O canto amador no documentario de Eduardo Coutinho

May 29, 2017 | Autor: Cristiane Lima | Categoria: Documentary Cinema, Cinema brasileiro
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NA MI

GRUPO DE PESQUISAS EM NARRATIVAS MIDIÁTICAS

Organização Míriam Cristina Carlos Silva Monica Martinez Diogo Azoubel Capa Carlos Augusto Projeto gráico e diagramação Luiz Guilherme Amaral João Paulo Hergesel Revisão João Paulo Hergesel Diogo Azoubel Apoio Técnico e Institucional Tarcyanie Cajueiro dos Santos Paulo Celso da Silva Daniela Rosa

FICHA CATALOGRÁFICA SILVA, Míriam Cristina Carlos; MARTINEZ, Monica; AZOUBEL, Diogo (ed.). Eduardo Coutinho em narrativas. Votorantim (SP): Provocare, 2016. 228p. ISBN: 978-85-62263-02-6. 1. Comunicação. 2. Cultura. 3. Narrativas Midiáticas. 4. Eduardo Coutinho.

Rua João Walter, nº 289, sala 3 Votorantim – São Paulo (15) 996 031 010 | (15) 3247 1010

EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

O CANTO AMADOR NO DOCUMENTÁRIO DE EDUARDO COUTINHO 1 Cristiane da Silveira Lima2

1 INTRODUÇÃO

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m um ensaio recente, Cláudia Gorbman (2012) analisa, em um conjunto de ilmes iccionais, o que ela chama de canto amador: momentos nos quais o personagem canta em cenas reconhecidas como partes integrantes do mundo diegético realista, quando o canto está em algum lugar entre a fala e a música3. Momento raro nos ilmes, o canto amador não é bem “música de cinema”, tampouco é objeto de interesse para os estudiosos dos musicais. Trata-se de situações nas quais se explora, além da música, as qualidades da voz, dos gestos e do olhar do personagem, o trabalho da câmera e a edição, a microfonação, a mixagem de som, etc. Como explica a autora:

Este texto corresponde a uma versão reduzida de um dos capítulos da tese de doutorado Música em cena: à escuta do documentário brasileiro (2015), realizada no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nela, investigamos as relações entre os componentes sonoros da escritura do documentário e a escuta do espectador, a partir da análise minuciosa de um conjunto de obras que têm a música como objeto central de sua cena. 2 Professora do Curso de Comunicação e Multimeios da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui formação livre em Música pela Fundação de Educação Artística (FEA). Contato: [email protected]. 3 Texto publicado originalmente em inglês em Music, Sound and the moving image, volume 5, n.2, 2012. A tradução para o português é de José Claúdio S. Castanheira, no livro Som + Imagem, organizado por Simone Pereira Sá e Fernando Morais da Costa (2012), publicado pela editora 7Letras. 1

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Estes tendem a ser momentos descartáveis, quando as personagens cantam da forma como as pessoas fazem normalmente na vida real: você pode cantarolar enquanto limpa a cozinha ou acompanhar um tema familiar de programa de TV, ou juntar-se a um amigo cantando uma música cuja letra se encaixa na ocasião ou cujo cantor você está imitando. Eu chamo tais cenas de “canto amador”, por falta de outro termo conciso para um canto que, na concepção de uma história de ilme, não é um desempenho proissional, e é feito com o som sincronizado com índices adequados de um realismo espacial, sem o apoio mágico de uma orquestra. É uma organização da voz no ilme que pode parecer marginal, mas pode muito bem contribuir para nossa compreensão das possibilidades da fala, música e canções no cinema (GORBMAN, 2012, p. 23).

Interessa-nos aqui situações semelhantes – e bem pouco usuais – que se dão no contexto do documentário brasileiro: quando a música surge no ilme ao ser interpretada por pessoas comuns, que têm pouca ou nenhuma formação musical, fora de qualquer contexto de trabalho com a música. Pessoas que são ouvintes de músicas feitas por outras pessoas, mas que, por força da própria situação da ilmagem, se põem a cantar. Se buscarmos em nossa memória, lembraremos de poucos documentários brasileiros que izeram uso do canto amador. Destacamos alguns exemplos apenas: na abertura de A Falta que me faz (Marília Rocha, 2009), uma moça canta Cena de Filme, uma música romântica de sucesso. Em Vou Rifar meu Coração (Ana Rieper, 2012), algumas pessoas comuns cantam e relatam sua relação com a música brega. Já em Notícias de uma Guerra Particular (João Moreira Salles, 1999), o universo dos traicantes é apresentado por um jovem armado e encapuzado, que canta o Rap das Armas enquanto percorre as ruas e becos da favela. Todos os outros exemplos que lembramos marcam a obra de um mesmo cineasta: Eduardo Coutinho. É o caso da moça que entoa a canção romântica em Boca de Lixo (1992); de Fátima, também conhecida em sua comunidade pelo apelido de Janis Joplin, ilmada em Babilônia 2000 (2001); de Henrique, o morador do Edifício Master (2002), que canta My Way, um clássico de Frank Sinatra, e de vários outros moradores do mesmo prédio; de Sarita, a mulher que canta Se Esta Rua Fosse Minha, em Jogo de Cena (2007), para citar apenas alguns exemplos. Em As Canções (2011), um dos últimos ilmes realizados pelo diretor, o canto amador deixou de aparecer de forma episódica para aparecer de maneira sistemática: Coutinho pediu a todos os sujeitos ilmados que cantassem e relatassem à equipe memórias e histórias de vida marcadas por determinada música. O canto amador transformou-se, assim, em um dispositivo (LINS, 2004, p. 101), isto é, um procedimento estruturador da mise-en-scène e orientador da abordagem escolhida.

