“O Calvário no túmulo de D. Inês: um exemplo dos processos de modelo/cópia e originalidade nas iconografias dos monumentos funerários de Alcobaça”, Congresso Internacional “Pedro e Inês: o futuro do passado” - 28, 29, 30 e 31 Março de 2012, Coimbra: Câmara Municipal, 2013, pp. 27-44

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Pedro e Ines - O Futuro do Passado Congresso Internacional

VOLUME III

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O Calvário do túmulo de D. Inês: um exemplo dos processos de modelo/cópia e originalidade nas iconografias dos monumentos funerários de Alcobaça Carla Varela Fernandes Bolseira de Pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia Investigadora da Unit. 281 I&D - FCT (CEAUCP)

No âmbito do estudo que tenho vindo a desenvolver sobre os túmulos de D. Pedro I e D. Inês de Castro (com vista à publicação de uma monografia a eles dedicada), o tema dos modelos iconográfícos e/ou plásticos que possam ter estado na base da criação artística das muitas cenas que decoram os dois monumentos funerários foi sempre aquele onde considerei ser possível ir mais longe relativamente à historiografia que me antecede. Não só esta pesquisa e respetivos resultados nos permitem perceber que tipologias e materiais constituíram recursos importantes enquanto modelos para o trabalho dos artistas dos túmulos de Alcobaça como, através da identificação das origens desses mesmos modelos, poderemos, ainda que sem a possibilidade de fazer afirmações absolutas, aproximarmo-nos cada vez mais das origens (nacionalidades) dos intervenientes nestas obras. Um dos principais mistérios que envolvem estes dois monumentos funerários é, precisamente, o desconhecimento do seu autor (ou autores). Ora, tratando-se de uma encomenda tão relevante no panorama das encomendas artísticas portuguesas da Idade Média, que certamente envolveu vários anos de trabalho para os escultores sediados em Alcobaça (cada vez com mais probabilidade de aceitarmos ter havido diferentes escultores e em diferentes tempos), e, sobretudo, porque se trata de uma encomenda associada a uma história de amor, obsessão e vingança que tantas repercussões teve na sociedade desse tempo, era de esperar que algum documento nos tivesse chegado (contrato de execução, recibo de pagamento), situação que, até ao momento, permanece imersa nas trevas dos maços de documentos de arquivo e ainda por descobrir. 33

Sobre esta questão já muito se especulou, em especial sobre a origem dos escultores. Seriam escultores portugueses dotados de fortíssima erudição estilística e iconográfíca e profundamente conhecedores da arte gótica ibérica e transalpina? Ou, escultores estrangeiros que foram contratados para realizar uma obra excecional para um rei com intenções igualmente excecionais? É provável que nunca tenhamos a resposta conclusiva, mas com estas interrogações e algumas propostas pretendo alertar para situações que nos poderão aproximar um pouco mais de uma realidade que, por ausência de documentação escrita, nos elucide um pouco mais sobre os factos de uma história que se constrói aos poucos. As vias que este tema abre são muitas e diversificadas, uma vez que tem sido possível analisar cena a cena, e encontrar, quase sempre, antecedentes importantes, em particular no que respeita às iconografias. Assim, e no âmbito deste Colóquio, respeitando os tempos e as orientações/normas de publicação previstas, não será possível desenvolver no atual formato de artigo todas as problemáticas nem analisar detalhadamente cada cena. Tal abordagem globalizante que fica consignada ao livro atualmente no prelo, já que este permitirá desenvolver todos os temas e publicar todas as imagens necessárias para a confrontação com as cenas do túmulo e, com isso, ajudar à compreensão do que aí se diz. Centrei este estudo sobre o túmulo de D. Inês, não apenas por ser Inês o motivo da evocação/comemoração que este ano se assinala (os 650 anos da trasladação dos seus restos mortais para o túmulo de Alcobaça), mas também porque as cenas lavradas na sua arca tumular (em especial as que são alusivas à Infância e Paixão de Cristo), são as que parecem demostrar melhor a existência de um maior número de referentes iconográficos anteriores21. Não será possível analisar aqui as catorze cenas A existência de modelos de inspiração anteriores para os túmulos de Alcobaça (em obras de origem estrangeira e outras existentes na antiga Biblioteca do Mosteiro de Alcobaça) já foi identificada por MORALEJO, Serafin - "El «Texto» Alcobacense sobre los amores de D. Pedro y D.a Inês", in Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval, vol. 1. Cosmos, 1993, pp. 71-89, e por AFONSO, Luís Urbano - O Ser e o Tempo. As Idades do Homem no Gótico Português, Lisboa: Caleidoscópio, 2003, especificamente para um tema constante do túmulo de D. Pedro l, a Roda da Vida/Roda da Fortuna. Em 2005, no âmbito da Dissertação de Doutoramento, lancei as primeiras hipóteses para a existência de modelos iconográficos dos séculos XIII e XIV, em particular na iluminura francesa e inglesa como 34

