O Caminho do Meio ou o Princípio da Incerteza: Diálogos ao Centro entre Esquerda e Direita

October 10, 2017 | Autor: Bruno Bernardes | Categoria: Centrism, Esquerda, Direita, Esquerda E Direita, Left and Right Political Culture Model, Centrismo Político
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Bruno Gonçalves Bernardes

O caminho do meio ou o princípio da incerteza: diálogos ao centro entre esquerda e direita

Segundo o princípio da incerteza de Heisenberg, dependendo do local onde estamos definimos e conceptualizamos a partícula que queremos estudar; uma vez mudado o nosso ponto de partida a partícula acaba por aparecer noutro sítio completamente diferente. Tal como na Física onde os fenómenos são também ditados pelo observador, parece-nos que na Ciência Política, a objetividade está logo à partida manchada pela condição humana. Como afirmou Carl Schmitt, a política é uma “conversa interminável” pois o seu esprit de corps não se baseia num acordo fundamental de certos princípios e conceitos (Farr & Seidelman, 1993, p. 7; Nöel & Thérien, 2008, p. 215). Manchada pelo seu próprio objeto de estudo, a ciência política é definida pelo espaço real da actuação política, tendo como seu paradigma a dicotomia esquerda-direita. Não é por acaso que Raymond Aron afirmou que o cientista social é um engagé, pois a academia, enquanto reprodução da vida política, assenta nas mais diversas divisões metodológicas e conceptuais, nas visões sobre a democracia e o poder, o papel do Estado e das instituições ou da sociedade civil e dos indivíduos. Não sendo ingénuos, a escolha e o manuseio de variáveis demonstram como os cientistas políticos se diferenciam nas suas abordagens e de que forma se posicionam no espectro político. Como considerou Gabriel Almond (1990, p. 24), a maioria dos cientistas políticos tende invariavelmente a posicionar-se no imenso “refeitório do centro”, esquecendo-se que a escolha do método, da abordagem, das variáveis e dos conceitos segue uma determinada “separação de cadeiras” que ora se posicionam à esquerda ora à direita (Nöel & Thérien, 2008, p. 217). Instalados na era da democracia, um sistema por excelência conflitual, pode-nos também parecer que a dicotomia esquerda-direita tudo resume, como se todo o debate político fosse meramente feito de opostos. Depois do conflito, o método democrático procura o consenso num diálogo entre liberdade e igualdade que tem nos parlamentos o

lugar de encontro e representação das variadas sensibilidades políticas. A história da democracia é também a da busca convergente, onde o que é progressivo logo se torna tradicional e o que é radical logo acaba por ser socializado, moderado e aceitável. Não é por acaso que Norberto Bobbio (1996, pp. 4-5) conclui que as classificações esquerdadireita resultam de um contexto, alterando-se de uma geração para a outra mas sem nunca perderem o intuito antitético da clivagem. Entre nós, José Adelino Maltez (2008, para. 19) também considera que “a direita e a esquerda são meras posições relativas” que dependem de uma relação tempo-espaço e que por isso apresentam “padrões variados”, ou seja, não são ditados por meras bipolarizações. É neste espaço que o centro se define, pois não sendo elementos estáticos, a esquerda e a direita produzem ao mesmo tempo um espaço que lhes é comum mas que por nenhuma delas é monopolizado. Como conclui Bobbio (1996) “o preto e o branco são divididos pelo cinzento (…) mas o cinzento em nada diminui a distinção entre preto e branco” (p. 5). A história do centrismo é também a da socialização democrática que permitiu a defesa intransigente dos direitos humanos contra os autoritarismos e recriou vários centros ou pontos de encontro entre esquerda e direita, mas que também recriou o que Duverger apelidou de “eterno marasmo” ou o situacionismo dos poderes aparentemente inabaláveis. São disso exemplo os muito criticados sistemas europeus como o justemilieu de 1830 (Guillaume, 2005, p. 179), o Transformismo italiano, a Restaurácion espanhola ou o Rotativismo português (Ramos, 2006, pp. 31-34; Donovan & Newell, 2008, p. 386; Mastropaolo, 2008, p. 403), principalmente quando está em causa enaltecer, por oposição, as graças do bipolarismo. Por exemplo, na sua crítica ao sistema parlamentar italiano, Gaetano Mosca considerou o bipolarismo inglês como a fórmula perfeita dos sistemas políticos. Maurice Duverger traçou uma crítica do “eterno marasmo” pedindo um retorno ao dualismo que marcou a vida política francesa desde a Revolução. Para Duverger, o centrismo dava um enorme poder aos partidos e deslegitimava a autoridade do Estado. Nesta mesma linha Giuseppe Maranini vai considerar que os centros e o centrismo são sintomas do regime a que deu o nome de “partidocracia”. E Giovanni Sartori, ao classificar três tipos de sistemas partidários bipartidarismo, pluralismo moderado e pluralismo polarizado - não deixa de fazer a sua crítica ao último, identificando-o com o sistema partidário italiano onde a grande parte dos partidos convergia para o centro (Mastropaolo, 2008, pp. 400-401). Numa linguagem institucionalista, a “escola” de Leiden tem fornecido importantes avanços no sentido de conceptualizar um determinado “equilíbrio da