2 A CANÇÃO E A CENA

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ilme começa com uma mulher, ilmada em primeiro plano, enquanto interpreta a canção Minha Namorada (de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes), cujos versos descrevem uma jura de amor. O enquadramento permite ver a expressão do seu rosto, o brilho no olhar. A postura corporal, o vibratto da voz, a respiração ofegante, as notas ligeiramente desainadas denunciam as “imperfeições” do canto e anunciam que o ilme dará destaque

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a essa performance não proissional da música4. Ao inal da canção, a mulher (que mais tarde saberemos se chamar Sônia) permanece um momento em silêncio, durante aquele breve instante de pânico em que o outro não diz nada (como outrora escreveu Comolli)5, mordendo os lábios, como se indagasse ao diretor: e agora? Ele lhe pergunta se ela gostou. Ela responde que sim, que adorou. Há um corte seco. Surge na tela o letreiro indicativo do título do ilme. Mais um corte e veremos uma segunda vez a cadeira negra em que todos os outros entrevistados tomarão assento (dando a ver o fundo do palco e as cortinas que separam as coxias). Essa disposição nos remete a Jogo de Cena, mas de forma invertida: naquele ilme, a cadeira estava posicionada de costas para a plateia, permitindo ao espectador ver, atrás de cada entrevistado, as poltronas que poderiam ser ocupadas por outros potenciais espectadores. Além disso, cotejavam-se os relatos de pessoas comuns com o de atrizes proissionais, colocando “sob suspeita os documentários baseados na fala como expressão da subjetividade e como relato testemunhal de uma vida” (MARZOCHI, 2012, p. 17). As Canções também explicita sua dimensão cênica, teatral, ao colocar a cadeira novamente em um palco, mostrando que o que está em jogo são corpos colocados em cena diante de um olhar. Como em uma ópera às avessas, sem fosso nem orquestra, onde cada personagem (o cantor amador) é provisoriamente convidado a ser solista e interpretar seu próprio papel para a câmera, para os que ilmam e para aqueles a quem o ilme se destina. O ilme retorna às pessoas comuns, mas endurecendo as regras do jogo. Ressalta-se a sua dimensão de artifício, porém sem aquela lógica autorrelexiva que conduzia Jogo de Cena. O que está ao fundo agora é o palco e seus bastidores, ou seja, o espaço em que a performance tem lugar e àquilo que está “por trás”. A coxia é lugar de onde saem os sujeitos e para onde retornam após sua interpretação das canções no palco-ilme, mas é também uma metáfora para compreendermos a relação que o documentário estabelece com o que está “por trás dos panos”, escondido ou guardado na memória6 e que é trazido à cena de forma teatralizada ou musicalizada. Tais imperfeições da voz são uma característica marcante do canto amador, conforme explica Gorbman: “Em muitos casos, é a imperfeição na voz – com respiração vacilante e trêmula, notas falsas, cantando fora da faixa confortável, pausas, letras esquecidas ou erradas – que nivelam amadorismo com autenticidade, e que fazem do canto uma expressão natural e sincera da personagem” (GORBMAN, 2012, p. 26). 5 “De fato, as pessoas ilmadas se encontram em situação de gerir o conteúdo de suas intervenções, de se colocar em cena. Todas as condições estão dadas. Elas se encarregam da mise-en-scène, a tornam pesada ou leve, a realizam com suas insistências, com suas maneiras de dar sinais. E elas não são idiotas, sabem muito bem fazê-lo. E se perguntam, quando ocorre uma dúvida, um leve pânico, por que o outro não fala nada. Nada? ‘Então é a minha vez?’” (COMOLLI, 2008, p. 56). 6 Fernando do Nascimento Gonçalves, ao analisar As Canções em vista dos processos de subjetivação que ele agencia, destaca que o ilme “não parece falar tanto de canções e histórias que expressam as lembranças de um vivido, mas sim das intensidades e dos devires disso que é guardado na lembrança e que, ao ser transformado em forma-história e forma-canção, se torna matéria expressiva para o ilme” (GONÇALVES, 2012, p. 149). 4