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historiadas que compõem as faces da arca tumular, nem será possível publicar as mais de cem de imagens que o conveniente tratamento do tema exige, pelo que a opção recaiu sobre um único tema, provavelmente o mais importante e destacado do conjunto: o Calvário. O tratamento deste tema, representação do maior espetáculo de dor e morte da iconografia cristã, ocupa toda a área da cabeceira da arca tumular. Esta é a principal cena da iconografia cristã, símbolo do sacrifício de um Deus Redentor, símbolo da própria Salvação. Por isso, deverá ser sempre o tema de maior destaque e também a que se impõe no pensamento de qualquer cristão, como uma imagem-signo. Para melhor se perceber a complexidade da existência de modelos e cópias e até níveis de originalidade nesta cena em destaque no túmulo, importa descrevê-la com algum detalhe, chamando a atenção, sempre que se justifique, para pormenores relevantes. No Calvário do túmulo de D. Inês, os artistas prescindiram dos nichos em forma de gablete, das torres e pináculos que vemos nas faces laterais da arca tumular a enquadrar cenas da Infância e Paixão de Cristo, mantendo-se apenas, nas extremidades de cada um dos lados, dois nichos estreitos e suas torres, para a representação de dois profetas, respetivamente, na continuidade (iconográfíca e plástica) do que se pode observar nas restantes faces do túmulo. Assim, a área destinada à composição é muito maior do que a que foi reservada para as outras doze cenas das faces longas do túmulo, permitindo aos artistas criar imagens e cenários de maior dimensão e arrumar as figuras com maior desafogo. O mesmo recurso foi usado na face oposta, correspondente aos pés do túmulo, para desenvolvimento do tema do Juízo Final. Conhece-se, é certo, outras representações do Calvário em arcas tumulares portuguesas do século XIV, como são exemplos os túmulos da Rainha Santa ou de D. Fernão Sanches, ambos do segundo quartel do século

fontes indirctas da criação de algumas composições do túmulo de Inês de Castro e. entre elas, também a cena do Calvário - Cf. FERNANDES, Carla Varela, Poder e Representação. Iconologia da Família Real Portuguesa. Primeira Dinastia - Séculos XII a XIV, Lisboa. FLUL-UL, 2005, pp. 680-698.

Calvário: Testeira do túmulo de D. IMOS de Castro. Foto: Paulo Martins

XIV, entre outros22. Mas nenhum é tão desenvolvido e nenhum é tão expressivo e emotivo como o que se releva na arca tumular de D. Inês de Castro. Corolário e motivo maior da vinda de Jesus ao mundo dos homens, esta cena assume, no contexto deste monumento funerário, uma extraordinária vocação emotiva e catequética. Todo o cenário e a forma como se organizam as personagens fazem-nos pensar nas representações teatrais da época (Mistérios). A cena é composta por uma parte superior, em forma de faixa retangular, mais à superfície, apenas recortada ao centro com um arco apontado que serve de nicho à parte superior do Crucifixo. Simula um céu repleto de entidades angélicas (originalmente seriam treze; hoje " Cf. RAMOA, Joana, Chríslus Patiens. Representações do Calvário na Escultura Tumular Medieval Portuguesa, Lisboa, Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2008.

