opressão estabelecidas neste contexto social e, de outro lado, a riqueza cultural do universo popular da região. Fundadora do Centro Cultural Paschoal Carlos Magno e do Teatro Ana Brito, ambos sediados em Campina Grande-PB, Lourdes Ramalho já escreveu quase uma centena de textos teatrais em prosa e verso - alguns ainda não publicados - que vão da farsa à tragédia, passando pelo drama e a comédia, incluindo um repertório infanto-juvenil. Entre Fogo-fátuo e Guiomar, a filha da mãe... – texto que atualiza o desabafo contundente de Guiomar, sem rir sem chorar –, existe dezenas de outros textos, alguns já consagrados pelo público e pela crítica especializada, a exemplo de As velhas, Frei Molambo, ora pro nobis, A feira e outros como O trovador encantado, Chã dos esquecidos, Charivari, A mulher da viração, Romance do conquistador, Os mal-amados, que demonstram a diversidade de estilos e revelam a proposta central da dramaturgia de Lourdes Ramalho: privilegiar a representação das experiências de mundo e de vida do seu povo desvendamento as raízes ibéricas existentes no universo cultural do Nordeste brasileiro. Premiada em vários concursos de dramaturgia e festivais de teatro, nacionais e internacionais, Lourdes Ramalho – aclamada como a grande dama da dramaturgia nordestina – é atualmente a maior representante da dramaturgia de autoria feminina paraibana. 2.1 Sobre Guiomar, sem rir, sem chorar

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Guiomar, sem rir, sem chorar - texto publicado pela primeira vez em 1980 juntamente com outros dois textos da dramaturga: A eleição e Frei Molambo, ora pro nobis – é um monólogo protagonizado por Guiomar, "uma mulher do povo, atrevida e corajosa, resolve, com sua linguagem desabrida, denunciar as 'maracutaias' dos políticos, os crimes dos poderosos contra os pequenos, pelos quais não sofrem uma ave-maria de penitência."4 Veja o que diz o texto: (Espécie de sala de investigação. Birô, duas cadeiras, no proscênio simulacro de bandeira com sugestivas cores. Sobre o birô, alinhados, estandartes multicoloridos. Música soturna, algo marcial. Pisca-pisca iluminando a cena, lembrando carro de polícia. Guiomar passa ao fundo. Ar de quem procura, passa e volta, num crescendo de angústia, até vir a correr desabalada, sempre perseguida pelo pisca-pisca e pela música, até que ambos param. Luz geral. Ela também pára e se aproxima do birô, onde "vê" alguém sentado.) É aqui a sala do meritíssimo que me mandou essa intimação? Ah, não é intimação – é convite? – Bem, convite a gente pode ou não aceitar, enquanto este... – Mas se o senhor diz que NÃO é intimação e SIM convite – fica por convite mesmo, muito embora, com a devida vênia, se eu tivesse sabido antes não teria comparecido de jeito nenhum. – Entretanto, CONVIDADA ou INTIMADA – aqui estou eu... de PÉ. Ah, posso sentar? – Ainda bem, pois as pernas me tremem. Por quê? – Ora, tremem porque tremem – já não é boa razão? – Sim, acho que estou mesmo um pouco nervosa... Por quê? – Em primeiro lugar, porque tenho nervos, é lógico, depois, por ter sido intimada por um tal de presidente Bandeira... – ora, se "presidente" por si já não é POUCA MERDA – imagina carregando um "Bandeira" na frente... Sim, o meritíssimo já explicou que se trata de um "convite", só não entendo é porque me intimaram – por quê? – eu andar detratando do governo? – A pensar desse modo, o governo é quem anda detratando de mim. – Saiba o meritíssimo que sou uma pessoa de responsabilidade, precavida nas minhas afirmações, que levo uma vida retraidíssima, NA MINHA – e não vou admitir que meu pobre mas honrado nome seja retaliado em praça pública pelos inimigos da pátria e dos verdadeiros patriotas. Eu andar batendo boca por aí? – Com a devida vênia – um caluniador barato desses merecia responder processo perante corte marcial. – Logo eu, que sou uma criatura discretíssima, NA MINHA. Imagine, que nem com essa abertura escrachada que anda por aí, eu tenho coragem de arriscar o menor comentário. – Eu, hein? – Não digo nem que "bolacha é redonda" pra não ver o sol nascer quadrado. – De repente vem uma reviravolta, que nesta terra TUDO é possível – e o freguês sem quê nem pra quê sai circulação – Por que digo isso? – Então o senhor não sabe que até bem pouco tempo atrás, sem que houvesse prévia "intimação ou convite" – metiam uma carapuça preta na cabeça do suplicante, davam uma jeriquita nele – e proto? – O que acontecia depois? – O senhor que é o senhor não sabe – quanto mais eu... – Lavagem cerebral limpa muito mais que intestinal, não é verdade? É como acabei de falar, sou uma criatura discretíssima, NA MINHA, portanto não atino o motivo deste... convite – pois se existe no mundo uma criatura NA DELA – sou eu. – Vida alheia, fofoca, coluna social – nem 4

RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Teatro popular: três textos (A eleição, Guiomar – sem rir, sem chorar, Frei Molambo – ora pro nobis)". [Campina Grande]: [s.n.], [c. 1980];

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política me interessa. – Pra melhor lhe dizer, nem jornal leio, isto é, leio atrasado, quando encontro algum a caminho do banheiro, é por isso que só falo de assuntos passados há tempos. Pois bem, no banheiro, de enciclo PEIDA pra baixo, leio tudo. – E quem não lê? – Principalmente com essa "massificação" de hoje que deixa os intestinos preguiçosos, sem coragem de raciocinar... – Conheço gente que naquele honroso departamento faz tricô, joga paciência, reza terço... – Sei até de um médico importantíssimo que faz seus estudos "anatômicos" naquele indispensável gabinete fisiológico... (...) (Música, dança e o cartaz.) – Eu dou, tu dás, ele dá Tá certo a conjugação? Mas pra quem dá – que azar O que lhe dão fica pidão. (...) Peraí, meritíssimo, não me casse a palavra, que castrados já vivemos todos nós. – Não, não é falando mal do governo, que governista sempre fui e sou – suba quem subir. – Mas acho que este país deveria seguir o exemplo da China, onde o casal paga baita de multa por cada "coisa fofa" que bota no mundo, medida que, por si, já deixa o casal sem fogo pra fornicação... – Mas aqui, neste torrão abençoado por Deus, o cabra quanto mais FAZ mais vontade tem – é PLANTANDO e o governo garantindo – com bons auxíliosnatalidade, gordos salários-família – e haja a superprodução de brasileirinhos bicolores, tricolores, com cara de tudo, menos de índio, pois a raça anda em fraco extermínio... (Abre outro estandarte.)

Mulher nos teatros lourdiano e rosvitiano As peças escritas por Lourdes Ramalho (muitas delas ainda inéditas), as mais encenadas e famosas pelos prêmios que ganharam, a exemplo de Guiomar, a filha da mãe... (2003), As velhas (1975) e A feira (1976), são protagonizadas por personagens femininas. - Em Sabedoria, Rosvita representa a mulher como ser superior, nobre e mais inteligente que o homem. O teatro de Lourdes Ramalho e as raízes ibéricas: o ensino e o riso Os textos apresentados atro de Loudes Ramalho é marcadamente um teatro de raízes populares, um teatro no qual a autora buscou registrar a cultura ibérica medieval deixada por portugueses e espanhóis no Brasil no século XVI, período de início do processo de colonização. Além disso, o teatro lourdiano é visivelmente influenciado pela experiência pedagógica da autora. A junção dessas duas características, além da constante busca pelo ensinamento através do riso, aproxima o teatro lourdiano do teatro de Rosvita de Gandersheim. Considerações finais As personagens femininas que protagonizam os textos apresentados no presente artigo, são apresentadas como seres superiores ao homem em qualidades intelectuais e morais. 442

