O Capital Escravista-Mercantil e a escravidão nas Américas.

October 1, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Escravidão Nas Américas E No Brasil, Uma forma específica do Capital
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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Reitor: Dirceu de Mello

Editora da PUC-SP Direção: Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Ana Maria Rapassi Cibele Isaac Saad Rodrigues Dino Preti Dirceu de Mello (Presidente) Marcelo da Rocha Marcelo Figueiredo Maria do Carmo Guedes Maria Eliza Mazzilli Pereira Maura Pardini Bicudo Véras Onésimo de Oliveira Cardoso

O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS Julio Manuel Pires Iraci del Nero da Costa organizadores

São Paulo 2010

Copyright © 2010, Julio Manuel Pires e Iraci del Nero da Costa. Foi feito o depósito legal. Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP O capital escravista-mercantil e a escravidão nas Américas / orgs. Julio Manuel Pires, Iraci del Nero da Costa. - São Paulo : EDUC : FAPESP, 2010. 226 p. ; 23 cm. Contém dados biográficos ISBN 978-85-283-0417-6 1. América – Colonização. 2. Capital (Economia). 3. Escravidão – Aspectos econômicos – América. 4. Produção (Teoria econômica). 1. Pires, Julio Manuel. II. Costa, Iraci del Nero da. CDD 970 326.097 332 338.5

Direção Miguel Wady Chaia Produção Editorial Sonia Montone Preparação e Revisão Sonia Rangel Editoração Eletrônica Waldir Antonio Alves William Martins Capa Dora Longo Bahia Realização: William Martins Secretário Ronaldo Decicino

EDUC – Editora da PUC-SP Rua Monte Alegre, 971 – sala 38CA 05014-001 – São Paulo – SP Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558 E-mail: [email protected] Site: www.pucsp.br/educ

Sumário

1. Introdução nn 7

Julio Manuel Pires Iraci del Nero da Costa

2. O capital escravista-mercantil nn 13 Julio Manuel Pires Iraci del Nero da Costa

3. Causas imediatas da superação do capital escravista-mercantil nn 35 Julio Manuel Pires Iraci del Nero da Costa

4. Sobre a não existência de modos de produção coloniais nn 57 Iraci del Nero da Costa

5. A formação das economias periféricas sob a ótica da história econômica geral nn 61 Iraci del Nero da Costa

6. Algumas opiniões sobre a categoria “modo de produção” nn 67 Iraci del Nero da Costa

7. Repensando o modelo interpretativo de Caio Prado Júnior nn 77 Iraci del Nero da Costa

8. Entre o sentido da colonização e o arcaísmo como projeto: a superação de um dilema através do conceito de capital escravista-mercantil nn 115 João Paulo A. de Souza

9. Capital e colonização: a constituição da periferia do sistema capitalista mundial nn 155 Rodrigo Alves Teixeira

10. Sobre os autores nn 225

1. INTRODUÇÃO Julio Manuel Pires Iraci del Nero da Costa

Em termos genéricos, pode-se admitir que os estudos históricos se desenvolvem em três planos ou patamares distintos. Um primeiro plano intimamente vinculado ao factual, muito próximo do empírico. Aqui se enquadram, por exemplo, os estudos até hoje desenvolvidos no âmbito da demografia histórica. Partindo de um conjunto de fontes documentais, tenta-se extrair delas o máximo de informações ou define-se o escopo dos trabalhos com base em alguns problemas específicos (família, agregados, posse de escravos, formas de acumulação, etc.). Um patamar superior a esse primeiro é aquele no qual o objetivo perseguido é a busca de padrões, de regularidades ou a procura de causas comuns a eventuais “excepcionalidades”; são exemplos desse nível os estudos concernentes à estrutura de posse de escravos segundo os ramos de atividades dos seus proprietários, à American Civil War e ao Quilombo de Palmares. Por fim, uma terceira categoria englobaria os trabalhos votados ao estabelecimento de uma visão teórica de conjunto de uma dada sociedade e referente à formação de uma determinada população. Nosso empenho situa-se neste último plano, pois buscamos, sobretudo, formular uma solução teórica capaz de dar conta da constituição da economia colonial que se estabeleceu nas áreas escravistas das Américas. Com base na proposição do conceito de capital escravista-mercantil, propomo-nos a apresentar uma contribuição teórica original para o entendimento do processo de constituição e consolidação da periferia do sistema capitalista que se desenvolvia na Europa ocidental. A articulação produtiva entre o mundo colonial e a economia central europeia, bem como a acumulação de capital proporcionada pelo capital escravista-mercantil 7

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mostraram-se altamente relevantes no processo de acumulação primitiva do capital, ao mesmo tempo em que suas condições de existência estavam intimamente relacionadas ao desenvolvimento do capitalismo em nível mundial. Tal contribuição, embora se fixe no âmbito do pensamento marxista e se ocupe centralmente da escravidão brasileira, pode ser estendida para as três Américas. Com respeito à formação do capitalismo na América, existem várias correntes divergentes no campo marxista. No caso do Brasil, a principal visão é devida a Caio Prado Júnior, retomada de forma distinta por Jacob Gorender; as virtudes e as limitações das abordagens teóricas desses dois autores serão analisadas no segundo capítulo deste volume. Ainda no campo marxista, Fragoso (1992) e Fragoso e Florentino (2001) também pro­curaram formular uma perspectiva alternativa para analisar essa questão; no entanto, sua solução, baseada no conceito de “formação social” – a qual não é devidamente explicitada em seu trabalho –, esquiva-se à discussão a respeito do uso da categoria modo de produção, a qual seria fundamental, uma vez que não se pode falar em formação social sem considerar explicitamente a categoria modo de produção. Igualmente insatisfatória revelou-se a perspectiva sugerida por Ciro Flamarion Cardoso (1975) sobre a existência de um modo de produção dependente, pois um modo de produção só se define como tal se for independente. Por conseguinte, infelizmente, nenhuma das aludidas proposições foi capaz de enquadrar-se plenamente, em termos teórico-metodológicos, no âmbito do pensamento marxista. Nesta coletânea, apresentamos nossa proposta de solução para tal questão, qual seja: elaborar um quadro teórico explicativo do escravismo moderno como se desenvolveu nas Américas que esteja em absoluta consonância com as categorias embasadoras do pensamento de Karl Marx. Para tanto, servimo-nos não só das evidências empíricas e da obra de Marx, mas, também, da maneira de pensar que pode ser atribuída a G. F. Hegel. Destarte, votamos o segundo capítulo à apresentação do assim chamado “capital escravista-mercantil”, uma específica forma de existência 8

INTRODUÇÃO

do capital ainda não contemplada pela literatura especializada. Explicitamse, ademais, suas limitações lógicas e históricas, seus pressupostos e os resultados de sua ação propondo-se, ademais, a fórmula do capital escravista-mercantil e explicitando-se seu funcionamento. Já no tópico seguinte, depois de identificarmos, no plano hipotético, as condições necessárias à superação da forma capital escravista-mercantil, apontamos as causas históricas imediatas das quais resultou, para distintas áreas das Américas, a aludida superação. Nos capítulos quatro e cinco vão anotados os argumentos embasadores da opinião do autor contrários às formulações teóricas que visam a estabelecer pretensos “modos de produção coloniais”. Além disso, são relacionados argumentos e opiniões segundo os quais os modos de produção se distinguem por sua gênese, estrutura e funcionamento, não sendo, ademais, homólogos nem isonômicos. O autor postula, ainda, a não existência de modos de produção coloniais, ser impossível a formulação de uma teoria geral das revoluções e que a “consciência” joga papéis distintos na gênese dos modos de produção escravista, feudal e capitalista vis-à-vis o papel por ela desempenhado na gênese do modo de produção socialista. No item destinado a repensar algumas das postulações centrais de Caio Prado Júnior, o autor apresenta análises e propostas alternativas ou complementares ao pensamento pradiano. Num primeiro momento, depois de apresentados os argumentos básicos do autor em questão, são apreciados alguns elementos de caráter empírico que parecem bastantes para justificar uma qualificação de tais argumentos. A seguir são contemplados, basicamente, três aspectos de nosso evolver histórico, quais sejam: o desenvolvimento de uma parcela populacional desvinculada das atividades imediatamente voltadas à economia de exportação, a expressiva presença quantitativa, em nossa sociedade, dos não proprietários de escravos e, por fim, a estrutura de posse de cativos que vigorou no correr do tempo, estrutura essa marcada pela existência de um grande número de pequenos escravistas. Com base em tais evidências reunidas, postulase a necessidade de se efetuar a superação do modelo de Caio Prado, vale 9

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dizer, é preciso ir além dele, sem deixar de lado suas imensas contribuições ao entendimento de nossa história socioeconômica; e isso terá de ser realizado em três níveis: no metodológico, no teórico e no plano da realidade concreta. É justamente à análise de proposições concernentes aos três níveis acima referidos que vai dedicada a última parte do capítulo, em que é trazida à discussão uma nova forma de capital, o capital escravistamercantil, à qual se deverá a base estrutural mestra da economia brasileira; esboça-se, ademais, uma categorização alternativa à de Caio Prado quanto a nossas atividades produtivas mais relevantes. No capítulo subsequente, João Paulo A. de Souza propõe que a aceitação da existência do capital escravista-mercantil permite a superação da dicotomia entre o modelo interpretativo do sentido da colonização, proposto originalmente por Caio Prado Júnior, e o modelo do arcaísmo como projeto, proposto por Fragoso e Florentino (2001). O primeiro, por retratar a sociedade colonial como uma projeção imediata da expansão comercial europeia, tem enfrentado dificuldades em acomodar as recentes evidências empíricas de que a economia colonial podia apresentar uma relativa autonomia, realizando acumulação endógena. O segundo, ao tentar explicitamente acomodar essas evidências, acaba recusando a existência de um sentido da colonização tal como originalmente formulado. Para explicitar a forma como o modelo do capital escravista-mercantil supera esse dilema, é apresentada uma analogia entre o capital escravistamercantil e o desenvolvimento da teoria do valor de Marx em O Capital. Apresenta-se, por fim, o estudo desenvolvido por Rodrigo Alves Teixeira, no qual são perseguidos dois objetivos. Em primeiro lugar, discutir as linhas principais da historiografia sobre o período colonial brasileiro da perspectiva dos seus fundamentos metodológicos. Essa análise crítica da historiografia parte de uma leitura de Marx que resgata a herança da dialética hegeliana na compreensão da concepção marxiana da História. Em segundo lugar, a partir da defesa de um dos modelos propostos no debate concernente à formação do mundo colonial, qual seja, o baseado na categoria capital escravista-mercantil como uma particular forma do capital 10

INTRODUÇÃO

que existiu no período colonial, o autor busca avançar na compreensão desse período argumentando que ele faz parte de um processo histórico de consolidação do capitalismo enquanto um sistema mundial, processo esse que tem o capital como um sujeito automático. Defende, portanto, a tese segundo a qual a universalização da forma capital prescinde da generalização das relações burguesas “típicas” para todo o globo, e que o sistema colonial não deve ser interpretado como um outro modo de produção, nem como sendo apenas uma peça da engrenagem da acumulação primitiva do capital. O “sentido da colonização” representa, portanto, a constituição da periferia do sistema capitalista mundial.

Referências bibliográficas CARDOSO, Ciro Flamarion S. (1975). “Severo Martínez Peláez y el carácter del régimen colonial”. In: ASSADOURIAN, Carlos Sempat et alii. Modos de producción en América Latina. 3 ed. Córdoba, Cuadernos de Pasado y Presente e Buenos Aires, Siglo XXI. FRAGOSO, João Luís Ribeiro (1992). Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional. FRAGOSO, João  e FLORENTINO, Manolo (2001). O Arcaísmo como Projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840. 4 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

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2. O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL Julio Manuel Pires Iraci del Nero da Costa

1. Uma forma específica de capital Como sabido, Marx considerou, explícita e largamente, três formas de existência do capital: T D – M – D’; D – D’ e D – M <

... P ... M’ – D’. Mp

A primeira corresponde ao capital comercial e assim foi caracterizada: “el comércio e incluso el capital comercial son anteriores al régimen de producción capitalista y constituyen en realidad la modalidad livre del capital más antigua de que nos habla la história” (Marx, 1965, v. III, p. 314). A segunda diz respeito ao capital usurário (ou de empréstimo) e também foi vista como forma autônoma e independente: El capital a interés o capital usurário, para emplear el término arcaico, figura con su hermano gemelo, el capital comercial, entre las formas antediluvianas del capital que preceden desde muy lejos al régimen de producción capitalista y con las que nos encontramos en las más diversas formaciones económicas de la sociedad. (Ibid., v. III, p. 555) La usura, como el comercio, explota un régimen de producción dado, no lo crea, se comporta exteriormente ante el. (Ibid., v. III, p. 569)

A última concerne ao capital industrial e é própria do modo de produção capitalista: 13

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Si el dinero puede invertirse en esta forma es, sencillamente, porque la fuerza de trabajo se halla separada de sus medios de producción (incluyendo los medios de vida, como medios de producción de la propia fuerza de trabajo) y porque este divorcio solo puede remediarse de um modo: vendiendo la fuerza de trabajo al poseedor de los medios de producción. (1964, v. II, p. 33)

A nosso ver, além das três acima arroladas, Marx sugeriu uma quarta forma de existência do capital. Assim, ao tratar dos efeitos decorrentes do desenvolvimento do comércio e do capital comercial, afirmou: En el mundo antiguo, los efectos del comercio y el desarrollo del capital comercial se traducen siempre en la economia esclavista; y según el punto de partida, conducen simplesmente a la transformación de un sistema esclavista patriarcal, encaminado a la producción de medios directos de subsistencia, en un sistema orientado hacia la producción de plusvalía. (Ibid., v. III, p. 321)

Estaríamos, pois, em face da exploração de mais-valia nos quadros do escravismo antigo. Tal produção de mais-valia far-se-ia presente, igualmente, em áreas do Novo Mundo quando ainda imersas no escravismo: Por eso en los Estados norteamericanos del Sur el trabajo de los negros conservó cierto suave carácter patriarcal mientras la producción se circunscribía sustancialmente a las propias necesidades. Pero, tan pronto como la exportación de algodón pasó a ser un resorte vital para aquellos Estados, la explotación intensiva del negro se convirtió en factor de un sistema calculado y calculador, llegando a darse casos de agotarse en siete anos de trabajo la vida del trabajador. Ahora, ya no se trataba de arrancarle una cierta cantidad de productos útiles. Ahora, todo giraba en torno a la producción de plusvalia por la plusvalia misma. (1964, v. I, pp. 181-182)

Trata-se, pois, da mesma forma de existência do capital, agora a viger no âmbito do escravismo moderno, também identificado como escravismo colonial.1 Enfim, mais-valia, valor que se valoriza, portanto 1 Sobre o termo escravismo colonial, veja-se Gorender (1992, p. 157 ss). Diga-se, ademais, que, embora não tomemos o escravismo colonial como um modo de produção, como o fez Gorender, concordamos em larga medida com suas percucientes análises.

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capital; porém, uma forma específica de existência do capital, pois calcada na produção de mercadorias com base no escravismo.2 Neste trabalho, como avançado, consideramos essa particular forma de capital, a qual denominamos escravista-mercantil, visando a estabelecer algumas de suas principais características.

2. Limitações lógicas e históricas Ao capital escravista-mercantil impõem-se limitações de caráter lógico e histórico, as quais devem ser tomadas como facetas de um todo único e solidário, vale dizer, devem ser entendidas, a depender das condições concretas, como lógico-históricas ou histórico-lógicas. 2 Acreditamos que Barros de Castro tenha chegado muito próximo do estabelecimento da categoria capital escravista-mercantil. Sem comprometê-lo com nossa formulação, permitimo-nos entrevê-la na citação que segue: “O processo de trabalho num engenho escravista do século XVI é similar ao de uma grande lavoura (plantation) capitalista contemporânea. Além disto, mais se assemelha ao processo de trabalho numa grande fábrica inglesa do início do século XIX, que ao (processo de trabalho) característico dos séculos XVI e XVII na Europa. Consequentemente, é lícito afirmar que, inserido no processo de produção material, o escravo constitui uma antecipação do moderno proletário. Por outro lado, o senhor do engenho encontra-se absorvido numa engrenagem que determina o seu comportamento, em função de ‘necessidades’ que nada têm a ver com as suas próprias vontades e necessidades pessoais. (...) Estas características indicam, em suma, que o moderno escravismo tem importantes traços em comum com o capitalismo e, mais, que estas características pertencem à sua conformação interior. Não é, pois, necessário recorrer às conexões ‘externas’ – e muito menos a um simples ‘critério de mercado’ – para deixar assinaladas as fortes similitudes existentes entre o moderno escravismo e o capitalismo – proximidade esta que pode ainda ser realçada, ao lembrarmos que a organização produtiva aqui focalizada surge associada aos primórdios do capitalismo, cresce e se multiplica acoplada a ele” (grifos de Castro, 1980, pp. 92-93). Gorender, por seu turno, embora tenha observado a presença do capital no âmbito do escravismo colonial, não chegou às mesmas conclusões a que fomos levados; isto se deveu, a nosso ver, ao fato de esse autor haver privilegiado a categoria modo de produção escravista colonial: “Dado seu caráter mercantil, o escravismo colonial encerra categorias como as de mercadoria, dinheiro e capital – categorias adaptadas, todavia, a uma estrutura essencialmente distinta daquela inerente ao modo de produção capitalista. O escravismo colonial possui leis específicas, cuja atuação não teria qualquer razão de ser sob a vigência do capitalismo” (1983, p. 13).

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No passado mais longínquo, tal forma apresentou-se como exceção no âmbito do escravismo patriarcal inclusivo. Segundo Marx: Sin embargo, es evidente que en aquellas sociedades económicas en que no predomina el valor de cambio, sino el valor de uso del producto, el trabajo excedente se halla circunscrito a un sector más o menos amplio de necesidades, sin que del carácter mismo de la producción brote un hambre insaciable de trabajo excedente. Por eso donde en la Antiguedad se revela el más espantoso trabajo sobrante es allí donde se trata de producir el valor de cambio en su forma específica de dinero, es decir, en la producción de oro y plata. En estas ramas, la forma oficial del trabajo excedente son los trabajos forzados llevados hasta la muerte. [...] Sin embargo, en el mundo antiguo esto no pasa de ser excepcional. (Grifos de Marx, 1964, v. I, p. 181)

A nosso ver, tal restrição de caráter lógico-histórico foi perfeitamente elucidada por Gorender: O impasse da escravidão romana decorreu da impossibilidade de um modo de produção escravista patriarcal se converter em modo de produção escravista mercantil, nas condições do mundo antigo. [...] Roma não podia implantar uma economia exportadora em seu próprio território, nem nos territórios das províncias conquistadas. A única exceção, frisada por Marx, foi a Sicília, onde latifúndios escravistas cultivavam trigo para suprimento da Metrópole. [...] A fim de que se convertesse em escravismo mercantil dominante, seria preciso que a produção escravista se acoplasse a um mercado externo dotado de proporções que as cidades antigas ficaram longíssimo de proporcionar. [...] Roma estava impedida de fazer-se colônia econômica de si mesma e engendrar o escravismo colonial. Daí o impasse histórico insolúvel, traduzido na estagnação tecnológica e no encarecimento crescente da produção por meio de escravos, cada vez menos capaz de constituir a base do Estado imperial. (Grifos de Gorender, 1992, pp. 160-161)

Conquanto pudéssemos admitir, hipoteticamente, a existência de polos escravistas autônomos a produzir mercadorias e a comerciar entre si – e essa seria a única maneira de se superar a limitação de ordem lógica aqui exposta –, devemos renunciar a tal conjectura, pois, como sabido, o escravismo antigo é que se viu superado sem conhecer o arranjo hipotético 16

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aqui aventado. No que tange às áreas do mundo moderno nas quais se deu a revivescência do escravismo, impõe-se restrição de ordem históricológica, pois agora a existência do capital escravista-mercantil viu-se condicionada pela ampliação dos mercados mundiais ocorrida na fase final de transição do feudalismo ao capitalismo. A emergência e o amadurecimento desse modo de produção definem-se, pois, como o pano de fundo no qual se deu o alargamento e a consolidação do capital escravista-mercantil nos séculos XVI e seguintes. Por seu turno, o estabelecimento do capitalismo como modo de produção dominante na Europa ocidental acarretou a subordinação daquela forma de existência do capital ao capitalismo. O evolver deste último, vale dizer o processo de desenvolvimento do capital industrial (que deitava raízes, como é próprio de sua natureza, em todo o planeta) e da sociedade burguesa impõe, ademais, um limite absoluto ao capital escravista-mercantil, o qual conheceu sua superação nos marcos e como decorrência daquele desenvolvimento. Assim, para Marx, à medida que o capital industrial [...] se va apoderando de la producción social, revoluciona la técnica y la organización social del proceso de trabajo, y con ellas el tipo históricoeconómico de sociedad. Las otras modalidades de capital que aparecieron antes de ésta en el seno de estados sociales de producción pretéritos o condenados a morir, no sólo se subordinan a él y se modifican con arreglo a él en el mecanismo de sus funciones, sino que ya sólo se mueven sobre la base de aquél, y por tanto viven y mueren, se mantienen y desaparecen con este sistema que les sirve de base. (1964, v. II, p. 51)

Embora o autor estivesse aqui a se referir, provavelmente, ao capital comercial e ao capital usurário, entendemos que tais considerações se mostram plenamente aplicáveis ao caso do capital escravista-mercantil. Ademais, parece-nos que as mesmas lançam luz sobre referências explícitas efetuadas por Marx com respeito ao escravismo moderno. Vejamo-las: La esclavitud de los negros – una esclavitud puramente industrial – que desaparece sin más y es incompatible con el desarrolo de la sociedad burguesa, presupone la existencia de tal sociedad: si junto a esa esclavitud

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no existieran otros estados libres con trabajo asalariado, todas las condiciones sociales en los estados esclavistas asumirían formas precivilizadas. (Grifos de Marx, 1980, p. 159)

Na mesma obra, o autor retoma o tema: Esto no excluye que dentro del sistema burgués de producción sea posible la esclavitud en tal o cual punto. Pero la misma sólo es posible porque no existe en otros puntos, y se presenta como una anomalía frente al sistema burgués mismo. (Ibid, p. 425)

O mesmo tom é empregado quando trata dos proprietários escravistas: El que los dueños de plantaciones en América no sólo los llamemos ahora capitalistas, sino que lo sean, se basa en el hecho que ellos existen como una anomalía dentro de un mercado mundial basado en el trabajo libre. (Grifo de Marx, 1980, p. 476)

Assim, no mundo moderno, a produção de mercadorias alicerçada na mão de obra escrava só se tornou possível por se tratar de produção votada, essencialmente, para a exportação, a qual, por seu turno, destinavase, sobretudo, aos mercados da Europa, onde chegava ao seu termo a transição do feudalismo ao capitalismo, que passava a se afirmar como modo de produção dominante. Três outros pontos devem, ainda, ser fixados: a) a escravidão localizada não é incompatível com o modo de produção capitalista, mas sim com o desenvolvimento do capitalismo e, portanto, irremediavelmente fadada ao desaparecimento; b) estamos em face de um escravismo produtor de mercadorias (escravidão puramente industrial) e dependente dos mercados mundiais aos quais deve sua existência;3 c) os escravistas são capitalistas, vale dizer, acrescentamos nós, personificam o capital escravista-mercantil. 3 Com respeito a esse ponto também podemos contar com a esclarecedora interpretação de Gorender: “O escravismo colonial só possibilita um mercado interno estreito, pouco elástico, inadequado aos fins da produção mercantil, que tende à especialização.

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Das considerações expendidas na abertura deste tópico, e das conclusões acima arroladas, inferimos, imediatamente, que a forma capital escravista-mercantil não pode existir autônoma e independentemente, pois sua existência subordina-se, na Antiguidade, ao modo de produção escravista e, em passado mais recente, ao modo de produção capitalista. Ademais, sua subsistência também se revela condicionada e subordinada a tais modos de produção. Como no caso do capital comercial e do capital usurário, estamos em face de uma forma de capital que não traz em si as condições de sua existência e de sua subsistência. Aquelas duas primeiras, justamente por se mostrarem livres, autônomas e independentes com respeito a um específico modo de produção, definem-se como dependentes de modos de produção que para as mesmas se revelam como dados e, nesta medida, cada uma de tais formas é incapaz de criar as condições necessárias à sua existência e subsistência, operando, pois, de modo parasitário com respeito aos aludidos modos de produção; repisemos aqui a afirmação de Marx: “La usura, como el comercio, explota un régimen de producción dado, no lo crea, se comporta exteriormente ante él” (1965, v. III, p. 569). Como evidenciado, o capital escravista-mercantil, por não trazer implícita a plasticidade do comercial e usurário, é imediatamente dependente de uma específica relação de produção (a escravista) e igualmente dependente Mas esse problema estava de antemão resolvido, pois sua solução constituía uma das premissas da criação da plantagem colonial. A produção desta última se escoaria no mercado externo já existente e em ampliação, com uma demanda crescente de gêneros tropicais – o mercado da Europa (grifo de Gorender, 1992, p. 163). Mais adiante, acrescenta o autor: “Estavam criadas as condições objetivas para que o escravismo mercantil assumisse a única forma em que pode se desenvolver com amplitude: a forma de escravismo colonial, isto é, de um modo de produção dependente do mercado metropolitano. [...] O escravismo colonial não comportava a mercantilização total, pois subsiste nele um setor de economia natural, porém o comércio intensificado não exerce efeito desagregador na sua estrutura. O escravismo colonial nasce e se desenvolve com o mercado como sua atmosfera vital. A explicação já se contém no exposto acima: um modo de produção baseado na escravidão é compatível com a finalidade mercantil se estiver conjugado a um mercado externo apropriado. A existência prévia do mercado externo constitui, portanto, premissa incondicional” (grifos de Gorender, 1992, pp. 163-164).

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de específicos modos de produção (o escravista e o capitalista). Assim, embora não se defina como parasitária, porque produtora de mercadorias, tal forma não traz em si seus pressupostos, não sendo capaz, portanto, de, per se, pô-los ou repô-los; vale dizer, as condições objetivas de sua existência e subsistência lhe são externas e dadas pelos modos de produção acima assinalados. Logo, a forma capital escravista-mercantil é incapaz de dar embasamento a um modo de produção que lhe seja próprio e que dela decorra. Como sabido, o mesmo não ocorre com o capital industrial quanto à referida capacidade, à qual Marx emprestou tratamento explícito e minudente. Eis, pois, delineadas, algumas das principais características da forma de capital em epígrafe, outras mais seguem abaixo.

3. Um ponto a discutir A nosso juízo, existem razões suficientes e plenamente aceitáveis a explicar o fato de Marx não se haver detido mais demoradamente no estudo do escravismo antigo e, em particular, do moderno. Interessado, essencialmente, em analisar a lógica do capital industrial e em estabelecer os caminhos teóricos e práticos aptos a concretizar a superação do modo de produção capitalista, o autor desenvolveu um método em face do qual se tornou dispensável o estudo do escravismo antigo: [...] nuestro método pone de manifiesto los puntos en los que tiene que introducirse el análisis histórico, o en los cuales la economía burguesa como mera forma histórica del proceso de producción apunta más allá de sí misma a los precedentes modos de producción históricos. Para analizar las leyes de la economía burguesa no es necesario, pues, escribir la historia real de las relaciones de producción. Pero la correcta concepción y deducción de las mismas, en cuanto relaciones originadas históricamente, conduce siempre a primeras ecuaciones – como los números empíricos por ejemplo en las ciencias naturales – que apuntan a un pasado que yace por detrás de este

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sistema. Tales indícios, conjuntamente con la concepción certera del presente, brindan también la clave para la comprensión del pasado; un trabajo aparte, que confiamos en poder abordar alguna vez. (Grifo de Marx, 1980, p. 422)

Infelizmente, como sabemos, o autor não pôde efetuar o trabalho prometido. Já a consideração pormenorizada do escravismo moderno seria ociosa na medida em que se trata, tão somente, de “una anomalía dentro de un mercado mundial basado en el trabajo libre”, anomalia esta “que desaparece sin más y es incompatible con el desarrollo de la sociedad burguesa” (cf. citações acima). Tais argumentos poderiam ser avocados para explicar o fato de o autor não haver contemplado, explicitamente, a forma capital escravistamercantil; ademais, também justificariam a assertiva: “El capital industrial es la única forma de existencia del capital en que es función de éste no sólo la apropiación de la plusvalía o del producto excedente, sino también su creación” (Marx, 1964, v. II, p. 51). A nosso ver, o capital industrial não é a única forma de capital a cumprir tal papel, pois entendemos que tal função também é desempenhada pelo capital escravista-mercantil, o qual, não obstante, não deixa, por isto, de ser dependente e subordinado ao modo de produção capitalista inclusivo. Assim, no caso da colônia lusa em terras americanas, a criação da mais-valia decorria da ação do capital escravista-mercantil, vale dizer, embora isolado dos mercados externos e, portanto, da órbita da circulação – e isso discutiremos no próximo tópico –, a esfera da produção interna colocava-se inteiramente em sua órbita e era dominada pelo capital escravista-mercantil. Tal dominância, que não deve ser entendida em termos absolutos, estendia-se à produção de mercadorias (exportáveis ou não), de valores de uso e de serviços, abarcando também a alocação de fatores e recursos e espraiando-se pela circulação interna. Afetava, ainda, a geração e a distribuição da renda, a escala da produção, o tamanho das plantas instaladas, as técnicas utilizadas e os elementos afetos à qualificação da mão de obra. Enfim, sua presença condicionava toda a economia colonial, bem como as relações estabelecidas no processo de produção, projetando-se, 21

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ademais, na vida social e política da colônia. Disso deve-se inferir que os segmentos sociais e econômicos não vinculados imediatamente ao escravismo também se viam influenciados e, em larga medida, determinados, sobretudo no que tange à definição dos limites do espaço econômico em que lhes era dado atuar, pelo capital escravista-mercantil. Parece-nos ocioso lembrar que é justamente em tamanha dominância que se assenta o engano daqueles que pensam encontrar aqui o assim chamado “escravismo capitalista” ou propugnam pela existência de um pretenso modo de produção colonial.

4. A presença do capital comercial Tanto no passado mais distante como no mais recente, o capital comercial desempenhou papel crucial na gênese das condições objetivas que tornaram possível a constituição e a subsistência do capital escravistamercantil. Quanto ao período mais próximo, e com respeito ao Brasil, cumpre-nos tecer algumas observações adicionais. Como sabemos, seria difícil superestimar o papel do capital comercial (aliado, no caso, ao capital de empréstimo) quanto ao processo de ocupação, povoamento e valorização das terras que couberam aos portugueses no Novo Mundo; assim, a colônia pode ser vista como uma criação do consórcio estabelecido entre o poder régio e o capital comercial. Ao primeiro, além da estruturação e do aparelhamento das instâncias burocráticas e administrativas, coube garantir o acesso à terra – meio de produção básico – aos que demonstrassem deter os cabedais necessários para explorá-la em benefício dos interesses metropolitanos. A geração das demais condições materiais que embasaram o aludido processo ficou, sabemo-lo à farta, a cargo do capital comercial. Destarte, este último encarregou-se do financiamento do empreendimento agrícola no Brasil, do fornecimento de mão de obra africana e bens de consumo e de produção oriundos da Europa, bem como monopolizou a colocação da produção colonial nos mercados mundiais. É nessa medida que a colônia pode ser 22

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vista como um mero apêndice da economia europeia a funcionar como um enclave em permanente expansão e que flutua sobre o nada, pois o é de si e em si mesmo. É esse, pois, o locus no qual se desenvolve o capital escravista-mercantil, o qual só podia se comunicar com o mundo que lhe era externo mediante a intermediação do capital comercial. Questão essa fixada com inteira propriedade por Gorender: O capital mercantil em expansão se incumbiria da função de intermediário entre os extremos, autonomizando a esfera da circulação diante das fontes da produção, sem determinar o caráter dado das relações de produção vigentes em cada um dos extremos. (1992, p. 163)

O arranjo assim constituído, no qual o capital comercial funcionava como interface entre a colônia e os mercados externos, acarretou pelo menos quatro consequências que marcaram indelevelmente nossa história e nossa historiografia. Em primeiro, dele derivou o “sentido da colonização” como caracterizado por Caio Prado Júnior: No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais tanto no econômico como no social, da formação e evolução histórica dos trópicos americanos. [...] Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão de obra que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora,

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industrial, se constituirá a colônia brasileira. Este início, cujo caráter se manterá dominante através dos três séculos que vão até o momento em que ora abordamos a história brasileira, se gravará profunda e totalmente nas feições e na vida do país. (Grifo de Prado Júnior, 1987, pp. 31-32)4

Em segundo, a preeminência do capital comercial no que tange à articulação entre os distintos mercados permitiu a emergência e a subsistência de um complexo econômico que tinha suas bases produtivas na colônia, sua fonte básica de mão de obra na África e que contava com os mercados europeus para a realização da produção exportável. Em terceiro, o isolamento propiciado pelo capital comercial e pelas práticas mercantilistas possibilitou à economia europeia beneficiar-se dos efeitos dinâmicos oriundos do Novo Mundo e garantiu a solidez e a robustez que informaram o escravismo moderno, elementos esses da mais alta relevância para o pleno funcionamento e permanência no tempo da exploração desenvolvida pelo capital escravista-mercantil. Por fim, dado o referido isolamento, o capital escravista-mercantil não só comportou, no âmbito de sua dominância, a existência de articulações que iam muito além dos estreitos limites do capital comercial, como também propiciou o surgimento de muitas de tais articulações, as quais operavam de sorte a garantir a persistência do capital escravista-mercantil e enriqueciam e diversificavam o quadro econômico e social no qual se movimentavam as populações do Brasil escravista.

5. Capital escravista-mercantil: pressupostos e resultados de sua ação Conscientes de que nossas postulações poderão ser tomadas como um dispensável exercício votado a “prever o passado”, aventuramo-nos 4 Deve-se notar que Caio Prado Júnior prendeu-se, sobretudo, à forma como a valorização das novas terras aparece ao observador que a toma da perspectiva do comércio externo, não levando em linha de conta a existência do capital escravista-mercantil, ao qual, com base na exploração do trabalho escravo, cumpria, além da apropriação de parcela substantiva da mesma, a própria criação da mais-valia.

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a estabelecer os pressupostos necessários à existência e subsistência do capital escravista-mercantil; abalançamo-nos, ademais, a identificar os resultados imediatos de sua ação. Destarte, a aludida forma de capital só pôde emergir porque, concomitantemente, fizeram-se presentes as seguintes condições: a) existência prévia do escravismo e de fontes supridoras de cativos; tais fontes apresentam-se segundo uma dupla natureza: as institucionais – poder do Estado –, que fundamentam política e juridicamente a redução e a sujeição de pessoas à condição de cativos, e as físicas ou biológicas, que garantem a constituição, reposição e o eventual aumento dos plantéis; b) ausência de alternativas, válidas do ponto de vista econômico, à utilização da mão de obra escrava; c) existência de mercados capazes de absorverem as mercadorias produzidas com base na exploração da mão de obra escrava; d) indivíduos que se habilitavam, e que contaram com os recursos necessários para tanto, a fornecer mão de obra cativa mediante a captura e venda e/ou a mera intermediação (compra e revenda); e) indivíduos que visavam a valorizar valor com base na exploração da mão de obra escrava e aos quais se apresentaram disponíveis os recursos necessários à mobilização de meios de produção e de mão de obra cativa. A conjugação de tais pressupostos, como avançado, deu ensejo ao surgimento do capital escravista-mercantil. De sua ação decorre, imediatamente, a reposição de alguns daqueles supostos, agora derivados da própria existência do capital escravista-mercantil: a) os escravistas apoderam-se de parte substantiva da mais-valia gerada no processo de produção, vendo, pois, realizado seu desiderato de valorizar valor; b) o escravo, trabalhador direto, emerge na mesma condição de sujeição em que entrara no processo produtivo. Também imediatamente, e derivando de a e b, dá-se a emergência e a cristalização, no polo escravista produtor de mercadorias, de interesses econômicos vinculados ao escravismo, fato esse que empresta rigidez a tal sistema de exploração e atua no sentido de sua manutenção e ampliação. Lembre-se a esta altura que não se verificaram, nos tempos modernos, casos em que o simples crescimento vegetativo da população 25

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cativa pertencente aos que personificavam o capital escravista-mercantil fosse suficiente para atender suas necessidades de mão de obra escrava.5 De outra parte, o capital escravista-mercantil só podia atuar mediatamente sobre seus outros pressupostos, não lhe sendo dado, portanto, repô-los, pois tais pressupostos lhe eram externos e para ele definiamse como dados. Especificamente, referimo-nos às fontes supridoras de escravos e aos mercados mundiais. Desses elementos dependia, como anotado, a permanência no tempo do capital escravista-mercantil. Com respeito ao segundo, vergamo-nos ao argumento definitivo de Gorender, pois, assim como “Roma estava impedida de fazer-se colônia econômica de si mesma e engendrar o escravismo colonial” (cf. citação acima), o mundo colonial moderno não poderia fazer-se metrópole de si mesmo. Já no que tange às aludidas fontes supridoras de mão de obra cativa, lembramos – para evidenciar que não se está a tratar da existência de recursos materiais necessários à compra de escravos – as palavras de Marx: La compra y venta de esclavos es también, en quanto a su forma, compra y venta de mercancías. Pero el dinero no podría ejercer esta función si no existiese la esclavitud. Hay que partir de la existencia de la esclavitud, para que el dinero pueda invertirse en comprar esclavos. En cambio, para hacer posible la esclavitud no basta con que el comprador disponga de dinero. (1964, v. II, p. 33)

Evidencia-se palmarmente, pois, que o capital escravista-mercantil, enquanto tal, mostra-se incapaz de prover todos os elementos necessários à sua reprodução, não podendo, portanto, dar suporte a um específico modo de produção. Esse mesmo argumento pode ser avocado para desqualificar a opinião segundo a qual, a contar de determinado ponto de nossa 5 “Hasta en los Estados Unidos, después de que la zona intermedia entre los estados del Norte, en que regía el sistema de trabajo asalariado, y los estados esclavistas del Sur, se transformó en una zona de abastecimiento de esclavos, en que, por tanto, el esclavo lanzado al mercado esclavista se convertía a su vez en elemento de la reproducción anual, llegó un momento en que esto no bastaba y fue necesario recurrir por el mayor tiempo posible a la trata de esclavos africanos para tener el mercado abastecido” (Marx, 1964, v. II, p. 426).