competição partidária” onde, uma vez finda a transição democrática e consolidados os partidos, o sistema acaba por girar em torno de uma clivagem monopolizadora (Mair, 1997; Van Biezen, 1998; Jalali, 2009, pp. 200-215). Tal como é conhecido no trabalho de Downs é no centro que acontece a grande disputa de votos, pois dois partidos em posições opostas quererão mover-se aos poucos na direção um do outro na tentativa de roubar votos ao adversário, aproximando-se do eleitor médio. Na década de 1960, Otto Kirchheimer desenvolveria a tese do partido catch-all, um modelo organizacional pragmático que põe em causa a importância das clivagens ideológicas e que demonstra a flexibilidade eleitoral de fenómenos como o centrismo. Estas problemáticas levam-me a discutir a classificação que Bobbio faz da dicotomia esquerda-direita. Definindo-a através do binómio igualdade-desigualdade, o autor tenta ultrapassar os fenómenos que desde a década de 1970 definem o espaço de atuação do centro-esquerda e do centro-direita. A realidade política é plural e a dicotomia, apesar de representar ainda hoje uma clivagem eleitoral de enorme importância, não se pode basear num princípio filosófico sobre a igualdade. Como afirma Anderson (2005, pp. 130-131) muitos governos de esquerda já se comportaram como governos de direita no campo da igualdade e os eleitores não se baseiam somente neste qualificativo. O que tudo isto atesta é que fica difícil definir a dicotomia partindo de um pressuposto que, se Bobbio diz que não é qualificativo acaba sendo-o. Por isso, proponho para início da discussão dos fundamentos do centrismo uma reavaliação do binómio apresentado por Bobbio. Ao fazê-lo, estarei a considerar que o centro, tal como a esquerda e a direita, não é uma realidade estática, mas que sem estes não existe. O centro é, pois, como em seguida argumentarei, uma convergência divergente, consequência da relatividade dos termos esquerda e direita, sendo produto, síntese e antítese dessa mesma dicotomia.

LIBERDADE E IGUALDADE A existência de um centro atesta apenas que esquerda e direita, sendo termos que se excluem, têm também pontos de contacto. Desta forma, o centro não é mais do que o produto não só das interações entre esquerda e direita mas também das dinâmicas que se geram dentro do espaço de cada uma. Desafiar a dicotomia é, pois, desafiar os próprios termos em que se baseiam a pluralidade e o conflito necessários numa democracia, numa tentativa de gerar algum movimento centrípeto que em certos momentos pode