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Sabedoria, protagonista do texto de Rosvita de Ganderheim, é uma mulher cristão e culta, que enfrenta por meio da força da fé e do conhecimento o imperador Adriano que a quer demovêla de sua crença cristã. Sabedoria com tranquilidade, bom-humor e elegância demonstra a Adriano que se mantêm fiel ao Deus cristão que ela cultua, apesar de presenciar o martírio e a morte de suas três filhas. Guiomar é também uma professora, mulher esclarecida e conhecedora da História do Brasil, portanto, pessoa com autoridade para falar dos fatos que critica. No seu embate com o delegado que a “convida” para uma visita ao posto policial, Guiomar, apesar de demonstrar certo receio de sofrer castigos físicos, não se acovarda e -com muita ironia e bom-humor- desconstrói as palavras do seu opositor. Essas personagens são, portanto, representantes das mulheres que são silenciadas, mas que não se intimidam diante daqueles que a querem subjulgar. Seguem crenças e têm opiniões que diferem das estabelecidas como regra, mas demonstram um grande conhecimento e força interior para o enfrentamento do conflito com seus opositores. Bibliografia BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Brasília: HUCITEC, 1993; “Rosvita e o Restabelecimento do Teatro no Ocidente” (trad. e introdução L.J. Lauand). http://www.hottopos.com/spcol/rosvita.htm. acessado em 25 de novembro, às 20h43; CARVALHO, Luciana Gonçalves de. O Diabo e o Riso na Cultura Popular. ENFOQUES revista eletrônica dos alunos do PPGSA - ISSN 1678-1813. acessado em 25 de novembro, às 21h42; http://www.lourdesramalho.com.br/obra/index.htm. acessado em 25 de novembro, às 21h39; GARRETAS, Maria-Milagros Rivera. "Hrostsvitha de Gandersheim: la sonrisa, la risa y la carcajada" In Textos y espacios de mujeres. Europa siglo IV-XV. Icaria Editorial. Barcelona. 1995; LE GOFF, Jaques & SCHIMIT, Jean-Claude. Masculino/Feminino In "Dicionário temático do Ocidente Medieval". EDUSC. São Paulo. 2002; LOBO, Luiza. A gênese da representação feminina na literatura ocidental: Bíblia, Cabala, Idade Média In: “Seminário Nacional Mulher e Literatura”. 7: 1997. Niterói – Rio de Janeiro. Universidade Federal Fluminense. VIANNA, Lúcia Helena e PORTO, Maria Bernadete (orgs.). Niterói: EdUFF. 1999. 2v, p. 569-571. MAIA, João Domingues.”Questões femininas na obra de Gil Vicente” In: Flores verbais. Jürgen Heye (org.). Rio de Janeiro. Editora 34. p. 335-361. 1993. Disponível em: http://www.ipn.pt/opsis/litera/letras/ensaio41.htm. Acessado em 21/11/03. RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Teatro popular: três textos (A eleição, Guiomar – sem rir, sem chorar, Frei Molambo – ora pro nobis)". [Campina Grande]: [s.n.], [c. 1980]; http://www.ppe.uem.br/publicacao/sem_ppe_2003/Trabalhos%20Completos/pdf/052.pdf, acessado em 24 de julho de 2008, às 20h43; http://www.hottopos.com/spcol/rosvita.htm-acessado em maio de 2007, às 22h42. 443

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O IMAGINÁRIO MEDIEVAL NOS FOLHETOS DE CORDEL: O PECADO COMO ETHOS CONTROLADOR Renata de Oliveira Pinto (PPGL/UFPB) [email protected] Introdução A semiótica é uma ciência que tem por objeto de estudo a significação, que é entendida como articulações do sentido. O sentido, por sua vez, apresenta-se através de um percurso gerativo, que é formado por três níveis: o fundamental, o narrativo e o discursivo. Tendo em vista que este artigo consiste numa análise das estruturas discursivas, teceremos, então, algumas considerações sobre elas. Tomando por base essa teoria semiótica, extraímos do acervo do PPLP (Programa de Pesquisa em Literatura Popular) o corpus composto pelo folheto de cordel O Dinheiro (O Testamento do Cachorro), da autoria de Leandro Gomes de Barros, e fizemos uma análise das estruturas discursivas, ressaltando os temas e as figuras que recobrem a narrativa, além das relações de pessoa, tempo e espaço existentes nela. Análise do corpus No cordel em análise, o sistema temporal bifurca-se em tempo linguístico, que remete à instância enunciativa, situando o enunciador em relação aos acontecimentos; e o tempo crônico, que organiza a enunciação a partir de marcos referenciais logicamente instalados no enunciado. O que predomina no texto em questão é o tempo linguístico, uma vez que o tempo crônico, materializado linguisticamente por marcos cronológicos socialmente determinados, aparece figurativizado apenas uma única vez, na expressão nesse século, que serve para situar historicamente a narrativa, dando a impressão de que o discurso que procede da voz do enunciador goza de um respaldo veridictório e detém credibilidade. Não é à toa que os fatos enunciados fazem parte de um mundo no qual o enunciador se situa. No que concerne ao tempo linguístico, depreendem-se alguns vestígios que, materializados no enunciado, denunciam a proximidade, a identificação do enunciador com os preceitos socioculturais que constituem o discurso. Inicialmente, faz uso do tempo presente quando pretende corroborar a tese de que o dinheiro é um “agente do mal”, capaz de corromper as pessoas e o mundo. Assinalando, por intermédio de elementos verbais no presente, a natureza desleal do dinheiro e, consequentemente, da ganância, o enunciador visa convencer seu possível enunciatário de que o apego excessivo e irracional aos bens monetários foi e continua sendo o grande ordenador da sociedade. Um outro fator que comprova essa embreagem é a sentença neste mundo, que remete para alguém que está falando no momento. Esses artifícios foram empregados para a criação de um efeito de verossimilhança. 444