restam apenas três), dando continuidade a uma invenção iconográfica do século XIV" , envoltas em nuvens (menos conseguidas do ponto de vista escultórico que as nuvens dos anjos da cabeceira do túmulo de Fernando I), e segurando toalhas para recolher o sangue de Cristo. Contra este céu cheio de anjos e nuvens, foi também esculpida a figura antropomorfizada do Sol, à direita de Cristo (em lugar de honra), contrapondo-se à que, originalmente, deveria corresponder à figuração da Lua. Pretendeu-se, desta forma, dar destaque ao eclipse descrito em três dos Evangelhos (Mateus, 27:45; Marcos 15:33; Lucas, 23: 44), ocorrido entre o meio-dia e as três horas da tarde de sexta-feira, cobrindo a terra de trevas no momento em que Jesus Cristo expirou. Em baixo, num plano mais distante, reproduz-se o topo do Gólgota, tendo por cenário de fundo um palácio acastelado, com um corpo central ladeado por duas torres, tudo rematado com merlões e ameias, e as torres, na parte superior, rasgadas por arcos de volta perfeita que inserem outros arcos geminados, escavados e assentes numa platibanda rendilhada numa das janelas, e lisa na outra. Simboliza a Jerusalém terrestre, que encontra o seu paralelo celeste no outro topo da arca tumular, na representação do Juízo Final24. Em primeiro plano, e contra este cenário arquitetónico, distribuemse dez personagens: ao centro, pendente de uma grande cruz, cujo braço vertical superior possui inscrição epigráfica gravada numa fita que nele se enrola, a figura algo contorcida e magra de Jesus pontua o eixo da composição. Este Cristo de pedra já nada tem de vivo e de triunfal, mas representa um homem morto, vítima de tortura e terrível sofrimento puramente humano. Devido a atos de vandalismo ou outras vicissitudes ocorridas nos últimos 650 anos, a figura de Cristo sofreu perda de matéria, faltando-lhe a cabeça e os braços, mas o tratamento plástico do corpo não deixa de ser notável - em ligeira torção para a esquerda (do ponto de vista do observador), com o torso anatomicamente correio, o perizonium num tecido fino, a fluir em pregas ou colado às pernas e revelando a anatomia; as

Cf. RÉAU, Louis, Iconografia dei Arte Cristiano, t. l, vol. 2, 1996, p. 5 1 1 . ~* SILVA, José Custódio Vieira da - O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, Lisboa, IPPAR, 2003, p.81

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pernas ligeiramente fletidas e unidas, com os pés juntos, um sobre o outro. Este é o Cristo gótico que resulta do misticismo sentimental, devedor de experiências religiosas e consequentes ideias difundidas por homens e mulheres do século XIII como S. Francisco, Sta. Erigida (Revelações), ou o Pseudo Boaventura (Meditações). Este é o Cristo comovente do final da Idade Média. De um e outro lado da cruz onde Cristo está pregado erguem-se outras duas cruzes, mais pequenas, onde estão o Bom e o Man Ladrão, com idêntica posição dos braços e das pernas entre si - os braços passando sobre a tábua horizontal das cruzes e presos atrás das costas; as pernas juntas e esticadas e só amarradas nos tornozelos, sem recurso a cravos - o que dificulta a identificação de ambos, mas que a disposição, à direita e à esquerda de Cristo, deverá bastar para que os identifiquemos. Na extremidade esquerda da composição, encontra-se figurado um soldado, que segura com uma das mãos o escudo, e com a outra mão uma arma (espécie de maça), com que vai partir as pernas ao ladrão que se encontra crucificado junto de si. Do outro lado da cruz que se supõe ser a do Bom Ladrão, agrupamse três mulheres, cuja caracterização lhes pode conferir a categoria de melhor trecho compositivo de todo o túmulo, revelador de um notável entendimento plástico e conceção artística: Maria, já sem conseguir suportar o sofrimento, desfalece, caindo e sendo amparada pelas Santas Mulheres. O seu corpo parece agora sem vida, totalmente abandonado ao inconsciente, concentrando em si a maior parte do pathos que marca toda a cena. Para esse efeito muito contribui a posição do corpo e da cabeça, a pender para um dos lados, com os cabelos a cair em madeixas bem marcadas, sobre os ombros e o peito; os braços distendidos e com as palmas das mãos viradas para a frente; as pernas muito fletidas como se estivesse quase ajoelhada, o que não acontece porque este é o momento (em jeito de instante fotográfico) em que perde os sentidos e não cai totalmente no solo do Monte da Caveira (Gólgota), porque é amparada por uma das Marias, que a segura nos braços e ombros. A acompanhar esta gestualidade do desmaio, as pregas da túnica e do manto são expressionistas, em tudo o que