gerar consenso mas que em outros pode representar o fim da própria pluralidade de ideias. Não é por acaso que muitos cientistas políticos têm preferido os sistemas partidários bipolares, em contraste com os centristas (Mastropaolo, 2008, p. 400), aceitando o que Karl Popper designou de “golpes de Estado sem efusão de sangue”, ou seja, as transições pacíficas entre dois pólos divergentes que convergem nos princípios da eleição livre, competitiva e participativa. Bobbio tem razão quando diz que a dicotomia não está em crise. Apesar de por vezes ora a direita ora a esquerda parecerem estar em crise, nenhuma delas anulou a outra a favor de um centro dominante. Ambas se fundam em princípios divergentes e é nesses princípios que o centro deixa de ter sentido. O que isto nos diz é que o centro depende da dicotomia por ser uma síntese de certos princípios que se diluem entre esquerda e direita, mas quando em face de princípios basilares de uma e de outra o centro já não satisfaz e, por isso, é anulado. Norberto Bobbio cita três argumentos centristas que até à data da sua obra tinham sido utilizados para desafiar a existência da dicotomia esquerda-direita: um centro incluído entre as duas capaz de monopolizar o sistema político, um centro inclusivo que inclui as diferenças entre esquerda e direita diluindo-as e um centro transversal que invade o espaço de ambas esvaziando-as de conteúdo (Anderson, 2005, p. 129). Os centros incluídos não diluem a dicotomia e apresentam-se como uma alternativa política; os centros inclusivos tentam sintetizar a esquerda e a direita de forma a cancelá-las, tornando-as duas partes de um todo numa “totalidade dialética”; e, finalmente, os centros transversais que passam facilmente da direita para a esquerda e vice-versa (Bobbio, 1996, pp. 3-11). No entanto, os autores aos quais Bobbio se opõe têm razão quando dizem que esses mesmos centros apelam para a importância de um facto basilar em política: é ao centro que se ganham eleições. Se é verdade que esquerda e direita já estiveram ambas em crise em períodos diferenciados da história e que nenhuma delas anulou os princípios basilares da outra, o mesmo não se pode dizer da qualidade antitética do centro que lhe permite congregar princípios não monopolizados pela esquerda ou pela direita, o que afirma a sua existência entre a dicotomia. Neste sentido, o centro é uma convergência divergente pois que se por um lado permite a convergência entre princípios diferentes mas próximos, por outro afirma a divergência de princípios que se excluem. No entanto, os princípios em que Bobbio baseia a dicotomia não são satisfatórios. Invés da divisão igualdade-desigualdade proponho o binómio igualdade-

liberdade. Argumentarei que os princípios que dividem esquerda e direita são também os princípios que dão azo à complementaridade entre igualdade e liberdade, tendo a propriedade privada como motivo inicial da discórdia (Bobbio, 1996, pp. 80-81). Como refere Hannah Arendt (1998, pp. 29-32), foi a partir da propriedade privada que se definiu o espaço de atuação da polis, enquanto espaço para lá das necessidades e dos desejos individuais. No espaço público, o cidadão detentor de propriedade era igualado ao seu concidadão, enquanto a liberdade surgia como o princípio basilar do governo da polis, impedindo a violência ou o estado de natureza. Porém, estes dois princípios foram sendo transformados no decorrer da história e, principalmente no século XIX através da bipolarização entre liberalismo e marxismo. É a partir dessa bipolarização que se fundam os princípios que separam esquerda e direita. A liberdade enquanto princípio basilar da condição humana está bem patente nas divisões que ao longo do tempo separaram conservadores como Hobbes e De Maistre, de liberais como Locke e Stuart Mill; ou que opõem defensores dos princípios da democracia direta e do fim da propriedade privada como Rousseau e Marx, dos defensores da democracia representativa e da propriedade privada como Benjamin Constant e Adam Smith. Os velhos liberais, como Stuart Mill, defendiam o princípio da liberdade individual absoluta, sendo que a lei apenas limitaria o uso da liberdade abusiva sobre os outros. Como argumenta Isaiah Berlin, o conceito de liberdade negativa como defendido pelos velhos liberais, será substituído pelo conceito de liberdade enquanto habilidade de nos tornarmos autónomos. É aliás este princípio de liberdade que irá sustentar as primeiras críticas ao liberalismo. T. H. Green, partindo de uma crítica da liberdade negativa como minimamente regulada pelo Estado como defendida por Stuart Mill, desenvolveu um conceito de liberdade positiva elaborando uma crítica às teorias do laissez-faire pois considerava que um capitalismo desregulado não garantia essa liberdade, tornando-se o Estado o garante da salvaguarda do indivíduo. Nesta mesma linha, Keynes desenvolve a sua teoria económica contra a ideia de um mercado auto-regulador, defendendo os princípios da liberdade do indivíduo contra os abusos da desregulação. Se as críticas de T. H. Green e Keynes criam os fundamentos do chamado liberalismo social ou dos movimentos literalmente ao centro e, mais tarde servem a crítica social-democrata ao marxismo, o retorno às ideias do laissez-faire é feito por Von Mises, Hayek e Milton Friedman. A liberdade é, no entender destes últimos, um princípio que se constrói contra a intervenção estatal e pela liberdade individual baseada na propriedade privada. Não é por acaso que a chamada