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“O dinheiro neste mundo Não há força que o debande(...)”

O enunciador, para fazer valer suas crença e tornar seu leitor cúmplice de seu dizer, irrompe-se, mais uma vez, no enunciado por meio de uma embreagem. Nesse momento, continua a discorrer a cerca da importância do dinheiro e da dominação que este exerce sobre as pessoas. Estruturalmente, tal fenômeno se deixa observar no aparecimento das marcas de primeira pessoa que explicita a intervenção do enunciador no enunciado. Todavia, vale ressaltar que o enunciador se mantém sempre distanciado, ou melhor, debreado da enunciação, uma vez que a enunciação, apresentando-se como uma instância linguística pressuposta pela própria existência do enunciado, mostra-se impossível de ser apreendida inteiramente, recuperada em sua integridade enunciativa, o que pode ser feito, apenas, é uma investigação das marcas que se presentificam no enunciado. No universo semiótico, em questão, o enunciador recria a enunciação; ele a enuncia num tempo passado, resgata algo que está na memória, por isso o uso de verbos no pretérito. “Eu já vi narrar um fato Que fiquei admirado, Um sertanejo me disse Que nesse século passado Viu enterrar um cachorro Com honras de um potentado”

O pretérito imperfeito aparece, argumentativamente, construído nas passagens que se referem ao episódio da corrupção das autoridades religiosas. Com a utilização desse tempo verbal, o enunciador pretende enfatizar o estado contínuo de fragilidade moral e debilidade religiosa que delineiam as ações de uma instituição cristã, a Igreja Católica, dentro de uma determinada região, o Nordeste brasileiro, e num dado período histórico, quando, na verdade, deveria defender os princípios de desapego material, necessários para a salvação da alma, após a morte. São atributos momentâneos, mas que se agregam, pelo caráter durativo do imperfeito, estaticamente a doutrina católica. Dessa forma, a degeneração da igreja é fortemente acentuada, visto que ela foi e continua sendo corrupta. Observemos no texto: “Que o vigário tinha feito / (...)Que não era de direito” “A questão ficava feia Desenterrava o cachorro O vigário ia pra cadeia”

Embora a gramática tradicional reserve para o modo subjuntivo noções semânticas ligadas à incerteza, dúvida, imprecisão, não é o que ocorre no cordel em análise. Neste, o pretérito do subjuntivo não traduz ações vagas e duvidosas, mas reafirma o conteúdo proposicional que recobre toda a estrutura linguística. Em uma das estrofes que compõem o texto, aparece a expressão “E se não fosse o dinheiro?”, na qual o elemento verbal difunde o conteúdo pressuposto de que a importância do dinheiro não é algo exclusivo do momento de fala do enunciador, mas que este “recurso” já se revelou relevante em outras ocasiões. 445

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“E eu julguei que isso fosse Um cachorro desgraçado”

Outro tempo que aparece materializado na tessitura do texto é o imperativo. Este enfatiza, marca e evidencia a imponência, a superioridade do vigário, enquanto autoridade religiosa, sobre o Inglês. A fala imperativa do astuto padre se irrompe em tom de obrigação e de imposição. É ele que comanda e direciona a negociação, não dando espaço para que o estrangeiro estabeleça condições. Não há duvida de que a intenção do “bondoso” religioso é obter fundos que vão beneficiar a si próprio: “Leve-o para o cemitério. Que vou o encomendar Isto é, traga o dinheiro Antes dele se enterrar, Estes sufrágios fiados É factível não salvar”