têm de teatral, moldando as pernas e caindo dramaticamente no chão em canudos pretensamente naturalistas. O sentido estático conferido aos corpos das outras duas mulheres, que contrasta com o movimento do corpo de Maria, com os olhares no sentido do solo e com os véus pendentes a cobrir-lhes as cabeças, acentua o plano descendente que normalmente se atribui à caracterização da tristeza e da dor, assemelhando-se muito às representações da Virgem e das outras mulheres que acompanham Cristo na cena de Cristo a Caminho do Calvário. O tema do desfalecimento da Virgem é apresentado pela primeira vez na arte medieval portuguesa. Do outro lado de Cristo Crucificado, e junto ao Mau Ladrão, vemos, em primeiro lugar, São João Evangelista, com as mãos cruzadas sobre o peito, o discípulo preferido e a quem Jesus confiou sua Mãe. A figura, tratada com uma plasticidade mais volumosa ao nível dos panejamentos das indumentárias, está muito incompleta, faltandolhe a cabeça e parte do corpo, mas a sua localização e gestos permitem identificá-lo facilmente. Junta-se-lhe a figura de um soldado, semiocultado por S. João Evangelista, mostrando a sua barba longa e ondulada e trajando de forma semelhante às dos soldados de outras cenas da Paixão. É também uma figura de marcada retórica expressiva, pelos gestos de uma das mãos que aponta no sentido de Cristo, bem como pela posição da cabeça, de perfil e ligeiramente levantada, para também direcionar o olhar do observador no mesmo sentido. No extremo da composição, em pé, com o corpo virado frontalmente, mas com a cabeça coberta pelo manto e ligeiramente virada no sentido da cena central, encontra-se a representação de José de Arimateia. Esta é, provavelmente, uma das figuras com mais forte sentido psicológico no tratamento da expressão facial e uma das mais conseguidas do ponto de vista escultórico. O rosto, ainda que obedecendo ao mesmo figurino de rostos masculinos deste túmulo (incluindo o do soldado antes referido, variando apenas o tamanho da barba) - o mesmo tipo e desenho dos olhos, o mesmo formato do nariz um tanto largo, a boca pequena e com os lábios muito carnudos - salienta-se pela capacidade demonstrada pelo escultor em conferir-lhe expressão, de idade e de consternação, através das

