O campo de morango sonoro: a memória, as visões surreais, as fronteiras transculturais na presença e no sentido da canção Strawberry Fields Forever dos Beatles (1966-1967) – Parte 1

May 31, 2017 | Autor: João Bosco Brandão | Categoria: Surrealism, Memory Studies, Sense of Place, Presence, Transculturalism
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O campo de morango sonoro: a memória, as visões surreais, as fronteiras transculturais na presença e no sentido da canção Strawberry Fields Forever dos Beatles (1966-1967) – Parte 1
The strawberry sounds: memory, surreal visions, transcultural borders, presence and meaning in The Beatles song "Strawberry Fields Forever" (1966-1967) – Part 1
João Bosco Ferreira Brandão

O surrealismo não é um estilo. É o grito da mente que se volta para si mesma.
Antonin Artaud
A experiência estética pode levar a um tipo de epifania.
Hans U. Gumbrecht
As únicas músicas de verdade que escrevi foram Help! e Strawberry Fields.
John Lennon
1 – Pequeno convite (ou) "Let me tell you how it will be"
No dia 10 de outubro de 1985 o jornal The New York Times estampava uma matéria sobre a inauguração do Strawberry Fields Memorial:
Victoria Niedzwiecki from Brooklyn viewed the ceremony from atop a friend's shoulders. The plot, just east of 72d Street and Central Park West, was a favorite walking spot for the Lennons. The Dakota apartment house, where John Lennon lived and, on Dec. 8, 1980, died, is the backdrop for Strawberry Fields.
A uma distância de aproximadamente 5.325 kilômetros de Nova Iorque e do memorial acima citado está Liverpool. Na Beaconsfield Road, nos subúrbios da cidade portuária que fica no noroeste da Inglaterra está um orfanato adquirido pelo Exercito da Salvação em 1934, atualmente desativado. Seu nome é Strawberry Field (sem o "s"). Mas o que estes dois lugares tem em comum além do nome singular? A capacidade criativa de John Winston Lennon. Músico e integrante de um dos mais influentes grupos musicais dos anos sessenta: os Beatles. Ele foi o principal compositor da canção Strawberry Fields Forever gravada entre novembro e dezembro de 1966 e lançada no início de 1967. Esta música carrega em seus acordes, letra, arranjos, variados efeitos sonoros e muitos dos elementos da experiência psicodélica que estava em voga naquele período, além de características do movimento artístico surrealista que marcaria a produção musical de muitos grupos no final dos anos sessenta.
Os dois locais são hoje pontos de visitação. Passeios pagos são programados para se "conhecer" Strawberry Field em Liverpool e o Strawberry Fields Memorial também é um espaço de confraternização e encontro de fãs e curiosos. Ambos são para muitos, lugares de memória afetiva, locais onde a prática da cultura de presença proposta por Hans Ulrich Gumbrecht transparece, transpira por todos os poros. Este artigo tem como escopos analisar o tema desta canção dos Beatles que envolve a nostalgia; entender como a mesma está materializada na memória individual e socializada de seus ouvintes através da utilização do conceito de cultura de sentido e de transculturalidade da memória; explicitar as características surrealistas da canção, que acreditamos favorecer o acolhimento de Strawberry Fields Forever em pleno século XXI; além de esclarecer algumas das técnicas de estúdio utilizadas pelos Beatles na gravação da canção para alcançar os efeitos que tratamos como "musicalmente surreais"
Ao compor sobre sua cidade natal e mais especificamente sobre um local que fizera parte de sua infância, John Lennon transformou o antigo orfanato em uma paragem universal mergulhada no sonho e na nostalgia. Atingiu aspectos de reminiscências transculturais, desenvolveu o fascínio que reforçou a identificação com o tema e criou em muitos a vontade de conhecer o lugar objeto da canção. Para Aldous Huxley (2015, p. 21) a música tem a capacidade "[...] de evocar experiências como perfeitas totalidades (isto é, perfeitas e totais em relação à capacidade de cada ouvinte para ter qualquer determinada experiência)". Em nossa investigação, o compositor compartilha com seus ouvintes a experiência da saudade da infância, das reminiscências associadas a lugares especiais que fazem parte das memórias de todos e convida: "Let me take you down, cause I'm going to...".
2 – A obra dos Beatles como objeto de pesquisa histórica na transculturalidade da memória (ou) "You and I have memories, longer than the road that streaches out ahead"
Na terceira geração dos Annales capitaneada por Pierre Goubert e Emanuel Le Roy Ladurie, "[...] as atitudes mentais e as elaborações do espírito passaram a ser objeto do historiador" (Sandra Jatahy Pesavento, 2003, p. 31). Pesavento afirmou ainda que "[...] os modelos correntes de análise (histórica) não davam mais conta, diante da diversidade social [...]"que se colocava como desafio perante um mundo cada vez mais globalizado (2003, p. 9). Segundo Roger Chartier (1990, p. 14;19) os pesquisadores históricos
puseram em prática uma estratégia de captação, colocando-se nas primeiras linhas desbravadas por outros. Daí a emergência de novos objetos no seio das questões históricas: as atitudes perante a vida e a morte, as crenças e os comportamentos religiosos, os sistemas de parentesco e as relações familiares, os rituais, as formas de sociabilidade, as modalidades de funcionamento escolar, etc. – o que representava a constituição de novos territórios do historiador através da anexação dos territórios dos outros [...].