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3 NO FIO DE UMA CANÇÃO

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éa, a segunda entrevistada7, conta sobre um show de calouros apresentado por Ary Barroso, no qual ela cantou uma conhecida canção de Noel Rosa (cuja letra ela não sabe totalmente de cor, mas Coutinho, sim). Quando canta, ela olha para o alto e gesticula muito (igura 1). Vários outros entrevistados farão gestos semelhantes: abrem os braços e as mãos, fecham os olhos, empostam a voz. Há um excesso na interpretação das músicas, mostrando que os sujeitos ilmados estão, de fato, empenhados em oferecer a melhor performance que lhes é possível, engajando corpo e voz nesse provisório papel de cantor amador propiciado pelo ilme. Quando Déa termina de cantar a primeira peça, ela olha para o alto e abre os braços, como se aguardasse os aplausos do público. Mas a equipe permanece em silêncio. Figura 1: Déa toma assento e canta Roberto Carlos e Noel Rosa.

Fonte: Frames do ilme As Canções (Eduardo Coutinho, 2011).

Esse excesso salta aos olhos porque As Canções se constrói a partir de uma economia de elementos. O ambiente é esvaziado de informações e há apenas uma cadeira e a cortina negra ao fundo. A composição do plano e a movimentação de câmera alteram-se de forma sutil, tendendo à câmera ixa e ao primeiro-plano. Cada personagem é ilmado sozinho, em interação verbal com Coutinho, no antecampo8. Também do ponto de vista sonoro o ilme é econômico: esvaziado de ruídos, valorizando a centralidade e a audibilidade absoluta das vozes (mesmo aquela que vem de trás da câmera). Afastamo-nos, desta forma, daquele canto amador analisado por Gorbman: 7 Além de Déa, que cantava em programas de auditório, há pelo menos outros quatro personagens com alguma experiência prévia com a prática musical (seja porque tocam um instrumento, compõem ou cantam). Contudo, seria inexato dizer que o ilme os exibe como “músicos proissionais”. O empenho do ilme em tratá-los como pessoas comuns, ordinárias, o que é reforçado também pelos letreiros, que inscrevem apenas seu primeiro nome ou apelido. 8 Antecampo se refere a um “fora-de-campo mais radical situado atrás da câmera”, conforme formulação de Jacques Aumont, desdobrada por André Brasil (2013). No cinema documentário, em geral, constituise como um recurso estilístico, mas também um espaço ético que permite aos realizadores do ilme posicionarem-se no interior da cena, em relação ao outro ilmado.

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despretensioso, informal, que ocorre no ambiente doméstico, sobretudo, em meio a ações prosaicas. Aqui, o canto foi inteiramente retirado do cotidiano para se tornar o centro da cena: o documentário apresenta o canto amador em um palco, a capella, diante de um aparato voltado exclusivamente para a encenação desse canto, muito diferente de como surgiria, em ilmes iccionais, com um personagem diante da TV ou debaixo do chuveiro, por exemplo (tendo o ruído do mundo como acompanhamento para a melodia). Diante de tamanha depuração de elementos, no ilme, todo gesto, por menor que seja, ganha grande proporção, daí talvez a sensação de que, em alguns momentos, há um excesso nas performances. Se nos valemos do canto amador é também por falta de outro termo conciso – e preciso – que nos permita nomear essas performances musicais realizadas por sujeitos comuns. Adotamos tal expressão – não sem assumir o risco de afastá-la de sua formulação original – porque também nos documentários brasileiros essas situações são marginais, mesmo raras. Além disso, a palavra amador nos permite enfatizar outro aspecto presente em As Canções: ele designa o canto interpretado por aqueles que amam.