muitas rugas, desenhadas em diferentes sentidos, que marcam o seu rosto, na testa e junto aos olhos. Por ser o mais completo dos Calvários portugueses do século XIV, tornando-se um modelo único desta tipologia que visa a espetacularidade pelo número de personagens que nele participam e pelas atitudes e gestos de cada um, importa tentar perceber qual o modelo ou modelos que poderão ter servido de inspiração aos iconólogos e artistas deste túmulo. Como sugeriu informalmente Fernando António Baptista Pereira, este é um tema que surge, inicialmente, na arte italiana, de que é bom exemplo um crucifixo do acervo de pintura da National Gallery de Londres, datado de 1272-1285 (inv. NG6361), passou depois à arte francesa e também peninsular, com maiores ou menores alterações. Reinaldo dos Santos mencionou os livros de horas medievais como fontes de inspiração para esta composição dramática25, sugestão que, na verdade, se confirma, ainda que o autor não tenha ido mais longe na referência e desenvolvimento de analogias. Vejamos o que é possível dizer sobre o assunto. Nas iluminuras de um artista inglês anónimo das duas primeiras décadas do século XIV, no Queen Mary Psalter (c. 1310-1320), a cena do Calvário apresenta já algumas das soluções que mais caracterizam e valorizam a cena homónima do túmulo de D. Inês: a Virgem que desfalece amparada por duas Santas Mulheres (o que demonstra a continuidade da representação destes tema no século XIV para lá das fronteiras italianas); o Cristo crucificado ao centro da composição, no que este que tem mais plástico e emotivo no tratamento do corpo, e que tantas semelhanças apresenta com o Cristo do Calvário alcobacense; a colocação de S. João Evangelista no lado oposto ao da Virgem, em pé, posicionado ligeiramente a 3A (embora a gestualidade de ambos seja diferente), e a semiocultar uma personagem que é comum às duas criações artísticas e que se assemelha não só pela disposição na cena, mas também pelos gestos e posição das cabeças (ainda que no túmulo de D. Inês esta personagem seja um militar e no Saltério inglês seja mais facilmente identificado com um romano). Mas, para melhor compreender a evolução da complexidade compositiva deste tema, de que é um bom primeiro exemplo o Queen Mary :s

SANTOS, Reinaldo, Â Escultura em Portugal, Lisboa, Bertrand, 1948, pp. 28-29

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Psalter e, dessa forma, verificar como se chega ao corolário dessa mesma evolução em obras como o túmulo de Alcobaça e outras, importa considerar que na representação do Calvário numa das iluminuras do Livro de Horas de Jeanne d'Evreiix (c. 1325-1328), pintado Jean Pucelle2'', pode estar o principal modelo de inspiração para a cena do Calvário do túmulo de D. Inês 27 . Ainda que esta proposta não vá no sentido de ter havido uma cópia direta, detetando-se diferenças entre ambos (embora também muitas semelhanças), este modelo, pela sua qualidade e fama, deverá ter sido do conhecimento de vários artistas da segunda metade do século XIV e do artista responsável por esta obra, muito provavelmente através de cadernos de desenhos que o reproduziram, com mais ou menos alterações à composição do pintor de corte francês. De acordo com o que até ao momento consegui apurar para uma compreensão das fontes de inspiração das cenas deste túmulo, o artista ou artistas envolvidos na obra só poderão ter estado munidos de um, ou, com maior probabilidade, de vários cadernos de desenhos-modelos, com elevada quantidade de esquiços e igualmente elevada qualidade de desenhos de cenas, figuras e muitos elementos arquitetónicos. O facto deste livro de horas da autoria de Jean Pucelle (ativo em Paris entre 1320 e 1350), e cujas iluminuras representam o apogeu da arte da corte parisiense, constituir a primeira grande tentativa, a norte dos Alpes, de dotar a pintura de um sentido de tridimensionalidadc (aproximando-a, por isso, da escultura, especialmente pelo uso do grisaille, dos fundos e do esfumado), é um argumento que explica em parte o seu sucesso, não apenas para inspiração de outros pintores, mas também de escultores, mesmo em décadas posteriores à obra de Pucelle. 27 No decurso da análise das várias eenas que compõe a narrativa desenvolvida na arca tumular de D. Inês de Castro, e respetiva busca de modelos anteriores que permitam perceber vias de influência e migração das formas, as iluminuras do Queen Mary Psalter e, em especial, o Livro de Horas de Jeanne d'Evreux revelaram-se bons exemplos de obras-primas que funcionaram como exempla para o desenvolvimento e disseminação de fórmulas iconográficas. Não são os únicos exemplos, havendo afinidades com iconografias inovadoras noutras obras de pintura (iluminuras de diferentes manuscritos e pintura sobre madeira), de origem francesa, inglesa e até germânica. Estes modelos ultrapassaram as fronteiras dos respetivos países de origem (Inglaterra e França), muito provavelmente através de cadernos de desenhos- modelos pertencentes a mestres escultores que, em consequência da itinerância profissional dos artistas medievais, os levaram até aos estaleiros onde a sua arte foi requerida. Sobre a relevância do papel dos cadernos de desenhos-modelos para a difusão de valores plásticos e iconográficos na arte medieval, veja-se o estudo de SCHELLER, Robert W., Exemphtm. Model-Book Drawings and lhe Practice of Artisíic Transmission in lhe Midle Ages Iça. 900 - ca. 1479), Amsterdam University Press, 1995.