Literatura, música, artes plásticas tornaram-se com cada vez mais frequencia exemplos destes "novos"objetos de análise histórica. O que tanto nos seduz nestes "[...] objetos de experiência estética? [...] o estatuto de nossas respostas será sempre historicamente específico [...]" (Hans U. Gumbrecht, 2010, p. 133-134). Associado ao período de sua produção, mas principalmente à ressignificação que fazemos em nosso presente histórico e social como fruidores, os objetos de experiência estética podem trazer reflexões e elucidar certos questionamentos relacionados às nossas percepções das relações do indivíduo com a sociedade.
Para Henri Zerner (1976, p. 152) "Três fatores podem definir o campo de significação dos objetos artísticos: o produtor, o intérprete e a cultura". O produtor, aquele que cria o objeto com as suas motivações e inspirações, o intérprete, que é o receptor da obra e a cultura que Zygmunt Bauman (2013, p. 11) conceituou como "um conjunto de preferências sugerido, recomendado e imposto em função de sua correção, excelência e beleza". Bauman (2013, p. 12) ressaltou ainda que em seu conceito original a "[...] 'cultura' seria um agente da mudança do status quo, e não de sua preservação [...]".
Pesavento (2003, p. 15) conceituou cultura como "[...] uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ações e aos atores sociais se apresentem de forma cifrada, portanto já um significado e uma apreciação valorativa". Para Julio Aróstegui (2004, p. 333) a cultura é
toda bagagem mental orientada ao entendimento e uso do mundo simbólico e, em função dele, à produção prática de um conjunto de pautas ou padrões de comportamento, sempre em recomposição, que dão sentido e condicionam a ação social de indivíduos e conjuntos. Para construir a realidade social, se utilizam de um repertório de descobrimentos e experiências, normas e tradições, todos os quais integram a cultura de um determinado grupo, de forma que toda ação histórica acaba produzindo, entre outras coisas, um objeto cultural. Em termos gerais, essa cultura se interioriza como conteúdo de consciência, como transcrição da atividade social e, ao contrário, a transcrição coletiva das experiências em forma de cultura do grupo produz um sistema de relações de onde se derivam símbolos, linguagens verbais, depósitos de conhecimentos e capacidades concretas para a ação.
A cultura é uma importante dimensão formadora da memória, (ou se preferirem, "memórias") presente em nosso grupo social antes de nosso nascimento e que continua após o nosso desaparecimento. Os objetos culturais são importantes apetrechos que nos situam no mundo, que nos dão a sensação de pertencimento, que formam a nossa identidade e que trazem um certo conforto perante uma realidade em que os "entre-lugares" propostos por Bhabha merecem ser analisados com atenção. Para Huizinga, citado por Frank Ankersmit (2001, p. 1) a história é a forma como a cultura expressa a consciência de seu passado. Essa consciência do passado nada mais é do que a própria memória.
Para Mikháilovich Lotman, citado por Jerusa Ferreira a cultura tem como uma de suas propostas nos precaver do esquecimento e em alguns momentos proporcioná-lo. ""Vive-o, transformando-o num dos mecanismos da memória" (Ferreira, 1994/1995, p. 118). Astrid Erll (2014, p. 4) escreveu que todas as formas de lembrança (dos processos neurais até as representações midiáticas) ocorrem em contextos socioculturais e estão envoltas nos mais variados aspectos coletivos e particulares de cada indivíduo. A memória individual, como propôs Reinhart Koselleck, nos distingue do passado e nos localiza no tempo, ao mesmo tempo em que fortalece a nossa identidade.
A obra de arte (artefato cultural) em nossa contemporaneidade pertence ao mundo desta cultura que para Bauman (2013, p. 17) "[...] é modelada para se ajustar à liberdade individual de escolha e à responsabilidade, igualmente individual, por essa escolha [...]". Concluimos assim que a obra de arte abarca múltiplas apropriações/análises dos indivíduos que diante de seu espectro de "liberdade total" variam de acordo com o tempo, com o espaço e com o receptor. Zerner (1976, p. 154) afirmou que "a existência física das obras (de arte) submete-as a um tempo próprio que as marca, as degrada e as enriquece". Os diferentes homens e mulheres em suas diferentes temporalidades que tem a oportunidade de se "aproximar" do objeto estético deixam nele uma marca peculiar na tentativa de uma interpretação/apropriação/fruição/posse.
Todas as nossas experiências pessoais (banhadas pela cultura) e nossa formação adquirida com o "capital escolar" nos auxiliam na compreensão da obra de arte e de seu gozo estético. Para Panofsky, citado por Zerner (1976, p. 147) a intencionalidade artística, ou o Kunstwollen está ligada à "[...] vontade individual do artista, [...] à psicologia de uma época como vontade coletiva consciente ou insconsciente [...] e pela experiência estética do espectador atual [...]". A música é um exemplo de forma de arte que está sendo constantemente revisitada pelas novas gerações.
As canções dos Beatles são parte da história da música popular contemporânea e consequentemente da história da arte, que é segundo Norbert Elias (1995, p. 46) "[...] um processo estruturado que vai numa certa direção e está intimamente ligado ao processo social geral [...]". Peter Burke (2008, p. 171) coloca a história da arte como "[...] cada vez mais vista como história cultural". Para Zerner (1976, p. 146) "a partir de Hegel [...] alguns conceberam a arte como atividade própria da humanidade, postulando que o homem era naturalmente produtor de arte [...]". A arte e suas manifestações são componentes ativos de nossa memória cultural; constantemente ressignificadas elas nos auxiliam a entender a sociedade e seus paradigmas e estão presentes na história e mesmo antes dela.
A memória cultural acima citada não pode ser então vista somente sob um ponto de vista em sua formação, assimilação e ressignificação. As memórias formadoras e consolidadoras da cultura e da indentidade de um povo dentro de nossa contemporaneidade globalizada ultrapassam as fronteiras confinadoras buscando a amplitude e atingindo o aspecto da transculturalidade; expressam dinamicidade, energia, embricamentos. Em nossa realidade globalizada "[…] memory is first and foremost not bound to the frame of a place, a region, a social group, a religious community, or a nation, but truly transcultural, continually moving across and beyond such territorial and social borders" (Erll, 2014, p. 11). A memória é transcultural. Erll conceitua a transculturalidade da memória como
[…] an umbrella term for what in other academic contexts might be described with concepts of the transnational, diasporic, hybrid, syncretistic, postcolonial, translocal, creolized, global, or cosmopolitan.[…] (Erll, 2014, p. 9).