New Right defende a ideia uma vez reproduzida por Margaret Thatcher de que a sociedade é uma irrealidade e de que a família é o garante de um tipo de cooperação que terá existido nas sociedades pré-modernas. O Estado tem de ser mínimo para que e seguindo Hayek, a liberdade política tenha lugar juntamente com a liberdade económica. É aliás Hayek que em The Constitution of Liberty de 1960, distingue duas correntes de pensamento acerca da liberdade: uma de tradição britânica primeiramente desenvolvida por Hume, Adam Smith e Adam Fergunson e depois por Burke e Tucker e que entendiam a liberdade como um mecanismo involuntário; e outra de tradição francesa desenvolvida por Descartes, Condorcet e Comte, e que vêem as instituições sociais como garantes de uma “liberdade premeditada” (Anderson, 2005, p. 15). Como é óbvio, Hayek posiciona-se entre os primeiros, vendo no mecanismo involuntário a receita para combater o planeamento, tão defendido por movimentos da esquerda ao centro-direita. Com o fim da propriedade privada e com o planeamento, as liberdades políticas e económicas ficariam em perigo em nome do princípio da igualdade. Contrariamente ao princípio da liberdade baseado na propriedade privada, a esquerda desde cedo desenvolveu o princípio da igualdade contra a propriedade privada. O objetivo de uma sociedade sem classes permitiria o fim do egoísmo e dos interesses individuais, baseando-se o coletivo na igualdade como razão inicial e última do Homem. Marxistas e socialistas consideram que a desigualdade faz parte da própria natureza da sociedade e que sem alterar as suas regras, a desigualdade permanecerá. No entanto estas ideias seriam revistas pelas divisões criadas pela Revolução bolchevique e pelo Congresso de Bad Godsberg. Se o primeiro separa socialistas radicais como Lenine de moderados como Kautsky (Heywood, 1993, p. 111), o segundo traz o abandono das reminiscências marxistas dentro do movimento social-democrata, o que levará nas décadas de 1970 e 1980 a uma revisão dos princípios marxistas, depois do fim do marxismo bolchevista como lhe chamou Eric Hobsbawn. As reformas no marxismo são operadas por Nicos Poulantzas para quem o Estado defende a classe que o governa impedindo a transformação do seu princípio de igualdade, o que reforça o capitalismo e encontra paralelo no conceito de hegemonia de Gramsci. Por outro lado, as reformas da social-democracia levariam, por um lado, à adopção das regras do mercado e de um tipo de regulação keynesiana por parte de social-democratas e, por outro, à rejeição da ideia da ditadura do proletariado e do governo de partido único pelos eurocomunistas. Dinâmicas que em 1956 tinham já sido previstas por Anthony Crosland em The Future of Socialism quando, rejeitando a tese