Assim com o tempo, a categoria espacial no cordel O dinheiro (o testamento do cachorro) divide-se em espaço linguístico, que abarca o lugar axial do discurso, onde o enunciador se posiciona em relação à enunciação, e em espaço tópico, caracterizado pela instauração, no enunciado, de pontos referenciais em torno dos quais o enunciador e os interlocutores se situam e localizam os objetos que os rodeiam. Instituído sobre os revezes da memória, o espaço linguístico, no texto em questão, constitui-se a partir da sucessão e encadeamento de três enunciações. Em cada instância enunciativa, a relação entre aquele que enuncia e o meio em que se situa muda consideravelmente. Na primeira, ao recuperar os fatos que se encontram na esfera da memória e, por conseguinte, interagindo com o tempo passado, o enunciador se instaura, linguisticamente, por meio de uma debreagem, ou seja, mantém-se distante da cena enunciativa que começa a projetar-se em sua voz. É a partir desse momento que se inicia o processo de encapsulamento do próprio enunciador, visto que, por situar-se no espaço do aqui, esse regate mnemônico se torna possível e não contraria às próprias leis da física. Observe os seguintes trechos: “O dinheiro neste mundo” “Essas questões muito sérias” “Eu já vi narrar um fato/ que fiquei admirado” “O meu informante disse-me/ que o caso tinha se dado”

O uso dos dêiticos este e essas, apesar de remeterem a pontos espacialmente distintos em relação ao enunciador, fazem com que este esteja preso, por intermédio de uma embreagem, a uma enunciação presente que, por sua vez, dá origem a uma voz que se desenvolve no espaço do lá. Esta ganha feições veridctóricas ao ser colocada, apenas ilusoriamente, numa outra cena enunciativa historicamente determinada. Ademais, a expressão eu já vi narrar um fato, ao mesmo tempo que marca a fusão do sujeito com espaço da enunciação, assinala o seu distanciamento em relação ao espaço do enunciado. 446

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O espaço tópico permite situar e caracterizar os atores que se assentam no enunciado. Ocorre por meio de pontos referenciais que encerram implicações sócio-culturais e linguisticamente argumentativas, deixando transparecer determinadas intenções do sujeito enunciador. Apresentam essas características: o mundo (parte humanamente corrompida da Terra); cemitério e a Igreja. O mundo constitui o meta-espaço. Todos os atores o ocupam e nele se constroem, incorporando, inclusive, os outros espaços. Essa demarcação espacial é utilizada com um duplo propósito. Inicialmente está relacionado a uma visão cultural segundo a qual a Terra está habitada por pessoas de má índole, que representam a maioria, e por indivíduos justos e incorruptíveis, que compreendem uma pequena minoria. Fazem parte da parcela “podre” da sociedade as autoridades religiosas, jurídicas e todas aquelas que têm a ambição como valor principal. Em contraposição, o enunciador e os seus semelhantes (aqueles que respaldam suas ações na honestidade) pertencem à parcela benevolente desse mundo. Observem os trechos a seguir: “O homem tendo dinheiro Mata até o próprio pai A justiça fecha os olhos A polícia lá não vai” “A moça tendo dinheiro Sendo feia como a morte Caracteriza-se, enfeita-se Sempre melhora de sorte.”

“O bacharel por dinheiro É macaco por banana” “porque perante o dinheiro Tudo ali se torna mole Porque não há objeto Que sobre os seus pés não role.”

Outra conotação atribuída ao espaço mundo encontra-se na dualidade entre o mundo celeste, ocupado por Deus e o mundo terreno, habitado pelos homens. Estes se desviam do bom caminho quando se sujeitam ao apego monetário, quando elegem o dinheiro, tanto como o ponto de partida para suas ações terrenas quanto como o alvo a ser atingido. Nesse sentido o dinheiro aparece como o próprio sentido da vida. Todavia, Deus se revela como o único ser que não se deixa levar pelo dinheiro, visto que seus objetivos vão de encontro à valorização do materialismo, e sim, procura a salvação da humanidade, fazendo-a acreditar que os valores religiosos se sobrepõem aos valores da carne. “O dinheiro só não pode Privar o dono de morrer, Parar o vento no ar E proibir de chover. O resto se torna fácil Para o dinheiro fazer.”