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Calvário. Iluminura do Queen Mary Psalter. Inglaterra - Westminster ou East Angha. 1310-1320. British Library, Royal 2 B VII f. 256v.

Para comparação e verificação das afinidades de modelos, reparese, no Calvário de Jean Pucelle, na colocação das três cruzes e respetivos crucificados, desde as posição (em particular a de Jesus Cristo), aos tipo de panejamentos (indumentárias) que cobrem os três homens, o facto de também aqui haver anjos que saem de nuvens (em número e tipologia diferentes) e até o Sol e a Lua antropomórficos, mas sobretudo a figura desfalecida da Virgem Maria, aqui sustentada pelas outras Marias (embora também também por S. João Evangelista). De facto, apesar das diferenças, é possível ver entre estas duas obras uma relação iconográfica muito significativa, mesmo que já filtrada por várias alterações, e mesmo que seja percetível a capacidade inventiva dos artistas do túmulo de D. Inês, que souberam recriar um modelo famoso (um exemplum), acrescentar-lhe elementos e subtrair-lhe outros. É possível que tenha havido uma difusão dos modelos do grande iluminador francês, cuja qualidade técnica e requinte artístico suscitou a maior admiração dos seus clientes e, certamente, dos seus pares, o que se terá prolongado pelas décadas seguintes. Se o túmulo de D. Inês pode ser um desses casos (tal como já verifiquei existir também para outras cenas da arca que tanta relação parecem ter com as soluções do Livro de Horas da rainha Jeanne d'Evreux), essa influência está cabalmente demonstrada na realização de outra obra emblemática da arte medieval europeia - o designado Paramento de Narbonne - datado de c. 1370 (posterior, pelo menos em cerca de nove anos, ao túmulo de D. Inês de Castro), atribuído por alguns autores ao pintor Girard d'Orleáns (?) e hoje pertença do Museu do Louvre (inv. MI1121) 28 . Trata-se de um pano de seda pintado em grisaille (que se pensa terá servido de frontal de altar), com cenas da vida de Cristo e os retratos dos doadores (Carlos V e Joana de Bourbon), o que demonstra claramente a forma como a arte de Pucelle afetou a criação artística nas obras mais destacadas da arte figurativa europeia do terceiro Obra ainda enigmática quanto à sua autoria e à função original, é provável que o designado Paramento de Narbonne possa ter sido usado como frontal de altar, ou que tivesse tido funções equivalentes às de um retábulo. Cf. LÊ POGAM, Pierre-Yves (dir.). Lês Premieres Ketables. Une Mise en Scène du Sacré, Catálogo de Exposição. Paris. Musée du Louvre, 2009. p. 92. Sobre esta obra veja-se ainda NASH, Susie, "The Parament de Narbonne: Context and Technique", in The Fabric oflmages. European Textile Supporls. c. 1300-1500, (Dir. Carline Villers), Londres, 2000, pp. 77-87. :s