de Nicos Poulantzas, argumenta que o capitalismo deixara de ser um sistema de exploração de classe. Argumento que é confirmado por Bryan Gould quando diz que o objetivo do socialismo passou a ser a igualdade de poderes e não de riqueza (Heywood, 1993, p. 132). O grande dilema do movimento social-democrata e do centro-esquerda europeu sempre esteve no equilíbrio entre liberdade económica e igualdade socioeconómica. Tal como o princípio da liberdade encontrou entre liberais e conservadores uma revisão dos princípios da direita e do centro-direita, com as cisões no movimento socialista surgiram as primeiras revisões do princípio da igualdade dentro da esquerda e do centroesquerda. Aliás a atual crise do ajustamento ao centro do princípio de igualdade materializado no Estado-Social levou ao que os autores de What’s Left of the Left consideram ser uma crise do princípio basilar da esquerda e da sua diluição pelas dinâmicas do centro-esquerda (Cronin, Ross & Shoch, 2011, pp. 3-11). Tal como nos diz Perry Anderson (2005, p. 135) numa crítica que faz ao binómio de Bobbio, a esquerda também adoptou o mercado e em certos países as desigualdades socioeconómicas foram criadas por governos de esquerda. No mundo inteiro a teoria do mercado parece prevalecer e tem sido usada como chavão do desenvolvimento, do progresso e do crescimento. Tal como afirma Arendt (1998, 307-308) esta é a vitória da felicidade enquanto princípio maior do utilitarismo. Sendo a busca da felicidade a missão definidora da política, o mundo onde vivemos está necessariamente centrado nesse objetivo. Não tendo uma garantia axiomática, a dicotomia molda-se ao tempo, ao espaço e às memórias e é por isso que, se hoje a esquerda parece enfrentar problemas de isolamento do seu princípio basilar face a uma “teologia dos mercados” como nos diz Adriano Moreira, também houve tempos em que a direita esteve em crise. No entanto, o princípio da felicidade, enquanto busca coletiva não define, por si, a diluição da esquerda ou da direita num centro hegemónico, pragmático e utilitarista. Invés disso, a história do desenvolvimento económico e da democracia é a história do equilíbrio entre igualdade e liberdade como em seguida demonstro.

OS VÁRIOS CENTROS DE QUE O CENTRO É FEITO Tal como concluem Shmuel Sandler e Jonathan Rynhold (2007, pp. 238-239) sobre o atual sistema partidário israelita, os centros sempre existem mas vão alterando o

seu conteúdo, num centrismo que se baseia em novas relações de poder. Contrariamente aos críticos da dicotomia esquerda-direita que têm desde a década de 1960 apontado as suas baterias para o fim da ideologia ou da história, o alinhamento ao centro de ambos os princípios de igualdade e liberdade mantém ainda gradações importantes que definem as diferenças essenciais entre os dois lados da contenda. Se é verdade que ambos os termos definiram o espaço de desenvolvimento da democracia, também é verdade que não podemos esquecer o facto histórico que separou e separa democratas de anti-democratas e que em síntese juntou os defensores dos princípios dos direitos humanos numa espécie de consenso internacional. Nestes termos, uma das primeiras diferenças que podemos observar é a que separa os centros despóticos dos centros consensuais. O centro despótico, enquanto rejeição dos princípios democráticos, tenta anular a pluralidade ao criar uma convergência autoritária e totalitária. Onde existe um centro despótico, esquerda e direita desaparecem e dão lugar ao “Homem novo”, ao “Estado Novo”, ao partido único, ao corporativismo e à coletivização. O centro despótico foi uma forma de governo que se opôs aos partidos, aos parlamentos e à delegação de poderes, preferindo eliminar a “mediocridade democrática” (Bobbio, 1996, p.24) e o erro do decisor, substituindo-os pelo decisor compulsivamente infalível. Desta forma, o centro despótico, enquanto forma de degenerescência política, vai além da síntese e tenta exacerbar o princípio antitético do centro, criando uma oposição artificial entre esse centro e as margens. É por essa razão que os regimes ditatoriais nunca se consideraram de esquerda ou de direita. Pelo contrário, o centro consensual é produto, tal como a dicotomia, do jogo democrático, da institucionalização dos parlamentos e do encapsulamento da esquerda e da direita em organizações partidárias. Desde o início da luta entre esquerda e direita que se tentou diferenciar ou aproximar as diferentes organizações partidárias e movimentos políticos. Talvez o projeto que tenha tido mais sucesso no aproximar da esquerda e da direita tenha sido o da economia mista que depois da crise de 1929 criaria as fundações do atual modelo social europeu. O projeto da economia mista, que venceu extremistas com o fim da II Guerra Mundial e com a queda do muro de Berlim, acabou por socializar os sistemas de decisão nacionais e internacionais e os sistemas partidários, diluindo os princípios diferenciadores da dicotomia. Como notou Gunnar Myrdal, antes do século XX a ideia de planeamento económico não tinha sido abordada pela esquerda e são as inovações introduzidas pelo taylorismo que levarão ao patrocínio