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história, cumpria à economia escravista brasileira reproduzir-se autonomamente. Essa tese mostra-se ainda mais equivocada se lembrarmos que o processo de acumulação próprio do capital escravista-mercantil não o liberava dos pressupostos que lhe eram externos, ao contrário, tornava-o ainda mais dependente deles, pois, à medida que se dava a ampliação da produção escravista-mercantil, maiores eram suas exigências em termos de suprimento de cativos e de escoamento da produção efetuada. Pode-se concluir, pois, que a constituição, no Brasil, de uma economia reflexa e dependente não decorreu, meramente, da exploração metropolitana ou do fato de a colônia ter sido votada ao fornecimento de produtos para o comércio europeu, mas derivou, essencialmente, das próprias entranhas da forma de capital cujo predomínio marcou nossa história até 1888. De outra parte, como avançado, cremos que o surgimento e o desenvolvimento de uma vida econômica relativamente autônoma, “voltada para dentro”, não só se mostrava compatível com a forma capital escravistamercantil, mas, em larga medida, dela decorreu. Como sabemos, vários autores já se pronunciaram sobre a questão ora aventada, não obstante, em face das conclusões reportadas neste artigo, faz-se necessário voltarmos às seguintes afirmações de Gorender: A desobstrução metodológica impõe a inversão radical do enfoque: as relações de produção da economia colonial precisam ser estudadas de dentro para fora, ao contrário do que tem sido feito, isto é, de fora para dentro (tanto a partir da família patriarcal ou do regime jurídico da terra, quanto a partir do mercado ou do sistema colonial). A inversão do enfoque é que permitirá correlacionar as relações de produção às forças produtivas em presença e elaborar a categoria de modo de produção escravista colonial na sua determinação específica. (1992, p. 7)

Como bem diz o autor, impõe-se um novo enfoque, mas tal mudança não deve nos levar diretamente à formulação do pretendido modo de produção escravista colonial, pois ela passa, necessariamente, a nosso ver, pela discussão da categoria capital escravista-mercantil e pelo estabelecimento das consequências decorrentes de sua existência. 27

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6. A fórmula do capital escravista-mercantil Embora não nos escapem, os elementos de economia natural próprios do escravismo não serão considerados aqui, isso porque nos centraremos na fórmula do capital escravista-mercantil em seus termos estritamente lógicos. Daí decorre, também, que não contemplaremos os assalariados, igualmente presentes nos quadros do escravismo moderno, bem como as pessoas livres que, por via de regra na condição de agregados, mediata ou imediatamente, vinculavam-se às atividades econômicas desenvolvidas pelos escravistas. Assim operando, esperamos poder estabelecer, em termos abstratos evidentemente, a fórmula própria do capital escravista-mercantil. Contemplada em termos os mais simples e abstratos possíveis, vale dizer, caso consideremos tão somente os desembolsos pecuniários efetivamente incorridos pelo escravista na compra, à vista, de cativos e de mercadorias – compreendidos aqui meios de produção e bens para consumo destinados à manutenção da escravaria – a serem utilizados, excludentemente, na produção de bens destinados à comercialização, a representação do capital escravista-mercantil deve obedecer às seguintes condições: D2 D D1 — M

<

<

Me Mp

...

P

...

M’ — D’

Em que:

D = capital-dinheiro. D1 = gastos na compra de mercadorias. D2 = gastos de aquisição do plantel.6 M = capital-mercadorias.

6 “Embora ‘empatada’ como capital-dinheiro, a inversão inicial de compra do escravo não se encarna em nenhum elemento concreto do fundo produtivo do escravista. Dito em outras palavras, a inversão inicial de compra do escravo não funciona como capital. No processo real da produção escravista, esta inversão se converte em não capital. Seria incorreto afirmar que ela é imobilizada, pois assim a incluiríamos no capital fixo.

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

Me = mercadorias destinadas ao sustento da escravaria.7 Mp = meios de produção. P = capital produtivo. M’ = capital-mercadorias, em termos concretos: mercadorias resultantes do processo produtivo. D’ = capital-dinheiro valorizado, ou seja: resultado da realização do preço de M’.

Sendo:

M = Me + Mp D = D1 + D2 D’ = D1 + d d = D2 + L sendo: d = mais-valia. L = lucro do escravista, líquido do gasto de aquisição do plantel.8

Donde:

D’ = D1 + D2 + L

O correto é concluir que o capital-dinheiro aplicado na compra do escravo se transforma em capital-esterilizado, em capital que não concorre para a produção e deixa de ser capital” (grifos de Gorender, 1992, pp. 182-183). 7 “O escravo recebe em espécie os meios de subsistência necessários para a sua manutenção e essa forma natural dos mesmos encontra-se fixada, tanto pela sua qualidade como pelo seu volume, em valores de uso. O trabalhador livre recebe-os sob a forma do dinheiro, do valor de troca; da forma social abstrata da riqueza. Embora o salário não seja, de fato, mais do que a forma áurea, ou “argentada” ou cúprica ou de papel adotado pelos meios de subsistência, em que tem incessantemente que resolver-se – e o dinheiro opera aqui unicamente como forma evanescente do valor de troca, como simples meio de circulação –, na imaginação (do operário) o objetivo e o resultado do seu trabalho continuam a ser, contudo a riqueza abstrata, o valor de troca, não um valor de uso determinado, tradicional e localmente limitado” (grifos de Marx, 1975, p. 87). “[...] a fim de ser produtiva, a força de trabalho do escravo terá de ser usada. O trabalho constitui o processo vivo de uso da força de trabalho. A compra do escravo simplesmente o colocou à disposição do dono sem ainda dar a este o uso produtivo da força de trabalho. A fim de usá-la, o plantador não poderá limitar-se ao dispêndio feito no ato da compra, mas terá de levar a efeito um novo dispêndio: o do sustento do escravo. Este precisará receber, dia a dia, alimentos, vestuário, abrigo, tempo de repouso, remédios nas eventualidades de doenças, etc.” (grifos de Gorender, 1992, p. 167). “O gasto com o sustento diário do escravo – distinto do seu preço de compra – é que poderia ser identificado com o capital variável... se permanecermos obstinados na tese de que o escravismo colonial constitui uma espécie de capitalismo” (ibid., p. 182). Como já fizemos notar, não consideramos o escravismo colonial uma “espécie de capitalismo”, mas, sim, entendemos que no quadro do escravismo colonial dava-se a existência de uma forma de capital: o capital escravista-mercantil. 8 “Por conseguinte, cabe-nos concluir também que a inversão inicial de compra do escravo somente pode ser recuperada pelo escravista à custa do sobretrabalho do

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Visto em termos de seus estágios, o processo cíclico do capital escravista-mercantil não difere do apresentado por Marx (1964, v. II, cap. I) para o capital industrial. Também em nosso caso podemos verificar a existência de três estágios bem definidos pelos quais passa o capital escravista-mercantil. No primeiro estágio, D2 D — M D1

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Me Mp

o escravista surge como comprador de mercadorias destinadas ao processo produtivo. Nesse momento definem-se marcantes dissimilitudes relativamente ao capital industrial, as quais decorrem da especificidade do escravismo no que tange ao aliciamento da mão de obra. O escravista, para dar início à produção e reproduzi-la nos perío­dos subsequentes, obriga-se a destinar parcela do capital inicial (D) para a aquisição do plantel. Essa fração, representada por D2, indica o custo incorrido pelo escravista para ter à sua disposição a mão de obra de que carece. Para tanto, ele terá de servir-se do mercado de escravos. Os negros apresados no continente africano e trazidos para a América ou os escravos já residentes na colônia e postos à venda por seus proprietários constituirão o lado da oferta. O assentamento da relação de escravidão tem como pressuposto básico a constituição de tal mercado, pois a simples necessidade desse tipo de trabalhador, ainda que conjugada com a disponibilidade de recursos, mostrar-se-ia insuficiente para consubstanciar tal relação de sujeição em bases estáveis e na amplitude necessária. Uma vez comprado,

escravo, do seu produto excedente. Ela constitui um desconto inevitável da renda ou do que se chamaria de lucro escravista. Do ponto de vista contábil, não faz diferença que seja considerada parcela do custo de produção ou dedução obrigatória do lucro, à semelhança de um imposto. Do ponto de vista da teoria econômica, a única solução correta consiste em incluí-la no produto excedente e considerar a renda efetiva do escravista reduzida na proporção da amortização do investimento feito na aquisição do plantel de escravos” (grifos de Gorender, 1992, p. 183).

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o escravo pode passar a constituir “parte integrante do capital produtivo de seu comprador” da mesma forma que a força de trabalho vendida ao capitalista pelo assalariado. A parte restante do capital (D1) destinar-se-á à compra e/ou manutenção dos equipamentos e instalações imprescindíveis à produção (Mp) e aos dispêndios com habitação, vestuário e alimentação necessários para manter vivos e produtivos os escravos (Me). Aqui, ao invés de um pagamento monetário, como ocorre no caso do assalariado, o escravista encarrega-se, ele mesmo, de prover as mercadorias destinadas ao sustento do trabalhador. A origem desses bens pode ser a oferta externa, europeia sobretudo, ou mesmo a produção realizada no âmbito da colônia ou da própria unidade produtiva local. No segundo estágio, o proprietário de escravos combina os elementos adquiridos no primeiro; mediante o consumo produtivo de tais elementos, gera-se um quantum de produto com valor superior ao do início do processo. Nesse estágio produtivo – no qual aqueles elementos se encontram “no estado ou na forma de capital produtivo” – cria-se valor suficiente para a reposição dos gastos com a depreciação dos meios de produção e com o sustento dos escravos e, ademais, gera-se a mais-valia. A mais-valia gerada no processo produtivo do capital escravistamercantil (d) deve ser capaz, portanto, de proporcionar, não só o lucro líquido do escravista, mas, também, o montante de capital necessário para aquisição/reposição dos escravos (D2). Vale dizer, como Gorender, tratamos o dispêndio com a aquisição do plantel como uma dedução da mais-valia total. Todavia, sem a realização das mercadorias, isto é, sem o terceiro estágio (M’ — D’), não se poderia dar o prosseguimento do processo produtivo. Faz-se mister, portanto, que o capital-mercadoria assuma a forma de capital-dinheiro ao final do processo para poder ingressar novamente no ciclo de valorização. Apenas como capital-monetário o capital assume a forma de “meio geral de compra e meio geral de pagamento”, tornando-se capaz de agenciar elementos para o ciclo produtivo subsequente. 31

O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

7. Considerações finais Cremos que, além de havermos evidenciado a pertinência e a relevância do conceito, explicitamos algumas das principais propriedades do capital escravista-mercantil, bem como algumas das implicações decorrentes da existência dessa forma específica de valorização do valor. Acreditamos, igualmente, havermos mostrado que muito do que se afirma sobre o modo de produção escravista refere-se, de fato, à forma de capital aqui postulada. Assim, tanto a economia escravista moderna, em geral, como a sociedade brasileira, em particular, devem sua existência e conformação estrutural básica ao capital escravista-mercantil, não podendo ser vistas, portanto, nem como uma mera projeção do capital comercial no plano da produção, nem como um simples apêndice da economia europeia, destinado, exclusivamente, a complementá-la e a servir, tão somente, a interesses forâneos. Não é ocioso repisar que a falta da consideração do capital escravista-mercantil leva ao falseamento da natureza e do caráter essencial da economia e da sociedade estabelecidas nas Américas. Explorar estas últimas assertivas, aprofundar nosso conhecimento sobre suas implicações quanto à nossa formação socio­ econômica e promover amplo debate sobre o tema – o que procuramos provocar com este escrito – não só é fundamental para o dilucidamento definitivo dos problemas centrais aqui abordados como, certamente, lançará novas luzes sobre antigas divergências teóricas concernentes àquela formação. Em face das conclusões acima postas, entendemos que se impõem alguns desdobramentos a enfrentar. Assim, caso venha a ser aceita a categoria aventada, faz-se necessário, desde logo, aprimorá-la e escoimá-la de eventuais incorreções. Esta é, com certeza, a tarefa mais expressiva e desafiadora que nos espera no futuro imediato. 32

O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

Também será preciso estabelecer com precisão, e para cada uma das áreas do Novo Mundo que conheceram o escravismo, as decorrências históricas e socioeconômicas devidas à existência do capital escravista-mercantil. Uma discussão paralela, mas não menos importante, certamente girará em torno da reavaliação da tese segundo a qual, a partir de determinado momento de sua formação histórica, certas economias escravistas das Américas ganharam autonomia e tenderam a repor-se independentemente dos pressupostos que lhe eram externos. Além disso, também deve ser encetado, à luz de nossas proposições teóricas, o estudo das condições empíricas envolvidas na superação do escravismo em cada área e/ou nação das Américas, de sorte a podermos aquilatar, em termos dos eventos concretos que marcaram tal superação, o poder explicativo de nossas teses.

Referências bibliográficas CASTRO, Antônio Barros de (1980). “A economia política, o capitalismo e a escravidão”. In: LAPA, J. R. do Amaral (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis, Vozes, pp. 67-107 (Coleção história brasileira, 5). GORENDER, Jacob (1983). Questionamentos sobre a teoria econômica do escravismo colonial. Estudos Econômicos, v. 13 (jan./abr.), n. 1, pp. 7-39. (1992). O escravismo colonial. 6 ed. São Paulo, Ática (Ensaios, 29). MARX, Carlos (1964). El Capital: crítica de la Economia Política. México/Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, volumes I e II. (1965). El Capital: crítica de la Economia Política. México/Buenos Aires, Fondo de Cultura Econômica, volume III. (1975). Capítulo inédito d’O Capital: resultados do processo de produção imediato. Porto, Publicações Escorpião (Biblioteca Ciência e Sociedade, 12). (1980). Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse) 1857-1858. 11 ed. México D.F., Siglo Veintiuno Editores, v. 1. PRADO JÚNIOR, Caio (1987). Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 20 ed. São Paulo, Brasiliense.

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3. CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL Julio Manuel Pires Iraci del Nero da Costa

1. O capital escravista-mercantil e suas limitações Como tivemos oportunidade de consignar no capítulo anterior, o capital escravista-mercantil devia sua reprodução a algumas condições que lhe eram imanentes e a outras que, para ele, definiam-se como dadas, pois independiam de sua existência e situavam-se no âmbito da economia mundial: mercados fornecedores de mão de obra cativa e mercados absorvedores da produção exportável ofertada pela economia escravista. A estas últimas, somavam-se, pois, as condições de ordem endógena: institucionalização do escravismo, escravistas desejosos de acumular e a massa de cativos disponível internamente. Como avançado, as condições exógenas fugiam à ação imediata do capital escravista-mercantil cuja supressão, portanto, poderia advir de um ou mais eventos originados na órbita externa, na interna ou colocados nessas duas esferas, pois a falta de qualquer pressuposto, endógeno ou exógeno, seria bastante para provocar sua ruptura. A consequência mais significativa das características reportadas acima está em que, por ser incapaz de reproduzir integralmente suas próprias condições de existência, o capital escravista-mercantil não podia, pois, dar suporte a um específico modo de produção. Destarte, o lapso temporal de sua dominância em dada área ou nação deve ser tomado – por mais longo que se apresente – como um período de transição. No caso do escravismo moderno, tratou-se, efetivamente, da incorporação, à economia mundial já fortemente impregnada pelo capitalismo, de terras 35

O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

praticamente virgens ou de áreas mais densamente povoadas cujos autóctones conheceram um total derruimento do destino que lhes era traçado pelas formas de existência social, econômica e política sob as quais viviam antes da chegada do colonizador europeu. No que tange ao Novo Mundo, como sabido, tal transição culminou com a transformação radical das relações de produção – de escravistas para capitalistas – e a correlata metamorfose do capital escravista-mercantil em capital “industrial”, vale dizer: em acumulação calcada na exploração da mão de obra assalariada. Além disto, na medida em que, no âmbito das sociedades escravistas modernas, foram, a pouco e pouco, consubstanciando-se as condições para o estabelecimento generalizado do trabalho assalariado, a transição para essas relações de produção – inclusive com a presença de formas de exploração do trabalho livre como os contratos de parceria, de locação de serviços e o sistema do colonato adotados no Brasil – não assumiu, do ponto de vista estritamente econômico, caráter traumático, dando-se o mesmo com respeito à transformação do capital escravista-mercantil em capital industrial. Destarte, as mudanças havidas não decorreram de uma “revolução burguesa” no sentido clássico da expressão, mas devem ser definidas como duas facetas de um processo único: o da superação do escravismo. Processo esse no bojo do qual atuaram de maneira solidária e integrada – com pesos relativos distintos, é verdade – fatores de caráter político, social e econômico. Note-se, ainda, que a solidez ou robustez do escravismo, bem como a coesão interna de dada sociedade escravista, não bastavam, per se, para garantir a subsistência do capital escravista-mercantil, pois, como afirmado acima, a presença de tais atributos só era relevante para a manutenção dos determinantes de ordem endógena dessa específica forma de existência do capital. Do acima posto, conclui-se que o estudo da supressão do capital escravista-mercantil confunde-se com o da abolição do escravismo. Assim – e aqui falamos em termos hipotéticos e não exaustivos –, o golpe mortal contra o capital escravista-mercantil (ou contra o escravismo), nesta ou 36

CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

naquela área e/ou nação, poderia decorrer de uma ou da combinação de duas ou mais das seguintes causas imediatas: 1) imposição da metrópole com respeito a suas dependências coloniais; 2) imposição de nação estrangeira em decorrência de atritos econômicos e/ou armados; 3) decisão política adotada de maneira unânime pelas próprias elites escravistas dominantes ou decorrente de uma cisão no corpo das mesmas de sorte a levar a um confronto entre as facções discordantes do qual, no caso, sairia vencedora a ala favorável à abolição; 4) sublevação dos cativos; 5) uma forte expansão da demanda internacional por tal ou qual bem produzido por dada economia escravista poderia levá-la a encontrar tamanhas restrições quanto ao aliciamento de mão de obra cativa que a busca de uma alternativa não-escravista se impusesse; 6) correlatamente, a retração violenta dos mercados mundiais para os bens oferecidos por dada economia escravista poderia levá-la, no médio prazo, ao colapso, pois lhe faltariam os recursos para sustentar-se enquanto tal; 7) a supressão do tráfico também conduziria, na falta de uma oferta interna renovável de cativos,1 inexoravelmente, ao desaparecimento, em prazo mais ou menos dilatado, do capital escravista-mercantil. Examinemos mais de perto algumas situações concretas nas quais, cremos, podem ser identificadas algumas das causas acima aventadas. No que concerne a alguns países da América do Sul, houve, segundo Donghi, uma influência decisiva das guerras de independência na conformação e no ritmo do processo de abolição da escravatura. Com efeito, a partir dos conflitos armados a caracterizar a luta pela independência comandada por Bolívar e San Martín, 1 “Hasta en los Estados Unidos, después de que la zona intermedia entre los estados del Norte, en que regía el sistema de trabajo asalariado, y los estados esclavistas del Sur, se transformó en una zona de abastecimiento de esclavos, en que, por tanto, el esclavo lanzado al mercado esclavista se convertía a su vez en elemento de la reproducción anual, llegó un momento en que esto no bastaba y fue necesario recurrir por el mayor tiempo posible a la trata de esclavos africanos para tener el mercado abastecido”. Marx (1964, p. 426).

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

[...] o significado da escravidão se modificou: embora os novos Estados não se demonstrem dispostos a aboli-la (escolhem, ao contrário, situações de compromisso, como a proibição do comércio e a liberdade para os filhos dos escravos, inovações de alcance mais limitado do que poderia parecer), a guerra os induz a emancipações cada vez mais amplas; e as guerras civis serão ocasião de novos passos nessa direção (...) A emancipação tem a finalidade de recrutar soldados; e, além desse objetivo imediato, em alguns casos se busca explicitamente conservar o equilíbrio racial, garantindo que também os negros forneçam a sua cota de mortos em combate. É esse o argumento de Bolívar em apoio às providências que tomou, e que não eram aceitas pelos proprietários de escravos. A escravidão doméstica perde importância, enquanto a agrícola resiste melhor nas zonas das plantações, que não poderiam sobreviver sem ela. Ainda em 1827, sua importância na Venezuela é tão grande que justifica uma tenaz defesa por parte dos latifundiários. Onde a escravidão se conserva, a disciplina da mão de obra escrava perde boa parte da sua eficiência. A produtividade cai na Venezuela e na costa do Peru (e aqui de modo catastrófico), o mesmo ocorrendo nas zonas mineradoras de Nova Granada, nas quais se empregava mão de obra africana. (Donghi, 1975, p. 83)

Ademais, o fim do tráfico de escravos e o impacto dessa medida sobre o mercado de escravos implicou a inviabilização econômica cada vez maior das atividades assentadas na mão de obra cativa. A implantação e substituição da mão de obra coloca problemas; a longo prazo, a escravidão não consegue sobreviver na América espanhola sem o tráfico; e, com as crescentes dificuldades do mercado, o preço dos escravos – onde eles são empregados em atividades produtivas – cresce rapidamente; ao longo da costa peruana, durante a década posterior à revolução, o seu preço triplica. O instituto da escravidão, antes de ser abolido (quase por toda parte na metade do século), perde importância. Os negros emancipados não serão reconhecidos como iguais à população branca e nem mesmo à mestiça; mas a posição deles será profundamente diferente numa sociedade que, se não é igualitária, organiza porém as desigualdades de um modo diverso da velha sociedade colonial. (Ibid., pp. 83-84)

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Detenhamo-nos agora em alguns processos de emancipação verificados em outros países e regiões da América, para os quais a importância da escravidão e a literatura disponível mostraram-se bem mais significativas.

2. O Haiti e a rebelião negra Segundo país do continente a tornar-se independente, após os Estados Unidos, a parte ocidental da Ilha de Hispaniola, no Caribe, contava, às vésperas da Revolução, com cerca de 550.000 habitantes, 80% dos quais escravos (cf. Cardoso e Brignoli, 1983, p. 147). A vida econômica e política do Haiti era monopolizada por uma elite reduzida de brancos e mulatos, impedindo-se de forma definitiva a ocupação de cargos públicos e profissões liberais por parte de negros, mesmo se libertos. Como sabido, a base econômica principal do Haiti era a produção de açúcar, seguida do café, anil e algodão. As revoltas – iniciadas em 1758 sob a liderança de Makandal e sufocadas em sua maior parte – retornaram, no outono de 1791, com amplitude revolucionária, envolvendo praticamente todo o território haitiano. Os escravos rebelados incendiaram os canaviais e expulsaram os exércitos franceses. Com a vitória sobre as forças francesas, François Toussaint, também conhecido como Toussaint Louverture, proclamou a independência e a libertação dos escravos, mantendo-se, todavia, dentro da federação francesa. Ainda durante o processo de consolidação do novo poder político, a crise e o bloqueio econômico imposto pela França que se seguiram à guerra de independência condicionaram fortemente a política de Toussaint relativamente à mão de obra. Foi instituído “um rígido sistema de trabalho forçado, anulando vendas de terras anteriores para trabalhadores rurais e sujeitando os trabalhadores das fazendas a uma disciplina militar” (Foner, 1988, p. 29). Tais imposições decorriam de uma tentativa de não isolar 39

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política e economicamente o Haiti do restante do mundo,2 bem como de estabelecer uma política conciliatória com os fazendeiros brancos, uma vez que a grande propriedade rural voltada à exportação era encarada como a chave da prosperidade para o país. Apesar de demonstrar esse tipo de preocupação, Toussaint é derrotado por Charles Leclerc, cunhado de Napoleão, em 1803, e enviado para a França, onde é executado. Jean-Jacques Dessalines assume então a liderança na luta dos haitianos e consegue expulsar novamente os franceses, criando a segunda república do Hemisfério Ocidental em 1806. Com a ascensão ao poder de Dessalines, a política conciliatória de Toussaint em relação aos fazendeiros foi drasticamente abandonada – tendo sido massacrados os brancos remanescentes e incorporando-se as fazendas ao patrimônio do Estado. Entretanto, a crença de Dessalines de que apenas a agricultura de exportação seria capaz de garantir a manutenção de um exército forte e, dessa forma, consolidar a independência da nação, levou-o a preservar a política de trabalho forçado, a qual não diferia muito da escravidão, inclusive por empregar o açoite como medida disciplinadora (ibid., p. 29). Essa legislação punitiva e rigorosa quanto à obrigação de trabalhar manteve-se, com pequenas alterações, nos governos imediatamente seguintes, tendo sido suplantada, ao longo do século XIX, pela emergência do campesinato haitiano, mediante a ampliação do acesso à propriedade da terra.3

2 Tal tentativa viu-se frustrada pela reação desfavorável das potências europeias e dos Estados Unidos à nova nação. Segundo Craton, “esse novo e orgulhoso país e sua economia foram imediatamente marginalizados, tanto pelo espírito independente dos próprios haitianos quanto pela calculada indiferença ou o antagonismo ativo, baseado na paranoia racista das principais potências, inclusive os Estados Unidos” (1995, p. 32). 3 “Ao longo do século XIX, o Haiti teve a mais baixa porcentagem de trabalhadores sem terra entre todas as ilhas das Antilhas”. Foner (1988, p. 30).

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3. As Antilhas e a presença metropolitana O fim da escravidão nas Antilhas e Guianas decorreu, imediatamente, de decisões tomadas no âmbito das metrópoles às quais se encontravam subordinadas essas áreas. No caso das colônias administradas diretamente pela Coroa inglesa, a legislação referente à emancipação por estágios foi imposta diretamente, tendo sido negociada quando a colônia tinha legislação própria (cf. Craton, 1995, p. 46). O processo que levou à emancipação dos negros nas colônias inglesas na América4 – iniciado a partir da proibição do tráfico britânico de escravos da África em 1808 – foi radicalmente distinto ao observado no Haiti, como teremos oportunidade de ratificar mais adiante. “Se no Haiti a abolição se realizou através da revolução, no Caribe inglês o processo refletiu tudo o que é quintessencialmente inglês: respeito pela ordem, processos legais e direitos de propriedade”5 (Foner, 1988, p. 33). A manumissão nas possessões britânicas caracterizou-se, sobretudo, pela intenção de gerar o menor atrito possível com a classe de proprietários de escravos; buscou-se preservar em suas mãos tanto a propriedade da terra como o poder político. Ademais, o governo inglês indenizou os antigos donos de escravos com 20 milhões de libras (ibid., p. 33). Inicialmente, as autoridades britânicas buscaram – mediante a instituição do aprendizado – uma solução conciliatória entre, de um lado, a opinião pública antiescravocrata e seu próprio compromisso público com a ideia do trabalho livre e, de outro, os interesses da classe de proprietários de escravos. Também pesou, na decisão de estabelecer o aprendizado, a 4 Nas colônias britânicas espalhadas por todo o mundo, algo em torno de 700.000 pessoas foram libertadas, 311.000 só na Jamaica e 83.000 em Barbados. 5 No mesmo sentido, Craton afirma “resultasse ou não da frequentemente alegada tendência nacional britânica no sentido da mudança evolutiva, em vez da revolucionária, e de uma concomitante facilidade de adaptação pragmática, o processo nas Índias Ocidentais Britânicas demonstrou aspectos de um ‘continuum’, com antecipações e sobrevivências de cada lado da emancipação formal dos escravos, em lugar de fases profundamente marcadas e mudanças abruptas” (1995, p. 33).

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desconfiança relativamente ao comportamento do manumitido. Segundo a lei de 1833, “todos os escravos na lavoura serviriam por seis anos como aprendizes, período durante o qual seriam pagos por seus trabalhos, permanecendo, porém, sujeitos a regulamentações severas determinadas pelas legislaturas coloniais” (ibid., p. 36). Pretendia-se, dessa maneira, assegurar um processo de transição o menos traumático possível entre a escravatura e o trabalho livre. O resultado dessa tentativa foi um fracasso evidente. Um dos principais problemas de que se revestiu o aprendizado foi o fato de o governo inglês deixar as regulamentações pertinentes a cargo das assembleias locais, dominadas pelos grandes proprietários. As penas extremamente severas impostas pelos legisladores caribenhos aos menores deslizes e resistência ao trabalho por parte dos ex-escravos, as quais “‘cheiravam’ em excesso a um retorno da escravidão” (ibid., p. 38), fizeram com que as autoridades britânicas – pressionadas por uma opinião pública desfavorável ao aprendizado – impusessem o fim desse experimento, decretando a liberdade incondicional dos aprendizes em 1838 (ibid., pp. 38-39). Nas demais colônias europeias do Caribe, também o processo foi definido a partir de decisões tomadas nos respectivos centros metropolitanos. “Depois de medidas parciais, os franceses aboliram a escravidão em 1848, tendo a revolução daquele ano agido como catalisador. A Holanda, também depois de medidas parciais, protelou até 1863 a abolição final” (Cardoso e Brignoli, 1983, p. 150). É importante notar que também nesses casos a decisão dos países europeus foi acompanhada de uma compensação monetária aos proprietários dos escravos manumitidos, tendo sido facilitada, ademais, pelo fato de tais proprietários constituírem uma parcela restrita das burguesias metropolitanas. Assinale-se, também, que as feições genéricas, acima apontadas, assumidas pelo processo de abolição do trabalho escravo nas referidas dependências coloniais não comporta qualquer dúvida; a polêmica existente – e ela foge ao escopo deste artigo – 42

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diz respeito às razões associadas ao interesse pelo fim do tráfico e da escravidão por parte das potências europeias, notadamente no que se refere à Inglaterra.6 Outros fatores, e não apenas relacionados aos interesses e disputas internas às Metrópoles, devem, no entanto, ser agregados. Entre estes destaca-se o “exemplo” haitiano e a eclosão frequente de revoltas de escravos em toda região, as quais amedrontavam tanto as autoridades metropolitanas como os proprietários locais, impelindo-os a vislumbrarem na manumissão geral uma alternativa menos ruim. No caso das possessões britânicas na América, cabe citar as rebeliões de escravos ocorridas em Barbados (1816), Guiana Inglesa (1823) e Jamaica (1831-32) (cf. Craton, 1995, pp. 32-33).

4. Nos Estados Unidos, a dissensão das elites Em contraste com o processo lento, gradual e contemporizador a caracterizar a extinção do escravismo em Cuba e no Brasil, nos Estados Unidos, tal evento ocorreu de forma abrupta, como resultado de um violento conflito armado. A emancipação nos Estados Unidos – a qual englobou número muito superior de pessoas do que o observado em qualquer outro país ou colônia, cerca de 4 milhões – resultou, à semelhança do ocorrido no Haiti, de uma guerra sangrenta, na qual os negros tiveram participação expressiva (cf. Foner, 1988, p. 73). 6 A controvérsia fundamental opõe Williams e Drescher. O primeiro atribui ao interesse inglês razões de ordem fundamentalmente econômica, relacionadas ao declínio da importância dos fluxos de produção e comércio de mercadorias e escravos entre Inglaterra e Antilhas e a incompatibilidade entre as exigências do desenvolvimento do capital industrial inglês e o escravismo. Seymour, baseado em amplo conjunto de dados, procura mostrar que aos anos imediatamente anteriores ao fim do tráfico de escravos corresponderam volumes ascendentes de exportações de algodão e açúcar das Antilhas para a Inglaterra, ocorrendo o mesmo com o tráfico de escravos. As razões básicas relacionadas ao fim do tráfico e posterior abolição, segundo esse autor, devem ser buscadas, sobretudo, no movimento abolicionista. Para maiores detalhes, ver Williams (1975) e Drescher (1977).

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Os principais fatos históricos que antecederam imediatamente o término do regime escravista são conhecidos: eleição de Abraham Lincoln, em 1860, pelo Partido Republicano; decretação da emancipação; oposição dos estados sulistas, a tentativa de Secessão e o início da Guerra Civil; a vitória da União ratificada em 1865 e a consagração do abolicionismo. Para os efeitos deste artigo, os pontos importantes a serem realçados dizem respeito aos motivos da guerra e aos interesses divergentes do Norte e do Sul quanto à escravidão.7 Em primeiro lugar, cabe destacar a reduzida relevância das análises que se concentram de forma exclusiva nos fatores de ordem econômica, como, por exemplo, na questão das tarifas de importação ou na suposta incompatibilidade econômica entre a mão de obra escrava e o crescente capitalismo industrial. Na verdade, como demonstra Moore Jr., no período 1815-1860, a economia algodoeira do Sul exerceu influência decisiva no crescimento da economia americana e, até 1830, constituiu o fator mais importante do desenvolvimento industrial nortista. Ademais, devido ao expressivo volume de exportações para a Grã-Bretanha, responsabilizava-se pela parcela principal da oferta de divisas. Portanto, longe de se caracterizar como excrescência, a economia escravista revelou-se parte integrante da formação do capitalismo industrial do século XIX. Do mesmo modo, cabe rejeitar as teses que atribuem ao sistema escravista um tal nível de ineficiência vis-à-vis o trabalho assalariado que o condenaria a desaparecer. Os estudos mais recentes mostram que a escravatura não estava prestes a se extinguir por razões internas, pois, do ponto de vista econômico, ainda evidenciava boas condições de competitividade e lucratividade. Nesse sentido, a força das armas mostrou-se fundamental para pôr fim à escravidão nos Estados Unidos. Conquanto os fatores estritamente econômicos tenham certo poder explicativo, parecem-nos secundários em face das divergências políticas, 7 O eixo fundamental da análise seguinte baseia-se em Moore Jr. (1975, pp. 141-189).

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sociais e ideológicas existentes entre o Norte e o Sul. Ou, colocando de forma mais precisa, embora a origem essencial da diferenciação entre as duas sociedades situe-se no campo econômico – dada pela relação de produção hegemônica diversa a caracterizar cada uma das duas regiões –, a Guerra de Secessão encontra-se, na realidade, relacionada às dificuldades de convivência, sob um mesmo governo nacional, de duas sociedades com características tão distintas, conquanto capitalistas: uma, aristocrática, defensora do privilégio hereditário e a outra, burguesa, valorizadora do esforço e talento individual e contrária à desigualdade jurídica e de oportunidades.8 “Com o Oeste, o Norte criou uma sociedade e uma cultura cujos valores entraram cada vez mais em conflito com os do Sul. O ponto focal dessas diferenças residia na escravatura” (Moore Jr., 1975, p. 169). Em face de tal quadro, tornou-se cada vez mais improvável – para ventura da democracia americana – a solução conciliatória entre a burguesia industrial e as elites rurais, típica da Alemanha do século XIX. A busca dessa solução fez-se em vão na primeira metade do século. Alguns anos após o fim do tráfico de escravos (1808) (cf. Foner, 1988, p. 130), tentou-se instituir uma fórmula para manter o equilíbrio entre os estados escravistas e abolicionistas. Por meio do “Compromisso de Missouri” (1820), ficou estabelecido que os estados ao norte do paralelo 36o30’ seriam emancipacionistas, e escravistas os colocados ao sul de tal linha. No entanto, em 1850, a Califórnia solicita sua entrada na União como estado abolicionista, apesar de se situar ao sul daquele paralelo. Houve protestos dos estados escravistas, sendo, por fim, acordado o denominado “Compromisso de 1850”, assegurando o livre arbítrio dos novos 8 Seria, no entanto, um erro grosseiro atribuir homogeneidades estritas em relação ao trabalho escravo no interior das sociedades nortista e sulista. Da mesma forma como existia um grupo significativo de pessoas no Norte, quiçá majoritários, indiferentes à sorte dos negros e, por certo, indivíduos favoráveis à escravidão, havia vários brancos sulistas simpáticos à causa abolicionista. Cf. Foner (1988, p. 73).