A transculturalidade abrange multidisciplinarmente vários aspectos dos vários grupos sociais que formam nossa sociedade. "Different social classes, generations, ethnicities, religious communities, and subcultures all generate their own, but in many ways intersecting, frameworks of memory". (Erll, 2014, p. 8). Não se prendem em suas fronteiras territoriais ou sociais. Erll (2014, p. 11) esclarece que a memória transcultural está em um movimento contínuo de transformações em suas práticas, derrubando as fronteiras políticas, linguísticas e sociais. Não há a homogeneidade e unicidade, pois o que se verifica tanto teoricamente quanto em nossas práticas é o imbricamento das várias camadas de memória dos indivíduos e grupos em suas diferentes identidades que são múltiplas nos sujeitos sociais.
As identidades transitam por fronteiras, nem sempre demarcadas de maneira clara, pois os limites se confundem e as referências se misturam. A identidade conforma-se a partir dos vários papéis sociais que cabem ao indivíduo representar: seja nas relações familiares, no trabalho, com o grupo de amigos e outras mais que o integram [...] (Rita Aparecida da Conceição Ribeiro, 2014, p. 4).
A transculturalidade da memória se reflete na variedade de identidades possuídas pelo indivíduo, suas referências se misturam e aquele lugar citado na canção de Lennon e McCartney passa a ter sentido, valor, significação para o fruidor. Conhecê-lo, aproximar-se fisicamente do lugar pode trazer algum tipo de satisfação individual e única para um de seus aspectos identitários. O saciar da presença que dificilmente será possível traduzir em palavras.
No século XXI, cada vez mais as identidades se configuram a partir de referenciais simbolicamente constituídos, que, por vezes, encontram-se distantes espacial e temporalmente, mas que interferem diretamente no cotidiano das pessoas, seja pelo aparato informacional, seja pelos produtos da mídia. Associado à transitoriedade dessas informações, o ser humano tende a criar lastros com seu passado. (Rita Aparecida da Conceição Ribeiro, 2014, p. 1-2).
Um ponto chave para se esclarecer a compreensão/apropriação de uma canção como Strawberry Fields Forever em nossa contemporaneidade está no tema proposto pela obra: a nostalgia. Assunto presente nas reminiscências e que ultrapassa as fronteiras culturais. "A saudade de um tempo que já passou" é marcada por cheiros, sabores, ruídos, texturas, cores, vozes e lugares. A música Strawberry Fields Forever incorpora lugares de nostalgia e lembranças de um indivíduo específico, mas a transculturalidade neste mundo pós-contemporâneo associado às ilimitadas fronteiras identitárias e a temática da canção facilitam o reconhecimento e o desejo de fisicamente estar no local da infância descrito. Em cada ouvinte, Strawberry Field se transforma em seu lugar especial das brincadeiras de criança, de tempos mágicos em que os problemas enfrentados na idade adulta ainda não surgiram.



É doutorando em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
Trecho da canção "Taxman" composta por George Harrison. Encontra-se no álbum dos Beatles intitulado "Revolver" (1966).
Trecho da canção Two of Us de autoria de Lennon e McCartney, presente no álbum Let it Be de 1970.
A própria Pesavento (2003, p. 15) expòs que a cultura traz em si "[...] um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo".
Essa característica, Émile Durkheim designou de "exterioridade".
Homi Bhabha. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.



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