do planeamento e da intervenção na economia (Nöel & Thérien, 2008, p. 111). Com a crise de 1929, e tal como defendiam os primeiros liberais críticos do laissez-faire e depois social-democratas e democrata-cristãos, chegou-se à conclusão que os mercados não se auto-regulam e que o Estado tem de ser a salvaguarda da liberdade e dos interesses coletivos. Esta premissa levaria à construção de variados consensos ao centro, sendo o modelo social europeu o mais paradigmático, congregando o liberalismo social, a democracia cristã, a social-democracia, a doutrina social da igreja, eurocomunistas e socialistas. Cruzando a industrialização, o crescimento económico e a intervenção do Estado, o Estado-Social é a síntese perfeita entre a esquerda e a direita europeias num centro consensual. Outro exemplo de centro consensual, desta feita global, tem-se desenvolvido em torno da busca incessante pela felicidade como princípio utilitário máximo. Se como vimos na Europa esse projeto sintetiza-se no Estado social, pelo resto do mundo se repete a vitória do crescimento e do desenvolvimento como produtos de um novo laissez-faire que dita o sucesso do modelo económico ocidental noutras partes do mundo como a China, o Brasil e a Índia, no que alguns têm apelidado de consenso de Washington. Estudado nestas últimas décadas por economistas políticos, este tem gerado um consenso governativo à esquerda e à direita, com a proliferação do copypaste no processo de decisão. Com The End of Ideology publicado em 1960, já Daniel Bell abordara o facto de que com o enfraquecimento do fascismo e do comunismo, as grandes decisões políticas geravam-se em torno de um consenso enquanto os partidos apenas se preocupavam em defender a prosperidade e o crescimento económico, ficando a política confinada a um debate técnico (Heywood, 1993, p. 296). Paralelamente, Francis Fukuyama publica em 1989 o ensaio The End of History onde proclama a vitória do modelo liberal sobre todos os seus rivais históricos. Apesar de se basearem num facto que tem conduzido a política mundial nas últimas décadas, ambos os autores não perceberam que o grande consenso é um consenso ideológico, apesar de parecer hegemonicamente centralizado. As diferenças entre a direita e a esquerda, ou seja, entre os princípios da liberdade e da igualdade, apesar das metamorfoses e das colagens ao centro, mantiveram a sua essência. Como referiu Antonio Negri, depois do final da guerra fria e quando se esperava que o mundo político se reuniria em torno de um consenso, acabaram por formar-se uma pluralidade ainda maior de movimentos que abraçam ou contestam o capitalismo em diferentes gradações. Ainda nas décadas de 1970 e 1980 e no rescaldo do primeiro reajustamento do famigerado consenso, viu-se