Como se percebe no trecho acima que o poder do dinheiro sucumbi ao poder de Deus que aparece figurativizado nas ações que não podem sofrer intervenção do homem, como, por exemplo, a morte, o movimento dos ventos e o caráter vivificador das chuvas. É uma cultura no nosso país que, após a morte, a alma precisa ser velada com rituais litúrgicos, para que encontre a salvação e os corpos precisam ser sepultados em locais apropriados, os cemitérios, uma vez que a morte é considerada uma passagem para a vida 447

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eterna. Vale salientar, no entanto, que mesmo a morte, que é um acontecimento comum entre todos os povos, quaisquer que sejam sua raça, sua idade ou origem, mesmo assim, a questão monetária se apresenta como um fator diferenciador, ou seja, nas famílias cujo poder aquisitivo se mostra elevado, estas, mesmo após o falecimento de algum de seus entes, possuem um tratamento diferenciado. Essa questão é validada pela atitude da Igreja que, para aqueles que possuíam vários bens e dizimavam generosas quantias, seus corpos podiam até ser sepultados dentro do próprio templo. Entra aí, então, o caráter ambicioso da instituição católica que é criticada pelo enunciador, pois na narrativa, o vigário aceita realizar o enterro de um cachorro com todos os rituais dignos de um humano por uma acentuada quantia em dinheiro. Eis os excertos que asseveram: “Leve-o para o cemitério, Que vou encomendar Isto é, traga o dinheiro Antes dele se enterrar, Estes sufrágios fiados É factível não salvar.”

“E lá chegou o cachorro O dinheiro na frente, Teve momento o enterro, Missa de corpo presente, Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente.”

No folheto O dinheiro (o testamento do cachorro), evidencia-se a presença de temas que, correlacionados às figuras, alicerçam uma reflexão sobre algo muito presente na sociedade, que é a busca descomedida pelo dinheiro e o poder que este exerce sobre as pessoas. O enunciador, então, faz uso do contexto social nordestino para apresentar um discurso fundamentado na crítica à ambição, que se apresenta como o tema que permeia toda a narrativa, pois o dinheiro, figura que recobre esse tema, exerce grande influência no mecanismo da sociedade, fazendo com que esta se organize e atue segundo os seus domínios, mesmo que isso viole as leis jurídicas que a regem. Os exemplos comprovam a afirmativa: “O dinheiro neste mundo Não há força que o debande, Nem perigo que o enfrente, Nem senhoria que o mande. Tudo está abaixo dele Só ele é quem é o grande.” “Porque só mesmo o dinheiro Tem maior utilidade, É o farol que mais brilha Perante a sociedade. O código dali é ele A lei é a sua vontade.”

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Como tema decorrente da ambição, surge a corrupção, representada pelas atitudes de homens que, mesmo possuidores de uma estável vida financeira, tais como juízes e procuradores, como demonstra o texto, são impulsionados por uma incessante busca por uma maior aquisição monetária, o que os leva a corromper-se em favor do dinheiro e, para isso, realizam ações totalmente condenáveis consoante às leis que administram a sociedade, uma vez que, mesmo os culpados de crimes são absolvidos devido ao elevado poder aquisitivo que detêm, porquanto disponibilizam elevadas quantias monetárias para os julgadores da causa a fim de que eles votem pela sua inocência. “Cédulas de quinhentos fachos” figurativiza esse tema. Os trechos são demonstrativos: “O homem tendo dinheiro Mata até o próprio pai, A justiça fecha os olhos A polícia lá não vai, Passam-se cinco ou seis meses Vai indo o processo cai.” “Compra cinco testemunhas Que depõem a seu favor, Aluga dois escrivães E compra o procurador, Faz dois doutores de prata, Pronto o homem, meu senhor” “Essas questões muito sérias Que vão para o tribunal, Ali exigem os papéis Que levem prova legal, Cédulas de quinhentos fachos, É o papel principal.”