Calvário. Iluminura do Livro de Horas de Jeanne TEvreux. França - 13241328. Jean Pucelle. The Metroploli.an Museum of Ar, (The Clolsters), N.Y inv, 54.1.2 42

l túmulo é um soldado), percebemos como ambas as composições decorrem de um mesmo modelo, que é por sua vez herdeiro do modelo de Jean Pucelle, embora tenham sido sujeitas às alterações mais ou menos inventivas dos respetivos artistas e às condicionantes motivadas pelos materiais em que cada uma delas foi realizada. Mas também é verdade que artistas da craveira de Jean Pucelle reelaboraram modelos iconográficos já existentes, misturaram-nos com outros e acrescentaram as suas ideias e o seu arranjo compositivo. Ou seja, o Calvário que Pucelle concebeu para o Livro de Horas de Jeanne d'Evreux foi também a súmula de outras composições homónimas, elaboradas e reelaboradas ao longo do tempo, em diversos suportes. Por outro lado, e pelo que me tem sido possível constatar, tanto na elaboração de muitas das cenas do túmulo de D. Inês de Castro, como em alguma imaginária trecentista portuguesa de elevada qualidade, os artistas recorreram, com impressionante frequência, às composições esculpidas nos baixos-relevos em marfim, em placas, dípticos ou polípticos - produzidos mormente em França, em particular na região de Paris, e que tanto circularam na Europa dos séculos XIII e XIV, em significativa abundância e diversidade de temas -, para cópia direta quando a estes tinham acesso, ou através das suas reproduções em cadernos e folhas avulsas com modelos

quartel do século XIV 29 , destinadas aos igualmente mais importantes e exigentes clientes e, certamente, também as criações de artistas de menores recursos expressivos.

que com eles circulavam 30 . Calvário. França - 1324-1328. Paramento de Narbonne. Paris, Musée du Louvre - inv. M I 1 1 2 1 r '" Desde meados do século X I I I , à semelhança do que aconteceu uns séculos depois com o aparecimento da tipografia e da possibilidade de imprimir gravuras que serviram, abundantemente, de fontes de inspiração para pintores e escultores (dos mais notáveis, aos mais populares), reproduzindo, ora fielmente, ora com acrescentos e/ou alterações, fruto da criatividade individual, surgiu e prosperou o fenómeno artístico dos pequenos polípticos esculpidos em marfim que, creio, tiveram um papel muito semelhante na difusão e na padronização de alguns temas (em especial os consagrados à vida de Virgem e de Cristo, mas também a alguns santos e até cena profanas), sob o ponto de vista iconográfico e até de estilo, mesmo que não fosse esse o seu objetivo. Este fenómeno, não ocorreu apenas em França (principal local de origem destas produções em marfim), mas ultrapassou as fronteiras e estendeu-se uma pouco por toda a Europa, incluindo Portugal. Entre a abundante bibliografia dedicada ao marfins góticos veja-se BARNET, Peter (ed.), Images in Ivory: Precious Objecta of lhe Golhic Age.Catálogo de Exposição. Princeton, Princeton University Press, 1997e GUÉR1N. Sarah M. - "Ivory Carving in the Gothic Era, !3th-15th centuries", Heilbrunn Timeline of An Histoiy. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000. (http://www.metmuseum.org/toah/hd/goiv/hd_goiv.htm, consultado em Maio de 2010).

Ao comparar o Calvário do túmulo de D. Inês com o do Paramento de Narbonne, verifica-se que as semelhanças são ainda mais evidentes. Se tivermos em conta que os Bom e o Mau Ladrão estão dispostos frontalmente, que a Virgem Maria, ainda que desfaleça de forma menos dramática, é também amparada pelo grupo das mulheres, que S. João Evangelista, à semelhança do que sucede no túmulo, passa para o outro lado da Cruz (aqui sentado e no túmulo em pé), e que até uma das figuras do grupo que se aglomera junto ao Mau Ladrão está de perfil e levanta um dos braços e a mão para apontar para Cristo (no paramento é um judeu e no :"

BARAGLI. Sandra, L 'An mi XIV Siècle, Paris, Hazan, 2005, p. 149.