4 À BEIRA DO MELODRAMA

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m muitos depoimentos, há um tom de lamento ou nostalgia em relação ao passado. As canções eleitas pelos sujeitos ilmados oferecem uma síntese daquilo que é dito: “esta é a música da minha vida”, airmam, em um esforço de dar coerência ao vivido e ao relato. Mais de uma vez somos confrontados com depoimentos tomados pela comoção, com sujeitos que têm a voz embargada e os olhos marejados. Não deixa de haver um tom melodramático no ilme, o que é reforçado pelo caráter fortemente romântico do repertório trazido pelos entrevistados. Vários, inclusive, não conseguem conter as lágrimas, como é o caso de Gilmar, ao relembrar a canção Esmeralda, que sua mãe cantava quando ele era criança. Lídia, depois de contar a história de um conturbado relacionamento que vivera em sua juventude com um homem mais velho (dono de um Cadillac azul), retira-se da cena e vai chorar atrás das coxias. A câmera permanece mais um tempo ilmando a cadeira vazia, enquanto escutamos a mulher em prantos, fora do alcance da objetiva, mas ainda ao alcance dos microfones. O ilme aí parece lertar com as narrativas confessionais midiáticas mais comuns, que valorizam a exposição da intimidade e enfatizam a declaração de uma inequívoca “verdade sobre si”9. Falar em melodrama, no entanto, não deve ser tomado como algo pejorativo. Frisamos que o ilme dialoga com certa matriz sentimentalista que busca ou favorece um vínculo emocional estreito com o espectador. Como escreve Mariana Baltar, ao abordar o que ela chama de “imaginação melodramática do documentário”: “As lágriTal lerte com o “confessional-midiático” já estava presente em Jogo de Cena, mas lá tal questão se resolve por meio do ensaísmo documental, que privilegia a opacidade, a explicitação da mediação e as tensões entre subjetividade e seus horizontes iccionais, como destaca Marzochi, no capítulo Na contramão do confessional (2012, p. 21-95). 10 Em sua tese de doutorado intitulada Realidade lacrimosa, Mariana Baltar (2007) analisa seis ilmes, entre eles, o documentário Edifício Master. 9

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mas marcam um lugar, para as narrativas melodramáticas, de profunda comunicação, em uma esfera sensorial e sentimental, com o público” (BALTAR, 2007, p. 88)10. Esse excesso que reconhecemos em As Canções dialoga com uma tradição de matriz popular que “vai desde espetáculos populares em feiras e praças, até uma certa literatura de almanaques e cordéis. Espetáculos pautados no engajamento do público, o povo ruidoso, exaltado, nunca contido diante da narrativa” (BALTAR, 2007, p. 88). Como escreve a autora, à narrativa melodramática interessa um engajamento do público, mais do que a simples identiicação ou adesão (o melodrama até permite ambiguidades, mas jamais distanciamentos, ela explica). Daí extraímos que o canto amador é não apenas um dispositivo de mise-en-scène, mas um elemento que estabelece um vínculo efetivo e afetivo com o espectador. Não importa tanto que as histórias contadas sejam críveis ou não; espera-se que algo de comovente seja dito sobre essas vidas e canções, mesmo que elas soem excessivas em alguns momentos. Além disso, o ilme se baseia em um pacto de intimidade, também conforme a formulação de Baltar (2007)11. Ele estabelece uma atmosfera de cumplicidade entre personagens e diretor/equipe que favorece o engajamento dos sujeitos ilmados em uma performance de si pautada pela exposição da vida íntima. As intervenções de Coutinho são pontuais, mas fundamentais para que a interação prossiga: sempre com voz branda, ele pede esclarecimentos, provoca desdobramentos de determinados comentários feitos pelos depoentes, garantindo que o tom seja mais de conversa do que de uma entrevista formal e estruturada. O efeito sensorial e sentimental dessa relação, para o espectador, é o de uma relativa proximidade.

5 EFEITO CATALISADOR DO CANTO AMADOR

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a maior parte do tempo, o que se vê são sujeitos plenamente conscientes de como querem ser ilmados, o que ressalta a dimensão de artifício do dispositivo preparado pelo diretor. Como escreve Comolli (2008) ao falar da mise-en-scène documentária, todo mundo sabe mais ou menos o que signiica ser ilmado e, diante de uma câmera, ajustamo-nos à situação de tomada, endereçando-nos ao olhar do outro. Em As Canções isso se dá de forma bastante pronunciada. José Barbosa, oicial reformado da Marinha, antes de deixar o palco, pergunta à equipe: “E agora, saio tristemente ou alegremente?”. Apesar de alguém da equipe dizer “alegre!”, ele deliberadamente opta por sair cabisbaixo. E antes de deixar completamente o palco ele “arremata” sua performance, cantando os últimos versos de uma conhecida canção de Adelino Moreira (A volta do Boêmio), que dá coerência ao relato dado anteriormente.

11 Nem toda narrativa baseada no excesso se aproxima da imaginação melodramática, conforme explica Baltar. O excesso é um traço que pode ser associado ao terror, ao grotesco, ao fantástico e até ao erótico. Além disso, nem toda manifestação da intimidade se conigura como um caráter melodramático. É preciso que o pacto de intimidade seja explicitado e reiterado ao longo da narrativa, inclusive para legitimá-la. Um exemplo dado por Baltar é o ilme Nelson Freire (2002) de João Moreira Salles: para ela, nesse ilme há uma intimidade compartilhada entre sujeito ilmado e equipe, mas que não chega a se conigurar como um traço do melodrama.