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estados quanto à escravidão. Tal solução, entretanto, parece não ter sido satisfatória, pois o problema da escravatura nos territórios desempenhou papel crucial para conduzir à guerra. Tratava-se, dentre outras questões, de definir a que interesses/conveniências o Governo Central iria se colocar à disposição. O aspecto fundamental tornou-se cada vez mais o fato de a maquinaria do governo federal dever ser usada para apoiar uma sociedade ou a outra. Era esse o significado por trás de assuntos tão pouco interessantes como a tarifa alfandegária e que pôs paixão na reclamação sulista, ao afirmar que estava a pagar tributo ao Norte. A questão do poder central tornou também crucial a questão da escravatura nos territórios. Os dirigentes políticos sabiam que a admissão de um estado de escravos ou de um estado de trabalhadores livres desequilibraria a balança para um lado ou para o outro. O fato de a incerteza constituir parte inerente da situação, devido às terras não colonizadas, ou parcialmente colonizadas, do Oeste, aumentou muito as dificuldades para se chegar a um compromisso. Cada vez se tornou mais necessário que os dirigentes políticos de ambos os lados se mantivessem em alerta para qualquer movimento que pudesse aumentar as vantagens do outro. Dentro deste contexto maior, a tese da tentativa de veto do Sul ao progresso nortista faz sentido, como causa importante para a guerra. (Moore Jr., 1975, p. 169)

A vitória do Norte, como sabido, permitiu definir tal disputa de forma favorável aos interesses industriais e consolidar a emancipação dos escravos. Todavia, a derrota dos republicanos radicais – os quais propunham reformas profundas na estrutura econômica e política do Sul –, ao longo da década de 1870, obstou a consecução de melhorias significativas no padrão de vida dos libertos.9 9 Para maiores detalhes a respeito dos republicanos radicais e suas políticas durante o período da “Reconstrução” e sua derrota para o Partido Democrata com a “Redenção”, veja-se Foner (1988), especialmente pp. 73-176, e Moore Jr. (1975, pp. 183-189).

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5. Em Cuba: um caminho longo e complexo A supressão do escravismo em Cuba lembra, em linhas gerais, a experiência observada no Brasil. Trata-se de um processo gradual no qual intervieram vários fatores, tanto de ordem interna como externa. Cardoso e Brignoli identificam duas grandes fases no processo de abolição da escravidão em Cuba. A primeira estende-se do início da década de 1840 até o começo da Guerra dos Dez Anos, em 1868. A segunda fase compreende o período da guerra de libertação (1868-1878) e se estende até 1886, com o fim definitivo da escravidão dada a extinção do patronato (1983, pp. 150-153). Em 1845, por conta dos movimentos e das conspirações de escravos havidos entre 1841 e 1843 e da pressão diplomática e naval da Inglaterra, a Espanha elabora a lei de abolição e repressão do tráfico de escravos, cujo objetivo fundamental seria propiciar instrumentos mais adequados à repressão do tráfico, já ilegal havia muitos anos.10 Tal legislação apresentou alguma efetividade durante a década de 40, quando se reduziu o número de escravos desembarcados na Ilha, voltando a aumentar, na década seguinte, o contingente de negros provindos da África, apesar da manutenção das imposições inglesas. O tráfico só cessou, de fato, em meados da década de 60; é importante notar, no que tange a esse aspecto, a existência de um grupo de escravistas interessado em, simultaneamente, pôr termo ao tráfico e manter a escravidão, com o intuito de valorizar o estoque de escravos em seu poder. Nos marcos dessa primeira fase, deu-se, ainda, a Guerra de Secessão nos Estados Unidos e o enfraquecimento da causa escravista em todo o continente em decorrência da abolição que se seguiu à vitória do Norte sobre o Sul. 10 “A Espanha havia prometido aos britânicos desde 1817 abolir o tráfico de escravos, e em 1835 permitiu que seus navios fossem revistados e julgados os traficantes espanhóis por autoridades britânicas” (Cardoso e Brignoli, 1983, p. 151).

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O início da Guerra dos Dez Anos, em 1868, marca um momento de inflexão no processo abolicionista, o qual se acelera a partir de então. Em 1869, os rebeldes cubanos que lutavam pela independência da Ilha, tendo em vista a pressão interna de suas próprias fileiras de soldados – compostas em grande parte por libertos – e a necessidade de apoio internacional para a causa, abandonam sua posição reticente no que toca ao fim da escravidão e propõem a emancipação imediata dos escravos. A libertação plena, no entanto, viu-se obstada pelo “Reglamento de Libertos”, o qual exigia trabalho forçado dos ex-escravos. Apenas com o abandono do “Reglamento”, no final de 1870, é que os rebeldes assumiram definitivamente a causa dos escravos (Scott, 1987, p. 458). Desse modo, conquanto de início limitados em seus ímpetos abolicionistas, os revolucionários cubanos foram compelidos pelas circunstâncias a se comprometerem cada vez mais com o fim da escravidão: [...] o impacto da insurreição sobre a escravidão ultrapassou a intenção inicial de seus líderes. A própria política rebelde foi pressionada a desenvolver-se em direção a um abolicionismo menos limitado, especialmente à medida que cresceu a participação de pessoas de cor livres e de libertos no exército. Ao mesmo tempo, os libertos aprenderam a aproveitar-se até mesmo de concessões parciais e oportunistas feitas pelos líderes rebeldes. (Ibid., p. 460)

A resposta do lado espanhol não tardou; em face dos interesses divergentes de abolicionistas cubanos – aos quais poderiam vir a se aliar os norte-americanos –, de um lado, e de senhores de engenho, de outro, as Cortes Espanholas aprovaram a Lei Moret, a qual apontava para uma “solução conciliatória” mediante a proposta de extinção gradual da escravidão. Os escravos acima de 60 anos e as crianças nascidas a partir de 1868 teriam sua liberdade assegurada, conquanto estas últimas ainda devessem permanecer sob a “proteção” de seus ex-donos até que se casassem ou completassem 21 anos de idade. Além disso, tal legislação tornava ilegal o açoite e libertava o escravo vítima comprovada de “crueldade excessiva”, 48

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estabelecendo também as “Juntas Protectoras de Libertos” para vigiar o cumprimento da lei. Previa, ademais, a emancipação indenizada ao final da Guerra (ibid., p. 461). Apesar das fraudes de variados tipos – notadamente no que diz respeito ao estabelecimento da idade e da data de nascimento dos escravos – e da obrigação do patronato até a maioridade para os recém-nascidos tornarem a lei muito menos efetiva do que poderia parecer à primeira vista, a existência de tal legislação, e a insurreição, constituíram poderoso estímulo para que os escravos buscassem concessões cada vez maiores. The environment of the 1870s, with the legal provision for the eventual end of slavery and the outbreak of rebellion in the east, encouraged some slaves to press for whatever concessions they could obtain. In doing so they made use of old techniques as well as new. (Scott, 1985, p. 74)

Essa situação foi deveras reforçada pelos acontecimentos posteriores ao fim da Guerra dos Dez Anos. O Pacto de Zanjón, de 1878, que pôs fim ao conflito, garantiu a liberdade a “todos os escravos e asiáticos que tivessem lutado pela independência ou contra ela” (Cardoso e Brignoli, 1983, p. 152). Tal fato, por certo, contribuiu para o crescimento da resistência passiva, das ameaças de sublevação e das fugas em massa dos escravos, como as ocorridas na Província de Santiago de Cuba nos anos finais da década de 1870, as quais obrigavam os plantadores a fazerem concessões, sob pena de perderem o controle sobre a mão de obra, mesmo contando com o apoio militar. É nesse contexto que [...] em 1879 o governo espanhol preparou uma lei abolicionista final, posta em vigor no dia 29 de julho de 1880. Ela decidia a abolição total, mas estendia o patronato a todos os novos libertos, em lugar de uma indenização pecuniária aos proprietários. Tal patronato terminaria em 1888. (Ibid., p. 153)

Sob a “retórica da tutelagem e proteção” (Scott, 1987, p. 466), pretendiase manter as relações fundamentais da escravidão, alterando-se apenas aspectos relacionados à sua aparência. Os ex-escravos, agora patrocinados, 49

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a par de alguns direitos alcançados, viam-se na obrigação de trabalhar por um salário simbólico, não podendo sair da propriedade de seu dono ou escolher seu patrão e sendo objeto de compra e venda como anteriormente. Todavia, os resultados finais dessa nova legislação parecem ter sido mais significativos do que os inicialmente pretendidos. As iniciativas dos patrocinados – as quais poderíamos caracterizar como um ponto intermediário entre a acomodação e a resistência11 –, se implicavam a aceitação da ordem legal escravista, exploravam as possibilidades de libertação colocadas pela nova ordem legal, notadamente no que diz respeito à autocompra e às denúncias de abusos, violências e ausência de cuidados legalmente previstos por parte do patrono.12 O patrocinato permitiu aos escravos influenciar o ritmo em que se alteravam as relações de produção fundamentais, até mesmo no que diz respeito ao seu conteúdo, chegandose à própria manumissão. Assim, tais expedientes permitiram que o número de escravos existentes em Cuba às vésperas do fim do patronato (1886) fosse pouco superior a 25.000, número quase oito vezes menor do que o existente nove anos antes. A verdade é que [...] em um contexto de hostilidade internacional para com a escravidão, de contínuos desafios ao domínio espanhol e crescente percepção das vítimas do escravismo de que o sistema não sobreviveria por muito tempo, a legislação não pôde refrear as pressões por mudanças mais rápidas. (Ibid., p. 484)

Destarte, com o declínio dos preços do açúcar no mercado internacional a partir de 1885 e o consequente rebaixamento da lucratividade da atividade açucareira, diluíram-se as resistências mais importantes ao 11 “They [os casos levados perante as Juntas] show the inadequacy of conceptualizing slave and patrocinado behavior in terms of ‘accomodation’ or ‘resistance’, and the necessity of analyzing that behavior in terms that reflect the complexity of patrocinados’ goals and strategies” (Scott, 1985, p. 141). 12 “O artigo 4 da lei de 1880 enumerava as obrigações do patrono: manter seus patrocinados, vesti-los, dar assistência aos doentes, pagar o estipêndio mensal estipulado, educar os menores, alimentar, vestir e dar assistência quando doentes aos filhos de seus patrocinados” (Scott, 1987, p. 473).

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fim da escravidão. Assim, em julho de 1886, o parlamento espanhol vota a autorização para a extinção do patronato e, no mês seguinte, a Junta Provincial de Agricultura, Indústria e Comércio de Havana concorda com tal resolução (ibid., p. 482). Em 7 de outubro de 1886, dois anos antes do prazo fixado pela lei de 1880, o patronato é suprimido, encerrando-se a escravidão na maior ilha das Antilhas.

6. A intervenção estrangeira no Paraguai No Paraguai, como sabido, o término do escravismo decorreu da intervenção de potências estrangeiras no âmbito da guerra na qual aquela nação viu-se derrotada pela Tríplice Aliança formada pelo Brasil, Argentina e Uruguai. Assim, coube ao Conde D’Eu, comandante das tropas brasileiras, libertar os últimos escravos existentes na nação perdedora. Materializou-se nesse caso, independentemente das motivações últimas das tropas de ocupação e de seus respectivos governos, a possibilidade, acima apontada, de superação da ordem escravista em virtude de intervenção militar externa.

7. O caso do Brasil: conjugação de fatores externos e internos O fim da escravidão no Brasil emergiu como resultado de diversos condicionantes internos e externos. Em primeiro lugar, cabe destacar a participação destacada da Inglaterra no que tange ao término do comércio de escravos. A desagregação do sistema escravista brasileiro inicia-se, de fato, com o fim do tráfico, em 1850, por conta, sobretudo, da pressão inglesa.13 As tentativas da Inglaterra 13 As discussões encaminhadas no Parlamento inglês para pôr termo ao tráfico de escravos iniciam-se em 1783, estabelecendo-se, por fim, a proibição do tráfico para os súditos britânicos a partir de 1807. Nos anos posteriores, seguiram-se Dinamarca, Portugal,

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em fazer cessar o fluxo de negros da África para a América – cujas motivações fundamentais parecem ter sido de ordem humanitária e econômica, não cabendo aqui a discussão a respeito da importância relativa de cada um desses fatores – foram decisivas para, no mínimo, antecipar tal decisão por parte do governo brasileiro, o qual resistiu obstinadamente às investidas inglesas contra o tráfico realizadas desde os Tratados de 1810. A incapacidade de reprodução vegetativa da população escrava, a menor taxa de natalidade vis-à-vis a taxa de mortalidade dos escravos condenava, inexoravelmente, o sistema escravista a seu término. Somou-se a esse fator o grande desenvolvimento da economia cafeeira, o que determinou uma significativa escassez relativa de mão de obra. É justamente na segunda metade do século XIX que a economia cafeeira apresenta suas mais expressivas taxas de crescimento. As condições favoráveis de solo e clima, a grande disponibilidade de terras para serem ocupadas e o expressivo crescimento da demanda mundial – norteamericana, sobretudo – permitiram consolidar de vez o café como nosso principal produto de exportação. Restava solucionar o problema da mão de obra. Vislumbradas as possibilidades restritas do comércio interno de escravos e da utilização da mão de obra livre nacional para atender à demanda ascendente de trabalhadores braçais, a opção fez-se em favor da política imigrantista. Opção essa favorecida pelas condições prevalecentes na Europa, as quais se responsabilizavam por expulsar enormes contingentes de trabalhadores. A constituição, por esse meio, do mercado de trabalho livre no Brasil, somada ao encarecimento do preço do escravo, permitiu tornar cada vez menos importante a mão de obra escrava, notadamente nas regiões cafeeiras mais dinâmicas, como o Oeste paulista. No entanto, alguns grupos de interesses econômicos fortemente fundados na escravidão ainda Chile, Suécia e Holanda. A extinção do tráfico por parte da Espanha demorou mais a efetivar-se, em virtude da sensibilidade da corte espanhola aos interesses econômicos dos proprietários de escravos, sobretudo cubanos e porto-riquenhos. Para maiores detalhes, vide Saco (1965, pp. 213-229).

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resistiam, obstaculizando e tornando muito lento o processo de abolição, que se arrastou ao longo das décadas de 60 a 80 sob a forma de concessões tópicas, como a Lei dos Sexagenários e do Ventre Livre, cuja efetividade mostrou-se muito discutível. Nesse sentido, houve uma divisão crescente no seio da elite dominante quanto à questão escravista. Segundo Beiguelman, a opção dos fazendeiros do Oeste paulista pelo abolicionismo faz-se tendo em vista a oposição dos fazendeiros escravistas, notadamente do Vale do Paraíba, à política imigrantista (Beiguelman, 1977).14 Isso obriga a tomada de posição dos primeiros em favor do fim da escravidão como forma de consolidação da política imigrantista. Além disso, também há de se considerar o desequilíbrio na proporção de escravos entre o Norte/Nordeste e o Sudeste. A reduzida magnitude do número de escravos contribuiu para que a resistência política ao fim da escravidão naquelas regiões fosse praticamente nula na década de 80. Tais fatos, somados à importância cada vez maior do movimento abolicionista e da resistência dos próprios escravos, mostraram-se fundamentais para dar um paradeiro ao escravismo no Brasil. Nesse sentido, cabe destacar a emergência de algumas pesquisas, nos últimos anos, que buscam fundamentar uma crítica a certa literatura tradicional, a qual atribui às elites do país papel exclusivo no processo abolicionista. Assim, para Azevedo (1987), é essencial considerar “as pequenas lutas disseminadas pelo cotidiano, não organizadas num todo coerente e dotado de ideário próprio, e quase sempre reprimidas e derrotadas” (p. 179), o “não quero dos escravos” levado adiante por meio da 14 Posição semelhante a essa pode ser encontrada no estudo de Slenes (1986), o qual, no entanto, discorda da tese que associa a postura antiabolicionista dos produtores do Vale do Paraíba a uma mentalidade pré-capitalista ou ao domínio do capital comercial sobre o processo produtivo. Esse autor procura demonstrar que os fazendeiros dessa região comportavam-se segundo os mesmos padrões de racionalidade de seus colegas do oeste paulista, apenas “se enganaram na década de 1870 na sua percepção da estabilidade futura da escravidão como instituição” (p. 142), sofrendo as consequências desse erro nos anos seguintes.

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intensificação dos crimes contra os senhores, fugas e revoltas nas fazendas. A partir disso, podemos entender melhor a própria radicalização do movimento abolicionista nas cidades e o crescimento da preocupação das elites em acelerar o fim da escravidão como estratégia para assegurar o controle social. Argumentação semelhante vamos encontrar em Castro (1995), para quem a ação das massas escravizadas “representaram o vetor que produziu mais fortemente as dimensões de surpresa e imprevisibilidade de todo o processo [abolicionista]” (p. 238), ensejando sua aceleração e mudança de rumos relativamente ao que pretendiam as elites do país.

8. Considerações finais As evidências empíricas aqui relembradas permitem, a nosso juízo, duas conclusões básicas. De uma parte, como verificado, as distintas maneiras assumidas pelo término da escravidão nas Américas cobrem, em larga medida, as formas hipotéticas aventadas na abertura destas notas. Por outro lado, tais formas de superação do escravismo moderno definem-se como elementos que, a par de outros, corroboram nossa tese respeitante à existência de uma peculiar forma de existência do capital – categoria essa não explorada por Marx – por nós caracterizada em trabalhos precedentes e à qual emprestamos a denominação capital escravistamercantil. Cumpre-nos, por fim e mais uma vez, chamar a atenção dos estudiosos de nossa história para a necessidade de explorarmos criticamente essa eventual forma de existência do capital e suas implicações no que tange à formação econômica e social do Brasil. Não poderíamos dar fecho a esta nota sem repisar que consideramos aqui, tão somente, as causas imediatas que levaram à superação do capital escravista-mercantil no mundo moderno. Permanece, pois, a exigência de nos empenharmos no estudo das causas de fundo que determinaram, por um lado, a sua emergência e, de outro, a sua superação. Sem o pleno 54

CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

conhecimento de tais fatores, essa categoria permanecerá, apenas, como mais uma tentativa de explicação lógica para uma larga fase da história do colonialismo e do escravismo modernos ainda não totalmente dominada pela historiografia. É este, pois, o repto que lançamos a todos os pesquisadores que, como nós, entendem estarmos em face de uma questão ainda não resolvida.

Referências bibliográficas AZEVEDO, Célia Maria Marinho de (1987). Onda negra, medo branco; o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra. BEIGUELMAN, Paula (1977). A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos. São Paulo, Pioneira. CARDOSO, Ciro Flamarion S. e BRIGNOLI, Héctor Pérez (1983). História econômica da América Latina. Rio de Janeiro, Graal. CASTRO, Hebe Maria Mattos de (1995). Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista: Brasil século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional. CRATON, Michael (1995). Reembaralhando as cartas: a transição da escravidão para outras formas de trabalho no Caribe britânico (c. 1790-1890). Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, v. 28 (out.), pp. 31-83 DONGHI, Tulio Halperin (1975). História da América Latina. 2 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. DRESCHER, Seymour (1977). “Capitalism and the decline of slavery: the British case in comparative perspective”. In: RUBIN, V. e TUDEN, A. (eds.). Comparative perspective on slavery in the New World plantation. Nova York, The New York Academy of Sciences. FONER, Eric (1988). Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Rio de Janeiro, Paz e Terra. HOLT, Thomas C. (1995). “A essência do contrato”: a articulação de raça, gênero e economia na política de emancipação britânica (1838-1866). Estudos AfroAsiáticos. Rio de Janeiro, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, v. 28 (out)., pp. 9-30, MARX, Carlos (1964). El Capital: crítica de la economía política. México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, v. II.

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MOORE Jr., Barrington (1975). As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. Lisboa/Santos, Edições Cosmos/Livraria Martins Fontes. SACO, J. A. (1965). Historia de la esclavitud. Buenos Aires, Andina. SCOTT, Rebecca J. (1985). Slave emancipation in Cuba: the transition to free labor, 1860-1899. Princeton, Princeton University Press. (1987). Abolição gradual e a dinâmica da emancipação dos escravos em Cuba, 1868-86. Estudos Econômicos, São Paulo, IPE-USP, v. 17 (set./dez.), n. 3, pp. 457-485. SLENES, Robert (1986). “Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888”. In: COSTA, Iraci del Nero da (org.). Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo, IPE, pp. 103-155. WILLIAMS, Eric (1975). Capitalismo e escravidão. Rio de Janeiro, Cia Editora Nacional.

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4. SOBRE A NÃO EXISTÊNCIA DE MODOS DE PRODUÇÃO COLONIAIS Iraci del Nero da Costa

A história moderna do Brasil tem início com sua integração ao mercado mundial sob a égide do capital comercial. O estabelecimento de uma economia planetária, assim como a existência da história universal, devem-se ao capital e se definem correlatamente à efetivação do modo de produção capitalista.1 A tentativa de dissociar aquela história deste processo redundará em formulações abstratas arbitrárias sem fundamento lógico ou teórico, as quais, portanto, nada terão de ver com o real, ou seja, com o objeto estudado. O escravismo aqui estabelecido não decorreu de um processo social endógeno,2 representou uma criação do capital escravista-mercantil, com mediação do capital comercial, visando à produção de mercadorias para o mercado mundial. Em face da necessidade de força de trabalho para atender a este objetivo e na ausência de um processo de formação do mercado de trabalho – como, por exemplo, o que se verificou na Europa como consequência da dissolução do feudalismo –, o escravismo impôs-se como a forma menos custosa e aparentemente inelutável de garantir a mão de obra cuja exploração se mostrava indispensável à utilização rentável das terras então recém-descobertas. Tal política, como sabido, foi a solução 1 O argumento de que a economia brasileira se estabeleceu em momento no qual o capitalismo ainda não havia se efetivado em todas suas dimensões na Europa é impertinente, pois ambos os processos são solidários, correlatos, pertencem à mesma realidade e suas determinações são comuns. 2 Não houve uma transição entre a nossa história antiga e a moderna; ocorreu uma ruptura radical, de sorte que não há liame algum entre uma e outra.

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encontrada pela Coroa para integrar interesses e recursos de particulares à tarefa de ocupar e povoar as áreas do Novo Mundo reclamadas por Portugal. Tendo em vista, ademais, o caráter imanentemente expansionista e subordinador do capitalismo, não nos parece incorreto concluir que nossa história moderna define-se como um demorado processo de adequação desta parte do planeta ao capital e ao capitalismo. Nossa sociedade, posta pelo capital, empreendeu, pois, desde seu nascedouro, um longo percurso do qual resultou, inexoravelmente, o pleno estabelecimento do modo de produção capitalista no Brasil.3 Evidentemente, esse processo não se deu de maneira linear; assumiu, sim, formas contraditórias, por vezes inacabadas e com contornos indefinidos – verdadeiras aberrações para quem as analisar com base nos modelos que se apresentaram em toda sua inteireza apenas em alguns países da Europa ocidental. A nosso juízo, só há uma maneira de apreender tal processo: cumpre assimilá-lo enquanto tal, vale dizer, como processo histórico concretamente dado. Esse o programa que nos cabe desenvolver; embora dos mais complexos, podemos sumariá-lo com poucas palavras: é preciso descrever como se deu o processo de “formação / incorporação / adequação” da 3 Interessa, aqui, ressaltar o sentido de alguns dos termos que estamos a utilizar: a) o capital é o sujeito desse processo; b) como observado acima, esse processo é correlato ao estabelecimento (efetivação) do modo de produção capitalista na Europa ocidental; o escravismo moderno resolve-se no capitalismo, ou seja, no estabelecimento das relações de produção capitalistas; essa resolução, que é a culminância daquele processo, dá-se segundo processos históricos concretos, vale dizer, embora seja determinada pelo capital e pelo modo de produção capitalista, seus condicionantes imediatos são de variada ordem: econômicos, políticos, religiosos, formação de massa crítica de população, luta dos próprios escravos, compensações políticas e/ou econômicas entre nações ou entre nações e suas áreas de influência, disponibilidade para emigração de populações excedentes, solidariedade com os cativos (baseada no humanitarismo) a qual também tem dimensões políticas, etc.

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SOBRE A NÃO EXISTÊNCIA DE MODOS DE PRODUÇÃO COLONIAIS

sociedade brasileira “segundo o/ao” modo de produção capitalista, o qual se deve tomar, a um tempo, como causativo e resultante do aludido processo.4 Se nossas ponderações estiverem corretas, evidencia-se a ociosidade implicada em se tentar identificar o(s) modo(s) ou estabelecer um modo ou modos de produção específicos para o período colonial brasileiro ou para o lapso de tempo que se estende do século XVI à abolição da escravatura. Tais exercícios, como avançamos na abertura desta nota, são meras abstrações arbitrárias que não nos aproximam do objeto estudado; a esse respeito é oportuno lembrar as soluções divergentes propostas pelos diversos historiadores que se entregaram a tais cometimentos. Tenha-se presente que não estamos a advogar a impossibilidade de se apreender nosso passado com base nas categorias expostas por Marx. Ao contrário, é visando a aplicá-las corretamente que empreendemos a crítica à utilização, a nosso ver imprópria, do conceito modo de produção. A impropriedade está, justamente, em conceber abstrata e arbitrariamente o conjunto de categorias “modos de produção”. Segundo nossa visão, os distintos modos de produção identificados por Marx devem ser entendidos como um continuum histórico-lógico (próprio da Europa ocidental) do qual o capitalismo é o ponto culminante, e o é porque, a partir de sua efetivação, a história, além de se fazer universal, conheceu uma mudança qualitativa, de sorte que se tornou impossível dissociar as distintas sociedades ou áreas do planeta – a solidariedade que as une é dada e explicada pelo capital e pelo capitalismo e só será superada quando o for o próprio capitalismo. Disso se infere, em primeiro, a impossibilidade de emparelharmos os distintos modos de produção – se o fizermos estaremos a operar uma abstração teoricamente infundada porque sem correspondência com o movimento do real (do objeto estudado), tratando-se, pois, de um mero 4 Evidentemente, não estamos a negar a vigência de regularidades no correr desse processo; o que arguimos é a existência de modo(s) de produção colonial(ais).

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raciocínio arbitrário –, em segundo, a impertinência de “procurarmos” novos modos de produção depois de fundada, pelo capitalismo, a história universal. Posta esta e, correlatamente, o mercado mundial, persiste apenas o modo de produção capitalista – que a tudo ilumina, parafraseando a imagem clássica. Segundo nossa leitura de Marx, a superação “deste” modo de produção significa a superação da própria categoria, a pré-história devém história; o homem, até então pressuposto, devém sujeito.

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5. A FORMAÇÃO DAS ECONOMIAS PERIFÉRICAS SOB A ÓTICA DA HISTÓRIA ECONÔMICA GERAL Iraci del Nero da Costa

Como sabido, o desenvolvimento do capitalismo na Europa Ocidental acarretou o estabelecimento de um sistema socioeconômico planetário composto por subsistemas cujas características ficam realçadas quando atentamos, concomitantemente, para o processo de generalização da produção de mercadorias e para as formas mediante as quais tal produção se processava. Assim, o que dá unidade ao período pós-feudal – dos séculos XIII, XIV em diante, digamos – é o processo de universalização da criação/produção de mercadorias. Num primeiro instante, deu-se, sob a égide do capital comercial e do capital usurário, a generalização da criação de mercadorias no processo de circulação; num segundo momento, ocorreu, já com base na transformação da própria força de trabalho em mercadoria, a generalização da produção de mercadorias dirigida aos mercados internos e/ou ao mercado mundial. Ademais, além da forma de produção típica do capital industrial, várias outras – sob o influxo do próprio capitalismo nascente que posteriormente as subsumiria – definiram-se em distintas partes do globo. A produção colonial calcada no capital escravista-mercantil representou uma das formas de se produzir mercadorias em larga escala para os mercados mundiais; outra forma, baseada no trabalho servil e/ou na exploração dos servos mediante a imposição de tributos de variado tipo, ter-se-ia observado no Leste europeu; no Oriente, pode ter ocorrido uma transformação acelerada de estoques, de há muito acumulados como valores de uso, e de excedentes provenientes do artesanato e da agricultura em mercadorias destinadas, sobretudo, às trocas com a Europa Ocidental cuja expansão ganhou rapidez e dimensão maior a partir de meados do 61

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século XIV; na África, a par de outros bens de exportação, “produzia-se” a mercadoria mão de obra escrava. Enfim, as disponibilidades locais de recursos e fatores, aliadas às condições econômicas, demográficas, políticas, institucionais e ideológicas, propiciaram a emergência de distintas formas de produção em larga escala de mercadorias para os mercados internos e/ou externos. Se as proposições acima colocadas estiverem corretas, tem-se de reconhecer, na consideração da gênese e desenvolvimento do mundo moderno, o papel preeminente desempenhado pelo alargamento do comércio, o qual, no caso da Europa Ocidental, enraíza-se na sociedade feudal e contribuiu decisivamente para a superação do feudalismo e para a emergência do capitalismo, o qual, por seu turno, desde seu nascedouro, atuou como poderoso impulsor do comércio, vindo mesmo, rapidamente, a subsumir tanto o capital comercial como o usurário. Posto, pois, o capitalismo, passa ele a subordinar, condicionar e determinar tudo o mais; como afirmei em outro texto, a partir de então persiste apenas o modo de produção capitalista. Em suma, observou-se, em escala planetária, um processo genérico – produção de mercadorias para os mercados internos e externos – que, embora tenha vindo a se subordinar ao capital industrial, conheceu, basicamente em decorrência de circunstâncias tópicas concretas, distintas formas mediante as quais, paralelamente à que se distingue como própria do capitalismo, se efetuava a aludida produção. Essas formas paralelas não decorreram da lógica de funcionamento do capital industrial, não dimanaram de sua essência e não se impuseram, portanto, como necessárias, mas apresentaram-se, tão somente, como soluções datadas, concretamente dadas, por meio das quais se deu a incorporação/subordinação, aos interesses do capitalismo que se instalava na Europa Ocidental, dos espaços econômicos e geográficos passíveis de ocupação. No correr do tempo, viram-se elas, pois, descartadas, pois 62

A FORMAÇÃO DAS ECONOMIAS PERIFÉRICAS SOB A ÓTICA DA HISTÓRIA ECONÔMICA GERAL

mostraram-se, desde sempre – como anotado por Marx –, incompatíveis com o desenvolvimento do capitalismo e, por consequência, com a relação de assalariamento que lhe é peculiar. Como se observa, não estamos em face da proliferação de novos modos de produção, mas sim diante de um processo de enquadramento de todo o planeta pelo capital industrial e pelo capitalismo que, definitivamente, haviam-se assenhoreado da Europa Ocidental, processo esse que, eventualmente – como no caso do Brasil –, estendeu-se por vários séculos. As novas áreas escravistas – como as do Novo Mundo, por exemplo – dependiam, para sua reprodução, como anotado por Marx, das economias centrais; além disso, caso tais vínculos não existissem, essas sociedades situadas na periferia do sistema assumiriam uma feição muito distinta da que apresentavam: La esclavitud de los negros – una esclavitud puramente industrial –, que desaparece sin más y es incompatible con el desarrolo de la sociedad burguesa, presupone la existencia de tal sociedad: si junto a esa esclavitud no existieran otros estados libres con trabajo asalariado, todas las condiciones sociales en los estados esclavistas asumirían formas precivilizadas. (Grifos de Marx, 1980, v. 1, p. 159)

Ademais, se as economias estabelecidas perifericamente não gozavam de autonomia plena, é forçoso reconhecer, de outra parte, que não se definiam como simples apêndices ou projeções das economias e sociedades centrais. Nesse sentido, gozavam de autonomia relativa. Assim, à medida que nelas se desenvolveram empreendimentos visando a suprir, ainda que parcialmente, o mercado interno, ocorreu a diversificação dos processos de acumulação cuja dinâmica já não aparecia como mero reflexo imediato das condições imperantes externamente, mas atendia, crescentemente, aos movimentos gerados internamente. Nesse quadro de dependência e autonomia relativos diversifica-se a produção e desenvolvem-se as populações dessas áreas, incluídos aí os expressivos contingentes de livres despossuídos. Nesse pano de fundo, além disso, estruturam-se os mercados regionais e dá-se a emergência de 63

O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

interesses políticos e econômicos específicos. No correr do tempo, ganham vida, pois, os elementos constitutivos das nações que devem sua origem ao rompimento do antigo sistema colonial. Nações estas nas quais, sem a necessidade da ocorrência de processos similares às revoluções burguesas clássicas (como a Inglesa e a Francesa) e de maneira variada, dar-se-ão, ainda no século XIX, duas mudanças correlatas: a transição do trabalho escravo para o assalariado e a transformação do capital escravistamercantil em industrial. Aliás, em todos os quadrantes essa segunda metade do século XIX marca-se por profundas mudanças promovidas pelos interesses do capital: a África é fatiada e uma nova era colonial tem início, a Índia passa ao controle direto da Coroa, a China vê-se obrigada a crescentes concessões aos britânicos que são secundados pela Alemanha, França, EUA, Rússia e Japão; este último é obrigado a abrir-se ao comércio com o Ocidente e procura modernizar-se. A América Latina, de resto, também vê-se presa do imperialismo e do capital financeiro. Ao abrir-se o século XX, inconteste, o capitalismo domina sobranceiro, sendo verrumado, tão somente, por suas próprias contradições. Aí ficam, pois, esboçados em termos taquigráficos alguns processos históricos dos quais se ocupam, entre outras, as disciplinas acadêmicas dedicadas à história econômica geral e as votadas à formação econômica e social do Brasil. Ao elaborarmos tal súmula procuramos colocar segundo encadeamento cronológico e lógico algumas teses e ideias controversas, para elas e para a necessidade de discuti-las com vagar chamamos, pois, a atenção do leitor. Vejamo-las enumeradas. A contar dos séculos XIII, XIV, a história econômica da humanidade viu-se norteada pelo (1) desenvolvimento do comércio e das formas mercadoria, dinheiro e capital. Em decorrência do alargamento comercial (2) definiram-se várias formas de se produzir para os mercados locais e externos, incluindo-se aí o escravismo “industrial”, ou seja, produtor de mais-valia, o qual, (3) sob a égide do capital escravista-mercantil possibilitou a integração do Novo Mundo à economia europeia e mundial. 64

A FORMAÇÃO DAS ECONOMIAS PERIFÉRICAS SOB A ÓTICA DA HISTÓRIA ECONÔMICA GERAL

(4) Nessas áreas não se definiram novos modos de produção, pois elas conheceram um longo período de transição que culminou – (5) dado o próprio amadurecimento da sociedade burguesa em escala local e mundial – com a superação, (6) sem a necessidade de “revoluções burguesas”, do escravismo. Tais áreas periféricas mostraram-se (7) estritamente dependentes das economias centrais, sem a existência das quais não poderiam se reproduzir; não obstante, (8) elas conheceram uma autonomia relativa na medida em que nelas se desenvolveram atividades econômicas voltadas para seus mercados internos; (9) assim, nem eram totalmente autônomas, nem se comportaram como meros apêndices das economias e sociedades centrais. Impõem-se, assim, duas conclusões maiores: (10) a história econômica deve considerar o estudo da gênese e amadurecimento do capitalismo como um todo orgânico do qual faz parte a emergência de áreas periféricas como as situadas no Novo Mundo, incluindo-se aí, obviamente, o estudo da formação econômica e social do Brasil; ademais, na medida em que na periferia não se estabeleceram novos modos de produção, (11) seu estudo tem de se pautar pela compreensão dos processos históricos concretos mediante os quais tais áreas foram incorporadas à economia mundial.

Referência bibliográfica MARX, Karl (1980). Grundrisse. México, D.F., Siglo Veintiuno.