bem como as teorias monetaristas se opuseram ao próprio consenso e o transformaram, gerando também outros consensos sobre a forma como o mercado deve ser regulado ou moralizado, o que leva, por exemplo, John Rawls a defender os sistemas de redistribuição social-democratas mas a partir de um princípio de desigualdade económica, pois sem ela não existiria um incentivo para as classes mais pobres; ou que Habermas também defenda o mesmo sistema de distribuição mas sem esquecer a necessária moralização do capitalismo e a criação de um consenso globalmente conversável. No entanto, as degenerescências do centro consensual foram mais longe e tentaram ultrapassar a antítese, exacerbando o princípio da síntese, recriando várias vezes o que Duverger apelidou de “pântano” (Mastropaolo, 2008, p. 400). Os sistemas rotativos português, espanhol e italiano do século XIX são bem ilustrativos das dinâmicas de um centro consensual que tenta a todo o custo ultrapassar as antíteses através do caciquismo, da compra de votos e do clientelismo. Não é por acaso que Paolo Farnetti argumenta que o sistema político italiano tentou sempre basear-se num centrismo de forma a ultrapassar as divisões sociais, recriando um centro capaz de alimentar as clientelas partidárias dependentes do orçamento de Estado, o que encoraja os partidos a adoptar posições ao centro de forma a ter acesso a esses recursos (Mastropaolo, 2008, p. 402). As estratégias de darwinismo partidário são bem conhecidas da história das organizações partidárias. Com o alargamento dos consensos, os partidos foram adoptando estratégias de caça ao voto, de que os partidos catch-all são paradigma. Com a tese do partido cartel, Richard Katz e Peter Mair (1995) chegaram à conclusão que depois que os sistemas partidários estão consolidados e que se atingiu um determinado equilíbrio da competição eleitoral em torno de uma clivagem monopolizadora, existe o risco dos partidos da governação passarem a confundir-se com o Estado. Aliás este é um dos grandes problemas que enfrentamos na Europa e em sociedades como a nossa em que os partidos têm-se alicerçado num neo-clientelismo (Piattoni, 2001) que usa o Estado-Social como moeda de troca eleitoral, criando um consenso sem resistência que impede as reformas e emperra um sistema demasiado partidocrático, o que mancha a representatividade e negligencia a sociedade civil e o eleitorado. Outra divisão dentro do centrismo opõe os centros radicais dos centros moderados ou, respetivamente, uma ideologia inclusiva face a uma anti-ideologia inclusiva. Agnes Heller, depois de ter abandonado o marxismo, tem desenvolvido o seu

pensamento sobre a democracia a partir da adopção da filosofia de Kant e da consequente rejeição do marxismo, do socialismo científico e da teoria do laissez-faire (Tormey, 1998, p. 12). Heller tem defendido uma ideologia inclusiva que ultrapasse o sentido populista dos centros consensuais e que mantenha os princípios democráticos da igualdade e da liberdade, esperando, tal como Habermas, que o “sistema dinheiropoder” seja orientado não pelo sucesso material mas pelo mútuo entendimento (Anderson, 2005, p. 116). O centrismo radical define-se anti-populista e humanista, contra o abuso dos princípios utilitários usados pelos centros consensuais. Como considera Heller, a democracia é infinita e dinâmica e a simples proliferação da sociedade civil não é suficiente. Antes é necessária a institucionalização de governos populacionais, evitando-se a subordinação e as hierarquias. Se a liberdade é um valor universal e essencial na democracia então esta tem de assegurar que esse mesmo princípio prevaleça. Pese embora o pensamento algo sintético de Agnes Heller, o movimento radical centrista é, tal como o próprio centro, uma mescla plural de movimentos e partidos que têm como bandeira a síntese dos princípios da liberdade e da igualdade. Ambas as críticas ao liberalismo e ao marxismo são incluídas no centro radical, o que leva partidos como o Lib-Dem inglês a defender ao mesmo tempo os princípios de Stuart Mill, Keynes e Lloyd George. Aliás a integração das teses de Stuart Mill em alguns movimentos do centro radical torna-os diferentes dos centros moderados que rejeitam os princípios da liberdade negativa e falam no fim ou diluição das diferenças entre esquerda e direita. Por seu turno, Anthony Giddens, David Held, Anthony McGrew e Zaki Laïdi desenvolveram as suas teses em torno da globalização argumentando que com o fim da guerra fria a política deixara de ter respostas claras aos problemas da governação (Nöel & Thérien, 2008, p.9). Aliás Giddens, será o primeiro destes autores a considerar que os termos esquerda e direita não faziam mais sentido. Em Beyond Left and Right e The Third Way, Giddens tenta encontrar um novo objetivo para a esquerda, o que acaba por se materializar nos governos do New Labour de Tony Blair e que tiveram reminiscências em vários governos e partidos de centro-esquerda europeus. Tal como defende em The Third Way, Giddens crê que contrariamente ao liberalismo e à socialdemocracia, a falência do marxismo deve-se à sua incapacidade de ver o capitalismo como um sistema humanizável. Por sua vez, a crise da social-democracia começa na sua difícil orientação num mundo sem alternativas ao capitalismo. Nesse processo, Giddens reconhece cinco dilemas no futuro da social-democracia: globalização, individualismo,