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Gesto semelhante é feito por Maria Aparecida, ao inal do ilme: depois de falar sobre sua duradoura relação com o marido e de não se importar com as suas possíveis traições, ela levanta de sua cadeira e vai em direção a Coutinho, quebrando o protocolo e obrigando a câmera a se reposicionar, dizendo: “E essa aqui? ‘Os sonhos mais lindos sonhei, de quimeras mil um castelo ergui...’”12. Coutinho começa a cantar junto com ela, mas logo se contém, deixando Maria Aparecida ocupar completamente a cena. Sua história é repleta de situações que fazem o relato soar pouco crível, no entanto, ninguém a questiona. Ela canta mais alguns versos e deixa o palco acenando “tchau”, já de costas para a câmera, ciente de que agora é hora de partir. O canto amador potencializa uma disposição para a performance, mesmo que cada um tenha margem de liberdade para conduzir sua própria mise-en-scène. Ele funciona como um catalisador. Quando Coutinho se contém, entretanto, se torna patente que a proximidade em relação aos sujeitos não se confunde com a adesão. Por vezes ele recua, mantém um distanciamento. Outras vezes, é o personagem mesmo quem recua, como é o caso de Ózio: Coutinho não entende bem o que ele diz, chega a pedir maiores explicações, mas o homem, com simplicidade, responde sempre de forma lacônica, recusando o olhar. Em vez de buscar informações de ordem factual, como “onde você nasceu?”, Coutinho busca informações de ordem afetiva, sensível13. Em vez de fatos, afetos. Não é à toa que as canções eleitas pelos sujeitos, em sua maioria, versam sobre amores, traições, perdas, luto. As músicas são uma contribuição criativa dos sujeitos para o ilme, mobilizam memórias e narrativas e fazem salientar a dimensão performática do depoimento, dando-nos “acesso à autoimagem de cada um dos intérpretes” (ESCOREL, 2012, s.p.). Ressaltamos, ainda, a presença do canto amador sem seu relato correspondente, sem qualquer pista acerca da história por trás daquela canção. É o caso dos personagens Nilton, José e Fátima, que são vistos apenas cantando. Fátima já havia ganhado destaque em Babilônia 2000, documentário no qual ela aparece guiando a equipe pelo Morro da Babilônia, cantando uma música da Janis Joplin (igura 2). Só que em As Canções, mesmo tendo concedido uma longa entrevista ao diretor, sua participação se dá unicamente ao entoar Ternura14, composição de Renato Correa e Trata-se da canção Fascinação, de F. D. Marchetti e M. de Feraudy, bastante conhecida na interpretação de Elis Regina. 13 Como airmou o diretor: “Sei que a crítica irá dizer que é uma diluição de Jogo de Cena e que não fui adiante, mas existe nele algo sobre música que nenhum outro ilme possui, pois é possível entender que a canção e o Brasil têm algo de particular. É também um trabalho em que deixo de perguntar às pessoas coisas como “onde você nasceu”. Não quero fazer mais isso e dessa forma sinto que parei”. (COUTINHO, 2011a, s.p.) 14 Segundo o diretor, essa foi a única “fraude” forjada pelo ilme, já que esta não seria a música da vida de Fátima (COUTINHO, 2011a, s.p.). 12

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Donaldson Correia, conhecida nas vozes de Roberto Carlos e Wanderléia. Embora o diretor não a interpele no ilme, não deixa de ser perceptível para o espectador algo da relação que ela estabelece com a equipe: enquanto Fátima canta, o seu olhar encontra outro olhar ao lado esquerdo, atrás da câmera, a quem ela retribui com um sorriso discreto, sem interromper os versos. Figura 2: Fátima cantando em dois ilmes de Coutinho.

Fonte: Frames do ilme As Canções (Eduardo Coutinho, 2011).

Quando a presença um sujeito se deve exclusivamente a sua performance cantada, tudo se passa como se ele falasse mais por meio do canto do que poderia dizer em um relato verbal: o canto amador se basta. Como em muitos relatos há um excesso e o sujeito ilmado está abandonado à sua própria auto-mise-en-scène – o personagem parece “inlar”, ocupando totalmente a cena, inteiramente imerso nesse desejo de se tornar imagem-som para o ilme e, ao mesmo tempo, tecendo um relato coerente para “justiicar” a escolha de determinada canção –, nesses outros momentos, há um recuo, como se o ilme se abrisse à imaginação do espectador. “Em ocasiões em que não fazem nada, quando apenas cantam sem se mover, elas [as personagens] parecem despir ainda mais suas almas; em muitos ilmes, cantar revela a verdade tão desnuda que o diálogo não pode contê-la de forma crível” (GORBMAN, 2012, p. 24). Os sujeitos, ao cantarem, investem na cena diferentemente da maneira usual pela qual investem em uma entrevista, por exemplo, e este investimento, por vezes, é suiciente para garantir sua inserção no ilme. Nessas situações, o espectador não dispõe de maiores informações para contextualizar a canção e a história de vida dos personagens: ele ganha uma margem de liberdade para fazer suas próprias inferências a partir da letra que é cantada e para simplesmente fruir a performance musical.