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6. ALGUMAS OPINIÕES SOBRE A CATEGORIA “MODO DE PRODUÇÃO” Iraci del Nero da Costa

Neste último quartel de século, deixei registradas, de maneira taquigráfica e nem sempre clara e completa, duas formulações sobre os modos de produção identificados por Marx.1 A primeira diz que tais categorias devem ser vistas como integrantes de um continuum histórico-lógico próprio da Europa ocidental; a segunda, conclusiva, reza: daí se infere a impossibilidade de emparelharmos os distintos modos de produção. Ao retomar essas formulações tento, tão somente, torná-las plenamente inteligíveis; para tanto, explicito abaixo algumas opiniões, ou meras intuições, que me levaram a enunciá-las. Segundo penso, dizer que os modos de produção integram um continuum significa afirmar que um decorreu do outro, que se acham entranhados, imbricados; tudo se passa como se considerássemos a mesma pessoa em momentos distintos de sua vida, de tal sorte que, embora sendo a mesma pessoa, ela se apresentasse em cada um daqueles momentos como um todo uno e único, substantivamente distinto do que foi e do que será, mas, ao mesmo tempo, definindo-se como “resultante” (ou fruto) do que foi e “fundador” (ou embrião) do que será. Os modos de produção apresentar-se-iam, pois, como integrantes de um todo que vai além de cada um deles tomado isoladamente, que vai além de uma mera justaposição, donde ser impossível destacá-los desse 1 Temos caracterizados, para a Europa ocidental, os seguintes modos de produção: comunidade primitiva, escravista, feudal e capitalista. Acrescentando o modo de produção socialista, teremos o rol completo dos modos de produção aos quais me refiro nestas notas. Permito-me, ainda, empregar os termos escravismo, feudalismo e capitalismo como sinônimos dos modos de produção correlatos.

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

todo e colocá-los “um ao lado do outro” a fim de confrontá-los, vale dizer, estabelecer comparações entre coisas que seriam constituídas de substâncias idênticas ou equivalentes e que, em última instância e excluído o plano formal, apresentariam estruturas similares. Não, tal operação é-nos defesa, pois aceitar o pretendido continuum implica, logicamente, aceitar que os modos de produção não podem ser emparelhados, não se ombreiam, não apresentam o mesmo status, não são equivalentes, significa acatar, como fato, não estarmos em face de uma categoria, fundamento ou conteúdo denominado modo de produção que, no plano empírico, apresentar-se-ia sob várias formas (escravista, feudal, etc.). Enfim, significa abonar a ideia de que cada modo de produção representa, do ponto de vista teórico, um corte lógico num processo histórico concreto, contínuo e solidário. Já do ponto de vista empírico, acrescento eu, cada modo de produção favorece em maior ou menor grau o processo de desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital.2 Deixemos esta última ideia para mais adiante e centremo-nos em outras implicações que decorreriam do fato de tomarmos como verossímil o aludido continuum. Assim, aceito tal continuum, a gênese de cada modo de produção pode ser única, específica, sendo impossível, portanto, confundir os constituintes genéticos – elementos constitutivos bem como as inter-relações que os vinculam – de um modo de produção com os de outro. Ademais, 2 Como anotado por Marx, o impacto do alargamento da mercantilização levava, no escravismo, a uma pressão maior sobre o escravo: “En el mundo antiguo, los efectos del comercio y el desarrollo del capital comercial se traducen siempre en la economía esclavista; y según el punto de partida, conducen simplemente a la transformación de un sistema esclavista patriarcal, encaminado a la producción de medios directos de subsistencia, en un sistema orientado hacia la producción de plusvalía. En el mundo moderno, por el contrario, desembocan en el régimen capitalista de producción. De donde se sigue que estos resultados se hallaban condicionados, además, por factores muy distintos, ajenos al desarrollo del mismo capital comercial” (1965, p. 321). Já no âmbito do feudalismo, o aludido alargamento podia resultar tanto no aumento como no afrouxamento das pressões imediatamente exercidas sobre os servos. Como se vê – ainda que apenas potencialmente –, em termos de mudança, em termos de avanço do processo de universalização da mercantilização, o feudalismo coloca-se em plano “superior” ao do escravismo, mostrando-se, pois, menos resistente ao aludido alargamento.

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ALGUMAS OPINIÕES SOBRE A CATEGORIA “MODO DE PRODUÇÃO”

na medida em que não tem de haver, necessariamente, apenas um padrão genético, torna-se impossível o estabelecimento de uma lei, ou conjunto de regularidades, que explique, de maneira abrangente e genérica, a passagem de um para outro modo de produção, ou seja, é impossível formular uma teoria geral das revoluções. Além disso, o próprio funcionamento interno, bem como a eventual “dinâmica” ou “rigidez” de cada modo de produção, não são passíveis de equacionamento único, pois poderão ser peculiares a cada um deles. Logo, tanto pela sua gênese como pelo seu “funcionamento”, os modos de produção podem diferir entre si.3 Disso se conclui que eles não são isonômicos, vale dizer, não existe um conjunto único de leis ou regularidades que os reja. Mas não lhes falta só a isonomia, pois, entre os modos de produção, também não existe homologia. Ao dizê-los não homólogos estamos a afirmar que não tem de haver, necessariamente, correspondência entre todos e cada um dos elementos constitutivos dos diversos modos de produção. Além disso, muitos de tais elementos não se repetem em modos de produção diferentes: uns por serem específicos de dado modo de produção, outros porque, embora aparentemente iguais, desempenham funções e/ou papéis únicos em cada um dos diferentes modos de produção. Assim, como sabido, não existe no escravismo ou no feudalismo um sucedâneo da “lei do valor”4 vigente no capitalismo. Da mesma sorte, enquanto no capitalismo a concorrência econômica leva ao revolucionamento das técnicas e se define como um elemento endógeno desse modo de produção, no feudalismo, no que diz respeito ao relacionamento entre senhores, ela não se fazia presente e o “desenvolvimento das forças produtivas” dava-se independentemente do funcionamento do modo de produção, definindo-se, segundo alguns, como elemento exógeno, estranho ao feudalismo. Como exemplo de elemento presente em todos os 3 Justamente essas duas questões colocaram-se no centro da polêmica desenvolvida em torno das teses de M. Dobb e P. M. Sweezy. 4 Ou seja, a determinação da magnitude do valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário.

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

modos de produção, mas a desempenhar papéis absolutamente distintos, podemos tomar os bens pertencentes ao trabalhador direto: o escravo – ele próprio uma propriedade de terceiros – detinha uns poucos bens pessoais e, eventualmente, um pecúlio, muitas vezes não reconhecido legalmente; já o servo, além do conjunto de bens pessoais, era proprietário, excluída a terra, dos meios de produção básicos necessários à sua manutenção e à reprodução de suas condições de trabalho, estando-lhe aberta, ainda, a possibilidade de acumular;5 o proletário moderno, por seu turno, além de possuir bens pessoais, detém a propriedade plena de sua força de trabalho. A simples listagem aqui efetuada basta para evidenciar quão distintas são as funções desempenhadas pelos bens possuídos pelo trabalhador direto em distintos modos de produção, patenteando-se, pois, palmarmente, a pretendida ausência de homologia. A esta altura parece-me oportuna a retomada de duas ideias que nos propiciarão explicitar, em sequência, algumas características fundamentais do modo de produção capitalista. A primeira acha-se logo acima: “do ponto de vista empírico, cada modo de produção favorece em maior ou menor grau o processo de desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital”. Já a segunda, colho num escrito por mim redigido há vários lustros: [...] os distintos modos de produção identificados por Marx devem ser entendidos como um continuum... do qual o capitalismo é o ponto culminante, e o é porque, a partir de sua efetivação, a história, além de se fazer universal, conheceu uma mudança qualitativa, de sorte que se tornou impossível dissociar as distintas sociedades ou áreas do planeta – a solidariedade que as une é dada e explicada pelo capital e pelo capitalismo. (Costa, 1985, p. 3)

e só será superada quando o for o próprio capitalismo. Vejamos, pois, como se relacionam essas duas proposições. 5 Veja-se, a respeito dessa possibilidade, os capítulos de O Capital dedicados à discussão da renda da terra.

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ALGUMAS OPINIÕES SOBRE A CATEGORIA “MODO DE PRODUÇÃO”

Consideremos, inicialmente, a afirmação “o capitalismo é o ponto culminante...”: dela podemos derivar duas vertentes. A primeira aponta, sobretudo, para o “passado” – o que teria levado o capitalismo a aparecer como ponto culminante? A segunda dirige-se ao “futuro”: é possível “observar” esse ponto culminante com base no que dele decorreu? Para responder a essas questões servir-me-ei de recortes que efetuo em artigos já publicados. Quanto ao “passado” temos: O capitalismo é a forma superior e derradeira da existência natural da sociabilidade humana. Superior porque nele as formas mercadoria, dinheiro e capital chegam ao seu pleno desenvolvimento; os homens definem-se como simples portadores de relações: o capitalista personifica o capital, o trabalhador a força de trabalho reduzida à condição de mercadoria. O capital, por seu turno, traz implícitos os pressupostos de sua reprodução e acumulação: assim, enquanto os homens se sujeitarem à condição de portadores de relações, o modo de produção capitalista recolocar-se-á automática e autonomamente. Natural porque até então os homens restringiram-se, tão somente, a acomodar-se e amoldar-se às circunstâncias dadas. Nesse sentido, pode-se dizer que a história fez-se por e mediante eles, mas não foi posta pelos homens, não podendo, pois, ser considerada como criação efetivamente humana, vale dizer, como produto resultante da ação consciente do homem. Segundo a perspectiva marxista, tal forma de existência só será superada pela ação do espírito, da consciência, votada à negação da propriedade privada sobre os meios de produção, base objetiva sobre a qual se assenta aquela forma de sociabilidade. (Motta e Costa, 1995, p. 20)

E mais: Longo período da vida econômica da humanidade pode ser entendido, também, como a história do desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital. Esse desenvolvimento nada mais é que o processo do qual resulta a universalização das ditas formas. Mercadoria, dinheiro e capital, relações sociais que são, chegam à sua culminância, vale dizer, universalizam-se, objetiva e absolutamente, com a emergência da mercadoria

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força de trabalho enquanto propriedade absoluta do trabalhador direto (...) Em suma, a emergência da mercadoria força de trabalho funda o modo de produção capitalista, possibilitando a transformação do trabalhador livre em assalariado, do dinheiro em capital industrial e do detentor dos meios de produção – e/ou da capacidade de mobilizá-los, mediante a propriedade de dinheiro ou outros haveres – em capitalista. (Motta e Costa, 1997, pp. 21-22)

Com respeito ao “futuro”, é preciso considerar que, depois de estabelecido em um espaço geográfico considerável, o modo de produção capitalista – diferentemente do que se dá no âmbito do escravismo e do feudalismo – passa a expandir-se, “exportando-se” a si mesmo (assim como “exporta” as distintas formas de capital), moldando, destarte, segundo sua natureza interna, o “mundo” (e aqui falamos efetivamente de todo o planeta) com o qual se defronta; na verdade, ele repõe, recria, as várias economias, sociedades, comunidades e áreas com as quais se depara, as quais, embora não assumam, imediatamente, feição estritamente capitalista, ver-se-ão, em escala crescente, condicionadas e determinadas pelo capital e pelo capitalismo. Daí haver eu afirmado, no trecho reproduzido acima: [...] o capitalismo é o ponto culminante, e o é porque, a partir de sua efetivação, a história, além de se fazer universal, conheceu uma mudança qualitativa, de sorte que se tornou impossível dissociar as distintas sociedades ou áreas do planeta – a solidariedade que as une é dada e explicada pelo capital e pelo capitalismo. (Costa, 1985, p. 3)

Cumpre notar, por fim, que, a meu juízo, “tal solidariedade só será superada quando o for o próprio capitalismo” porque [...] enquanto os homens se sujeitarem à condição de portadores de relações, o modo de produção capitalista recolocar-se-á automática e autonomamente. (...) tal forma de existência [o capitalismo] só será superada pela ação do espírito, da consciência, votada à negação da propriedade privada sobre os meios de produção, base objetiva sobre a qual se assenta aquela forma de sociabilidade [o capitalismo]. (Ibid.)

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ALGUMAS OPINIÕES SOBRE A CATEGORIA “MODO DE PRODUÇÃO”

Como se observa, ser-me-ia impossível admitir a existência de modos de produção coloniais. Justificam-se, assim, estas palavras: Tendo em vista... o caráter imanentemente expansionista e subordinador do capitalismo, não nos parece incorreto concluir que nossa história moderna [a história do Brasil a contar de 1500] define-se como um demorado processo de adequação desta parte do planeta ao capital e ao capitalismo. Nossa sociedade, posta pelo capital, empreendeu, pois, desde seu nascedouro, um longo percurso do qual resultou, inexoravelmente, o pleno estabelecimento do modo de produção capitalista no Brasil. Evidentemente, esse processo não se deu de maneira linear, assumiu, sim, formas contraditórias, por vezes inacabadas e com contornos indefinidos – verdadeiros aleijões para quem as analisar a partir dos modelos que se apresentaram em toda sua inteireza apenas em alguns países da Europa ocidental. A nosso juízo, só há uma maneira de apreender tal processo: cumpre assimilá-lo enquanto tal, vale dizer, como processo histórico concretamente dado... é preciso descrever como se deu o processo de ‘formação/incorporação/adequação’ da sociedade brasileira ‘segundo o/ao’ modo de produção capitalista, o qual se deve tomar, a um tempo, como causativo e resultante do aludido processo. (Ibid., p. 2)

Restam explicadas também, creio, as conclusões: Disto se infere... a impertinência de “procurarmos” novos modos de produção depois de fundada, pelo capitalismo, a história universal. Posta esta e, correlatamente, o mercado mundial, persiste, apenas, o modo de produção capitalista – que a tudo ilumina, parafraseando a imagem clássica. Segundo nossa leitura de Marx, a superação “deste” modo de produção significa a superação da própria categoria, a pré-história devém história; o homem, até então pressuposto, devém sujeito. (Ibid., p. 3)

Ao dizer que restará superada a “própria categoria” e ao propor que o homem “devém sujeito” estou a apontar uma outra distinção entre os modos de produção, qual seja, a do papel da “consciência” na gênese de cada um deles. Essa distinção foi avançada em citação colocada acima, retornemos a ela: 73

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O capitalismo é a forma superior e derradeira da existência natural da sociabilidade humana. (...) Natural porque até então os homens restringiram-se, tão somente, a acomodar-se e amoldar-se às circunstâncias dadas. Neste sentido pode-se dizer que a história fez-se por e mediante eles, mas não foi posta pelos homens, não podendo, pois, ser considerada como criação efetivamente humana, vale dizer, como produto resultante da ação consciente do homem. Segundo a perspectiva marxista, tal forma de existência só será superada pela ação do espírito, da consciência... (Motta e Costa, 1995, p. 20)

Além de remeter o leitor para o artigo ora citado, transcrevo abaixo um longo trecho colhido em G. Lukács no qual o autor – a meu ver em termos definitivos – trata da questão aqui aventada: Pues las clases que en anteriores sociedades se vieron llamadas al dominio y, por lo tanto, fueron capaces de realizar revoluciones victoriosas, se encontraron subjetivamente ante una tarea mucho más fácil, a causa precisamente de la inadecuación de su consciencia de clase respecto de la estructura económica objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de su propia función en el proceso del desarrollo social. Les bastó con imponer sus intereses inmediatos mediante la fuerza de que disponían, y el sentido social de sus acciones les quedó siempre oculto, entregado a la ‘astucia de la razón’ en el proceso social determinado. Pero como el proletariado se encuentra en la historia con la tarea de una transformación consciente de la sociedad, tiene que producirse en su consciencia de clase la contradicción dialéctica entre el insterés inmediato y la meta última, entre el momento singular y el todo. Pues el momento singular del proceso, la situación concreta con sus concretas exigencias, es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad, a la sociedade capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y a su estructura económica. Y no se hace revolucionaria más que si se inserta en la concepción total del proceso, cuando se introduce con referencia al objetivo último, remitiendo concreta y conscientemente más allá de la sociedad capitalista. Pero eso significa, subjetivamente considerado, para la consciencia de clase del proletariado, que la relación dialética entre el interés inmediato y la acción objetiva orientada al todo de la sociedad queda situada en la consciencia del proletariado mismo, en vez de desarrollarse, como ocurrió con todas las clases anteriores, más allá de la consciencia (atribuible), como proceso puramente

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objetivo. La victoria revolucionaria del proletariado no es pues, como para las demás clases anteriores, la realización inmediata del ser socialmente dado de la clase, sino – como ya lo vio y formuló agudamente el joven Marx – la autosuperación de la clase. El Manifiesto Comunista formula esa diferencia del siguiente modo: ‘Todas las clases anteriores que conquistaron para sí el dominio intentaron asegurar la posición que ja havian logrado en la vida sometiendo la sociedad entera a las condiciones de su logro. Los proletarios no pueden conquistar para sí las fuerzas sociales de producción más que suprimiendo su propio anterior modo de apropiación y, con ello, todo modo de apropiación existido hasta ahora. Esta dialéctica interna de la situación de clase dificulta, por un lado, el desarrollo de la consciencia de clase proletaria a diferencia del caso de la burguesía, que en el despliegue de su consciencia de clase pudo quedarse en la superficie de los fenómenos, detenida en la empiria más abstracta y grosera, mientras que para el proletariao, y ya en estadios muy primitivos de su desarrollo, el rebasiamiento de lo inmediatamente dado fue una imposición básica de su lucha de clases. (1975, pp. 77-78)

Aí ficam, pois, algumas opiniões, muitas delas meramente impressionistas e intuitivas, sobre a categoria em tela. Não tenho dúvidas, em breve o conjunto da obra de Hegel e Marx voltará a ser objeto de intenso debate. Devemos estar preparados para ele, tentando armar-nos, também, com nossa imaginação e espírito inventivo, pois, se muito resta por aprender com esses mestres, muito ainda terá de ser feito no plano da criação teórica.

Referências bibliográficas COSTA, Iraci del Nero da (1985). Nota sobre a não existência de modos de produção coloniais. São Paulo, IPE-FEA/USP (mimeo). LUKÁCS, Georg (1975). Historia y consciencia de clase. Barcelona, Grijalbo (Instrumentos, 1). MARX, Carlos (1965). El capital: crítica de la economía política. México, D.F., Fondo de Cultura Económica, vol. III. MOTTA, José Flávio e COSTA, Iraci del Nero da (1995). O fim da história, o início da história. Informações FIPE. São Paulo, n. 172, pp. 20-23. (1997). A emergência da mercadoria força de trabalho: algumas implicações. Informações FIPE. São Paulo, n. 198, pp. 21-23.

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7. REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR Iraci del Nero da Costa1

1. Introdução Com a formulação do conceito sentido da colonização, Caio Prado Júnior procurou evidenciar o escopo maior do colonizador (seus objetivos últimos) e identificar o consequente caráter dependente e reflexo da economia brasileira com respeito aos mercados e interesses externos: [...] explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos. [...] Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco... (...) e em seguida café, para o comércio europeu. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. [...] O “sentido” da evolução brasileira que é o que estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização. (Prado Júnior, 1987, pp. 31-32);

mais adiante, acrescenta: Da economia brasileira, em suma, e é o que devemos levar daqui, o que se destaca e lhe serve de característica fundamental é: de um lado, na sua estrutura, um organismo meramente produtor, e constituído só para isto: um pequeno número de empresários e dirigentes que senhoreiam tudo, e 1 O autor agradece as valiosas sugestões e críticas do professor José Flávio Motta.

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a grande massa da população que lhe serve de mão de obra. Doutro lado, no funcionamento, um fornecedor do comércio internacional dos gêneros que este reclama e de que ela dispõe. Finalmente, na sua evolução, e como consequência daquelas feições, a exploração extensiva e simplesmente especuladora, instável no tempo e no espaço, dos recursos naturais do país. (Ibid., p. 129)

Buscou, ademais, estabelecer os elementos estruturais básicos sobre os quais ocorreram a ocupação e a valorização do território colonial, obedecido aquele sentido; encontrou-os na grande propriedade, na monocultura e na exploração do trabalho escravo. Delineou-nos, pois, um quadro no qual, colocado em face de abundantes terras virgens (caráter extensivo e predatório das atividades), o colonizador ávido de lucros organizou a produção em larga escala (grande propriedade) de bens tropicais que garantissem rentabilidade máxima (monocultura), dada a inexistência de uma sociedade pretérita que pudesse fornecer mão de obra juridicamente livre e despossuída de meios de produção (escravismo). Por fim, Na agricultura colonial brasileira é preciso distinguir dois setores cujo caráter é inteiramente diverso. (...) De um lado, a grande lavoura, seja ela do açúcar, do algodão ou de alguns outros gêneros de menos importância, que se destinam todos ao comércio exterior. Doutro, a agricultura de “subsistência”, isto é, produtora de gêneros destinados à manutenção da população do país, ao consumo interno. (...) A grande lavoura representa o nervo da agricultura colonial; a produção dos gêneros de consumo interno – a mandioca, o milho, o feijão, que são os principais – foi um apêndice dela, de expressão puramente subsidiária. (Ibid., pp. 142-143)

A nosso ver, é esta, em suma, a essência do modelo interpretativo proposto por Caio Prado Júnior; a esse indiscutível contributo à compreensão de nossa formação histórica devemos, como sabido, um grande número de estudos nele inspirados e dos quais resultou, em grande parte, o avanço observado nas últimas décadas com respeito ao conhecimento de nosso passado econômico, político e social. 78

REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

É, pois, a partir do reconhecimento da importância do modelo de Caio Prado Júnior que nos abalançamos a questioná-lo e a propor algumas soluções com as quais visamos a repensá-lo de sorte a contribuirmos para o estabelecimento de uma visão apta a integrar, criticamente, os novos raciocínios e os achados mais recentes decorrentes do referido avanço de nossos conhecimentos históricos. Evidentemente, não nos escapa estarmos em face de um modelo explicativo, interpretativo – e não meramente descritivo – de nossa história. Assim, em face de eventuais reparos, poder-se-á, sempre, alegar que tal modelo explica, em última instância, nossa formação. De nossa parte, retorquiremos que tal alegação encobre uma grave limitação presente no núcleo mesmo do aludido modelo, qual seja: a de pensar a constituição da economia brasileira como uma mera projeção imediata do capital comercial no plano da produção. Interessa-nos, pois, basicamente, o estabelecimento de categorias e mediações que, por não terem sido consideradas pelo autor, parecem-nos necessárias para a superação de seu modelo e o entendimento mais completo de nossa evolução histórica, particularmente no que tange à nossa constituição demoeconômica.

2. Espírito de acumulação, autoconsumo e marginalidade Um corolário imediato do “sentido da colonização” está no fato de que tanto colonizadores como seus descendentes deveriam estar empolgados pela ideia da acumulação. Ora, no correr do tempo, evidenciou-se que tal pressuposto não se cumpriu inteiramente. Uma parcela expressiva da população parece ter ficado infensa à perspectiva da acumulação;2 2 Como sabido, muitos autores coevos legaram-nos depoimentos sobre essas questões; escusamo-nos, portanto, de reproduzi-los aqui. Assim, recordando que suas opiniões marcaram-se, quase sempre, pelo eurocentrismo e por claras perspectivas ideológicas, cingimo-nos, tão somente, à transcrição de uma ilustrativa passagem das impressões deixadas pelo português Augusto Emílio Zaluar, que percorreu o território paulista em 1861, e na qual, certamente industriado por um morador local, contrapôs as mentalidades ora referidas: “À exceção das pessoas mais ilustradas, dos fazendeiros e

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de outra parte, associados aos que não desejavam participar do aludido processo de “enriquecimento”, encontraremos os que, embora pudessem estar desejosos de alcançar tal participação, não conseguiram efetivar tal anelo, pois, como fartamente sabido, os processos de acumulação no Brasil marcaram-se pela alta concentração da riqueza e pela consequente excludência de largos efetivos populacionais. Vemo-nos, portanto, em face de crescentes segmentos populacionais que se viram, por vontade própria ou em decorrência do próprio funcionamento da economia, cada vez mais apartados do referido processo de acumulação. Ora, tais pessoas encontram espaço muito restrito nos esquemas propostos por Caio Prado Júnior e, por via de regra, são relegados pelo autor a uma condição de marginalidade absoluta.3 Destarte, é deixada de lado uma parcela muito comerciantes, o resto da população é naturalmente indolente, preguiçosa e alheia a todos os regalos da civilização, contentando-se apenas com qualquer meio de subsistência, sem se importar qual será a sua sorte no dia seguinte nem donde lhe virão recursos. (...) Como a terra é aqui abundante e toca a todos, esses homens, a quem se chama no lugar caipiras, cultivam a ferro e fogo o torrão que possuem, e plantam-lhe milho, feijão e arroz. Colhido o seu produto, que sem muito trabalho podem haver, levam-no ao mercado, onde o vendem para comprar a roupa que lhes é necessária durante o ano, e regressam à casa, entregando-se outra vez aos seus hábitos de ociosidade, confiados na fertilidade do solo, que lhes fornece abóboras, aipim, batatas e outros gêneros, bem como das matas, que lhes oferecem palmitos, aves e outras muitas qualidades de caça, assim como nos rios, que os alimentam com muitos, variados e gostosos peixes. (...) Nesta vida, quase completamente improdutiva, vão passando os anos e o tempo sem que se tire partido das grandes vantagens que promete o município, nem se desenvolva nenhum dos elementos de progresso que a natureza tão generosamente lhes confiou, ‘estando condenados, como observa um morador da vila que nos forneceu estas notas, a ver esvaecerem-se as nossas mais fundadas esperanças, deixando estéril o nosso solo tão fértil, e sem útil aproveitamento os nossos campos tão amenos, os nossos climas tão saudáveis, os nossos rios tão serenos, os nossos sertões tão opulentos e majestosos, tudo por falta de ação, de trabalho e de energia!’” (Zaluar, 1975, pp. 108-109). 3 “Entre essas duas categorias [senhores e escravos] nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização, comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. Aquele contingente vultoso em que Couty mais tarde viria o “povo brasileiro”, e que pela sua inutilidade daria como inexistente, resumindo a situação social do país com aquela sentença que ficaria famosa: ‘Le Brésil n’a pas de peuple’.

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numerosa de nossa população e, com ela, seu contributo para a formação demográfica do Brasil, sua vida econômica e a parte do produto global a ela devida, sobretudo a produção de gêneros básicos votados ao autoconsumo. Perde-se de vista, assim, o que hodiernamente chamaríamos “Brasil real” e se privilegia desmesuradamente o “Brasil exportacionista”, vale dizer, o segmento econômico voltado para os mercados mundiais. Repisemos aqui as próprias palavras de Caio Prado Júnior:

“O número deste elemento indefinido socialmente, é avantajado, e cresce contínua e ininterruptamente porque suas causas são permanentes. No tempo de Couty, ele o calcula, numa população total de 12 milhões, em nada menos que a metade, 6 milhões. Seria menor talvez a proporção nos três milhões, de princípios do século; mas ainda assim, compreenderia com certeza a grande, a imensa maioria da população livre da colônia. Compõe-se, sobretudo, de pretos e mulatos forros ou fugidos da escravidão; índios (...); mestiços de todos os matizes e categorias, que não sendo escravos e não podendo ser senhores, se vêm repelidos de qualquer situação estável, ou pelo preconceito ou pela falta de posições disponíveis; até brancos, brancos puros, e entre eles, como já referi, anteriormente, até rebentos de troncos portugueses ilustres (...); os nossos poor white, detrito humano segregado pela colonização escravocrata e rígida que os vitimou. (...) Uma parte dessa subcategoria colonial é composta daqueles que vegetam miseravelmente nalgum canto mais ou menos remoto e apartado da civilização, mantendo-se ao Deus dará, embrutecidos e moralmente degradados (...). Uma segunda parte da população vegetativa da colônia é a daqueles que, nas cidades, mas sobretudo no campo, se encostam a algum senhor poderoso (...) São então os chamados agregados, os moradores dos engenhos (...). Finalmente, a última parte, a mais degradada, incômoda e nociva é a dos desocupados permanentes, vagando de léu em léu à cata do que se manter, e que, apresentando-se a ocasião, enveredam francamente pelo crime” (Prado Júnior, 1987, pp. 281-283). São do mesmo autor as afirmações: “Quem não fosse escravo e não pudesse ser senhor, era um elemento desajustado que não se podia entrosar normalmente ao organismo econômico e social do País. Isto que já vinha dos tempos remotos da colônia, resultava em contingentes relativamente grandes de indivíduos mais ou menos desocupados, de vida incerta e aleatória e que davam, nos casos extremos, nestes estados patológicos da vida social, a vadiagem criminosa e a prostituição” (Prado Júnior, 1956, p. 203). Ao diagnosticar as causas dessa situação, diz: “Vimos as condições gerais em que se constitui aquela massa popular – a expressão não é exagerada – que vive mais ou menos à margem da ordem social: a carência de ocupações normais e estáveis capazes de absorver, fixar e dar uma base segura de vida à grande maioria da população livre da colônia. Esta situação tem causas profundas, de que vimos a principal, mais saliente e imediata: a escravidão, que desloca os indivíduos livres da maior parte das atividades e os força para situações em que a ociosidade e o crime se tornam imposições fatais. Mas alia-se, para o mesmo efeito, outro fator que se associa aliás intimamente a ela: o sistema econômico da produção colonial.

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Entre essas duas categorias [senhores e escravos] nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização, comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. Aquele contingente vultoso em que Couty mais tarde viria o “povo brasileiro”, e que pela sua inutilidade daria como inexistente, resumindo a situação social do país com aquela sentença que ficaria famosa: “Le Brésil n’a pas de peuple”. (Ibid., p. 281)

Parece-nos desnecessário lembrar que tratar tal povo como inexistente ou categorizá-lo, sem mais, como composto de marginais sociais significa reproduzir as ideologias próprias das velhas elites dominantes e abrir as portas para teses simplistas como a que reduziu a questão social a uma questão de polícia.

3. Grande lavoura e agricultura de subsistência: por uma categorização alternativa A referência ao autoconsumo leva-nos a outro ponto que merece atenção especial. Pensamos no tratamento emprestado à agricultura de

No ambiente asfixiante da grande lavoura, vimo-lo noutro capítulo, não sobra lugar para outras atividades de vulto. O que não é produção em larga escala de alguns gêneros de grande expressão comercial e destinados à exportação, é fatalmente relegado a um segundo plano mesquinho e miserável. Não oferece, e não pode oferecer campo para atividades remuneradoras e de nível elevado. E assim, todo aquele que se conserva fora daquele estreito círculo traçado pela grande lavoura, e são quase todos além do senhor e seu escravo, não encontra pela frente perspectiva alguma. (...) Um último fator, finalmente, traz a sua contribuição, e contribuição apreciável de resíduos sociais e inaproveitáveis. É a instabilidade que caracteriza a economia e a produção brasileiras e não lhes permite nunca assentarem-se sólida e permanentemente em bases seguras. Em capítulo anterior já assinalei esta evolução por arrancos, por ciclos em que se alternam, no tempo e no espaço, prosperidade e ruína, e que resume a história econômica do Brasil Colônia. As repercussões sociais de uma tal história foram nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço da estrutura colonial, desagrega-se a parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou menos avultado de indivíduos inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de subsistência. Passará então a vegetar à margem da ordem social” (Prado Júnior, 1987, pp. 285-286).

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subsistência. Sob esse conceito o autor emparelhou realidades econômicas muito distintas, o que acarreta, a nosso juízo, incontornáveis dificuldades analíticas. Assim, a par da produção em larga escala de gêneros alimentícios efetuada por escravistas de porte e vendidos no mercado interno, enquadra-se na agricultura de subsistência a acanhada produção exe­cutada por não proprietários e destinada ao seu próprio passadio. Sob essa categoria colocam-se, ainda, a produção realizada e consumida por cativos nas grandes propriedades escravistas votadas ao plantio ou preparo de bens de exportação e a venda ocasional de excedentes agrícolas por parte de pequenos produtores isolados e sem escravo algum. Enfim, muitos aspectos da vida econômica de então restam enuviados por se verem colocados indistintamente sob um mesmo rótulo; perde-se, pois, a especificidade de cada um sem alcançar-se uma síntese esclarecedora. A nosso ver, sem se perder de vista o objetivo maior de Caio Prado Júnior – mostrar o papel subsidiário da produção de gêneros para consumo interno –, é possível reformularmos a categorização inicialmente proposta pelo autor sem incorrermos nos aludidos prejuízos analíticos. Ainda com respeito à grande lavoura e à agricultura de subsistência, é preciso observar que os processos efetivos mediante os quais se dava a acumulação, sobretudo aquele vinculado à produção em mais larga escala para o mercado interno, também ficam parcialmente obs­curecidos por terem sido colocados no âmbito dos dois setores (grande lavoura/subsistência) aos quais, obviamente, o autor emprestou naturezas distintas. O risco maior envolvido em tal bipartição está, cremos, de um lado, em extremar-se o isolamento do processo de acumulação vinculado ao mercado interno e, por outro, em emprestar-se um peso mais do que o devido ao processo de acumulação concernente à produção dirigida ao mercado internacional. Assim, o processo vinculado ao mercado externo, mais dinâmico e determinante, passaria a ocupar quase todo o espaço reservado à acumulação, enquanto a produção para o mercado interno, além de subsidiária e dependente, viria a confundir-se com a 83

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mera economia de autoconsumo. Este é, a nosso juízo, outro argumento favorável à reconsideração da categorização esposada por Caio Prado Júnior. A esta questão voltaremos a seguir.

4. Terra: propriedade plena e usufruto Como se depreende dos próprios escritos de Caio Prado Júnior, estabeleceu-se, no Brasil, um largo distanciamento entre a propriedade da terra (altamente seletiva, elitista e restritiva) e as várias formas assumidas pelo seu usufruto (cessão graciosa, aluguel, aforamento, posse, existência de moradores, agregados, rendeiros, de lavradores mais modestos – os brigados –, da meia, da terça, etc.), o qual, diga-se, não se marcou pela excludência, mas, antes, por certa “permissividade”, da qual resultou um amplo leque de maneiras mediante as quais se tornou possível, aos menos privilegiados, o acesso à terra.4 Tal distanciamento entre propriedade e 4 Como avançado, na própria obra de Caio Prado Júnior encontramos muitas referências a tal possibilidade, a qual também se viu fartamente documentada por autores coevos. Apenas a título ilustrativo reproduzimos, pois, dois destes relatos: “Ninguém aqui, disse-me o comandante, quer ganhar dinheiro para trabalhar, por pouco que seja, de um modo constante. Os fazendeiros, que possuem todos grandes extensões de terra, deixam os pobres cultivá-las na quantidade que quiserem; com muito pouco trabalho estes últimos estão certos de ganhar o bastante para viver durante um ano, e preferem repousar a gozar de bem-estar devido a alguns suores” (Saint-Hilaire, 1937, p. 163). “O único recurso que ao pobre cabe é pedir, ao que possui léguas de terra, a permissão de arrotear um pedaço de chão. Raramente lhe é recusada tal licença, mas como pode ser cassada de um momento para outro, por capricho ou interesse, os que cultivam terreno alheio e chamam-se agregados, só plantam grãos cuja colheita pode ser feita em poucos meses, tais como o milho e o feijão. Não fazem plantações que só deem ao cabo de longo tempo como o café” (Saint-Hilaire, 1974, p. 24). “Conseguem-se terras tanto por doação como por compra e, como as distribuem baseados só no mapa, sem qualquer medição no terreno, não admira que surjam contestações e confusões com respeito às divisas. A fim de esclarecer e confirmar suas pretensões, há muitos proprietários que instalam ao redor de suas fronteiras certo número de pequenos sitiantes a que chamam de “moradores”; estes pagam um pequeno foro, buscam seu sustento principalmente pelo cultivo de verduras e preenchem as importantes funções de vigias, impedindo invasão por parte dos proprietários e furtos de madeira. São geralmente gente bronca, que tem família, por vezes um ou dois escravos, e muito acrescem à população local; amam contudo a independência e raramente permanecem depois que

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usufruto parece-nos crucial para o entendimento da formação das populações brasileiras, sobretudo dos segmentos populacionais não imediatamente vinculados à manutenção e reprodução do sistema econômico dominante, vale dizer, não imediatamente necessários à grande lavoura. Assim, se nos centrarmos na consideração desta última, defrontar-nosemos, sempre, com o latifúndio excludente; de outra parte, se dermos atenção ao usufruto da terra e ao autoconsumo, veremos abrir-se o terreno no qual se desenvolveu parcela substantiva da população brasileira, nesta mesma órbita, como veremos adiante, encontraremos, ademais, as raízes de muitos dos problemas sociais, demográficos e econômicos que nos afligem atualmente. Fixemos, pois, uma outra qualificação ao modelo em tela: ao atribuir, no respeitante à nossa formação econômica e social, papel determinante à grande lavoura, o autor teve de prender-se às questões afetas à propriedade da terra vendo-se remetido, imediatamente, à produção em larga escala efetuada no latifúndio escravista e monocultor. Caso emprestemos, quanto àquela formação, papel de relevância – ou papel codeterminante, como diríamos – à assim chamada agricultura de subsistência, seremos levados à consideração de uma dimensão complementar à privilegiada por Caio Prado Júnior: o usufruto da terra e a consequente posse precária de pequenas áreas nas quais, sobretudo com base na mão de obra familiar, praticava-se a policultura voltada, essencialmente, para o autoconsumo. as divisas já estão devidamente discriminadas e em cultivo suas partes mais remotas. [...] Sucede-lhe, frequentemente, uma classe mais valiosa de foreiros que possui já um capital pequeno, que empregam na compra de escravos, cultivando porções maiores de terra e pagando seus foros seja em moeda seja em trabalho e, ainda, o que é mais comum, em gêneros. Se o artigo produzido é a cana, a mais lucrativa das culturas do Brasil, metade da produção toca ao dono das terras, pela qual não só fornece ele o solo, como mói a quota do meeiro... (...) Ao mesmo tempo há muitos foreiros que melhoram de situação, fazem-se adiantados entre os lavradores e acabam por se tornarem também proprietários” (Luccock, 1951, p. 194). O Prof. José Flávio Motta, que leu os originais destas notas, considera tal “permissividade” quanto ao usufruto da terra como “permissividade excludente”, pois a toma, e nisso concordamos plenamente, como crucial no que diz respeito à reprodução da excludência quanto à propriedade plena.