dicotomia esquerda-direita, agência política e problemas ecológicos. De forma a incluir estes dilemas globais na sua doutrina política, a social-democracia deveria posicionar-se rigorosamente ao centro de forma a contestar a esquerda e a direita radicais através de uma moderada integração do princípio da igualdade na proteção dos mais vulneráveis e do princípio da liberdade positiva (Giddens, 1998, p. 66). Giddens chega a considerar que a social-democracia moveu-se para o centro por razões oportunistas e que uma participação alargada deve ser dada aos cidadãos de forma a que a social-democracia possa emergir através do princípio da emancipação e de um certo radicalismo na forma de pensar temas e reformas consensuais (Giddens, 1998, pp. 45-46). A terceira via, mais do que uma tentativa de demarcar o centro-esquerda da esquerda e do centro-direita, é um projeto de anti-ideologia inclusiva, pois que ao tentar desenhar um espaço de atuação para a nova esquerda negando o papel da ideologia no mundo pós-moderno, acaba por delimitar uma determinada forma de se fazer política. Não é por acaso que Giddens tenta ultrapassar a própria terceira via com a publicação em 2003 de The Progressive Manifesto, o que demonstra a crise da social-democracia e o relativismo de um projeto inclusivo sem navegação ideológica. Sendo produto, síntese e antítese da dicotomia o centro tem ao longo da história desenvolvido um diálogo permanente com a esquerda e a direita. Ponto de encontro e de diálogo entre os princípios da liberdade e da igualdade, ajudou a criar pontes entre moderados na socialização democrática, na luta contra os autoritarismos e nos consensos que hoje nos governam. Sendo centro de consensos também se pode assumir totalitário ou pantanoso, situacionista e partidocrático. Sendo uma convergência divergente é nele que habitam as ideologias inclusivas e os movimentos que se dizem aideológicos.

A SEMPITERNA CRISE Se, por um lado, muitos politólogos culparam os sistemas ao centro, por outro o centrismo permitiu a socialização dos sistemas partidários numa competição pacífica. O estudo pioneiro de Maria José Stock (1985) demonstra como a consolidação do sistema partidário português se desenvolveu em torno de um centro onde se cimentaram as duas alternativas governamentais. Por exemplo, em Cabo-Verde o rotativismo tem oferecido transições políticas pacíficas o que tem democratizado as instituições e impede a polarização da sede do poder. A crítica tem sido feita, em parte, pela noção de que os

centros hegemónicos diluem as noções de esquerda e direita num consenso degenerativo, ou seja, eliminando a pluralidade necessária aos sistemas democráticos. Apesar das degenerescências óbvias ao longo da história, os sistemas bipolares incluíram também movimentos centrípetos de forma a impedir a proliferação de polaridades. Muitos destes sistemas, principalmente aqueles que governaram a Europa até à I Guerra Mundial, recriaram uma imagética de poderes paralelos onde tudo o que é tradicional é velho e tudo o que é progressivo é novo, sem esquecer as divisões historicistas que opõem absolutistas e liberais, monárquicos e republicanos, como se a política não fosse mais do que uma dicotomia onde quem é de esquerda ou de direita tem de estar sempre de acordo com os valores da sua família política. Porque aliás a própria existência do bipolarismo também criou e recriou variados rotativismos em que as alternativas logo se foram assemelhando, onde águas paradas impedem a proliferação de alternativas. Se a pluralidade democrática é a causa original da dicotomia, o centro só existe porque existe dicotomia. É por essa razão que o centro não escapa à sempiterna crise que o diálogo político encerra. Onde existem esquerda e direita é natural que se forme um centro pois que os movimentos, mesmo que institucionalizados em partidos, também encerram histórias de faccionalismos, grupos e oposicionistas. Partidos que não aceitam o pluralismo interno da esquerda ou da direita logo patrocinam os Gulags da história e as perseguições, recriando, ironicamente, um centro despótico. A sempiterna crise que define a transformação constante dos conceitos de igualdade e liberdade tem também um efeito sobre os centros. Baseados no princípio da incerteza estes são, tal como a dicotomia, lugar de concórdia e discórdia, o que apenas atesta que a política é, e parafraseando Carl Schmitt, uma arte interminável.

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