6 O CANTO AMADOR EM OUTROS DOIS FILMES

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s Canções dá continuidade ao método de Coutinho de criar situações em que a entrevista – ou conversa – se torna a forma dramática exclusiva para a aproximação aos sujeitos ilmados, que não aparecem vinculados a um antes ou depois, nem a uma interação continuada com outros sujeitos de seu entorno. Nas palavras de Ismail Xavier (2010):

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No centro de seu método está a fala de alguém sobre sua própria experiência, alguém escolhido porque se espera que não se prenda ao óbvio, aos clichês relativos a sua condição social. O que se quer é a expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, narrar, quando é dada ao sujeito a oportunidade de uma fala airmativa. Tudo o que da personagem se revela vem de sua ação diante da câmera, da conversa com o cineasta e do confronto com o olhar e a escuta do aparato cinematográico (XAVIER, 2010, p. 66-67)15.

Xavier fala de uma agonia do entrevistado (no sentido de competição, desaio) ao encarar o efeito-câmera (XAVIER, 2010, p. 72). Por um lado, há o desejo de falar de si, de apropriar-se do jogo do ilme, de endereçar-se a um possível interlocutor. Por outro, há quase sempre um esforço dos sujeitos ilmados em obedecer à regra de não olhar para a câmera e atuar como se ela não estivesse ali e focar sua atenção e fala no cineasta e na equipe. Em As canções, curiosamente, vários personagens olham para a câmera, como é o caso de Lídia, ao interpretar O Tempo Vai Apagar16. Lembremos, com Xavier, da sequência célebre de Edifício Master na qual Coutinho entrevista Henrique, um senhor aposentado e solitário, morador do prédio que dá nome ao ilme e que vivera um encontro inusitado com o cantor americano Frank Sinatra. Ao inal da sequência, Henrique interpreta My Way, canção que conta a história de sua vida. A gravação da peça começa a tocar enquanto ele canta e lê a canção escrita sobre uma folha de papel. A interpretação começa discreta, mas ganha intensidade na medida em que a câmera se aproxima do personagem. Há um crescendo sonoro e também dramático, graças às escolhas da mise-en-scène. Com a entrada da orquestra no acompanhamento da música, Henrique canta ainda mais forte, até culminar em um fortíssimo, o ápice de sua performance para a câmera (que a esta altura já se encontra bem próxima e passa a enquadrar uma segunda câmera – explicitando a presença da mediação técnica). Nesse exemplo de Edifício Master, o canto se constitui como o momento mais expressivo da entrevista, seu ponto culminante. Tudo caminha para esse grand inale reservado à interpretação de My Way, momento em que o personagem é invadido pela música e que algo em sua performance transborda. O senhor Henrique coroa sua presença no ilme com uma performance em que vale o dueto com o Frank Sinatra; lá está a câmera a pôr em foco uma “segunda unidade” que se faz mais invasiva diante da catarse lacrimosa, compondo bem de perto uma imagem que não veremos exatamente daquele ponto de vista, pois a cena de Edifício Máster requer essa combinação de insistência (na duração) e recuo (na modulação do que há de invasivo no olhar). E requer que o senhor Henrique viva a sua catarse como um ator que ignora a câmera, elegendo o cineasta como mediador (é para ele que olha e é com ele que conversa) (XAVIER, 2010, p. 74-75).

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O autor refere-se aqui à fase posterior ao ilme Santo Forte (1999). Autoria de Chiquinho e Marinho, conhecida na interpretação de Roberto Carlos.