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A nosso ver, estamos em face de um caso flagrante em que um elemento de mediação – representado pelo usufruto da terra – desempenha papel codeterminante quanto à ocupação de um fator produtivo crucial, cabendo à propriedade plena da terra o papel de determinante em última instância quanto à alocação do fator. A perspectiva metodológica ora explicitada tem ensejado a identificação de muitas vertentes temáticas dela decorrentes, várias das quais, aliás, viram-se exploradas em estudos recentes. Em face da peculiaridade e relevância das questões envolvidas e visando a evidenciar as potencialidades que se abrem ao admitirmos a existência de um conjunto de fatores codeterminantes – uns de caráter exógeno, outros de corte endógeno e conjugados aos primeiros –, dedicamos os quatro próximos tópicos à discussão de algumas daquelas vertentes temáticas, quais sejam: emergência da população dita “redundante”, características demográficas e econômicas dos não proprietários de escravos, estrutura de posse de cativos e, por fim, policultura de gêneros básicos. Vejamo-las, pois.

5. Gênese e crescimento da população redundante O comportamento cíclico da economia de exportação – ou seja, a recorrência de períodos de crise econômica –, aliado às formas de uso da terra e às parcas necessidades materiais e espirituais do segmento populacional economicamente marginalizado com respeito ao mercado externo, propiciou a emergência de “excedentes” populacionais que não só tenderam a crescer com o passar do tempo, mas vieram a compor um elemento qualitativo fundamental de nossa formação econômica e social. Ocupemo-nos, pois, desse processo. Entendemos como “população redundante” aqueles efetivos não necessários à reprodução das condições econômicas dominantes. Tal “excesso” populacional, embora não se confunda com o exército industrial de reserva, deve, como este, ser entendido como relativo, pois sempre se refere às características das “economias” dominantes em cada área e 86

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momento do tempo. A concorrência do açúcar produzido nas Antilhas – na qual se assenta, desde o segundo meado do século XVII, a secular depressão econômica do Nordeste brasileiro – ensejou, como evidenciado por Celso Furtado,5 a constituição de nossos primeiros contingentes populacionais redundantes. O paulatino adensamento demográfico naquela região foi propiciado, sobretudo, pela atividade criatória desenvolvida na área interiorana que funcionou como “válvula de escape” para as populações deslocadas da região açucareira pela depressão econômica observada a partir do marco cronológico acima indicado. Um segundo momento crucial do fenômeno em foco decorreu da exaustão do ouro aluvionário das Minas Gerais. Como anotado pelos coevos, no século XVIII o Brasil conheceu grande afluxo de reinóis e de africanos reduzidos à escravidão. Nas Gerais, em função do interesse e da aplicação no processo produtivo que se tinha de despertar nos escravos ocupados nas lavras, as alforrias ocorreram com maior frequência vis-àvis as áreas votadas à agricultura. Assim, mesmo no período de ascensão econômica, faziam-se presentes pressões no sentido da geração de eventuais contingentes redundantes,6 os quais viram-se enormemente 5 A menção a Celso Furtado deve-se ao seu inestimável contributo para a determinação dos elementos econômicos constitutivos das condições que ensejaram o surgimento e desenvolvimento das populações redundantes no Brasil. Em Formação econômica do Brasil, Celso Furtado pautou-se por eixo distinto do que estamos a explorar aqui. Em face de seu escopo maior – estabelecer as condições que se colocavam como necessárias e suficientes para chegar-se, no Brasil, ao desenvolvimento econômico calcado na industrialização –, o autor viu-se compelido a centrar sua análise nos elementos da economia brasileira orientados pela busca da acumulação de capital. Não podia, pois, considerar mais ampla e detidamente a parcela redundante de nossa população, a qual, diga-se, representa uma de suas principais preocupações. Na obra em tela, seu engano, a nosso juízo, repousou na ilusão, posteriormente descartada pelo próprio autor, de que a industrialização garantiria, per se e automaticamente, a integração plena dos segmentos populacionais desprivilegiados à vida econômica, política e social da nação. 6 É da mais alta relevância lembrar que a concessão de alforrias também operou, particularmente nos períodos de ascensão e apogeu da atividade exploratória, no sentido de propiciar aos ex-escravos o acesso à condição de proprietários de cativos. Assim, por exemplo, na Comarca do Serro do Frio, em 1738 – momento em que ali só se extraía o ouro, pois a atividade diamantífera estava proibida –, 22,2% dos proprietários

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acrescidos quando se esgotou o ouro, pois, como mostrado por Caio Prado Júnior, o subsequente florescimento da agricultura e a incorporação de novas áreas ao ecúmeno deram-se numa quadra na qual ocorreu a ampliação do autoconsumo. Tal quadro ver-se-á agravado pela retrógrada Lei de Terras de 1850, condicionada pela falência do sistema escravista e comprometida com a solução propugnada pelos imigrantistas. Uma eventual valorização da mão de obra livre autóctone foi descartada e partiu-se em busca do trabalhador estrangeiro, já impregnado, diga-se de passagem, pelo espírito de acumulação capitalista e, portanto, partícipe ativo dos processos econômicos que giravam em torno da expansão cafeeira. Essa solução para o problema da mão de obra condenou ao descaso o trabalhador livre nacional e criou as bases para se dar destino idêntico aos ex-escravos quando de sua manumissão definitiva em 1888. A eles sobravam, tão somente, as fímbrias da vida econômica e social, vale dizer, a agricultura de autoconsumo efetuada, em larga escala, em terras de terceiros. No plano das mentalidades, o processo acima descrito é igualmente perverso, na medida em que impede a assimilação, por parte de grandes massas populacionais, dos valores próprios do capitalismo moderno. Veem-se elas, assim, relegadas a uma vivência material e espiritual degradada, o que as impossibilita de tomar consciência plena de seus direitos e de atuar politicamente de modo consentâneo a seus interesses. A compor o grupo de não proprietários de escravos, além desse segmento redundante e mais desprivilegiado, encontravam-se numerosos efetivos populacionais que, conjuntamente, compunham a parcela majoritária dos habitantes do Brasil ao tempo da colônia e do império. Consideremo-la, pois, mais detidamente.

de escravos eram forros e detinham 9,9% do número total de escravos; em Congonhas do Sabará, no ano de 1771, os forros perfaziam 21,7% dos proprietários e possuíam 10,2% dos cativos (cf. Luna e Costa, 1980, pp. 839-840; Luna, 1982, p. 43).

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6. Presença dos não proprietários de escravos Como avançado, a população redundante corresponde a uma parte do conjunto dos não proprietários de cativos, os quais, em sua imensa maioria, dependiam, tão só, da mão de obra familiar e vinculavam-se a atividades econômicas não relacionadas imediatamente com a produção de bens de exportação. Vejamos, em termos genéricos, como se apresentavam algumas das características demoeconômicas desse importante segmento populacional – tomado agora em seu todo7 – em fins do século XVIII e inícios do XIX e para núcleos localizados nas áreas de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais, Bahia e Piauí (este último representado para os anos de 1697 e 1762). O primeiro ponto a fixar diz respeito ao fato de que os não proprietários de escravos e seus respectivos dependentes – sempre observadas as fortes limitações espaciais e temporais apontadas acima – compunham parcela majoritária da população livre; ademais, eles não perderam tal posto em face de expressivas mudanças econômicas e demográficas observadas no passar do tempo. Correlatamente, ao que parece, o crescimento econômico, mesmo quando orientado pela expansão do comércio exterior, vinha acompanhado de oportunidades das quais também usufruíam os não proprietários, de sorte que eles não eram excluídos das áreas economicamente mais dinâmicas, nem perdiam sua posição numericamente dominante. Uma segunda conclusão indica que, tanto da ótica estritamente demográfica (sexo, idade e estado conjugal) como daquela mais claramente marcada por elementos de caráter econômico (condição de legitimidade das crianças, pobreza e moradia), não havia hiato absoluto a distinguir proprietários e não proprietários de cativos. Destarte, sob vários aspectos, a impressão deixada pela análise é a de que estamos a tratar com 7 Para uma análise pormenorizada deste segmento socioeconômico, veja-se Costa (1992).

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duas amostras de uma mesma população. Sem negar, pois, as expressivas dessemelhanças observadas entre os dois grupos, cumpre anotar também os largos pontos de contato existentes entre eles. Por fim, no que tange às atividades econômicas e produtivas propriamente ditas, havia grande predomínio dos proprietários de cativos nos setores Igreja e rentistas; ademais, observava-se a dominância deles na magistratura e nos empregos civis, no corpo militar e nas profissões liberais. Nos setores comércio, transportes e agricultura e manufatura rural revelava-se distribuição mais equilibrada, enquanto era forte o predomínio numérico dos não proprietários nos serviços em geral e entre os jornaleiros e artesãos. Como esperado, as ocupações mais exigentes em termos de preparo educacional ou que implicavam a posse de recursos materiais mais avultados eram empolgadas, majoritariamente, pelos proprietários de escravos, cabendo aos não proprietários o domínio de atividades mais humildes. Não obstante, deve-se frisar que não imperava uma especialização absoluta; além disso, mesmo as mudanças econômicas acarretadas por novas alternativas ensejadas no correr do tempo não foram bastantes para excluir os não proprietários da ampla gama de setores econômicos então vigentes. Havia, é verdade, marcante divergência entre as participações dos segmentos socioeconômicos em tela quanto ao produto gerado e à parcela comercializada de tal produção. Os proprietários de escravos distinguiam-se por dominarem a produção de bens exportáveis e dos que eram objeto de ampla comercialização no mercado interno; mesmo assim, deve-se notar a não exclusão dos não proprietários no tocante à produção de tais mercadorias. Por outro lado, havia razoável elenco de bens com respeito aos quais ocorria dominância de não proprietários ou cujo preparo era partilhado equilibradamente por ambos os segmentos. Ademais, relativamente a alguns gêneros alimentares básicos, a participação de não proprietários aproximava-se do respectivo peso relativo na população total. Do acima exposto, deve-se guardar que há fortes indícios a apontar que a economia escravista brasileira comportava, mesmo nos momentos 90

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de expansão da agricultura de exportação, um largo espaço para o desenvolvimento de atividades econômicas não vinculadas, imediatamente, à grande lavoura e desenvolvidas por não proprietários de escravos, os quais não podem ser tomados, em bloco, como um grupo de inúteis ou um segmento absolutamente marginalizado em termos sociais e econômicos. Ao que nos parece, a carência dos meios de transporte, a própria política mercantilista implementada pela Coroa visando a impedir a emergência de manufaturas, a consequente inexistência de um amplo mercado interno integrado e a decorrente falta de especialização regional – ressalvados aqui casos como o da produção de charque no Rio Grande do Sul, do sal em áreas fluminenses, etc. – ensejaram o desenvolvimento, no âmbito local, de atividades artesanais ou vinculadas ao setor “serviços” que tenderam a ganhar espaço cada vez maior com o correr do tempo. Paralelamente – em decorrência dos óbices acima apontados, da relativa facilidade de acesso ao usufruto da terra e de traços culturais que afastaram significativas parcelas populacionais da perspectiva de acumular, aos quais se somam, evidentemente, os obstáculos de ordem objetiva impostos pela dominância econômica da grande propriedade escravista e monocultora –, estabeleceu-se e cresceu de modo continuado, em todo o território brasileiro, a policultura de gêneros básicos de alimentação – feijão, milho, mandioca, arroz, etc. – que irá compor, ao lado da produção monocultora, o quadro efetivo no qual se movimentavam nossas populações pretéritas. Trata-se, é óbvio, daquele Brasil medíocre e “menor” do ponto de vista econômico, mas que não pode ser descartado se estivermos interessados em apreender, efetivamente, a formação de nossa economia, da qual, obviamente, faziam parte as assim chamadas camadas médias e baixas de nossa população. É, pois, à consideração de algumas das formas assumidas pelo cultivo de gêneros de subsistência que nos vemos remetidos. 91

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7. Monocultura e policultura de subsistência Como já anotaram outros autores: Estudar essa economia de subsistência, através de sua evolução no tempo e no espaço – expansão e retração de áreas e cultivos, a sua demografia, a organização do trabalho, o regime de posse e uso da terra e as técnicas –, ia revelar a face oculta do Brasil, sempre escondida por detrás da casa grande (por vezes da senzala), do ouro das Gerais, do café ou outro produto-rei, dos coronéis do sertão, que é revelado, quando o é, para ressaltar a minoria do que é dominante, com enfoque sobre o seu atraso. (Linhares e Silva, 1981, p. 119)

Além de estudá-la, é preciso dar-lhe espaço nos esquemas interpretativos dos quais partimos, reconhecendo sua relevância econômica e demográfica e suas múltiplas facetas. Neste tópico, procuraremos, tão somente, indicar algumas das formas assumidas por essa policultura de subsistência que se desenvolveu paralelamente à produção em larga escala de gêneros de exportação e, por via de regra, definiu-se como retaguarda imediata desta última, mas que, em alguns casos ao menos, apareceu como elemento relativamente autônomo, já que confinado aos limites traçados pelas atividades de exportação, econômica e politicamente dominantes. Como sabido, a produção de gêneros básicos destinados ao consumo interno dava-se, também, em propriedades – em alguns casos em regiões – que se especializaram no seu preparo. Podemos pensar, aqui, na existência de propriedades relativamente grandes a utilizar sistematicamente o trabalho escravo e cujos proprietários certamente se pautavam pela perspectiva da acumulação de capital. Procuravam, pois, da mesma sorte que os cultivadores de cana obrigada e a partido, adequar-se às condições que propiciavam mercados mais rentáveis, derivassem eles imediatamente das necessidades dos grandes proprietários monocultores ou dos núcleos urbanos que pontilhavam o Brasil. Ademais, a produzir sistematicamente para os mercados locais também estavam pequenos e médios proprietários, muitos dos quais contavam com o concurso de uns poucos escravos, enquanto outros 92

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utilizavam apenas a mão de obra familiar. O expressivo, nestes dois últimos casos, não decorre da magnitude produzida, mas sim do fato de haver um vínculo continuado com a economia de mercado e com eventuais e estreitas, convenhamos, oportunidades de enriquecimento e “ascensão” social; esse vínculo com o mercado permitiu, inclusive, que pequenos produtores se dedicassem à elaboração de bens de exportação; lembrem-se, a esse respeito, as observações de Maria Luíza Marcílio e os nossos cômputos sobre a participação na exportação de café de unidades familiares sem escravo algum (cf. Marcílio, 1974, pp. 186-187; Costa, 1992, pp. 96-109), o trabalho de José Flávio Motta (1991) no qual o autor indica que a própria introdução do plantio da rubiácea em território paulista foi efetuada por agricultores modestos, entre os quais compareciam alguns que, além de não possuírem cativos, nem sequer dispunham de terras próprias, pois ocupavam, por favor, terras alheias; tenham-se presentes, ainda, os estudos de Renato Leite Marcondes (1993) e de José Flávio Motta e Nelson Nozoe (1994, pp. 265-271) nos quais se acompanha a produção cafeeira em localidades paulistas e se patenteiam as oportunidades de acumulação que se abriam a proprietários de pequeno porte. A par dessa produção mais caracteristicamente comercial encontraremos os proprietários de menor porte, que vendiam seus eventuais excedentes. Em algumas áreas, grosso modo, cerca de 30 a 40% da produção total de gêneros alimentícios via-se dirigida aos mercados locais. O que nos parece relevante nesse caso não é a “mediocridade” dos ofertantes – que se vinculam excepcional e precariamente ao mercado –, mas sim o fato de termos, sistematicamente, uma “fatia” expressiva do consumo global atendida pela comercialização daqueles bens básicos. Igualmente relevante parece ser a produção efetuada nas próprias terras das grandes propriedades voltadas, precipuamente, às atividades de exportação. Arrola-se aqui não só a produção imediatamente gerida pelos proprietários, mas também a parcela devida à iniciativa dos cativos, quando podiam dispor de pequenos lotes que lhes eram atribuídos. O produto dessa atividade, além de compor uma parte do trabalho 93

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necessário – e nesta medida é que a podemos ver como uma mera dimensão da economia escravista –, propiciava também e em escala que jamais chegou a se altear, de sorte a descaracterizar as bases escravistas de nossa economia, a integração dos escravos aos circuitos comerciais.8 Cumpre lembrar, por fim, o grande número de pessoas e/ou de comunidades inteiras que se dedicavam, quase exclusivamente, aos cultivos dirigidos ao consumo imediato. Arrolam-se entre elas, inclusive, as que, sem propriedade alguma, ocupavam áreas de terceiros ou terras colocadas nas fímbrias do ecúmeno. Condições econômicas e culturais, tamanhamente deploradas pelos viajantes estrangeiros do século passado, estariam na raiz dessa abulia quase generalizada que empolgava largas faixas da camada mais desprivilegiada de nossa população. De toda sorte, de moto próprio ou como consequência das vicissitudes da vida, um grande número de pessoas conseguia, assim, “sobreviver” e, embora palidamente, integrar, na condição de população redundante, a vida social e econômica do Brasil de então.

8. Sobre a estrutura de posse dos cativos Como vimos, tanto a propriedade e o usufruto da terra como a economia de subsistência marcavam-se, no passado escravista brasileiro, 8 Anote-se, a este respeito, a afirmação: “Por ‘brecha’ não entendemos, de forma alguma, um elemento que pusesse em perigo, mudasse drasticamente ou diminuísse o sistema escravista. A analogia com uma brecha na muralha de uma fortaleza assediada seria algo totalmente equivocado. O que queremos significar – e cremos que também Lepkowski, ao criar a expressão – é uma brecha para o escravo, como se diria hoje ‘um espaço’, situado sem dúvida dentro do sistema, mas abrindo possibilidades inéditas para atividades autônomas dos cativos” (Cardoso, 1987, pp. 121-122). Autonomia essa com a qual concordamos desde que vista em termos relativos e como parte integrante do sistema escravista (ou do chamado “sistema do Brasil”), ao qual, ademais, também não era estranha, como sabiamente postulado por Aristóteles para o escravismo antigo, a própria possibilidade da alforria: “Todo esclavo debe tener ante los ojos una meta definida o un término exacto de su trabajo. Colocar ante él el premio de la libertad es algo justo y conducente, porque teniendo por delante el premio asignado a su trabajo y conociendo el tiempo necesario para su consecución, el esclavo se entregará de todo corazón a su trabajo” (Aristóteles, 1964, p. 1.382)

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por gradações que preenchiam um rico e nuançado espectro. O mesmo podemos afirmar no concernente à estrutura da posse de escravos, a qual percorria também um continuum no qual se viam representados todos os tamanhos de plantel, bem como as distintas atividades econômicas aqui praticadas e que tenderam a se diversificar cada vez mais com a passagem do tempo. Assim, afora casos tópicos em que predominavam maciçamente os grandes escravistas, tomada em seu conjunto, a economia brasileira, grosso modo, conheceu, nos mais variados setores e quadrantes, situações em que coexistiam pequenos, médios e grandes proprietários. Destarte, em muitas áreas e “economias” do território brasileiro, por via de regra não dominadas pela especialização que distinguiu a grande produção açucareira ou a cafeicultura depois de definitivamente assentada no Sudeste, encontraremos como norma a predominância quantitativa dos proprietários com reduzido número de cativos, cerca de quatro ou cinco digamos, os quais detinham parcela substantiva do efetivo total da escravaria, vale dizer, por volta de 30 a 40% dos cativos. Tal quadro, como demonstrado por Francisco Vidal Luna, registrou-se em Minas Gerais, tanto no período de afirmação da atividade aurífera como nos momentos de apogeu e decadência da economia da mineração (Luna, 1981; 1982, pp. 31-55 e Luna e Costa, 1982, pp. 57-77); repetiu-se tal condição em São Paulo e no Paraná (Luna e Costa, 1983; Gutiérrez, 1987; Motta, 1990, pp. 190-200, 1991b). A mesma estrutura também se mostrou presente na região da pecuária e de lavouras de Goiás (Funes, 1980, pp. 123-127), nas zonas criatórias do Nordeste (Mott, 1978) e do Sul (Cardoso, 1977, pp. 54-82), não sendo estranha ainda na própria área produtora de tabaco e açúcar do Recôncavo baiano, como revelado por Stuart B. Schwartz (1983, 1988, pp. 356-376), assim como, em termos genéricos, nos centros urbanos do período escravista. Vê-se, pois, que havia uma verdadeira difusão do escravismo no seio da sociedade brasileira, fato esse do qual, certamente, derivaram significativas consequências econômicas, políticas e culturais às quais retornaremos adiante. 95

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9. Pela superação do modelo de Caio Prado Júnior Façamos, antes do mais, um balanço crítico do conjunto de evidências, observações e raciocínios acima expendidos. De tal conjunto ressalta, de pronto, que as articulações presentes na sociedade brasileira sobrepujavam largamente um mero empreendimento dirigido pelo capital comercial e imediatamente voltado para o mercado mundial e dele totalmente dependente. Nesse sentido, tratava-se de uma economia com expressivos traços de integração endógena e que comportava uma gama diversificada de atividades produtivas votadas ao atendimento de suas próprias necessidades, dando-se, também, processos internos de acumulação. Disso decorria a geração, na órbita doméstica, de condições que permitiam um espaço econômico relativamente autônomo vis-à-vis a economia internacional e o capital comercial, espaço econômico esse ao qual, ademais, deve-se atribuir expressivo contributo no que tange à formação da renda e do produto. Essa visão aparta-nos, pois, da que admitimos ter sido proposta por Caio Prado Júnior, a qual se marcaria por iniludível “reducionismo”. Não obstante, igualmente iniludível é o fato de que todas aquelas evidências e argumentos não conduzem à negação da sociedade escravista, ao contrário, não só a afirmavam como teriam contribuído ativamente para sua expansão e permanência entre nós. Se não, vejamos. Iniciemos considerando as possibilidades abertas aos despossuí­dos que ocupavam, de maneira precária e sem qualquer título efetivo de propriedade, nesgas de terra sob as mais variadas formas (ocupantes autorizados, agregados, posseiros, etc.) e que não estavam interessados em participar dos processos de acumulação ou deles viam-se excluídos por falta de recursos, de oportunidades ou em decorrência das vicissitudes da vida (doenças, empobrecimento, desamparo em função da idade, etc.). Tais pessoas, como sabido, encontraram nas lides agrícolas consagradas ao autoconsumo uma forma, embora medíocre, de sobreviverem. Ora, como demonstrado por Celso Furtado (1970), para o caso das crises que se abateram sobre a economia açucareira e da mineração, tal arranjo – 96

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acesso ao usufruto da terra – atuava como verdadeira válvula de escape, atenuando ou evitando inteiramente o desenvolvimento de pressões no sentido de que se promovessem alterações estruturais na economia escravista dominante. Ademais, como visto na nota número três deste trabalho, os grandes proprietários serviam-se de parte desses despossuídos para garantirem suas propriedades contra roubos ou invasão de elementos indesejáveis. De maneira similar, operavam, por seu turno, as estreitas oportunidades colocadas aos que secundária e eventualmente participavam dos mercados vendendo seus parcos excedentes agrícolas ou neles encontrando escoamento para sua modesta produção de gêneros exportáveis. Parece-nos ocioso acrescentar, além disso, que tais oportunidades também trabalhavam, com respeito a esse segmento populacional, de sorte a legitimar as estruturas econômicas dadas. Esses dois estratos sociais mereceram a atenção de muitos autores, dos quais lembramos, a título ilustrativo, tão somente dois. Assim, lemos em obra de Jacob Gorender: A tendência evolutiva de São Paulo foi idêntica à de todo o país na era escravista: concentração extrema da propriedade de escravos e de terras e crescimento constante da população livre despossuída. Esta, formada de agregados e posseiros, constituía junto com os elementos minifundiários, a classe camponesa da época, a classe camponesa possível numa formação social escravista. (1978, p. 300)

Esse mesmo autor, depois de consignar que os “caipiras são os agregados e posseiros a que venho me referindo”, remete-nos a Maria Sylvia de Carvalho Franco, para quem as comunidades caipiras “podem ser pensadas como uma realidade autônoma”: Entretanto, se realmente é possível distinguir um estilo de vida específico, uma integridade de cultura e de organização social nas comunidades caipiras, não é menos verdade que essas comunidades estiveram concretamente inseridas em um sistema social mais amplo. Na área aqui estudada, ao lado desses pequenos núcleos houve, pelo menos desde o século XVIII, setores

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da sociedade que se organizaram para a produção mercantil. Sendo estes que realmente fundaram o sentido dominante das atividades de produção e da vida social, os grupos caipiras ficaram relegados a uma intransponível marginalidade. (1969, pp. 31-32)

Tal “sistema social mais amplo”, obviamente, tratava-se da sociedade escravista inclusiva. Igualmente inseridos nesse “sistema social mais amplo” estavam os que – com o apoio de um número maior ou menor de cativos ou só a contar com a mão de obra individual ou familiar – participavam sistematicamente dos mercados de gêneros básicos de alimentação, do setor de serviços ou se ocupavam em atividades artesanais. Com respeito a esses agentes, evidentemente, nada há a acrescentar, pois, efetivamente, mesmo se não tivessem escravo algum, integravam a sociedade escravista e se comportavam de molde a afirmá-la, mesmo quando se tratava de alforriados, alguns dos quais, como anotado, tornaram-se proprietários de escravos. Quanto aos cativos aos quais eram atribuídas pequenas glebas de terra das quais derivavam sua alimentação e eventuais ganhos com os quais compunham seus pecúlios, e quanto aos que “trabalhavam por conta própria” efetuando pagamentos a seus senhores, há algo a dizer. Em primeiro, é necessário repisar o caráter complementar com respeito ao trabalho necessário representado por tais formas de exploração da força de trabalho escrava; tenhamos presente, pois, a arguta e definitiva observação de Antonil: Costumam alguns senhores dar aos escravos um dia em cada semana, para plantarem para si, mandando algumas vezes com eles o feitor, para que se não descuidem; e isto serve para que não padeçam fome nem cerquem cada dia a casa de seu senhor, pedindo-lhe a ração de farinha. (1974, p. 162)

Em segundo lugar, não se deve esquecer que a existência de um espaço relativamente autônomo para a vivência do cativo não representava 98

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uma restrição ao escravismo e muito menos ensejava, per se, qualquer ruptura ou enfraquecimento da escravidão. Ao contrário, como ocorria com a perspectiva da alforria, legitimava-o aos olhos dos próprios cativos, tornando-os presas mais “conformadas” do sistema e menos dadas a rebeldias. A plena consciência desse efeito, como sabido, foi alcançada pelos próprios donos de escravos; vejamos um testemunho elucidativo, o do Barão de Pati do Alferes, igualmente lembrado por Jacob Gorender: Estas suas roças, e o produto que delas tiram, fazem-lhes adquirir certo amor ao país, distrair um pouco da escravidão, e entreter-se com esse seu pequeno direito de propriedade. Sem dúvida, o fazendeiro enche-se de certa satisfação quando vê chegar o seu escravo da sua roça trazendo o seu cacho de bananas, o cará, a cana, etc. (Werneck, Francisco Peixoto de Lacerda [Barão de Pati do Alferes] apud Gorender, 1978, p. 263)

Atenhamo-nos, por fim, ao fato de prevalecerem, em largas faixas do território brasileiro e distribuídos pelas várias “economias” que aqui se desenvolveram, plantéis com reduzido número de cativos e uma grande proporção de pequenos e médios escravistas. Poderia tal estrutura de posse descaracterizar ou alterar a natureza do escravismo? Apontaria na direção da predominância dos mercados internos sobre os externos? Colocaria como possível a reprodução autônoma e independente da economia escravista como se definiu no Brasil? A resposta a tais questões é, sem dúvida, negativa. Deixando uma qualificação mais pormenorizada para o item no qual trataremos do capital escravista-mercantil, queremos deixar fixada aqui a opinião de que, contrariamente ao sugerido pelas perguntas acima enunciadas, a difusão de um grande número de pequenos escravistas contribuía positivamente para a legitimação e permanência da instituição entre nós, pois, comprometia com a mesma largos contingentes da população livre, os quais viam seus interesses econômicos atrelados à manutenção do escravismo. Destarte, tanto da perspectiva econômica como da política e da história das mentalidades, não nos parece absurdo afirmar que a existência de tal perfil da estrutura de posse de cativos pode ser enca99

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rada, por um lado, como uma das causas explicativas do vigor e resistência do escravismo entre nós, e, por outro, do tardio advento da abolição definitiva da escravidão no Brasil. A conclusão maior que se impõe das considerações acima postas é imediata: todas as condições aqui reportadas, em maior ou menor escala, operaram, sempre, no sentido de afirmar e dar maior solidez ao escravismo e podem ser colocadas entre os fatores explicativos da grande resistência demonstrada por essa instituição e de sua prolongada persistência entre nós. Nada mais errôneo, pois, do que tomá-las como capazes de descaracterizar ou “arranhar” as relações escravistas então vigentes. Elas não podem ser arroladas, portanto, entre as causas da superação do trabalho escravo no Brasil, fato esse que, não obstante, não as impediu de sobreviverem ao sistema escravista e de contribuírem, dada a supressão do escravismo, para o estabelecimento e afirmação das relações de produção emergentes. Ora, a sociedade escravista moderna (intrinsecamente dependente dos mercados mundiais, como evidenciaremos adiante em tópico dedicado ao capital escravista-mercantil) é a própria encarnação da dependência com respeito ao mundo exterior, seja quanto à colocação de parcela substantiva do produto gerado, seja no respeitante à sua própria manutenção no tempo, pois necessitava, crucialmente, do fornecimento externo de mão de obra cativa. Assim, aceita a ideia de que os elementos avocados para desqualificar o modelo de Caio Prado Júnior atuaram, sempre, de sorte a reafirmar o escravismo, vemo-nos em face de uma aparente contradição: se, num primeiro lapso, nossos argumentos contradizem o modelo em tela, num segundo passo trabalham a favor da tese central do mesmo modelo. É forçoso, portanto, enfrentarmos essa contradição aparente; ademais, de seu esclarecimento emergirá não só a solução para o impasse no qual estamos enleados, mas, também, para as demais questões que ensejaram a redação destas notas. Partamos, pois, do modelo em foco. Qual seria a grave limitação do modelo interpretativo de Caio Prado Júnior? Onde estaria seu “erro”, como perguntariam alguns? A nosso juízo, tal limitação deveu-se ao fato de ele haver transposto para o plano fenomênico, 100

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sem as necessárias e devidas mediações, elementos próprios do que considerou a essência de nossa formação e da sociedade aqui constituída.9 Reduzido, assim, o plano do concreto, ao que se poderia entender ser seu determinante em última instância, a elementos de sua pretensa “essência” – que não se exaure em tais elementos, diga-se com ênfase –, resta-nos uma caricatura de vida econômica e social, desfigurada, rígida, descarnada, apartada da experiência do dia-a-dia, perdem-se a especificidade e as peculiaridades do escravismo moderno – regido que esteve, como veremos adiante, pelo capital escravista-mercantil – e se fica às voltas com um “sentido” abstrato, imaterial, que faz com que nos sintamos tão incomodados, tão “desconfortáveis” quando confrontamos nossa visão daquela sociedade com a que derivamos da leitura dos escritos de Caio Prado Júnior. Mas ele não foi a única vítima desse “ardil” do capital escravistamercantil, há os que, cometendo engano homólogo, tornaram-se presas de limitações igualmente reducionistas; pensamos, agora, nos pesquisadores 9 Retomemos as palavras de Caio Prado Júnior: “É este o verdadeiro sentido da colonização tropical [...] É certo que a colonização da maior parte, pelo menos destes territórios tropicais, inclusive o Brasil, lançada e prosseguida em tal base, acabou realizando alguma coisa mais que um simples ‘contato fortuito’ dos europeus com o meio, na feliz expressão de Gilberto Freyre, a que a destinava o objetivo inicial dela; e que em outros lugares semelhantes a colonização europeia não conseguiu ultrapassar [...] Entre nós foi-se além no sentido de constituir nos trópicos uma ‘sociedade com características nacionais e qualidades de permanência’ [Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala], e não se ficou apenas nesta simples empresa de colonos brancos distantes e sobranceiros. Mas um tal caráter mais estável, permanente e definido, só se revelará aos poucos, dominado e abafado que é pelo que o precede, e que continuará mantendo a primazia e ditando os traços essenciais da nossa evolução colonial. Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco (...) café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura bem como as atividades do país. (...) Haverá resultantes secundárias que tendem para algo de mais elevado; mas elas ainda mal se fazem notar. O ‘sentido’ da evolução brasileira que é o que estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização. Tê-lo em vista é compreender o essencial deste quadro que se apresenta em princípios do século passado” (Prado Júnior, 1987, pp. 31-32).

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que, prendendo-se à aparência – à forma como a sociedade escravista brasileira se nos apresenta imediatamente –, pretendem transportar tal mundo fenomênico, sem as imprescindíveis mediações, para o âmago último de nossa formação, tomam, pois, a aparência como se fosse a essência. O resultado desse movimento já é conhecido: a essência do escravismo moderno se esvai no ar, dilui-se ante nossas vistas, escapa de nossas mãos, restando-nos uma sociedade que, autônoma e independentemente, parece reproduzir-se a si mesma a partir de si mesma.10 É crucial, portanto, a consideração e caracterização das mencionadas categorias e mediações. Sem elas, entendemos, ser-nos-á impossível apreender nossa sociedade pretérita como uma totalidade na qual os elementos que a compunham atuavam solidariamente, codeterminando-se mutuamente. Do acima exposto, pode-se inferir, esperamos que de modo claro, nossa postura com respeito ao modelo explicativo de Caio Prado Júnior. Não pretendemos negá-lo, mas, qualificando-o, evidenciar a possibilidade de superá-lo de sorte a chegarmos a uma nova síntese, adequada às realidades com quais nos deparamos quando observada a evolução da sociedade e da economia brasileiras à luz de estudos recentes. Para tanto, cremos ser necessário o desenvolvimento das três vertentes teóricas explicitadas abaixo. No campo metodológico, é preciso operar de forma a explicitar as mediações entre os chamados determinantes em última instância realçados 10 A estes pesquisadores, ao que parece, dirigiu Ciro F. S. Cardoso a advertência: “Tendo combatido por muitos anos as posturas que enfatizam unilateralmente as relações metrópole-colônia ou centro-periferia, a extração de excedentes, o capital mercantil (hipostasiado em ‘capitalismo comercial’) e mais em geral a circulação de mercadorias como locus explicativo privilegiado, só posso me regozijar com esses novos e sólidos argumentos. Desde que, também neste caso, não se ceda à tentação de mais uma ênfase unilateral. Mesmo se as análises cujos resultados foram aqui resumidos são, às vezes, delimitadas e tratam de elementos e variáveis parciais, não estarão esquecendo exageradamente, empurrando um tanto para fora do horizonte, a dependência colonial e neocolonial – e as determinações e condicionamentos que ela sem qualquer dúvida implicava (ainda que tais análises tenham demonstrado que algumas das determinações imputadas a fatores externos eram falsas)? Fique como questão a ser pensada esta minha dúvida” (Cardoso, 1988, p. 58).