O tema estima representa o sentimento que o ator inglês nutre pelo seu cachorro que havia morrido, que o leva a procurar o padre para que ele realizasse o sepultamento do animal com todas as pompas religiosas nem que, para isso, tivesse que pagar uma alta soma em dinheiro, uma vez que o considerava como um ente querido. “Um milhão” é a figura desse tema. Eis o trecho: “Um inglês tinha um cachorro De uma grande estimação Morreu o dito cachorro E o inglês disse então: Mim enterra esse cachorra Inda que gaste um milhão .”

Religiosidade é um tema que aparece na atitude do Inglês, que se mostra uma pessoa religiosa por querer que seu estimado cachorro fosse enterrado com rituais católicos. Esse mesmo tema é utilizado pelo enunciador como uma forma de criticar a ambição presente entre os integrantes do sistema eclesiástico, que, no texto, são representados pelo padre e pelo bispo, uma vez que se desviam dos preceitos religiosos 449

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da instituição católica a qual pertencem. No que concerne ao vigário, este se corrompe no momento em que celebra o sepultamento de um animal em troca de uma considerável quantia em dinheiro, o que é totalmente condenável pela Igreja. E o bispo também se corrompe, pois, no momento em que vai utilizar-se de sua superior posição hierárquica para repreender o vigário, ao ser informado da quantia paga pelo inglês para a realização da cerimônia e do valor a ele destinado, troca imediatamente de opinião e passa a apoiar a atitude de seu inferior. Os exemplos a seguir comprovam: lá chegou o cachorro O dinheiro foi na frente, Teve momento o enterro, Missa de corpo presente, Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente.” (...) “Mandou chamar o vigário Pronto, o vigário chegou Às ordens, sua excelência... O bispo lhe perguntou: Então que cachorro foi, Que seu vigário enterrou?” “Foi um cachorro importante Animal de inteligência Eles antes de morrer Deixou à vossa excelência Dois contos de réis em ouro... Se errei, tenha paciência.” “Não foi erro, Sr. Vigário, Você é um bom pastor Desculpe eu incomodá-lo A culpa é do portador, Um cachorro como este Já vê que é merecedor.”

Um outro tema diretamente ligado à ambição é o interesse, principalmente em relação ao casamento, pois, relata o texto, mesmo moças não possuidoras de uma beleza exterior que agrada aos olhos masculinos, ainda assim, se estas apresentarem uma favorável situação financeira, conseguem pretendentes e um bom casamento. Essa situação era muito comum nas cidades interioranas da região do Nordeste, pois as moças filhas de coronéis ou de destacados fazendeiros possuíam bons dotes, o que atraía os rapazes para se casarem com elas. A passagem a seguir comprova a afirmativa: “A moça tendo dinheiro Sendo feia como a morte Caracteriza-se, enfeita-se, Sempre melhora de sorte, Mas de mil aventureiros A desejam por consorte.”

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Considerações Finais No folheto analisado, o Sujeito enunciador aparece, no primeiro momento, próximo do enunciado quando se apresenta como um Sujeito de um saber sobre os valores dos atores no enunciado. No segundo momento, ao narrar uma história que se encontra em sua memória, ele se mantém afastado, debreado do espaço do enunciado. O folheto de cordel ostenta uma variedade temática e, uma delas, é uma forte crítica ao sistema socioeconômico existente. Pode-se considerar as narrativas ideologicamente marcadas por valores que não dignificam o homem, como a ambição e o amor descomedido ao dinheiro. Apesar do texto analisado ter sido escrito numa época remota, percebe-se que a busca por grandes quantias monetárias não advém da atualidade, como consequência do capitalismo e, sim, inerente à personalidade humana. O poeta expõe a história do testamento do cachorro para criticar esse sistema e as atitudes de alguns eclesiásticos que, movidos pela ambição, “esquecem” dos votos de fidelidade e zelo dos preceitos religiosos e realizam ações condenáveis pelos dogmas da Igreja católica, como enterrar um animal com rituais que são direcionados aos humanos. Tais críticas são ratificadas pelo percurso temático figurativo. Referências BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1990. BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro (o testamento do cachorro). Fortaleza: Tupynanquim, 2005. BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. O Discurso Semiótico. In: ALVES, Eliane Ferraz et alii (org). Linguagem em Foco. João Pessoa: Editora Universitária/ Ideia, 2001. pp. 133-157. FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2001.

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