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Em Edifício Master, o canto amador acontece em momentos pontuais (são, ao todo, seis inserções), mas fundamentais para a narrativa construída. Se levarmos em consideração a questão da duração – tão cara à música e ao cinema documentário – o que ocorre na entrevista de Henrique é um adensamento da sua performance: ela adquire maior intensidade e expressividade na hora do canto. Já em As Canções, o canto amador não necessariamente surge como momento culminante e quase não produz variações nos componentes da mise-en-scène. Se em outros ilmes do diretor a canção expandia a cena, por assim dizer, em As Canções ela oscila entre um dispositivo de controle (uma vez que a regra do jogo é clara: todos devem cantar) e de descontrole (algo de singular pode emergir a partir daí). Por aparecer repetidas vezes, a impressão é de que a temporalidade narrativa de As Canções é mais plana, horizontal, sem pontos culminantes (ela oscila entre momentos um pouco mais intensos, outros menos, mas sem grandes arrebatamentos). Lembremos como o canto amador surge em Boca de Lixo (1992), realização do Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP), ilmado no vazadouro de Itaoca, no município de São Gonçalo (a 40 km do Rio de Janeiro). Nesse ilme, o canto aparece de modo pontual, mas com enorme expressividade. Entre os vários trabalhadores que tiram seu sustento do lixão, Coutinho entrevista Cícera, uma senhora pernambucana que foi para o Rio acompanhando o marido. Depois de ser vista no lixão, ela chega em casa. Escutamos sua voz of dizendo que a misericórdia de Deus poderá fazer sua vida melhorar. Então vemos a mulher ao lado da ilha e do genro, posando juntos para a câmera, em frente à modesta casa de pau-a-pique, como em uma foto de família. Mais um corte. A mulher agora está dentro de casa e evoca novamente a Deus, dizendo que tem esperança de que Ele dará a sua ilha uma chance para “seguir o que ela bem quer”. Coutinho pergunta à moça o que ela quer e ela responde prontamente que quer ser cantora. Do lado de fora, com os pés descalços, a menina entoa a canção romântica Sonho por Sonho (uma conhecida trilha de telenovela). Ela fecha os olhos e canta com vigor. A igura da adolescente que canta está longe de ser reduzida a um mero exemplo da relação entre a cultura popular e as formas simbólicas midiáticas. O que aparece aí é outra coisa. Trata-se da moça-cantora sem palco, estrelato ou público; a moça-dentro-da-imagem, movendo-se no seu próprio imaginário, sem espetáculo ou afetação. Uma antiestrela tentando fabular seu desejo disparatado (GUIMARÃES, 2010, p. 195).

Ao inal do ilme, a jovem reaparece cantando a canção e mais uma vez a família posa para a câmera, mas agora ao som da voz do músico José Augusto (ouvido por um pequeno rádio que a moça tem em mãos). Coutinho incentiva: “canta, canta junto!”. E ela canta. César Guimarães (2010) observa a diiculdade da menina em encarar a câmera nesse segundo momento. Ela tem a voz embargada e desvia o olhar,

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[...] como se dividida entre duas imagens: aquela primeira, que lhe foi oferecida para realizar vicariamente seu desejo de ser cantora, e esta outra, mais incerta, na qual não se encaixa de todo, na qual ainda procura se situar. Descolando-se do seu próprio imaginário, os seus olhos procuram o interlocutor, que se afastou um pouco para mostrá-la inteira, endereçando-nos sua alteridade irremovível. Aqui a fabulação criadora – que nos ilmes de Perrault e Rouch remetem a uma lenda ou a um animal mítico – só pode se desenvolver no ambiente da vida cotidiana, com seus pequenos enfrentamentos, sua cota diária de invenção, às vezes mínima, mas capaz de fazer frente à dureza do trabalho e à reiicação que ele produz (GUIMARÃES, 2010, p. 196).

Em Boca de Lixo, a canção surge em meio a uma sequência de grande complexidade (logo depois o ilme termina, em chave irônica, mas ainda diante de um cenário desolador). Cantar se conigura como uma possibilidade precária e provisória de fabulação, de invenção do cotidiano, de esperança de que a vida pode ser diferente. “Cantar, como assobiar no escuro, é em essência uma tentativa de organizar algo a partir do caos – música, como um som organizado, dá ou promete uma estrutura reconfortante” (GORBMAN, 2012, p. 29)17. Em As Canções, a canção assume também seu papel reconfortante, mas tudo se passa de forma um pouco mais simples do que em Boca de Lixo, dentro de uma lógica de fundo explicativo, causal. A inglesa Isabell, com seu sotaque carregado, fala de sua vinda ao Brasil para praticar capoeira angola, onde conheceu um homem com quem se casou. Ela é sucinta em sua narrativa, mas conclui dizendo que, depois de ser “abandonada” pelo marido, foi um samba o ponto de partida para recomeçar a vida. Ózio, por sua vez, precisou compor uma canção para sua falecida esposa para superar o luto. Também é o caso de Ramon, que compôs um lamento, como um pedido de desculpas ao seu falecido pai. Enim, a relação entre o vivido e a canção muitas vezes é literal: para entender uma vida, bastaria interpretar as canções ao pé da letra. Sílvia, ao inal do ilme, após entoar Retrato em Branco e Preto, de Chico Buarque e Tom Jobim, airma que cantar diante da câmera é como concluir um ciclo, colocar um ponto inal em uma conturbada história de amor. É “fechar com chave de ouro”, ela conta, encerrando também o ilme. No entanto, quando ela se retira de cena, a câmera continua ilmando a cadeira vazia, como se dissesse que sempre haverá uma nova história a ser contada/cantada. Por se constituir como um ilme-painel em que todas cantam e contam, de forma similar, inferimos que As Canções poderia continuar ad ininitum. O ilme termina, mas a possibilidade de narrar e rememorar continua: não

A formulação da autora assemelha-se, em muito, à formulação de Gilles Deleuze e Félix Guattari, logo no início do platô Acerca do ritornelo: “Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela pára, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há sempre uma sonoridade no io de Ariadne. Ou o canto de Orfeu” (DELEUZE e GUATARI, 1997, p. 101).