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por Caio Prado Júnior e o desenvolvimento concreto de nossa estrutura socioeconômica, o que, ao menos indicativamente, tentamos fazer até esta altura destas observações críticas, sobretudo na abertura deste tópico. No plano abstrato, deve haver empenho no sentido de alcançarmos uma compreensão nova do papel do capital e da acumulação no âmbito da economia escravista colonial; impõe-se, pois, o estabelecimento de uma formulação teórica que torne possível distinguir a ação do capital comercial daquela exercida pelo capital escravista-mercantil, definindo-se, este último, como a principal mediação entre o capital comercial (que o vinculava ao mercado externo) e as condições internas segundo as quais se dava, concretamente e como uma decorrência da existência do capital escravista-mercantil, a acumulação no Brasil de então. A esse problema dedicamos o próximo tópico destas notas. Por fim, na esfera do concreto, entendemos ser indispensável a reformulação dos grandes “setores” econômicos pensados por Caio Prado Júnior, pois, como procuramos mostrar, a bipartição por ele proposta é insuficiente para dar conta de toda a gama de articulações econômicas encontráveis no correr da história do Brasil, desde seu descobrimento até o encerramento da época monárquica. No tocante a esta última questão, esboçaremos, mais adiante, uma categorização alternativa à de Caio Prado Júnior. Consideremos, pois, o capital escravista-mercantil.

10. Nota sobre o capital escravista-mercantil11 A nosso ver, além das três formas clássicas de existência do capital (comercial, usurário e industrial), Marx sugeriu uma quarta forma: o capital escravista-mercantil, gerador de mais-valia e calcado na produção de mercadorias com base no trabalho escravo. Essa forma 11 Neste tópico apresentamos uma versão sumária de alguns pontos centrais de trabalhos nos quais a categoria capital escravista-mercantil viu-se tratada de maneira mais larga e pormenorizada, a eles remetemos o leitor interessado nessa análise: Pires e Costa (1994); Costa e Pires (1994, 1995, 2000).

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de capital dependeu, para sua constituição e permanência no tempo, de alguns elementos básicos que, para o caso do Brasil, foram os seguintes: poder régio, capital comercial, indivíduos dispostos a dirigir na colônia a produção de bens exportáveis com base na exploração do trabalho escravo, fontes supridoras de mão de obra escrava e, por fim, mercados mundiais capazes de absorver parcela substantiva dos bens aqui produzidos. Assim, no caso da economia escravista brasileira, a criação da maisvalia decorria da ação do capital escravista-mercantil, vale dizer, embora isolada dos mercados externos e, portanto, da órbita da circulação – e a esta questão voltaremos logo adiante –, a esfera da produção interna colocava-se inteiramente em sua órbita e era dominada pelo capital escravista-mercantil. Tal dominância, que não deve ser entendida em termos absolutos, estendia-se à produção de mercadorias (exportáveis ou não), de valores de uso e de serviços, abarcando também a alocação de fatores e recursos e espraiando-se pela circulação interna. Afetava ainda a geração e distribuição da renda, a escala da produção, o tamanho das plantas instaladas, as técnicas utilizadas e os elementos afetos à qualificação da mão de obra. Enfim, sua presença condicionava toda a economia, bem como as relações estabelecidas no processo da produção, projetando-se, ademais, na vida social e política do Brasil. Disso deve-se inferir que os segmentos sociais e econômicos não vinculados imediatamente ao escravismo também se viam influenciados e, em larga medida, determinados, sobretudo no que tange à definição dos limites do espaço econômico em que lhes era dado atuar, pelo capital escravista-mercantil. É justamente sobre tamanha dominância que se assenta o engano dos que imaginam encontrar aqui o assim chamado “escravismo capitalista” ou propugnam pela existência de um pretenso modo de produção colonial. Como sabemos, seria difícil superestimar o papel do capital comercial (aliado, no caso, ao capital de empréstimo) quanto ao processo de ocupação, povoamento e valorização das terras lusas no Novo Mundo; assim, a colônia pode ser vista como uma criação do consórcio estabelecido entre o poder régio e o capital comercial. Ao primeiro, além da 104

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estruturação e aparelhamento das instâncias burocráticas e administrativas, coube garantir o acesso à terra – meio de produção básico – aos que demonstrassem deter os cabedais necessários para explorá-la. A geração das demais condições materiais que embasaram o aludido processo ficou, sabemo-lo à farta, a cargo do capital comercial. Destarte, este último encarregou-se do financiamento do empreendimento agrícola no Brasil, do fornecimento de mão de obra africana e bens de consumo e de produção oriundos da Europa, bem como monopolizou a colocação da produção brasileira nos mercados mundiais. É nessa medida que a colônia pôde ser vista como um mero apêndice da economia europeia a funcionar como um enclave em permanente expansão e que flutua sobre o nada. É este, pois, o locus no qual se desenvolveu o capital escravista-mercantil, o qual só podia se comunicar com o mundo que lhe era externo mediante a intermediação do capital comercial, mas que não se identificava com o capital comercial, nem representava “uma parte” do capital comercial a projetar-se sobre o mundo da produção. Estamos em face, pois, de duas categorias (formas de existência do capital) distintas e que apresentam dinâmicas, dimensões sociopolíticas e articulações econômicas que lhes são peculiares. O arranjo assim constituído, no qual o capital comercial funcionava como interface entre a colônia e os mercados externos, acarretou pelo menos quatro consequências que marcaram nossa história e nossa historiografia. Em primeiro, dele derivou o “sentido da colonização” como pensado por Caio Prado Júnior; tal visão, repisemo-lo, prende-se, sobretudo, à forma como a valorização das novas terras aparece ao observador que a toma da perspectiva do comércio externo, não levando em conta, portanto, a existência do capital escravista-mercantil, ao qual, com base na exploração do trabalho escravo, cumpria, além da apropriação de parcela substantiva da mesma, a própria criação da mais-valia. Em segundo, a preeminência do capital comercial no que tange à articulação entre os distintos mercados permitiu a emergência e subsistência de um complexo econômico que tinha suas bases produtivas no Brasil, sua fonte básica de mão de obra na África e que contava com os mercados europeus para a colocação 105

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da produção exportável. Em terceiro, o isolamento propiciado pelo capital comercial e pelas práticas mercantilistas possibilitou à economia europeia beneficiar-se dos efeitos dinâmicos oriundos do Novo Mundo e garantiu a solidez e a robustez que informaram o escravismo moderno, elementos esses da mais alta relevância para o pleno funcionamento e permanência no tempo da exploração desenvolvida pelo capital escravista-mercantil. Por fim, dado o referido isolamento, o capital escravista-mercantil não só comportou, no âmbito de sua dominância, a existência de dimensões e articulações que iam muito além dos estreitos limites do capital comercial como também propiciou o surgimento de muitas de tais articulações, as quais operavam de sorte a garantir a persistência do capital escravistamercantil e enriqueciam e diversificavam o quadro econômico e social no qual se movimentavam as populações do Brasil escravista. Da ação do capital escravista-mercantil decorria, ademais, a reposição de alguns de seus pressupostos, agora derivados de sua própria existência. Assim, os escravistas apoderavam-se de parte substantiva da mais-valia gerada no processo de produção e o escravo dela emergia na mesma condição de sujeição inicial. Por outro lado, o capital escravistamercantil só podia atuar mediatamente sobre seus outros pressupostos (fontes supridoras de escravos e mercados mundiais de colocação dos bens exportáveis), não lhe sendo possível, portanto, repô-los, pois tais pressupostos lhe eram externos e para ele definiam-se como dados. Evidenciase palmarmente, pois, que o capital escravista-mercantil, enquanto tal, mostra-se incapaz de prover todos os elementos necessários à sua reprodução, não podendo, portanto, dar suporte a um específico modo de produção. Esse mesmo argumento pode ser avocado para desqualificar a opinião segundo a qual, a contar de determinado ponto de nossa história, cumpria à economia escravista brasileira reproduzir-se autonomamente. Essa tese mostra-se ainda mais equivocada se lembrarmos que o processo de acumulação próprio do capital escravista-mercantil não o liberava dos pressupostos que lhe eram externos, ao contrário, tornava-o ainda mais dependente deles, pois, à medida que se dava a ampliação da 106

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produção escravista-mercantil, maiores eram suas exigências em termos de suprimento de cativos e de escoamento da produção efetuada.12 Pode-se concluir, pois, que a constituição, no Brasil, de uma economia reflexa e dependente não decorreu meramente da exploração metropolitana ou do fato de a colônia ter sido votada ao fornecimento de produtos para o comércio europeu, mas derivou, essencialmente, das próprias entranhas da forma de capital cujo predomínio marcou nossa história até 1888. De outra parte, como avançado, cremos que o surgimento e o desenvolvimento de 12 É interessante notar que, embora, para sua reprodução, o capital escravista-mercantil exija a presença de elementos de ordem interna e externa, o mesmo não ocorre com respeito a sua negação, pois a falta de qualquer pressuposto, endógeno ou exógeno, é bastante para provocar sua ruptura. Assim, e aqui falamos em termos hipotéticos e não exaustivos, o golpe mortal poderia advir de um único fator ou de uma combinação deles, fossem internos ou não; consideremos algumas possibilidades: 1) tal golpe poderia decorrer de uma decisão política das próprias elites dominantes ou de uma cisão no âmbito das mesmas de sorte a fazer com que houvesse um confronto entre as facções discordantes, parece ter acontecido justamente isto nos EUA; 2) a sublevação dos cativos é outra causa a levar em conta, talvez tenha sido essa a experiência vivida no Haiti; 3) uma forte expansão da demanda internacional por tal ou qual bem produzido por dada economia escravista poderia levá-la a encontrar tamanhas restrições quanto ao aliciamento de mão de obra cativa que a busca de uma alternativa não escravista se impusesse; 4) pode-se pensar, correlatamente, que a retração violenta dos mercados mundiais para os bens oferecidos por dada economia escravista poderia levá-la, no médio prazo, ao colapso, pois lhe faltariam os recursos para sustentar-se enquanto tal; 5) obedecidas as condições por nós admitidas como válidas, a supressão do tráfico também conduziria, inexoravelmente, o capital escravista-mercantil ao desaparecimento. No Brasil, o golpe fatal decorreu justamente desta última medida, a ela somaram-se a expansão da demanda mundial por café – o que levou à busca da solução imigrantista –, o movimento abolicionista que empolgou parte das elites e largas faixas das camadas médias urbanas e a insubordinação dos cativos, sempre presente e sempre frustrada, mas naquela altura potencializada pelo abolicionismo (coloque-se aqui, entre parênteses, que não estamos advogando uma articulação mecânica entre esses fatores; para uma crítica da visão estreita sobre tal articulação veja-se Cardoso, 1977, pp. 188-269). Ademais, na medida em que, no âmbito das sociedades escravistas modernas, vão, a pouco e pouco, consubstanciando-se as condições para o estabelecimento generalizado do trabalho assalariado, a transição para estas relações de produção – inclusive com a presença de formas de exploração do trabalho livre como os contratos de parceria, de locação de serviços e o sistema do colonato – não assumiu caráter traumático, dando-se o mesmo com respeito à transformação do capital escravista-mercantil em capital industrial, mas estas já são questões que, por extrapolarem o escopo destas notas, deixamos para um trabalho futuro.

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uma vida econômica relativamente autônoma, “voltada para dentro”, não só se mostrava compatível com a forma capital escravista-mercantil, mas, em larga medida, dela decorreu.13 Assim, tanto a economia escravista moderna, em geral, como a sociedade brasileira, em particular, devem sua existência e conformação estrutural básica ao capital escravista-mercantil, não podendo ser vistas, portanto, nem como uma mera projeção do capital comercial no plano da produção, nem como um simples apêndice da economia europeia, destinado, exclusivamente, a complementá-la e a servir, tão somente, a interesses forâneos. Não é ocioso repisar que a falta da consideração do capital escravista-mercantil leva ao falseamento da natureza e do caráter essencial da economia e da sociedade aqui estabelecidas. Fica evidenciado, também, que o argumento lembrado no início destas notas e referente ao assim chamado “determinante em última instância” não é pertinente para justificar as limitações do modelo explicativo de Caio Prado Júnior, pois tais determinantes em última instância dizem respeito ao fato de se haver constituído, no Brasil, uma sociedade embasada no capital escravistamercantil – que só podia se reproduzir a partir de pressupostos de ordem interna e externa –, não implicando, portanto, elemento que possa vir em abono do modelo reducionista de Caio Prado Júnior, este sim, calcado na projeção imediata do capital comercial na esfera da produção, o que tornaria a sociedade e a economia brasileiras meros apêndices, unívoca e integralmente, determinados pelos mercados mundiais e pelos interesses econômicos metropolitanos. 13 Tomemos, apenas para exemplificar, o caso da possibilidade de acesso à terra sob a forma de usufruto. Como visto, as pessoas livres despossuídas podiam, sob a rigorosa “vigilância” dos potentados envolvidos, ocupar e permanecer mais ou menos precariamente em áreas cedidas; nessa circunstância patenteia-se a situação segundo a qual o capital escravista-mercantil comportava uma forma paralela e relativamente autônoma de vivência social e econômica. Paralelamente, o próprio capital escravista-mercantil “secretava” alforriados que, eventualmente, passavam a “gozar” da mesma “benesse” representada pela ocupação de lotes cedidos, situação essa que decorria da aludida forma de capital.

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Explorar as ponderações aqui expendidas, aprofundar o conhecimento sobre suas implicações quanto à nossa formação socioeconômica e promover um amplo debate sobre o tema – o que procuramos provocar com este escrito – não só é fundamental para o dilucidamento definitivo dos problemas centrais aqui abordados como, certamente, lançará novas luzes sobre antigas divergências teóricas concernentes àquela formação.

11. Esboço de uma categorização alternativa Como indicado recorrentemente no correr destas notas, o enquadramento das principais atividades produtivas desenvolvidas no período escravista brasileiro em apenas duas categorias – grande lavoura e agricultura de subsistência – parece-nos muito restritivo. A limitação maior, como anotado, prende-se à produção destinada ao mercado interno, o qual, embora reconhecidamente secundário vis-à-vis a produção votada aos mercados internacionais, mostrava, a nosso juízo, dimensões, articulações e complexidade devidas ao capital escravista-mercantil do qual também decorriam. Assim, tanto para caracterizações de corte genérico como para orientar levantamentos de ordem empírica, parece-nos recomendável, quanto à categorização dos bens então produzidos, a adoção de três grandes grupos: mercado externo, mercado interno e autoconsumo. A produção destinada ao mercado externo deve abranger não só os gêneros agrícolas em geral (algodão, café, couros, etc.), mas também os bens provenientes da manufatura rural (açúcar, aguardente e fumo), do extrativismo (vegetal e animal) e da mineração. Os produtores, por seu turno, devem ser considerados segundo a escala que assumiam suas atividades, vale dizer, além dos grandes proprietários escravistas, é necessário tomar em conta os pequenos e médios (lavradores de cana cativa ou a partido, por exemplo), os que não podiam contar com a mão de obra 109

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cativa, assim como os escravos que, em reduzido número e pequeníssima proporção, também participavam, mediante os cultivos realizados em pequenos lotes, daquele mercado. Já quanto à produção colocada no mercado interno, além de se levar em conta os proprietários de grande porte, é preciso dar lugar para os pequenos e médios escravistas, bem como para os que, só dispondo da mão de obra familiar, participavam dos mercados locais, sistemática ou esporadicamente; mesmo os escravos, como sabido, viam-se, sempre muito modestamente, representados nessa esfera da produção. O autoconsumo, por seu turno, tinha ao menos duas dimensões às quais se deve emprestar especial atenção: a produção para o consumo imediato desenvolvida pelos próprios cativos em terras de seus proprietários e aquela efetuada por homens livres sem posses ou detentores de pequenas glebas e, eventualmente, de uns poucos cativos. Enquanto estes últimos estavam apartados dos processos de acumulação, a atividade dos cativos enquadrava-se, como parte do trabalho necessário, por via de regra, na esfera da produção comercial. Cumpre notar, por fim, que essa caracterização de ordem genérica tem de ser acompanhada, sobretudo no caso de pesquisas que envolvam levantamentos de dados em fontes primárias, da complementação propiciada por uma pertinente classificação das ocupações e atividades econômicas segundo ramos e setores, na qual, evidentemente, haverá lugar para os transportes, comércio, artesanato, serviços, etc.14

12. Considerações finais Seria ocioso sumariar as linhas de raciocínio e os argumentos desenvolvidos nestas notas. Faz-se necessário, não obstante, fixar alguns 14 Para uma categorização consistente e pormenorizada das atividades e/ou ocupações econômicas desenvolvidas no Brasil até o advento da República veja-se Costa e Nozoe (1987, pp. 69-87).

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pontos que nos parecem mais relevantes e poderão informar futuros debates e encaminhar novos questionamentos. Parece-nos oportuno, antes do mais, repisar a necessidade e a factibilidade de se efetuarem críticas de fundo quanto aos modelos interpretativos concernentes à nossa formação socioeconômica. Não seria descabido afirmar que, com respeito ao tema, muitas questões restam em aberto e há um largo campo para o estabelecimento de um amplo leque de enriquecedores esclarecimentos. Neste escrito, centrando-nos na visão proposta por Caio Prado Júnior e visando a apresentar argumentos aptos a superá-la, vimo-nos compelidos a considerar vários daqueles modelos. Nossa esperança é que também tenhamos conseguido contribuir para a superação de alguns deles; não obstante, estamos certos de que os problemas afetos à nossa proposição sobre uma quarta forma específica de existência do capital, o capital escravista-mercantil, sobre a qual repousaria a formação econômica da sociedade brasileira, estão a merecer a observação crítica e as indispensáveis qualificações por parte de outros autores, aos quais, também cumprirá, caso aceitem o repto, ajudar-nos a precisar tal categoria, de sorte a possibilitar a identificação dos eventuais desdobramentos que a mesma possa vir a oferecer. No aguardo do julgamento de nossos colegas e de suas necessárias retificações damos, pois, a lume, ainda que imperfeitas, estas notas.

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REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

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8. ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO: A SUPERAÇÃO DE UM DILEMA ATRAVÉS DO CONCEITO DE CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL João Paulo A. de Souza1

1. Introdução Neste artigo, apresenta-se a proposta de Pires e Costa (1995, 2000), segundo a qual a economia brasileira no período escravista teria estado sujeita a uma forma específica do capital, o capital escravista-mercantil. Essa proposta permite, a nosso ver, a superação de uma dicotomia a que teria sido levada a historiografia brasileira nos últimos anos. De um lado dessa dicotomia estaria o modelo do Sentido da Colonização, proposto originalmente por Caio Prado Júnior e desenvolvido por diversos autores que adotam esse paradigma. Ao retratar a sociedade colonial como uma projeção imediata da expansão comercial europeia, resultando no trinômio escravismo/grande propriedade/monocultura, essa abordagem tem enfrentado dificuldades em acomodar as recentes evidências empíricas de que a economia colonial era, na verdade, mais complexa do que esse retrato sugere, podendo inclusive apresentar-se como uma economia relativamente autônoma, realizadora de acumulações endógenas. 1 O autor agradece, com as isenções de praxe, os comentários de Nelson Nozoe, Iraci Costa e Eleutério Prado.

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No extremo oposto, situar-se-ia o modelo do Arcaísmo como Projeto, proposto por Fragoso e Florentino (2001), o qual, ao tentar acomodar essas evidências empíricas, acaba recusando a existência de um sentido da colonização tal como originalmente formulado. Em que pese a imensa contribuição desses modelos para o entendimento da economia colonial brasileira, acreditamos que a dicotomia acima tem um caráter vicioso. A primeira resposta, a nosso ver, poderia ser caracterizada como a que preserva a essência que nos permite compreender a formação de nossa sociedade, ou seja, o Sentido da Colonização em suas diversas formulações. Entretanto, isso é feito ao custo de, muitas vezes, sofrer a contradição dos fenômenos empíricos, que não se encaixam bem em um modelo marcado pela derivação imediata dessa essência. A segunda resposta, por sua vez, pode ser caracterizada como a que preserva a aparência de nossa sociedade colonial, ou seja, os fenômenos empíricos, mas ao preço de perder a essência, através da recusa das formulações originais do Sentido. A proposta do capital escravista-mercantil, pelo contrário, a nosso ver, é a que permite conservar tanto a essência como os fenômenos, admitindo explicitamente a relação contraditória entre essas duas esferas. O artigo está organizado da seguinte forma. Na seção 2, abaixo, apresentamos brevemente o paradigma pradiano, incluindo as principais formulações do sentido, bem como suas derivações imediatas. Em seguida, na seção 3, descrevemos alguns dos principais resultados da literatura empírica desenvolvida nas últimas décadas, como forma de mostrar sua relativa inadequação ao modelo pradiano. A seção 4 dedica-se a analisar como a historiografia recente se comportou em face desse problema. Nela apresentamos o modelo do Arcaísmo como Projeto. A seguir, na seção 5, argumentamos em favor de uma resposta alternativa, que assuma explicitamente a relação contraditória entre o Sentido da Colonização e as evidências empíricas, levando à sua superação. Essa tarefa será feita com o auxílio de uma analogia com a forma como Marx apresenta o desenvolvimento da lei do valor em O Capital, que consideramos um caso exemplar 116

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de superação de uma contradição entre a essência e a aparência do sistema econômico. Por fim, a seção 6 apresenta o modelo do capital escravistamercantil, bem como seu sentido lógico na superação dessa contradição. A seção 7 conclui o artigo.

2. O paradigma pradiano 2.1 As principais acepções do sentido da colonização Publicada pela primeira vez em 1942, Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., rompeu com a ideia até então presente de que a evolução da economia colonial brasileira seria uma mera sucessão de ciclos, em que uma atividade dinâmica atingiria a posição hegemônica para, após sua decadência, ser substituída por outra atividade em ascensão. Segundo o autor, sempre haveria uma “linha-mestra” na evolução dos povos, e caberia ao estudioso utilizá-la como chave explicativa para a compreensão dessa evolução, do contrário ininteligível. No caso particular da sociedade brasileira, nascia a ideia do Sentido da Colonização, princípio que explicaria a essência de nossa evolução no período colonial, iluminando, ademais, muitos dos problemas com que se confronta o Brasil contemporâneo. A primeira formulação da linha-mestra de nossa história foi feita pelo próprio autor. Segundo ele, o sentido de nossa colonização é indissociável da expansão comercial e marítima da Europa nos séculos XIV e XV: Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era que se convencionou chamar com razão de “descobrimentos” articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu. (Prado Jr., 1957, p. 16)

O povoamento do Brasil e a estrutura econômico-social aqui desenvolvida decorreram dessa expansão do capital comercial. A empresa que aqui se instalou, portanto, teria sido desenhada para lograr um fim defi117

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nido: a contínua transferência de excedente econômico para o capital mercantil metropolitano através da produção e exportação de produtos tropicais. No seu conjunto e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa do que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos. (Ibid.)

O então inovador conceito de Sentido da Colonização logo se tornaria o principal elemento a motivar a pesquisa historiográfica sobre a formação da economia brasileira, rendendo ao programa de pesquisa em torno dele estruturado a alcunha de Paradigma Pradiano. Ao longo dos anos, alguns autores que, em boa medida, compartilham o enfoque de Caio Prado, propuseram novas formulações para o Sentido. Entre elas destaca-se a de Fernando Novais, elaborada na década de 70. Esse autor, através de sua análise do antigo sistema colonial, expande o significado do Sentido da Colonização inserindo-o no quadro mais amplo da transição do feudalismo para o capitalismo industrial na Europa. A propósito da formulação original de Caio Prado, afirma Novais: Se combinarmos, agora, esta formulação – o caráter comercial dos empreendimentos coloniais da época moderna – com as considerações anteriormente feitas sobre o Antigo Regime – etapa intermediária entre a desintegração do feudalismo e a constituição do capitalismo industrial – a ideia de um “sentido” da colonização atingirá seu pleno desenvolvimento. (1977, p. 30)

De acordo com Novais, essa transição seria realizada por intermédio da expansão do capital comercial na era moderna. Assim, se a essa modalidade do capital cumpria instaurar o capitalismo industrial na Europa, a instalação, também levada a cabo por ela, das empresas coloniais no Novo 118

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Mundo teria um papel nesse processo. Com efeito, a extração de trabalho excedente nas colônias teria como função última contribuir para a chamada acumulação primitiva, um pré-requisito para a aludida transição rumo ao capitalismo industrial. Examinada, pois, nesse contexto, a colonização do Novo Mundo, na época moderna, apresenta-se como peça de um sistema, instrumento da acumulação primitiva, da época do capitalismo mercantil. (...) Completa-se, entrementes, a conotação do sentido profundo da colonização: comercial e capitalista, isto é, elemento constitutivo no processo de formação do capitalismo moderno. (Ibid., p. 33)

Embora procedendo de maneira distinta da de Caio Prado e Novais na derivação das implicações do Sentido para a estrutura e a evolução histórica da sociedade colonial brasileira, Costa (1999) formula o que se pode considerar uma outra versão da direção essencial dessa evolução. Segundo o autor, ao desenvolvimento do capitalismo na Europa Ocidental correspondeu o estabelecimento de um sistema socioeconômico planetário marcado pela generalização da produção de mercadorias. A expansão colonial, por sua vez, seria parte desse processo. A generalização da produção mercantil deu-se, no início, sob a égide dos capitais comercial e usurário. Em seguida, com a transformação da própria força de trabalho em mercadoria, passou a ser comandada pelo capital industrial. A integração das novas regiões ao capitalismo deu-se sob variadas formas, dependendo das condições geográficas, econômicas e demográficas de cada região no momento de seu contato com a expansão europeia. No Leste europeu, passou-se à produção de mercadorias com base no trabalho servil ou na imposição de tributos aos servos; no Oriente, por sua vez, mediante a comercialização de excedentes da produção artesanal e agrícola, através das feitorias; na África, por meio da exportação de bens e da produção de mão de obra escrava; por fim, na América tropical, através da produção de mercadorias com participação fundamental do trabalho cativo. 119

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O Sentido, desse modo, ganha uma formulação complementar à de Novais. Além de auxiliar o desenvolvimento do capitalismo na Europa Ocidental, cada uma das formas de exploração descritas acima teria como resultado a incorporação e subordinação, ao modo de produção capitalista, dos demais espaços econômicos e geográficos passíveis de ocupação.2 Com o desenvolvimento do capitalismo, tais formas, especialmente aquelas baseadas em trabalho não assalariado, tenderam a modificar-se, adquirindo um caráter tipicamente “capitalista”. 2.2 As heurísticas do sentido da colonização Segundo Lakatos (1979), cada programa de pesquisa científico evolui guiado por regras metodológicas que informam a pesquisa futura que nele deve ser realizada, chamadas “heurísticas”. Essas regras seriam divididas em dois tipos: em termos gerais, a heurística positiva de um programa nos diz quais caminhos devem ser trilhados, ao passo que a heurística negativa nos diz quais caminhos devem ser evitados. A heurística positiva é composta por sugestões a respeito de como desenvolver e, por vezes, modificar aquele conjunto de proposições e hipóteses auxiliares que compõem o conjunto de “variantes refutáveis” do programa de pesquisa, chamado por Lakatos de “cinto de proteção”. Através da heurística positiva, buscam-se ora fatos já esperados que possam ajudar a desenvolver o conjunto de proposições do programa de pesquisa, ora fatos novos que, no entanto, nele possam ser acomodados. A heurística negativa, por sua vez, tem como referência o “núcleo” do programa de pesquisa, aquele conjunto de hipóteses e proposições cruciais cuja refutação enfraquece sobremaneira o programa de pesquisa, 2 “Essas formas paralelas não decorreram da lógica de funcionamento do capital industrial, não dimanaram de sua essência e não se impuseram, portanto, como necessárias, mas apresentaram-se, tão somente, como soluções datadas, concretamente dadas, por meio das quais se deu a incorporação/subordinação, aos interesses do capitalismo que se instalava na Europa Ocidental, dos espaços econômicos e geográficos passíveis de ocupação” (Costa, 1999, p. 2).

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podendo inclusive levar ao seu abandono. Assim, a heurística negativa nos diz não somente os caminhos que não encontram lugar adequado no programa de pesquisa, mas também o potencial destrutivo de alguns desses caminhos. Após enunciar acima as principais versões do Sentido da Colonização, é natural perguntar-se quais seriam as heurísticas derivadas do programa de pesquisa por ele informado. Para encontrá-las, é necessário primeiro conhecer seu conjunto de proposições fundamentais, seu “núcleo”. Ora, ele é fornecido prontamente pela própria obra de Caio Prado: segundo o autor, a sociedade brasileira, organizada para fornecer gêneros tropicais ao comércio europeu, apresentaria uma estrutura econômica de viés exportacionista, com dinâmica reflexa, e baseada no trinômio grande propriedade, monocultura e mão de obra cativa. A heurística positiva deveria, portanto, buscar detalhar as implicações desse núcleo, além de gerar hipóteses testáveis tendo ele como referência. Dentro do programa de pesquisa pradiano, há dois exemplos bastante conhecidos da operação dessa heurística. O primeiro deles diz respeito aos motivos que levaram à adoção de mão de obra cativa vinda da África, em oposição à mão de obra livre ou ao elemento nativo. Para Caio Prado, essa fato deveu-se, sobretudo, à ausência de excedentes populacionais na metrópole, combinada com a ausência de uma oferta adequada de mão de obra indígena na colônia. Novais (1977), por sua vez, modifica essa hipótese auxiliar, dizendo que a principal causa da importação de trabalhadores africanos é o próprio tráfico negreiro e os excedentes comerciais por ele gerados; estes últimos, apropriados pelo capital mercantil metropolitano, serviriam ao propósito último da acumulação primitiva. O segundo exemplo, por sua vez, relaciona-se às atividades econômicas não diretamente ligadas à lavoura exportadora. Caio Prado reserva pouca função a tais atividades, dizendo que elas tinham um caráter subsidiário e que se resumiam basicamente ao comércio de mercadorias importadas para o abastecimento de núcleos urbanos. As fazendas exportadoras, 121

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por sua vez, eram por ele consideradas unidades autárquicas, em grande medida autossuficientes. No clássico Formação Econômica do Brasil, Furtado (1961), que partilhava do paradigma pradiano, atribui um caráter funcional mais importante ao setor não exportador. Segundo o autor, em momentos de conjuntura econômica externa favorável, haveria expansão do setor exportador e concentração de seus recursos produtivos na produção dos bens exportáveis. Esse movimento seria acompanhado do aumento do mercado interno voltado ao fornecimento de gêneros de consumo a esse setor exportador, havendo, inclusive, aumento do grau de monetização das trocas. Por outro lado, em momentos de crise, as unidades exportadoras voltariam a empregar seus fatores, agora ociosos, na produção autárquica de bens de consumo e, por conseguinte, haveria regressão do mercado interno para atividades de subsistência de baixa monetização. Esse movimento pendular emprestava resiliência ao sistema em épocas de crise, impedindo que estas ensejassem mudanças estruturais mais amplas. Os dois casos acima exemplificam a operação da heurística positiva. Neles, Novais e Furtado propuseram hipóteses ora para desenvolver proposições que não haviam sido objeto de um detalhamento na obra de Caio Prado – por exemplo, Furtado dá um caráter funcional ao setor não exportador antes apenas vislumbrado –, ora para propor uma explicação alternativa para uma de suas proposições nucleares – como foi o caso de Novais. Em ambos os casos, pode-se dizer que o objeto das proposições foi o cinto protetor do programa. Similarmente, em nenhum deles foi dito algo que pudesse comprometer seriamente o núcleo – vale dizer que, para Furtado, o desenvolvimento do setor interno acompanharia as flutuações do setor exportador, não se conferindo um grau de autonomia significativo àquele. Quais seriam, por fim, as heurísticas negativas ligadas ao Sentido da Colonização? Em termos gerais, pode-se dizer que os caminhos que nele não se acomodam e que, em última instância, poderiam ser-lhe nocivos, são, por exemplo, pesquisas que demonstrem a existência de um mercado 122

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interno significativo, baseado ou não no uso da mão de obra escrava; a existência de acumulação endogenamente gerada; a importância demográfica e econômica do contingente de homens livres não proprietários; a constituição de uma elite colonial lastreada em um “capital residente” e dona de interesses divergentes daqueles de sua contrapartida metropolitana, entre outros temas secundários.

3. Evidências empíricas Após o desenvolvimento das pesquisas baseadas no paradigma pradiano, bem como as críticas de caráter eminentemente teórico que lhe foram dirigidas no final dos anos 60 e início dos anos 70,3 ganharam força, sobretudo nos anos 80 e 90, pesquisas empíricas de caráter marcadamente monográfico, que colocavam ênfase no uso de fontes primárias. Obviamente, não pretendemos aqui esgotar a vasta literatura produzida por essas pesquisas, mas apresentar alguns de seus principais resultados, os quais, em conjunto, nos fornecem um retrato diversificado da sociedade colonial brasileira que, no mínimo, não se acomoda confortavelmente no modelo de Caio Prado Jr., ameaçando em alguns casos suas proposições fundamentais. 3.1 Os setores não exportadores Como vimos, a adoção, como núcleo propositivo, do trinômio escravismo, latifúndio e monocultura por Caio Prado Jr. resultou na divisão da economia colonial em dois setores: um exportador, lócus privilegiado da acumulação e responsável por ditar a dinâmica cíclica dessa economia, e um de produção voltada ao abastecimento interno, isolado das oportunidades de acumulação e frequentemente associado à produção de subsistência. 3 Trataremos brevemente dessas críticas em nota no final do artigo.

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Entretanto, um dos principais resultados da recente literatura empírica foi demonstrar a existência de um mosaico de modalidades produtivas não diretamente exportadoras, havendo desde unidades devotadas à produção de subsistência até aquelas de caráter comercial voltadas à produção de gêneros para o mercado interno mediante uso de mão de obra cativa. Em primeiro lugar, parte da literatura empírica afirma que as unidades exportadoras eram menos autárquicas do que se esperava. Fragoso (1988), por exemplo, mostra que no médio vale do Paraíba, na primeira metade do século XIX, um quarto das despesas das fazendas exportadoras era destinado à compra de alimentos, proporção que só aumentaria se fossem contabilizados outros gêneros de abastecimento, tais como ferramentas e animais de tiro. No Recôncavo Baiano, por sua vez, havia um significativo mercado de gêneros de consumo trazidos de Sergipe já nos séculos XVII e XVIII. Com relação à produção comercial destinada ao mercado interno, destaca-se o estudo de Castro (1987), que tem como objeto a localidade de Capivary, na baixada fluminense. Os gêneros produzidos na região, café capitânia e farinha de mandioca, não faziam parte do rol de produtos coloniais exportados, sendo, portanto, destinados ao mercado interno. Apesar disso, a autora constatou que a região era importadora de escravos na primeira metade do século XIX e que seus maiores produtores continuaram a comprar escravos mesmo durante a crise do comércio negreiro, após 1850. As unidades pesquisadas figuravam em um almanaque que arrolava empreendimentos de caráter marcadamente comercial, e sua organização destacava-se pela semelhança, embora em escala reduzida, com aquela das plantations exportadoras. Além das empresas que, como as estudadas por Hebe Castro, tinham fins assumidamente comerciais e utilizavam mão de obra cativa, destacamse aquelas geridas por homens livres e não proprietários, mas que destinavam parte de sua produção ao mercado interno, tais como as estudadas por Costa (1992). Segundo esse autor, embora a posse fundiária no Brasil 124

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colonial fosse excludente, o usufruto da terra era mais “permissivo”, comportando diversas modalidades associativas, tais como a parceria, a obrigação, o arrendamento e a agregação. Como resultado, os homens livres e pobres não eram excluídos do acesso à terra, podendo constituir comunidades voltadas ao plantio, tanto para a subsistência como para a comercialização de eventuais excedentes. Em seu estudo, o autor analisou, para fins do século XVIII e inícios do século XIX, núcleos localizados em São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais e Bahia, bem como localidades no Piauí para os anos 1697 e 1762. Entre suas principais conclusões, destaca-se o fato de que os não proprietários não eram excluídos das áreas economicamente mais dinâmicas, em particular daquelas ligadas à exportação, aproveitando as oportunidades por elas apresentadas. Além disso, em setores de significativo peso econômico, como a agricultura e a manufatura rural, bem como o comércio e os transportes, a distribuição entre proprietários e não proprietários era relativamente equilibrada, ainda que os primeiros concentrassem as atividades que exigiam mais preparo educacional ou investimento inicial. Em nenhum ramo, porém, a prevalência de um grupo implicava a exclusão do outro. Quanto à participação de cada grupo no produto gerado, os não proprietários, embora participassem com relativa modéstia no setor de bens exportáveis, dominavam um conjunto significativo de bens e serviços voltados ao abastecimento interno. Embora muitos dos não proprietários destinassem ao mercado apenas excedentes ocasionais, eles conjuntamente ocupavam, de forma consistente, uma importante fatia do mesmo. Não é necessário insistir que o fato de a economia escravista da época permitir, mesmo nas regiões mais dinâmicas, o desenvolvimento de atividades de peso econômico não vinculadas imediatamente seja à grande lavoura, seja à mão de obra cativa, não se encaixa confortavelmente nas derivações imediatas do Sentido da Colonização. Para tanto, basta relembrar um famoso trecho do Formação do Brasil Contemporâneo em que Caio Prado nega qualquer caráter funcional à massa de homens livres e não proprietários: 125

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Abre-se assim um vácuo imenso entre os extremos da escala social: os senhores e os escravos (...). [Esses] dois grupos são os dos bem classificados na hierarquia e na estrutura social da colônia: os primeiros serão dos dirigentes da colonização nos seus vários setores; os outros, a massa trabalhadora. Entre essas duas categorias nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. Aquele contingente vultoso em que Couty, mais tarde, veria o “povo brasileiro”, e que pela sua inutilidade, daria como inexistente, resumindo a situação social do país com aquela sentença que ficaria famosa: “le Brésil n’a pas de peuple”. (1957, pp. 279-280)

Muitas atividades não exportadoras, como se vê, eram realizadas por unidades em que se empregava tanto a mão de obra cativa como a mão de obra livre. Um exemplo particularmente interessante de tal atividade é a manufatura têxtil doméstica, em que se ocupavam tanto livres como escravos, geralmente do sexo feminino. Libby (1997) estudou um inventário de teares elaborado em Minas Gerais no final do século XVIII, com o objetivo original de subsidiar a execução do famigerado Alvará de 1885, que determinou a supressão de parte da indústria têxtil no Brasil. O autor demonstra que, pela quantidade e características dos equipamentos arrolados, a atividade era amplamente disseminada nos domicílios da capitania – com indicações de que algo similar ocorria em outras regiões da colônia –, apresentando algumas semelhanças com a protoindustrialização têxtil europeia de antes da revolução industrial. A indústria doméstica têxtil em Minas servia tanto para o autoconsumo familiar como para a eventual comercialização do produto, criando demanda, ademais, para a produção de algodão. Os fluxos no mercado interno a ela ligados são também mencionados por relatos de viajantes da época, que dão conta de uma rede de comércio de tecidos entre capitanias. Por fim, além das atividades realizadas por unidades comerciais e escravistas, e daquelas levadas a cabo por não proprietários, havia entre as atividades não exportadoras aquelas realizadas por escravos no âmbito 126

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daquilo que Cardoso (1987) chamou de brecha camponesa. Com efeito, ao contrário da visão propugnada por alguns autores que compartilham o enfoque pradiano, segundo a qual o escravo é um ser coisificado, comparado por vezes a uma unidade de capital fixo de que o senhor dispõe da maneira como quiser, as evidências demonstram que a negociação com os escravos era feita constantemente. Sem pôr em risco o escravismo como sistema, mas, ao contrário, visando ao aumento da produtividade do trabalho, bem como à diminuição de seu custo de reprodução e da resistência dos trabalhadores, os administradores das unidades produtivas lançavam mão de diversos recursos motivacionais, tais como a concessão de alforrias e de pequenos lotes para livre cultivo dos escravos. Diz-se desta última modalidade que abria uma “brecha” camponesa no sistema. A brecha camponesa é descrita por muitas fontes, desde viajantes da época até documentos como o testemunho do Barão de Pati do Alferes, analisado entre outros por Costa (1995), e a proposta de paz dos escravos revoltosos do Engenho de Santana de Ilhéus, analisado entre outros por Schwartz (1983).4 Esses documentos atestam que os cativos muitas vezes produziam gêneros destinados ao comércio em suas roças, contribuindo para a oferta no mercado interno.