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No caso da conceção e folhas avulsas das cenas da Vida de Cristo no túmulo de D. Inês, é percetível, em alguns exemplos, o uso de modelos de inspiração/cópia a partir de composições já experimentadas e repetidamente reproduzidas nos marfins franceses. Ora, certamente que os artistas deste monumento funerário usaram fontes iconográfícas que já conheciam, que já tinham usado antes noutras obras, numa prática que seria comum ao meio artístico mais prestigiado em todos os países do ocidente medieval (método e processos diferentes dos usados pelos menos diferenciados "santeiros" que usavam a talha direta a partir do modelo, e por isso dispunham de menos opções iconográfícas). No caso do Calvário do túmulo de Inês, ainda que nenhum políptico de marfim reproduza o mesmo episódio com a complexidade deste, até porque estas pequenas obras portáteis reproduziam o essencial de cada história, por economia de espaço mas também para uma maior eficácia do entendimento/identificação das mensagens por parte dos crentes, é possível mostrar a existência de fórmulas iconográfícas já experimentadas (e em fácil circulação pela rede clientelar europeia), através de alguns marfim relevados. Assim, Calvários onde se pode ver não só Cristo, mas também o Bom Ladrão e o Mau Ladrão (numa iconografia mais complexa e diferente dos calvários realizados na obras de escultura portuguesa até à realização dos túmulos de Alcobaça, restritos, normalmente a três figuras humanas - Cristo, ladeado pela Virgem Maria e S. João Evangelista), os dois ladrões dispostos de forma semelhante aos das duas obras francesas antes referidas e aos do túmulo de D. Inês, encontramos, por exemplo, num triplico de marfim de c. 1330, do Museu de Cluny (inv. CL446). Já a presença de um grupo alargado de figuras e, sobretudo, do grupo constituído pela Virgem que desfalece nos braços das Santas Mulheres, encontra-se, por exemplo, entre outros exemplos dos marfins da segunda metade do século XIV, num triplico de c. 1325-1350, também propriedade do Museu de Cluny (inv. CL448). A junção entre todos os elementos fornecidos por obras como as anteriormente referidas (polípticos de marfim e iluminuras da primeira metade do século XIV), ao que se junta a criatividade e capacidade artística do ou dos escultores, e mais alguns componentes cenográficos, permitiram

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criar a composição do túmulo de D. Inês e, antes e depois dela, composições homónimas no Livro de Horas de Jeanne d'Evreux e no Paramento de Narbonne. Concluindo, todas obras de grande prestígio para clientes igualmente muito prestigiados.

Calvário (Cristo crucificado entre o Bom e o Mau Ladrão). Painel central de um triplico com o Calvário. França- c.1330. Marfim. Musée National du Moyen Age - Thermes e Cluny - inv. CL446 47

Calvário (Pormenor do volante de um elíptico). França- segundo quartel do século XIV. Marfim. Musée National du IVIoyen Age - Thermes e Cluny - inv. CL448 A avaliação da importância do uso de modelos considerados exemplares (através de cadernos de desenhos ou folhas avulsas) por parte dos artistas para a criação escultórica em Portugal nos séculos do Gótico, (no que se refere à arte figurativa, mas também aos elementos arquitetónicos que não raras vezes se conjugam nestas obras), fica aqui enunciada, com recurso apenas a um exemplo temático de uma obra composta por muitos mais temas, e será desenvolvida em estudo já em curso, mas também noutros sobre diferentes obras de arte trecentista.

Bibliografia AFONSO, Luís Urbano, O Ser e o Tempo. As Idades do Homem no Gótico Português, Lisboa, Caleidoscópio, 2003. ALEXANDER, J. J. G., "Painting and Manuscript Illumination for Royal Patrons in the Later Middle Ages", in English Court Ciilture in the Later

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