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há fechamento, nem promessa de cura das feridas, embora o diretor acreditasse nisso, como ele mesmo airmou. Em todas as entrevistas, eu sabia que as pessoas iam sair da ilmagem melhores. A música cura ferida. Como a análise. Acho que elas têm uma história que valeu a pena ser contada e que, em certa medida, superaram. Pelo fato de cantarem, você supera essa dor, cicatriza. Música é pra isso. Eu não estou preocupado em saber se isso tudo é verdade. Se me contam bem, é verdade (COUTINHO, 2011b, s.p.).

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

M

uitos outros aspectos poderiam ser desdobrados a partir da análise de As Canções (como por exemplo, a escolha deliberada pela sincronia dos sons e imagens, a ausência de trilha sonora, a insistência na duração dos planos, etc., aspectos presentes em outros ilmes do diretor e igualmente relevantes para compreendermos a dimensão sonora da escritura fílmica). Na impossibilidade de discorrer sobre todos eles, destacamos ao longo do texto apenas alguns, buscando evidenciar como a canção possui um efeito catalisador e potencializador de performances dos sujeitos, que aí investem com seu corpo e voz. Mas algumas questões ainda icam sem resposta: por que, ainal, a imagem continua quando os sujeitos choram? Por que o som continua quando a mulher se retira do palco e vai chorar atrás da cortina? Por que o ilme precisou de um preparador vocal (aspecto que nos é informado na icha técnica)? Por que Coutinho se contém e não prossegue cantando junto com sua entrevistada? O que podemos airmar é que a canção não surge neste ilme como um elemento acessório ou pontual. Ela é um elemento central da mise-en-scène documentária. A grande diferença em relação a ilmes anteriores se deve ao fato de que, aqui, o corpo que canta já não está imerso no cotidiano, no mundo da vida. O canto foi introduzido em um espaço “neutralizado” (o palco), onde todos os sujeitos se converteram igualmente em atores-cantores. Então, o elo com a experiência precisa ser reconstruído por meio de um relato verbal coerente (e comovente). Apesar de ser um recurso periférico ou mesmo raro no cinema documentário, o canto amador é um dispositivo que instiga relexões sobre elementos importantes da mise-en-scène, tanto no que diz respeito às estratégias de aproximação dos sujeitos ilmados, quanto aos modos dos realizadores se manifestarem (dialógica ou

Citamos como exemplos ao menos dois outros ilmes que se valem desse dispositivo: Z32 (Avi Mograbi, Israel/França, 2008) e Au chic resto pop (Tahani Rached, Quebéc, Canadá, 1990). Ambos são comentados brevemente em nossa tese, ao inal do capítulo sobre o canto amador (LIMA, 2015, p. 179-181).

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criticamente) no interior da cena e da escritura fílmica18. Em As Canções, o canto amador surge associado à modalidade da entrevista ou conversação e funciona, a um só tempo, como catalisador de performances de si e como artifício que aciona imagens-lembranças associadas a histórias de vida. Quando narradas e compartilhadas com a equipe e com o ilme, tais histórias permitem aos sujeitos apropriarem-se de uma enunciação e engajarem-se na cena com o seu corpo e as imperfeições de sua própria voz, suportando uma dupla agonia: a de enfrentar o projeto do documentário e também o de encarar um sofrimento ao qual a música de algum modo se vincula. Tudo isso contribui não apenas para uma “verdade da performance” (que alcançaria maior legitimidade ou autenticidade, nas palavras de Baltar), mas também para o estabelecimento de um vínculo emocional com o espectador, instado a fruir das interpretações musicais e rememorar sua própria experiência associada às canções (LIMA, 2015, p. 177-178): sejam aquelas que marcaram sua própria vida e que sintetizam momentos emblemáticos do passado, sejam aquelas músicas baratas ou românticas que ele experimenta coletivamente, na vida cotidiana. Canções que, de algum modo, o visitam e o habitam19.

Fazemos aqui referência ao poema de Drummond A música barata, que inspirou José Miguel Wisnik em uma breve análise de As Canções.

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