4 Em Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro, publicada em 1878, o Barão de Pati do Alferes escreve um “manual” de administração de fazendas para seu filho, destacando a maneira correta de negociar com os escravos; há referências explícitas à necessidade de conceder lotes de terra para os escravos produzirem tanto gêneros de subsistência como aqueles dedicados ao comércio. Já o documento analisado por Schwartz é uma lista de exigências entregue por escravos revoltosos aos proprietários do Engenho de Santana de Ilhéus. Nela, demandam-se espaços nos navios que transportam os produtos do engenho para transportar a produção das roças dos escravos até as praças comerciais, denotando que a brecha camponesa tinha por vezes um caráter mercantil.

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3.2 Grau de autonomia Como vimos, os setores não diretamente ligados às atividades exportadoras apresentavam grande diversidade, sendo impossível colocálos sob a camisa de força derivada do Sentido da Colonização. Ao participarem tanto da constituição como do suprimento de um mercado interno colonial, podiam, nas suas vertentes de caráter mais marcadamente comercial, proporcionar acumulações endógenas à colônia, atribuindo-lhe relativa autonomia ante as flutuações do mercado internacional. Entre os estudos que buscam demonstrar tal autonomia, destacamse aqueles examinados em O Arcaísmo como Projeto, de Fragoso e Florentino (2001). Na porção dessa obra dedicada ao tema, os autores analisam a economia fluminense no período compreendido aproximadamente entre 1790 e 1840. Segundo os autores, a esse lapso corresponderia um ciclo de Kondratieff, cuja fase contracionista – dita fase B – abrangeria o período de 1816 a 1850. Seu argumento principal é o de que, nele, setores importantes da economia fluminense experimentaram uma expansão, ao contrário do que se esperaria de uma economia de caráter meramente reflexo. Por exemplo, mostram os autores que, entre 1799 e 1811, as receitas com a exportação de açúcar no porto do Rio de Janeiro caíram quase 20% ao ano, ao passo que, entre 1821 e 1831, foi a vez dos preços do café caírem cerca de 7% ao ano. Ao presumível colapso econômico a que tais cifras deveriam levar a região, os autores contrapõem dados que mostram uma evolução contrária. Em primeiro lugar, a lavoura canavieira no norte fluminense, constituída de 324 engenhos em 1800, já apresentava cerca de 700 em 1828. No médio vale do Paraíba, por sua vez, ocorreu na época a implantação da lavoura cafeeira. O comércio e a produção de gêneros de abastecimento voltados ao mercado interno também registrou comportamento semelhante. Segundo Fragoso (1988), as saídas de reses, toucinho e carne salgada de Minas Gerais aumentaram 170% entre 1818 e 1828. Já a exportação de charque do Rio Grande do Sul para o porto carioca, segundo Fragoso e Florentino 128

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(2001), aumentou 249% entre 1799 e 1822, ao passo que as importações cariocas de farinha de mandioca, produzida em diversas regiões, aumentou 307%. Como outra consequência da expansão da demanda agregada no período, os autores mostram que os preços dos alimentos ligados à dieta das classes populares e dos escravos elevam-se significativamente a partir do final do século XVIII até 1825. Ainda que se deva matizá-las,5 as evidências apresentadas por Fragoso e Florentino, em conjunto com as observações quanto ao mercado interno que vimos de apresentar, indicam a existência de uma relativa autonomia da economia colonial, ao menos em seu período tardio,6 ante as flutuações externas. Como corolário dessa relativa autonomia, os autores analisam o comportamento das transações comerciais externas do Brasil. Segundo a interpretação de Novais (1977), o caráter mercantilista do antigo sistema colonial impunha que a colônia fosse superavitária em seu comércio 5 Mariutti et alii (2001) apresentam algumas críticas relevantes à forma como Fragoso e Florentino interpretam os dados apresentados como evidência da autonomia da economia colonial ante as flutuações externas. A propósito dos dados relativos aos preços dos bens exportados, critica-se o fato de os autores do Arcaísmo haverem usado médias anuais para representar um período de elevada variância na série de preços. Essa variância, mostram eles, provocou períodos de significativa recuperação nos preços no interior da série analisada, o que poderia ter induzido os fazendeiros a investirem. Além disso, os autores destacam a vinda da corte portuguesa para o Rio em 1808 como um poderoso fator exógeno de dinamização da economia da região. Embora concordemos com essa última observação, que nos obriga a matizar o entusiasmo de Fragoso e Florentino, a suposição de que os fazendeiros não tenham podido dar-se conta da tendência de queda nos preços em um período de mais de dez anos, sendo confundidos por sua variância, parece restringir demasiadamente a racionalidade daqueles enquanto investidores. 6 Na primeira versão do Arcaísmo, datada de 1993, Fragoso e Florentino estendem o poder explicativo de suas pesquisas, que tratam do final do século XVIII e da primeira metade do século XIX, para todo o período colonial. Esse procedimento recebeu críticas de diversos autores, entre eles Mariutti et alii (2001). Como resultado, na segunda edição do Arcaísmo, lançada em 2001, Fragoso e Florentino restringem sua análise ao período coberto por suas pesquisas, que chamam de economia colonial tardia, correspondente ao período de consolidação das formas mercantis de acumulação e de hegemonia do capital mercantil residente.

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exterior com a metrópole para que esta, então, pudesse ser superavitária com o resto do mundo, através da revenda dos produtos coloniais. Entretanto, na passagem do século XVIII para o XIX, o Brasil registrou um déficit comercial bilateral com Portugal. De acordo com Fragoso e Florentino, tal situação foi sustentável durante o período porque havia um mercado interno de reexportação de bens a partir do porto do Rio de Janeiro para outras capitanias e mesmo para outras localidades do império ultramarino português. Esse mercado, dizem os autores, era relativamente infenso às conjunturas internacionais e, ademais, realizava boa parte de suas transações em moeda metálica, permitindo a cobertura do déficit sem restringir o crescimento da demanda agregada interna. Por fim, outro corolário da relativa autonomia da economia colonial é o chamado “paradoxo de Minas”: o fato de que Minas Gerais possuía o maior contingente de escravos do Brasil à época da abolição, mesmo depois da decadência da mineração. Como se sabe, a elevada razão de masculinidade de alguns dos plantéis da região desautoriza uma interpretação baseada apenas no crescimento vegetativo da população escrava – a qual, aliás, em si, não é suficiente para explicar sua manutenção em uma região já menos integrada ao fluxo exportador. Fragoso e Florentino, então, atribuem tal fato à rentabilidade das empresas da região, voltadas, em grande parte, ao abastecimento do mercado interno.7 3.3 Constituição de uma elite colonial Os autores de Arcaísmo como Projeto buscam mostrar que, na virada do século XVIII para o XIX, ao fortalecimento do mercado interno 7 Novamente, Maritutti et alii (2001) temperam o entusiasmo de Fragoso e Florentino, mencionando a interpretação de Robert Slenes, segundo a qual a mineração de diamantes para exportação tinha na época um peso considerável entre as atividades de Minas Gerais.

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colonial e de seu grau de autonomia em face da economia internacional, correspondeu a consolidação de uma elite colonial cuja hegemonia repousava sobretudo na acumulação mercantil e usurária. Inventários post-mortem e registros de transações registrados no Rio de Janeiro e coletados pelos autores indicam que a riqueza da parcela mais rica da população concentrava-se em investimentos mercantis e usurários. Fragoso (1988) mostra que 14% dos inventariados na praça carioca detinham, em termos de valor, 45% dos edifícios urbanos, 95% das dívidas ativas e 47% das empresas agrícolas. Já a parcela mais modesta entre os inventariados – ou seja, os mais “pobres” entre os ricos – viam suas opções se restringirem ao setor rural. Aqueles “negociantes de grosso trato” dominavam a concessão de liquidez e crédito, bem como o ramo de seguros. Eles também concentravam boa parcela dos negócios de comércio exterior, especialmente o tráfico negreiro. Neste, em particular, o capital residente tinha papel fundamental, tanto no financiamento como na organização de expedições. Note-se que esse comércio era primordial para a reprodução da economia escravista. Quanto à atividade creditícia dessa elite, Fragoso e Florentino destacam o fato de que um quarto da riqueza inventariada entre 1797 e 1840 estava anotada sob a forma de estoque de dívida. Conforme mostram os autores através da análise de processos de execução de dívidas, havia uma profusa rede de débitos e créditos no âmbito da elite colonial e entre esta e negociantes do Rio da Prata e do restante do império ultramarino português. Como exemplo, destaca-se a rede de financiamento que ligava os traficantes cariocas de escravos aos seus fornecedores residentes nas cidades portuárias da costa africana e, por fim, estes aos pombeiros, responsáveis pelo apresamento dos negros no interior. O exame dos processos de litígio denota com clareza a posição hegemônica dos negociantes cariocas nessa rede. A constituição, dentro da colônia, de uma elite apoiada em atividades de elevado poder de acumulação de capital e portadora de um 131

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considerável grau de autonomia ante o capital comercial metropolitano, certamente é um resultado que não se segue diretamente do modelo explicativo do Sentido da Colonização.

4. Um dilema na historiografia? Como vimos no início deste artigo, nos anos 40, a ideia de que a colonização da América tropical, e do Brasil em particular, foi realizada segundo móveis alheios ao desenvolvimento das sociedades que originalmente habitavam esses territórios, surgiu como chave explicativa destinada a dar conta dos determinantes essenciais da evolução dessas sociedades. Os autores que, com maior ou menor entusiasmo, a adotam, seja identificando o sentido dessa evolução na expansão do capital mercantil europeu, como faz Caio Prado, seja no processo de acumulação primitiva que resultaria no capitalismo industrial nas economias centrais, como faz Fernando Novais, ou seja ainda na instauração do modo de produção capitalista nas áreas ainda não sujeitas a ele, como faz Iraci Costa, o fazem por uma importante razão. Eles creem que, sem o entendimento dessa determinação essencial, a análise da evolução dessas sociedades tende necessariamente a ficar presa à superfície dos fenômenos, tal como a descrição da sucessão de ciclos por Simonsen, contra a qual se voltou a crítica de Caio Prado. De forma propositalmente simplificada, podemos expressar o projeto desses autores como uma opção pela essência, sem a qual a compreensão da aparência fenomenal de nossa sociedade ficaria seriamente comprometida. Por outro lado, vimos que esses fenômenos, expressos na literatura empírica aqui apenas breve e incompletamente exposta, muitas vezes não se acomodam bem nas proposições e heurísticas derivadas do Sentido da Colonização. Em alguns casos, as evidências mostradas, especialmente aquelas que atestam um grau não desprezível de autonomia das flutuações coloniais, parecem pertencer à heurística negativa do paradigma pradiano, contradizendo algumas de suas proposições fundamentais. 132

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Em face dessas evidências, enfim, o projeto fundamental dos autores desse paradigma fica comprometido: deseja-se preservar a essência (Sentido) porque se acredita que somente ela nos permite compreender os fenômenos; porém, os fenômenos parecem contradizer a essência. Assim, a historiografia fica diante de um aparente dilema: ou se preserva a aparência, ao custo de sacrificar a essência e, com ela, a chave para a compreensão da própria aparência; ou se preserva a essência ao preço de sofrer a contradição da aparência. Num certo sentido, podemos dizer que esse dilema foi enfrentado pela historiografia e que os modelos interpretativos propostos posicionaram-se ante essas duas alternativas. Os modelos que mais radicalizaram sua opção seguiram o caminho de preservar a essência em seu discurso ou aquele de preservar a aparência. O caminho da essência foi seguido pelos próprios autores que adotam o enfoque pradiano.8 Em seu discurso, insiste-se na derivação das proposições que se seguem diretamente do Sentido da Colonização, trazendo, basicamente, duas consequências já sugeridas na seção anterior. Em primeiro lugar, deixam-se de conhecer características importantes da economia colonial porque seu estudo não é sugerido pela heurística positiva do programa. Em segundo lugar, sofre-se, em determinados momentos, a contradição dos fatos, às vezes grave. O caminho que, por sua vez, recusa a essência – ou seja, o Sentido em sua acepção ampla de determinação externa, tal como o compreendemos aqui – para guardar os fenômenos foi seguido pelo modelo interpretativo proposto por Fragoso e Florentino (2001), o qual exporemos brevemente a seguir.

5. O Arcaísmo como Projeto Com efeito, para dar conta das principais evidências empíricas descritas acima, Fragoso e Florentino desenvolveram um novo modelo explicativo da evolução da sociedade colonial brasileira. 8 Iraci Costa, como veremos, posiciona-se de maneira diferente em face desse dilema.

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Segundo eles, a colonização do Brasil não foi o resultado da expansão de uma nascente burguesia comercial metropolitana. Ao contrário da colonização inglesa, por exemplo, que foi o resultado da associação da nascente burguesia com o Estado, a colonização portuguesa foi uma obra da nobreza do antigo regime. Isso se explicaria pelas características da península Ibérica, onde a nobreza não estava ligada apenas ao meio rural, mas, também e principalmente, às atividades urbanas e comerciais, fato expresso na famosa figura do “mercador fidalgo”. Assim, o objetivo da colonização ibérica não era o fortalecimento da burguesia metropolitana, mas a própria supressão dessa classe, visando, portanto, à manutenção da hegemonia da nobreza. Para os autores, isso explicaria por que, no império ultramarino português, nunca houve uma hegemonia absoluta do capital mercantil metropolitano, sujeito progressivamente à concorrência intraimperial. Como resultado, na fase tardia da colonização, puderam-se gestar poderosas comunidades mercantis nos trópicos, em particular na praça do Rio de Janeiro. Com isso, atendiam-se a dois objetivos. Em primeiro lugar, a acumulação interna à colônia não impedia a transferência do resultado final do funcionamento de sua economia à “elite arcaica” metropolitana. Em segundo lugar, dificultava-se o fortalecimento da classe burguesa na metrópole, impedindo-a de ameaçar a ordem do antigo regime. Fragoso e Florentino, portanto, mostram por que a metrópole não se opôs firmemente ao surgimento do capital residente no Brasil. Entretanto, falta explicar quais as condições que, na colônia, o permitiram. Nesse ponto, entram os fatores explicativos relacionados às evidências empíricas que discutimos acima. Segundo os autores, a reprodução da economia colonial repousava sobre o tripé da oferta elástica de mão de obra, alimentos e terras. Com relação ao primeiro elemento, a estrutura de posse de cativos revelada pelos estudos empíricos mostra que a escravidão era amplamente disseminada na sociedade, havendo, em diversas localidades importantes, um número grande de proprietários de pequenos plantéis, bem como uma 134

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quantidade considerável de forros proprietários de escravos.9 Esse fato, dizem eles, atesta um elevado grau de elasticidade da oferta de cativos, permitindo-se acomodar a demanda interna a preços “relativamente” acessíveis. Para explicar os determinantes dessa elasticidade, Fragoso e Florentino utilizam um interessante estudo das sociedades da costa ocidental africana, mostrando que o tráfico não era somente uma empresa do capital comercial, mas uma complexa articulação deste com a estrutura e a estratificação social dos reinos africanos fornecedores de mão de obra e, progressivamente, com os negociantes de grossa ventura do Brasil. No que tange ao segundo elemento do tripé, a oferta elástica de alimentos, os autores a explicam utilizando as evidências quanto ao mosaico de produções internas, que, como vimos, inclui desde empresas comerciais até unidades voltadas ao autoconsumo. No Arcaísmo, então, afirma-se que esses dados nos permitem refutar a tese da autarquia das fazendas exportadoras e, ao mesmo tempo, postular um elevado grau de elasticidade da oferta de alimentos, respondendo com prontidão a variações na demanda. Por fim, o terceiro elemento do tripé, a oferta elástica de terras, tem como razão principal, além da própria extensão territorial da colônia, o fato de o usufruto da terra ser mais permissivo que a posse, conforme a análise de Costa (1992) mencionada acima. Em suma, a existência desse tripé dava um caráter peculiar à economia brasileira na época escravista, que pode ser resumido em três características principais. Em primeiro lugar, era possível transferir uma parcela importante do excedente econômico das atividades produtivas rurais para a esfera financeiro-rentista, sem pôr em risco a viabilidade daquelas atividades nem gerar tensões sociais insuportáveis. Em segundo 9 A título de exemplo, tomemos Luna (1981), que estuda localidades de Minas Gerais em diversas épocas do século XVIII. A atividade mineira, caracterizada por um grau elevado de mobilidade social ante outras atividades econômicas da época, podia gerar situações como a da Comarca do Serro do Frio, que em 1738 registrava os ex-cativos como perfazendo 22,2% dos proprietários de escravos.

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lugar, devido ao caráter marcadamente não assalariado das atividades produtivas, quer devido ao escravismo, quer devido aos diversos arranjos de usufruto da terra, havia escassa monetização da economia. Como resultado, aqueles que concentravam a maior parte do excedente econômico podiam controlar a liquidez do sistema, permitindo ganhos extraordinários através da renda das atividades creditícias. Por fim, dentro de determinados limites, a oferta elástica de fatores de produção permitia à economia colonial gozar de uma relativa autonomia ante a conjuntura internacional. O modelo do Arcaísmo, como se vê, não apenas acomoda bem as evidências empíricas que apresentamos acima, mas também as utiliza organicamente como seus fatores explicativos. Assim, do cruzamento do projeto arcaico da colonização portuguesa com o tripé acima descrito pode progressivamente surgir uma economia relativamente autônoma, culminando, já no período tardio, com a consolidação de uma elite mercantil residente. Cumpre perguntar, por fim, qual a lógica de reprodução dessa estrutura econômico-social, o que, de certa forma, equivale a perguntar qual seria o seu “sentido”. Ora, os autores afirmam que tal reprodução ocorria por meio da constante reiteração da diferenciação excludente, ou seja, da hierarquia composta por agentes ligados à terra, na base, e agentes ligados às atividades comerciais e financeiras, no topo.10 Uma vez instalada a sociedade colonial no Brasil, esta passaria, progressivamente, a autodeterminar sua reprodução, que adquiria o caráter de um fim em si mesmo. Como se vê, opera-se aí o que poderíamos chamar de uma inversão do Sentido da Colonização original. Essa inversão 10 À contínua reprodução dessa estrutura, os autores acrescentam um outro movimento: a migração dos capitais oriundos das atividades comerciais e financeiras para atividades rurais ou “rentistas urbanas”, após algumas décadas de atividades nas primeiras. Contrariando os incentivos econômicos, visto que eram estas as mais lucrativas, tal movimento é explicado por Fragoso e Florentino com base na reprodução dos valores culturais arcaicos da elite colonial brasileira, que refletiam, por sua vez, os valores do escravismo e do antigo regime Ibérico: um forte ideal aristocrático, baseado no controle sobre terras e homens e no afastamento do mundo do trabalho.

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tem, com efeito, um local privilegiado no modelo de Fragoso e Florentino. Ao tratar do controle que o capital residente tinha sobre o tráfico negreiro, uma atividade indispensável para a reprodução da economia colonial e, na interpretação tradicional, uma das razões de sua dependência ante os mercados externos, os autores dizem: “a dependência passava a redefinir-se enquanto espaço de acumulação interna” (Fragoso e Florentino, 2001, p. 199).

6. A necessidade de uma resposta contraditória Como se vê, as duas respostas que analisamos brevemente neste artigo caracterizam-se ora por escapar da contradição dos fatos, invertendo o Sentido da Colonização e, portanto, perdendo sua formulação original, ora por preservar esse Sentido, sofrendo, sem assumi-la, a contradição dos fatos. Há um caminho, contudo, para superar essa aparente dicotomia. Baseados na ideia de que as analogias por vezes iluminam as opções de que dispomos, acreditamos que a apresentação do desenvolvimento da Lei do Valor por Marx, em O Capital, pode servir de modelo de uma resposta que, enfrentando um problema similar, assumiu-se explicitamente contraditória, logrando conservar tanto a essência como o fenômeno. Nesta seção, discutimos o sentido lógico dessa apresentação. 6.1 Digressão: a apresentação da lei do valor por Marx Na seção do primeiro capítulo de O Capital dedicada à discussão do conceito fetichismo da mercadoria, Marx afirma que uma das principais características da sociabilidade capitalista é o fato de ela repousar no isolamento mútuo de seus agentes. Assim, em vez de regulada previamente pela sociedade, a atividade produtiva desses agentes é definida através de decisões tomadas de forma descentralizada e mais ou menos independente. Ao mesmo tempo, porém, a sociedade assim constituída também apresenta 137

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divisão do trabalho, fazendo com que o resultado de tal produção, as mercadorias, não se destinem ao autoconsumo das unidades produtivas, senão à própria sociedade. Assim, isolados a priori, os agentes produtivos socializam-se a posteriori através do mercado, vinculando-se uns aos outros através da divisão social do trabalho e das trocas mercantis. Ora, em tal sociedade, em que o caráter privado da produção impede que se defina ex ante quanto do trabalho social será gasto em cada atividade, deve-se engendrar uma norma específica de regulação social que realize essa definição. Do contrário, a reprodução dessa sociedade no tempo fica comprometida. Nesse fato Rubin (1980) baseia sua clássica interpretação da teoria do valor-trabalho de Marx. Segundo ele, o mérito dessa teoria não é o de haver descoberto que por trás do valor das mercadorias está o trabalho humano, senão o de haver mostrado por que motivo o trabalho humano assume a forma de valor no capitalismo. A resposta é clara: a operação da Lei do Valor é a única forma de garantir a regulação da distribuição social do trabalho numa sociedade em que os produtores não articulam previamente as suas atividades. O enunciado plenamente desenvolvido dessa Lei, portanto, seria o de lei da regulação do sistema econômico capitalista. Pois bem, a forma como Marx apresenta o desenvolvimento dessa Lei em O Capital é um exemplo bem acabado de uma apresentação dialética que visa conservar tanto a essência como a aparência fenomenal do sistema capitalista. Como se sabe, a primeira seção da obra, que corresponde aos seus três primeiros capítulos, tem como objeto a chamada circulação simples de mercadorias. Nela são discutidas genericamente as características da economia mercantil enquanto forma de manifestação do modo de produção capitalista. Marx ainda não trata explicitamente desse modo, pois nessa etapa da apresentação ainda não introduziu o conceito de capital, mas o capitalismo está presente enquanto pressuposição, fazendo parte do discurso implícito. 138

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No elevado nível de abstração em que se situa a análise da primeira seção, a lei do valor é apresentada como a lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho, num processo que é também o de redução real deste a tempo de trabalho abstrato e socialmente necessário. Nesse plano da análise, portanto, o valor funciona como regra de troca entre as mercadorias, não apenas permitindo a sua comensurabilidade, mas também definindo a proporção em que elas são trocadas umas pelas outras. No capítulo IV, que abre a segunda seção da obra, Marx introduz o conceito de capital. Até o capítulo IX do volume III, no entanto, este será tratado como capital em geral, abstraindo-se a existência de múltiplos capitais que competem entre si. Assim, também nessa substancial porção da obra o valor continua funcionando como a dita regra de troca. Quando, porém, Marx passa a admitir a concorrência intercapitalista, no capítulo IX do terceiro volume, chega-se a um problema: se as mercadorias continuarem a ser trocadas em proporção aos seus valores, capitais de mesma magnitude, mas de diferentes composições orgânicas, produzirão taxas de lucro distintas. Esse fato, além de não tolerado pela concorrência capitalista, que exige uma dada taxa de retorno sobre o capital total adiantado e não apenas sobre o capital variável, está em contradição com os dados empíricos, os quais apontam para um permanente movimento tendencial rumo à equalização das taxas de lucro, como se a taxa média fosse um centro gravitacional do sistema. O problema a que Marx conduz sua apresentação é expresso da seguinte forma por Ruy Fausto: [...] como conciliar esse dado [a convergência da taxa de lucro para a taxa média], que é ao mesmo tempo uma espécie de exigência da racionalidade do sistema, com a lei do valor, a qual estabelece a necessidade de equivalência dos tempos de trabalho no intercâmbio das mercadorias? (1983, p. 116)

A conhecida resposta de Marx é a introdução do conceito de preço de produção, o qual permite a igualação das taxas de lucro de capitais de mesma magnitude. Porém, isso é feito a um preço: as mercadorias deixam de ser vendidas em proporção a seus valores. Somos conduzidos, portanto, 139

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a acreditar que há uma contradição entre a lei do valor, tal como exposta por Marx até a dita seção do volume III, e resposta dada pelo autor para garantir a aderência de sua teoria à realidade fenomenal do capitalismo. Com efeito, além de deixar de ser a regra de troca entre distintas mercadorias, a lei do valor, que determinava ser o trabalho a única fonte do valor e da mais-valia, parece enfrentar problemas no momento em que se permite que uma unidade produtiva que mobilize mais capital variável obtenha o mesmo lucro que outra unidade cujo capital total tenha a mesma magnitude, mas que utilize proporcionalmente menos capital variável. Marx expressa essa mesma perplexidade: Se um capital formado pela proporção 90c + 10v produzisse, como mesmo grau de exploração do trabalho, a mesma quantidade de mais-valia ou de lucro que outro capital formado por 10c + 90v, seria claro como a luz do sol que a mais-valia e, portanto, o valor, teriam necessariamente uma fonte completamente distinta do trabalho, privando a economia política de toda base racional. (1975, p. 157)

Conforme mostra Fausto (1983), Marx conduz sua apresentação a um dilema: ou se abandona a teoria do valor, o que equivale ao abandono da essência que deveria permitir a compreensão dos fenômenos, para não estar em flagrante contradição com eles; ou se recusam os fenômenos, para preservar aquela que se acredita ser a sua essência. Talvez antecipando algumas escolhas da historiografia brasileira, a história do pensamento econômico mostra que, grosso modo, esse dilema foi enfrentado pela Economia Política do século XIX. Diante dele, autores como Adam Smith e David Ricardo optaram por manter a essência – ou seja, suas respectivas versões da teoria do valor-trabalho –, ao passo que a vertente que, nesse ponto, é crítica dos clássicos, e que parte da revolução marginalista e desemboca na moderna teoria neoclássica, optou por renunciar à teoria do valor-trabalho. Aqueles que optaram por preservar a essência, Smith e Ricardo, acabaram sofrendo passivamente a contradição dos fatos, produzindo, como se sabe, teorias do valor inconsistentes. Aqueles que, por sua vez, 140

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recusaram o valor-trabalho para estar de acordo com os fenômenos acabaram, enfim, produzindo explicações de caráter tautológico, em que, substantivamente, os preços são explicados a partir de preços. Ou, em termos de um juízo lógico, se para eles preço não é valor, por outro lado preço (não) é (nada mais que) preço.11 Mas em que sentido, afinal, pode-se dizer que a resposta de Marx é superior a essas duas? Como primeira aproximação, pode-se dizer que Marx “conserva tanto a essência como o fenômeno” (Fausto, 1983, p. 119). A opção de seu método é assumir explicitamente a contradição entre essas duas esferas. Assim, a lei do valor, em vez de ser congelada em seu enunciado original, como na primeira resposta, ou simplesmente recusada, como na segunda, sofre uma aufhebung, uma negação dialética, que permite a superação desse dilema. Ao modificar a regra de troca original através do conceito de preço de produção, Marx está exprimindo a negação da lei do valor enquanto regra de troca entre mercadorias. Essa negação, porém, não se confunde com uma negação “pura simples”, tal como postulada pela lógica formal. Ao contrário do que ocorreria se esse fosse o caso, a lei do valor não é expulsa do discurso, mas justamente conservada ao preço de sua negação. Afinal, é somente com a introdução do conceito de preço de produção que uma norma regulatória eficiente pode se impor no sistema. Com efeito, a partir da flutuação dos preços de mercado em torno dos preços de produção, estabelecem-se as divergências entre as taxas de lucro das diversas unidades produtivas, havendo, em decorrência disso, transferências de capital de um setor ao outro, em busca de lucros mais elevados. Indiretamente, essas transferências regularão a distribuição do trabalho 11 Cumpre lembrar que o projeto inicial dos marginalistas, de derivar os preços a partir das preferências dos agentes, esbarra em alguns problemas. Em particular, ele não resolve o problema da circularidade da determinação de preços a partir de preços, visto que, nas taxas marginais de substituição dos agentes, indicadoras de suas preferências, já estão embutidos os preços relativos dos bens. A esse respeito, e com relação às diferenças entre a abordagem clássico-marxiana e a neoclássica no que diz respeito à determinação dos preços de mercado, veja-se Prado (2005, 2006).

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na economia, justamente a função que, na ausência de coordenação prévia entre os agentes, é o principal papel da lei do valor. Ressalte-se aqui, a propósito, que esse mecanismo é impossível de ser imaginado se as trocas realizam-se em proporção direta aos valores das mercadorias. Como afirma Fausto (1983), o conceito de preço de produção “‘abre’ o caminho que vai da essência ao fenômeno”, permitindo que a lei do valor, uma determinação essencial, opere sua função de norma regulatória da dinâmica, de outra forma caótica, da esfera dos fenômenos. Porém, esse caminho, que necessita da supressão da lei do valor como regra de troca, “se abre fechando-se”, ou seja, “a lei do valor só é conservada a partir da sua negação”. Em termos de um juízo lógico, “o valor só é quando ele não é”.12 Ao contrário do que se poderia pensar, porém, o primeiro enunciado da lei do valor, que afirma ser o trabalho a única fonte deste último, é preservado no seu novo enunciado, o de norma regulatória do sistema econômico. Caso isso não se verificasse, aliás, já não teríamos apenas uma aufhebung, senão uma negação “pura e simples”: o valor teria outra fonte que não o trabalho e, conforme se depreende da citação de Marx acima, a economia política perderia sua “base racional”. Para que não restem dúvidas quanto a isso, o primeiro enunciado, negado no plano das trocas entre mercadorias individuais, é mantido no plano agregado da economia, através das chamadas duas igualdades de Marx. No procedimento que o autor apresenta para ilustrar a “transformação de valores em preços de produção”, a soma dos preços de produção é igual à soma dos preços diretos (proporcionais aos valores), ao passo que a soma dos lucros é igual à soma da mais-valia produzida.13 Com isso, a teoria do valor de Marx preserva tanto a aparência do sistema, ou seja, preços diferentes dos valores e taxas de lucro tendencialmente iguais, como sua essência, o trabalho como única fonte do valor. 12 As citações são de Fausto (1983, p. 120). 13 A validade das duas igualdades de Marx, bem como de seu procedimento para apresentar a transformação, é ainda objeto de intensa controvérsia. Para uma resenha crítica, ver Freeman e Cacherdi (1996).

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A lei do valor cumpre, desse modo, tanto o objetivo de regular a economia como o de explicar as proporções médias das trocas, mas só o faz através de sua forma negada de preço de produção. 6.2 De volta ao assunto Conforme dissemos no início desta seção, o motivo dessa digressão é que acreditamos ser possível superar a antinomia entre dois modelos interpretativos da economia colonial brasileira que expusemos aqui. A chave para tal superação reside na utilização explícita da lógica da contradição. Felizmente, já existe um modelo explicativo que satisfaz a essa exigência do objeto em estudo: o do capital escravista-mercantil. Proposto por Iraci Costa e Julio Manuel Pires14 em diversas ocasiões, o modelo do capital escravista-mercantil propõe, através da consideração de uma forma específica de existência do capital nas colônias tropicais, integrar as evidências empíricas recentemente produzidas sem, no entanto, perder a essência do Sentido da Colonização. A necessidade de pensar a relação dessas evidências com o Sentido da Colonização como uma relação complexa e contraditória, em que, por um lado, as evidências parecem negar as determinações imediatas do Sentido, porém, por outro, acabam servindo de mecanismo de sua realização, é explicitamente advogada pelos autores. Por exemplo, após apresentar os principais resultados da literatura empírica relativos à estrutura de posse de cativos, Costa (1995), assim como Fragoso e Florentino, afirma que esta se mostra muito mais complexa do que a sugerida imediatamente pelo modelo de Caio Prado. Entretanto, o autor prontamente faz nova referência a esse historiador, afirmando que o amplo comprometimento da sociedade com o escravismo aumentava a dependência da colônia com relação ao mercado externo, 14 Por exemplo, em Pires e Costa (1995, 2000) e Costa (1995).

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devido à necessidade do fornecimento de mão de obra. A sua maneira de exprimir o problema nos prepara, então, para pensar a questão de forma contraditória: Assim, aceita a ideia de que os elementos avocados para desqualificar o modelo de Caio Prado Júnior atuaram, sempre, de sorte a reafirmar o escravismo, vemo-nos em face de uma aparente contradição: se, num primeiro lapso, nossos argumentos contradizem o modelo em tela, num segundo passo trabalham a favor da tese central do mesmo modelo. É forçoso, portanto, enfrentarmos essa contradição aparente. (Costa, 1995, p. 18)

As características das duas respostas para essa contradição, que analisamos aqui, são também mencionadas por Costa. A solução dos pradianos para a tal “contradição aparente”, a de conservar a essência, é descrita na seguinte passagem: Qual seria a grave limitação do modelo interpretativo de Caio Prado Júnior? (...) A nosso juízo tal limitação deveu-se ao fato de ele haver transposto para o plano fenomênico, sem as necessárias e devidas mediações, elementos próprios do que considerou a essência de nossa formação e da sociedade aqui constituída. Reduzido, assim, o plano do concreto (...) a elementos de sua pretensa essência (...), resta-nos uma caricatura de vida econômica e social, desfigurada, rígida, descarnada, apartada da experiência do dia-a-dia (...) que faz com que nos sintamos tão incomodados, tão ‘desconfortáveis’ quando confrontamos nossa visão daquela sociedade com a que derivamos da leitura dos escritos de Caio Prado Júnior. (Ibid., p. 18)

O autor, em seguida, critica a segunda solução, a de sacrificar a essência em prol dos fenômenos: [...] há os que, cometendo um erro homólogo, tornaram-se presas de limitações igualmente reducionistas; pensamos, agora, nos pesquisadores que, prendendo-se à aparência, à forma como a sociedade escravista se nos apresenta imediatamente, pretendem transportar tal mundo fenomênico, sem as imprescindíveis mediações, para o âmago último de nossa formação; tomam, pois, a aparência como se fosse a essência. (Ibid., pp. 18-19).

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Se o resultado da primeira resposta é a contradição com os fatos, como, no nosso exemplo, o caso dos economistas clássicos, o caráter tautológico da segunda resposta, similar ao da economia neoclássica, é explicitamente mostrado pelo autor: O resultado desse movimento [a segunda resposta] já é conhecido: a essência do escravismo moderno se esvai no ar, dilui-se ante nossas vistas, escapa das nossas mãos, restando-nos uma sociedade que, autônoma e independentemente, parece reproduzir-se a si mesma a partir de si mesma. (Ibid., p. 19, grifos nossos)

Sendo o capital escravista-mercantil a resposta contraditória que supera esse vicioso dilema, voltamo-nos agora a detalhar seu conteúdo bem como seu sentido lógico.

7. A superação da antinomia: o capital escravista-mercantil e seu sentido lógico 7.1 Caracterização do capital escravista-mercantil Pires e Costa (1995) classificam o capital escravista-mercantil como uma forma adicional de existência do capital, ao lado das três formas clássicas analisadas por Marx: o comercial, o usurário e o industrial. Segundo os autores, a expansão do capitalismo comercial europeu em direção ao Novo Mundo, combinada com um conjunto de circunstâncias peculiares, tais como a disponibilidade de fontes supridoras de mão de obra escrava no continente africano e a existência de mercados capazes de absorver os bens aqui produzidos, levou à vigência do capital escravista-mercantil durante o processo de constituição do modo de produção capitalista em boa parcela da América tropical. O capital escravista-mercantil caracteriza-se por ser produtor de mercadorias e extrator de mais-valia, mas o faz pondo em movimento mão de obra cativa. A produção de mercadorias – exportáveis ou não – no Brasil escravista decorreria, portanto, da ação dessa forma do capital, 145

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a qual dominaria, além esfera produtiva propriamente dita, a circulação interna. Sob seu comando, portanto, estariam a alocação dos fatores, a escala dos empreendimentos e as técnicas escolhidas. Em resumo, diz Costa: “sua presença condicionava toda a economia bem como as relações estabelecidas no processo de produção, projetando-se, ademais, na vida social e política do Brasil” (1995, p. 20). No entanto, o capital escravista-mercantil possuía uma importante peculiaridade: ele não garantia sua própria reprodução no tempo. Isso ocorria porque sua área de atuação restringia-se ao plano interno à colônia, estando isolado do plano externo, do qual necessitava para realizar a produção exportável e obter mão de obra. Para pôr-se em contato com a economia internacional, portanto, ele necessitava da mediação do capital comercial, que atuava como uma interface entre a colônia e os mercados externos. O capital comercial, além de desempenhar essa função de interface, também teria sido o responsável pelo estabelecimento da empresa colonial, através do povoamento e da valorização das terras do Novo Mundo. Depois de realizada essa tarefa inicial, porém, passou-se progressivamente a desenvolver o capital escravista-mercantil no plano interno da colônia. Dependente do capital comercial para sua reprodução, através das exportações e dos escravos, o capital escravista-mercantil não se confundia com uma mera projeção dele, comportando “a existência de dimensões e articulações que iam muito além dos estreitos limites do capital comercial” (ibid., p. 21). Algumas dessas características, acrescentaríamos, contradiziam aquelas imediatamente deriváveis da operação do capital comercial, tais como as expressas na heurística positiva do Sentido da Colonização. Vejamos agora em que sentido mais preciso se pode dizer que o modelo do capital escravista-mercantil representa a resposta contraditória ao dilema da historiografia que estamos buscando.

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7.2 O sentido lógico do capital escravista-mercantil O Sentido da Colonização, no discurso daqueles que propõem o modelo do capital escravista-mercantil, tem um status em certa medida análogo àquele da teoria do valor no discurso de Marx. Em ambos os casos, o desenvolvimento do Sentido e o da lei do valor, respectivamente, são apresentados como processos que ocorrem por meio de negações sucessivas. A lei do valor, para atingir um desenvolvimento pleno enquanto norma regulatória da economia capitalista, deve negar progressivamente sua relação com seu fundamento substancial, o trabalho. Esse processo tem como um de seus momentos críticos a chamada transformação de valores em preços de produção, conforme analisamos acima. Similarmente, para realizar-se plenamente, seja para apoiar o desenvolvimento capitalista na Europa, seja para instaurá-lo no Novo Mundo, o Sentido da Colonização deve negar-se. Afinal, muitas vezes é através da realização do seu contrário, ou seja, do desenvolvimento do mercado interno, de uma economia relativamente complexa e em alguma medida autônoma, e de uma elite colonial assentada no capital residente, que o Sentido se realiza plenamente. Com efeito, embora a sociedade aqui constituída não caiba confortavelmente nas derivações imediatas do Sentido, é inegável que a colonização dos trópicos contribuiu, de fato, para a transição para o capitalismo industrial na Europa e para a sua instalação na América tropical. A superioridade das respostas de Pires e Costa em face daquelas do paradigma pradiano, de um lado, e de Fragoso e Florentino, do outro, é o fato de que os primeiros autores “põem entre parênteses” o sentido, ou seja, admitem sua supressão (aufhebung) para, ao dizer o contrário de sua derivação imediata – ou seja, o mercado interno, a relativa autonomia, etc. – poder ao final dizê-lo enquanto Sentido plenamente realizado. Uma forma de compreender as diferenças entre os três discursos é, seguindo o procedimento de Fausto (1983), através da análise dos juízos 147

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lógicos que eles realizam. O discurso pradiano, ao tentar preservar a todo custo a essência da evolução da sociedade colonial brasileira, não admite a negação do Sentido da Colonização. Nos juízos que seus autores fazem, portanto, o Sentido é um sujeito posto, ou seja, ontologicamente existente. Suas determinações são expressas através de juízos de inerência, nos quais os predicados, dotados também de existência real, não contradizem o sujeito, sendo meras determinações deste. Assim, diríamos: O Sentido da Colonização (posto) é o Latifúndio Monocultor (posto), a Economia Reflexa (posto), etc. O problema desse tipo de discurso é o fato de que ele muitas vezes sofre a contradição dos fatos, pois, dado que no Brasil Colônia também se apresentavam o mercado interno e a economia autônoma, também tería­mos que o sentido da colonização é o mercado interno, a economia autônoma, etc., juízos que estão em contradição com os primeiros. Os autores do Arcaísmo, por sua vez, recusam o Sentido, reduzindoo à mera reiteração de seus predicados. O juízo adequado ao seu discurso é, portanto, o juízo convencionalista, em que o sujeito está ausente, estando postos apenas seus predicados. Assim teríamos: O Sentido (ausente) é a Economia Autônoma (posta), a Elite Colonial Residente (posta). Como se vê, Fragoso e Florentino reduzem a essência à aparência, através de juízos de caráter tautológico. Para eles, O Sentido (não) é (nada mais que) a reprodução a Economia Autônoma, da Sociedade Desigual, da Elite Colonial Residente. Por fim, o discurso de Pires e Costa “põe o Sentido entre parênteses”; ele não é posto, porém não é expulso do discurso. Na verdade, é apresentado como um sujeito em processo de desenvolvimento contraditório, que realiza determinações que são o seu contrário enquanto completa esse desenvolvimento. O juízo adequado para exprimir esse tipo de objeto é o juízo de reflexão, no qual o sujeito tem o status de uma pressuposição. Ao contrário do juízo de inerência, em que os predicados não contradizem o sujeito posto, o juízo de reflexão é adequado quando as características do 148

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objeto estudado são tais que, para dizê-lo, devemos dizer o seu contrário. Assim, diríamos: O Sentido (pressuposto) é a Economia Autônoma (posta), a Elite Colonial Residente (posta). Com efeito, num juízo de reflexão como esse, em que o sujeito está pressuposto, o predicado nega o sujeito. Ao dizer o que é o Sentido, somos obrigados a dizer o seu contrário – a economia autônoma, o mercado interno, etc. Entretanto, essa negação dialética não o expulsa do discurso, pois, do contrário, seríamos conduzidos a um juízo convencionalista. Por um lado, o uso do juízo de reflexão permite-nos guardar os fenômenos apresentados pelas evidências empíricas, pois eles são necessariamente ditos quando buscamos exprimir o Sentido. Por outro lado, esse juízo permite-nos guardar a essência de nossa evolução, pois é dizendo o seu contrário que contamos como o Sentido afinal se realiza. A resposta dialética, como se vê, supera o dilema da historiografia, preservando tanto a essência como a aparência, vale dizer, tanto os fatos como a chave para a sua compreensão.15 No plano histórico mais propriamente dito, foi o capital escravistamercantil – uma forma evanescente16 do capital – o elemento que, no período que vai dos descobrimentos até a abolição, realizou, em porções da América tropical, a negação concreta do Sentido para enfim realizá-lo.

15 À guisa de provocação, podemos nos perguntar qual a validade das considerações metodológicas de Lakatos em face de um programa de pesquisa que, num certo sentido, tem a negação (dialética) de seu núcleo como um heurística positiva. 16 Dizemos “evanescente” porque o capital escravista-mercantil, baseado na mão de obra escrava, muito embora compatível com o capitalismo em sua fase de instauração no Novo Mundo, é incompatível com seu desenvolvimento em larga escala. Com efeito, em todas as localidades onde atuou, o capital escravista-mercantil acabou dando lugar ao capital industrial, baseado na mão de obra assalariada. Para uma análise histórica de como essa superação ocorreu, ver Pires e Costa (2000).

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8. Conclusão Este artigo buscou, através da análise dos modelos interpretativos que mais radicalizam as derivações de suas hipóteses,17 apresentar o desenvolvimento da historiografia sobre a economia colonial brasileira como condutor a uma viciosa dicotomia. De um lado, estariam as contribuições que compartilham o enfoque do Sentido da Colonização, originalmente proposto por Caio Prado Júnior, e do outro, as contribuições de João Fragoso e Manolo Florentino. 17 Neste artigo, não tratamos, propositalmente, das críticas que, no final dos anos 60 e nos anos 70, foram dirigidas ao modelo de Caio Prado Jr. Propostas especialmente por Ciro Flamarion Cardoso (1975a, 1975b e 1975c), Jacob Gorender (1992) e Antonio Barros de Castro (1977, 1980, 1984), essas críticas foram realizadas antes do boom da historiografia monográfica, tendo em comum o fato de serem críticas de caráter mais propriamente teórico. Embora uma análise detalhada de suas valiosas contribuições esteja fora do escopo deste artigo, o que nos impede de fazer-lhes justiça, podemos dizer que o sentido geral dessas críticas foi de retirar o foco analítico das articulações da economia colonial com a economia internacional – como teria feito, segundo eles, a abordagem circulacionista dos autores do paradigma pradiano – para então voltá-lo “para dentro”, ou seja, para a forma como a produção e o trabalho eram realizados na colônia. À guisa de balanço final, podemos dizer que essas críticas, embora tenham tido o mérito de evitar uma radicalização das posições e, portanto, de evitar conduzir o debate a um vicioso dilema tal como exposto aqui, ficaram no geral aquém de uma lógica da contradição. Por exemplo, Barros de Castro, embora afirme que o “projeto colonial e/ou mercantilista subsiste”, diz que “o ‘objetivo’ maior dessa realidade – o seu ‘sentido se se quiser – lhe é agora inerente: atender as suas múltiplas necessidades, garantir sua reprodução” (Castro, 1980, pp. 88-89). O autor, embora recuse derivar imediatamente as consequências do “projeto colonial ou mercantilista”, levando em conta a interposição da estrutura interna no caminho dos interesses externos, não menciona explicitamente a lógica que permitiria a estes últimos se realizarem através dessa interposição. Já Cardoso e Gorender, buscando uma alteração de enfoque similar, propõem que nas colônias haveria a vigência de modos de produção específicos, diferentes do modo de produção das economias centrais. Com isso, seria possível estudar as especificidades internas dessas economias, evitando-se a subordinação de suas relações de produção à esfera da circulação internacional de mercadorias. Entretanto, o “fato colonial”, nas palavras de Cardoso (1975b), é preservado, fazendo com que esses modos de produção tenham um caráter dependente, ou seja, eles não garantem sua reprodução autônoma, dependendo dos mercados externos. O uso do conceito de modo de produção colonial pelos autores não conduz, a nosso ver, a uma resposta adequada para a necessidade de utilizar a lógica da contradição da forma como propomos aqui. Para uma crítica do uso do conceito de modo de produção colonial, ver Costa (1985).

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Reconhece-se, aqui, o imenso mérito dessas contribuições para a compreensão de nossa formação socioeconômica. Entretanto, propusemos que as primeiras, embora revelem numerosas características dessa formação, acabam nos fornecendo um retrato relativamente estreito da sociedade colonial, pois o fazem através da derivação imediata das consequências daquela que é a sua essência: o Sentido da Colonização. Como resultado, esse modelo interpretativo frequentemente se vê em dificuldades perante as evidências empíricas. As contribuições do segundo grupo, por sua vez, ao tentarem acomodar as evidências empíricas, acabaram perdendo de vista essa determinação essencial. Propusemos, então, uma alternativa metodológica para superar esse dilema, possibilitando preservar tanto a complexidade concreta da economia colonial como a essência abstrata de sua formação. Por fim, mostramos que há um modelo interpretativo que utiliza explicitamente essa opção metodológica, o modelo do capital escravista-mercantil, cujo desenvolvimento no âmbito da pesquisa historiográfica consideramos extremamente desejável.

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9. CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL1 Rodrigo Alves Teixeira

1. Introdução O modelo interpretativo proposto por Caio Prado Júnior em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo exerce forte influência até hoje na historiografia sobre o período colonial brasileiro. Sua influência se exerce tanto sobre aqueles que procuram manter a ideia do “sentido da colonização”, vendo a colônia como uma sociedade cuja estrutura e funcionamento foram determinados pelo comércio externo e, portanto, como um mero empreendimento a serviço do capital comercial europeu, quanto sobre aqueles que, buscando criticar tal visão e defendendo uma 1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no encontro da ANPEC de 2005, em Natal-RN. Naquela versão, ativemo-nos às questões metodológicas. Aqui, aprofundamos aquelas discussões em alguns pontos, em particular na apresentação da concepção dialética das significações – para o que nos apoiamos em Fausto (1987 e 1988) e suas implicações para a leitura da concepção marxiana da História. Além da discussão metodológica, acrescentamos uma discussão sobre o desenvolvimento do capitalismo enquanto um sistema mundial e sobre o lugar da colonização nesse processo, para embasar a crítica ao uso das categorias modo de produção e formação econômico-social na interpretação de nosso período colonial. Este artigo foi desenvolvido a partir das discussões suscitadas na disciplina “Formação Econômica e Social do Brasil: Modelos Interpretativos”, ministrada no Instituto de Pesquisas Econômicas da USP pelo professor Nelson Nozoe no primeiro semestre de 2003, disciplina essa que foi concebida no bojo do NEHD (Núcleo de Estudos em História Demográfica da FEA/ USP). Agradeço aos demais colegas do curso pelas excelentes e instigantes discussões e aos professores Nelson Nozoe, José Flávio Motta e Iraci Costa, com os quais tive a oportunidade de discutir uma versão preliminar deste texto. Os erros e imprecisões que aqui permanecerem são de minha responsabilidade.

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autonomia da dinâmica interna à colônia, veem-se obrigados a discutir o modelo pradiano e seus desenvolvimentos posteriores, usando-o como ponto de partida das suas críticas. O objetivo do presente trabalho é discutir as linhas principais da historiografia sobre o período colonial brasileiro que surgiram a partir do modelo pradiano e, com base na análise dos seus fundamentos metodológicos, fazer uma avaliação do poder explicativo e da adequação dos modelos propostos. Nessa historiografia, sabe-se que a maioria dos autores buscou analisar a realidade colonial brasileira com base nos conceitos desenvolvidos por Marx, ou seja, na linha do materialismo histórico, e Caio Prado Júnior foi pioneiro na aplicação do materialismo histórico à realidade brasileira. Entretanto, apesar de aparentemente partirem de uma mesma concepção teórica, tais autores chegam a resultados muito diferentes. Tais diferenças, como buscaremos defender neste trabalho, decorrem principalmente das diferentes leituras da obra de Marx e são de fundo metodológico. Dessa forma, torna-se necessário compreender as diferentes leituras de Marx que foram feitas pelos autores do debate, explicitando os aspectos metodológicos dessas leituras. Partindo dos estudos desenvolvidos em outro trabalho (Teixeira, 2 2003), daremos destaque à tensão existente entre três visões da teoria do conhecimento em ciências sociais: o positivismo (e também o 2 O trabalho citado, que é minha dissertação de mestrado, teve o objetivo de estudar como as três grandes visões da teoria do conhecimento (o positivismo, o historicismo e a dialética) influenciaram os debates metodológicos na ciência econômica, centrando a discussão na forma como cada uma delas vê as relações entre sujeito e objeto, a possibilidade da objetividade do conhecimento científico e a adequação da teoria ao objeto. As análises que faço aqui sobre essas três visões da teoria do conhecimento estão mais bem fundamentadas nesse trabalho, para o qual encontrei grande apoio e influência na obra de Michael Löwy (1996). Entretanto, percorri um caminho um tanto diferente de Löwy, que destaca a dimensão das relações sujeito-objeto pela via da sociologia do conhecimento, enquanto preferi destacar a dimensão da historicidade dos conceitos no plano da possibilidade objetiva em geral de seu surgimento, e não da possibilidade subjetiva de surgir a partir de determinada visão de mundo ou da maior ou menor objetividade que se pode alcançar a partir das diferentes visões de mundo.

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estruturalismo), com a sua busca de relações invariantes, de validade universal no espaço e no tempo; o historicismo, com a defesa de que cada arranjo social é uma particularidade histórica e que os conceitos não podem ser generalizados para o estudo de distintos arranjos sociais, o que aponta para os limites do conhecimento; e a dialética, que com uma mudança de registro lógico, ou seja, com o rompimento com os limites da lógica formal, busca trabalhar a contradição entre a generalidade e a particularidade dos conceitos. As discussões nas quais nos centraremos são basicamente as seguintes, que consideramos ser as mais importantes nas críticas ao modelo pradiano: 1) a acusação, imputada ao modelo pradiano, de que a ideia de “sentido” seria teleológica; 2) as críticas segundo as quais o escravismo (e não o capital comercial), que não é elemento central na obra de Caio Prado (chegando mesmo, em Fernando Novais, a ser visto como resultado do tráfico, ou seja, explicado pelo capital comercial), deveria ser a categoria central no estudo da Colônia, pois seria seu traço definidor e diferenciador; 3) O uso da categoria modo de produção para estudar o Brasil Colônia, no bojo das críticas de que o modelo pradiano seria circulacionista, ou seja, centrado na circulação comercial e não nas relações de produção, e por isso não seria rigoroso na aplicação do materialismo histórico à realidade brasileira; 4) As críticas à excessiva ênfase dada à dependência e subordinação da economia e da estrutura da sociedade colonial ao mercado externo. Embora essa crítica esteja ligada às anteriores, ela se desenvolveu não apenas no plano teórico, mas principalmente baseada nos desenvolvimentos da pesquisa empírica a partir da década de 70 (particularmente com a demografia histórica), que apontaram uma complexidade na economia colonial que não podia ser explicada apenas pela ideia do “sentido”. 157

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Este trabalho divide-se em cinco seções, além desta introdução. Na seção 1, apresentaremos o modelo proposto por Caio Prado Júnior em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo. Na seção 2, apresentamos os desenvolvimentos teóricos que vão ao encontro desse modelo, como as obras de Celso Furtado e Fernando Novais. Na seção 3, apresentamos as discussões teóricas a respeito do modelo pradiano, com as críticas e os modelos alternativos que surgiram, particularmente as propostas de Antônio Barros de Castro, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender, entre os anos 70 e 80. Na quarta seção, apresentaremos dois modelos recentes, da década de 90, que buscam superar as dificuldades que permaneceram nos modelos apresentados na seção 3. A primeira é a proposta de João Luís Fragoso e Manolo Florentino, que se centram no conceito de formação econômico-social para tentar superar os limites da categoria modo de produção e destacam de maneira mais radical a autonomia da dinâmica interna da colônia. A segunda é a proposta de Iraci Costa e Julio Pires, que busca conciliar a noção de dependência e relativa falta de autonomia da colônia com as evidências empíricas obtidas da demografia histórica que mostraram os limites da noção de “sentido” para explicar a complexidade da sociedade colonial. Finalmente, na quinta seção, faremos as considerações finais e apresentaremos nossa conclusão.

2. O “sentido da colonização” de Caio Prado Júnior O objetivo desta seção é apresentar as características principais do modelo interpretativo de Caio Prado Júnior. Logo no início de sua obra, ao tratar do Sentido da Colonização, o autor explicita sua posição metodológica, que se assemelha muito à postura metodológica de Marx. Emparelhemos as duas citações para ficar clara a comparação: Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo “sentido”. Este se percebe não nos pormenores da sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num longo período de

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tempo. (...) Visto deste ângulo geral e amplo, a evolução de um povo se torna explicável. Os pormenores e incidentes mais ou menos complexos que constituem a trama de sua história e que ameaçam por vezes nublar o que verdadeiramente forma a linha mestra que a define, passam para o segundo plano, e só então nos é dado alcançar o sentido daquela evolução, compreendê-la, explicá-la. (...) Não se compreende por isso, se desprezarmos inteiramente aquela evolução, o que nela houve de fundamental e permanente. Numa palavra, o seu sentido. (Prado Júnior, 1981, pp. 13-14) A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada, da produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação, etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior. (Marx, 1978, p. 120)

Em primeiro lugar, há que se ressaltar que os objetivos de Caio Prado e Marx são diferentes. Enquanto este último fala da passagem de um modo de produção a outro, Caio Prado não destaca rupturas desse nível e nem utiliza em sua obra o conceito de modo de produção, ao menos não explicitamente. O que há em comum nas duas citações é a relação entre passado e presente, a ideia de que, ao se conhecer o resultado do desenrolar da história, é possível, então, a partir do conhecimento do presente, olhar para trás para identificar quais as relações mais importantes para se compreender a dinâmica das sociedades passadas que as distanciaram do modo como ora se apresentam ou que as desenvolveram na sociedade presente. É o presente que fornece a chave para o passado, ou seja, é o conhecimento do presente que permite identificar os elementos essenciais 159

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para se compreender o passado, separando esses elementos essenciais do que é secundário ou apenas acessório, ou seja, dos “pormenores de sua história”.3 Tanto em Marx como em Caio Prado Júnior, nota-se então a ideia de um “sentido” na história, mas esse sentido não é teleológico, ou seja, não é um sentido que existe a priori, determinístico, cujo telos é previamente conhecido, mas um sentido que é conhecido, ou melhor dizendo, um sentido que é reconstruído racionalmente apenas a posteriori, ou seja, a partir do conhecimento da sociedade que resultou do desenrolar histórico. Na sua famosa comparação, Marx diz que é a partir da anatomia do homem que se conhece a anatomia do macaco, ou seja, que é a partir da forma mais desenvolvida que se podem construir categorias e perceber determinações que apareciam atrofiadas ou apenas em forma embrionária na forma menos desenvolvida. Esse olhar da forma menos desenvolvida é feita com base no conhecimento da forma mais desenvolvida, o que não implica, entretanto, que do “macaco” – de um antropóide – deveria emergir o homem como necessidade lógica, e, portanto, nada garante que o futuro estava inscrito como necessidade lógica no passado, de forma que a história se processaria como a realização de uma racionalidade 3 Ao falar de pormenores aqui, parece-nos que Caio Prado Júnior esteja falando dos acontecimentos empíricos isolados, ou seja, da história factual. No caso da nossa história colonial, são, por exemplo, os sucessivos “ciclos” de produtos de exportação, descritos por Roberto Simonsen, fenômenos isolados aos quais Caio Prado Júnior busca dar uma significação teórica, ou seja, encontrar a essência que os move. Também podem ser vistos como pormenores os elementos presentes na sociedade colonial que não estavam diretamente relacionados ao sentido da colonização, mas eram subsidiários a ele, como o mercado interno da colônia e seus elementos constituintes. Fazendo parte da “geração de 30”, ao lado de Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre (como destaca Antônio Candido no seu prefácio ao Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda), Caio Prado participa assim da revolução de nossa historiografia que busca romper com a história factual para engajar-se na formulação de teorias, ou seja, de modelos interpretativos que buscam explicar os fatos isolados em seu conjunto, identificando a lógica que os une.

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metafísica.4 O espaço da contingência existe e é claro em Marx, embora não tenha ficado claro para uma certa vulgarização nas teses do marxismo ortodoxo. Claro que, no caso da evolução das espécies na biologia, a contingência é algo natural (embora a intervenção humana na natureza tenha mudado isso profundamente desde que Darwin divulgou suas ideias), ao passo que, no campo social, a realização de estados possíveis depende dos conflitos entre classes e grupos sociais, ou seja, se dá no plano da política. Dessa forma, assim como não é correto tratar a “sucessão dos modos de produção”, em Marx, como um processo evolutivo histórico-natural, e, mais ainda, com uma ordem de evolução predefinida, também não é correta, a nosso ver, a acusação de que a ideia de “sentido da colonização” proposta por Caio Prado seja teleológica: a lógica do “sentido” não existe a priori, como necessidade lógica, mas é reconstruída a posteriori pelo sujeito do conhecimento, como contingência que se realizou efetivamente e a partir da qual é possível olhar para o passado e perceber lá os elementos que o desenvolveram na forma presente. Caio Prado também confere outra significação à palavra “sentido”, o que já é um salto da metateoria para a teoria: ao ver na colônia um organismo econômico primordialmente voltado ao fornecimento de produtos 4 Marx alerta para este erro de considerar a história de forma teleológica, como uma sucessão de etapas predeterminadas, na passagem seguinte: “O chamado desenvolvimento histórico repousa em geral sobre o fato de a última forma considerar as formas passadas como etapas que levam a seu próprio grau de desenvolvimento, e dado que ela raramente é capaz de fazer a sua própria crítica, e isso em condições bem determinadas – concebe-as sempre sob um aspecto unilateral” (1978, p. 120). Além do risco de teleologia, Marx aponta também para outro problema, presente nos economistas políticos, de partirem dos conceitos da sociedade capitalista e ignorarem as diferenças com relação às demais sociedades passadas, ou seja, ignorar a história: “Se é certo, portanto, que as categorias da Economia burguesa possuem [caráter de – RAT] verdade para todas as demais formas de sociedade, não se deve tomar isto senão cum grano salis [ou seja, em sentido bem determinado, com cautela - RAT]. Podem ser desenvolvidas, atrofiadas, caricaturadas, mas sempre essencialmente distintas” (ibid.). Muitos marxistas, porém, entre eles o estruturalismo de Althusser e o próprio Jacob Gorender (que discutiremos adiante), incorreram nesse erro e tomaram as categorias criadas para o estudo da sociedade capitalista para estudar as sociedades passadas sem muita cautela.

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tropicais e de metais preciosos para o mercado europeu, destaca então esse “sentido” da produção colonial, ou seja, seu direcionamento para o mercado externo, que conduzirá toda a obra da colonização e a sociedade colonial. Assim, depois de explicitada a postura metodológica, o autor passa a estudar a vida material da colônia. Identificado esse “sentido”, percebido exatamente pela sua permanência e pelos seus efeitos sobre o presente (e esse presente é o de um Brasil já independente politicamente nas primeiras décadas do século XX, mas que continuava dependente economicamente do mercado europeu), Caio Prado Júnior vai destacar os elementos essenciais da vida material da colônia, que serão a grande lavoura, a monocultura e o trabalho escravo, elementos esses que delinea­ram os contornos econômicos, sociais e geográficos da sociedade colonial que permaneceram até o presente. Após identificar esses elementos essenciais, ele busca separá-los do que é apenas acessório, dos elementos e acontecimentos secundários, entre os quais estarão o mercado interno e a produção voltada para ele, como a pecuária, o setor de serviços e a produção de gêneros alimentícios e utensílios para consumo interno. Busca mostrar, então, que os elementos secundários estão totalmente subordinados aos elementos essenciais: a produção para o mercado interno surge apenas como atividade subsidiária da grande lavoura escravista exportadora e tem sua dinâmica determinada pela dinâmica do mercado externo, ou seja, pela dinâmica dos preços internacionais e da demanda de gêneros agrícolas tropicais pela Europa. O capital comercial é então elemento central para a compreensão da sociedade colonial e da sua dinâmica. Finalmente, a partir do estudo da vida material, dentro da postura do materialismo histórico, nos capítulos finais da obra o autor passa então a analisar a vida social da colônia, ou seja, passa a estudar a superestrutura 162

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que se formou sobre aquela base. Aqui fica clara sua filiação ao materialismo histórico: a vida social é explicada a partir da vida material.5 Assim, no modelo pradiano, a economia e a sociedade coloniais seriam um mero apêndice de um sistema mais amplo, que tem seu centro na Europa, e toda sua dinâmica se subordinaria a esse centro. Não havia aqui espaço para a reprodução de uma sociedade autônoma. Na próxima seção, trataremos de dois outros autores, que são vistos pela historiografia crítica como desenvolvimentos do modelo pradiano. O primeiro é Celso Furtado (1980), que desenvolveu a ideia de subordinação da colônia ao comércio externo, buscando explicitar os ciclos reflexos da economia colonial ao mercado europeu. Esse autor, entretanto, desenvolve suas ideias a partir de uma perspectiva keynesiana, e não marxista, e não colocou sua obra explicitamente como um aperfeiçoamento do modelo de Caio Prado Júnior. São dois os motivos para, apesar disso, destacarmos aqui sua obra: sua importância na historiografia e na interpretação da economia brasileira e latino-americana e pelo fato de Fragoso e Florentino, em seu 5 Não poderíamos omitir algumas opiniões sobre esse complicado tema. De nossa parte, não acreditamos haver a separação radical entre base econômica e superestrutura, que a nosso ver foi utilizada por Marx muito mais para fins didáticos, embora tenha trazido mais problemas que soluções, o que ele próprio percebeu logo de início, tendo suprimido da sua obra O Capital o prefácio anterior (de 1857) que havia preparado (conhecido como o Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política) e no qual apresentava tais noções. A dificuldade que levou Marx a suprimir tal prefácio é exatamente a dificuldade de se apresentar de antemão, antes do desenvolvimento lógico das categorias, conceitos construídos dialeticamente, que num prefácio aparecem como se fossem meras definições formais ou categorias abstratas, à maneira das teorias construí­das com a lógica formal. Ou seja, trata-se de um problema em geral de se fazer prefácios quando se trata de uma obra construída com uma abordagem dialética, problema que já havia sido destacado por Hegel, no prefácio à sua Fenomenologia do Espírito. Em Fausto (1988, especialmente cap. 4) encontramos uma exposição de como não é adequado separar a “base econômica” e a “superestrutura”, pois a relação entre elas é uma relação dialética de posição e pressuposição. Infelizmente, como se sabe, as fáceis leituras vulgares de Marx tiveram preponderância sobre a leitura dialética, apesar das inúmeras advertências do próprio autor. Remetemos o leitor ao texto de Ruy Fausto, que desenvolve uma compreensão dialética da relação entre a “superestrutura” e a “base econômica”.

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Arcaísmo como Projeto – obra que discutiremos adiante neste trabalho –, colocarem Furtado ao lado de Caio Prado Júnior e Fernando Novais como fazendo parte de um mesmo modelo interpretativo, tendo em comum o fato de destacarem a ausência de dinâmica própria da economia colonial. O segundo é o próprio Fernando Novais (1979), de orientação marxista e buscando desenvolver explicitamente o modelo pradiano por meio da ideia do “sentido profundo da colonização”, dando particular atenção ao papel do regime colonial na acumulação primitiva de capital na Europa. Veremos esses dois autores na próxima seção.

3. O desenvolvimento do modelo pradiano: Celso Furtado e Fernando Novais Em sua obra Formação Econômica do Brasil, Celso Furtado, ainda que partindo de referencial teórico bastante distinto do de Caio Prado Júnior, chega a uma visão do Brasil colônia e, mais ainda, do Brasil das primeiras décadas do século XX, bastante parecida com a visão deste autor. Inspirado pelas ideias keynesianas, particularmente na sua versão latino-americana desenvolvida no interior da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), Celso Furtado concentra-se no estudo da economia agrário-exportadora para mostrar como essa orientação para o mercado externo baseada no trabalho escravo foi prejudicial e atrasou o desenvolvimento econômico brasileiro, porque: 1) a produção extensiva de gêneros agrícolas, possibilitada pela abundância de terras e pelo fornecimento de mão de obra escrava, limitou muito o progresso técnico; 2) o direcionamento para o mercado externo, associado à escassa renda monetária, que só seria ampliada no século XIX com o surgimento do trabalho assalariado, limitavam o desenvolvimento de um mercado interno que traria uma dinâmica própria à economia colonial por meio dos mecanismos multiplicadores da renda presentes nas economias de mercado. Além disso, essa estrutura econômica precária e instável no tempo e no espaço, baseada na monocultura para exportação, na grande propriedade 164

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rural e no trabalho escravo, promoveu grande concentração da renda entre as classes sociais e também do ponto de vista regional, ficando a renda concentrada no litoral e, principalmente, nos estados do Sudeste e Sul, que se desenvolveram muito à frente dos estados do Norte, Nordeste e CentroOeste, trazendo assim fortes desigualdades sociais e regionais. Assim como Caio Prado Júnior, Furtado vê a Colônia como um sistema econômico dependente, sem autonomia: [...] sendo uma plantação de produtos tropicais, a Colônia estava integrada nas economias europeias, das quais dependia. Não constituía, portanto, um sistema autônomo, sendo simples prolongamento de outros maiores. (Furtado, 1980, p. 95)

Sua principal contribuição para o desenvolvimento da tese da subordinação da colônia ao mercado externo está no estudo das flutuações da economia colonial. Como esta não tinha funcionamento autônomo, seu ritmo seria determinado pelas flutuações do mercado internacional. Para Furtado, os períodos de alta do preço internacional dos gêneros agrícolas de exportação representam períodos de expansão econômica nas atividades da colônia voltadas ao mercado interno, como a pecuária e a produção agrícola para consumo interno. Isto porque a grande lavoura tinha alto coeficiente de exportação, e o seu crescimento implicava o aumento da demanda por produtos internos para abastecimento. Nos períodos de baixa do preço internacional, ocorreria o inverso: parte da mão de obra escrava da grande lavoura seria deslocada para a produção de subsistência. Dessa forma, a produção interna poderia até aumentar, mas não o faria de forma mercantilizada: ficaria concentrada na produção de subsistência. Assim, o aumento da produção interna não era acompanhado por um crescimento da renda monetária e, portanto, não haveria uma mudança estrutural na dinâmica econômica da colônia – o que só passaria a ocorrer, para Furtado, com o surgimento do trabalho assalariado trazido 165

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pela imigração europeia e se consolidaria na década de 1930, com o centro dinâmico da economia se deslocando da agricultura para exportação para a indústria voltada ao mercado interno. Fernando Novais, com sua obra Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial, busca explicitamente, dentro do quadro teórico do marxismo, aprofundar a tese do “sentido da colonização” de Caio Prado Júnior. A partir do conceito de “Antigo Sistema Colonial”, ligado ao Antigo Regime, que se caracterizava no campo político pelo absolutismo e no econômico pelas doutrinas mercantilistas, o autor insere o sistema colonial no quadro maior da acumulação primitiva de capital na Europa, que teve como um de seus pilares a extração do excedente colonial por meio do monopólio exercido pela metrópole no comércio com as colônias. O regime do comércio colonial – isto é, o exclusivo metropolitano no comércio colonial – constituiu-se ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, no mecanismo através do qual se processava a apropriação por parte dos mercadores das metrópoles, dos lucros excedentes gerados nas economias coloniais: assim, pois, o sistema colonial em funcionamento, configurava uma peça da acumulação primitiva de capitais nos quadros do desenvolvimento do capitalismo mercantil europeu. (Novais, 1979, p. 92)

Assim, Novais vai além de Caio Prado Júnior quando chama de “sentido profundo da colonização” o fato de a transferência do excedente da colônia para a metrópole por meio do monopólio do comércio de gêneros tropicais ter servido à acumulação primitiva de capital que impulsionaria a Revolução Industrial no século XVIII. Isso ocorreu particularmente pela transferência desse excedente que era apropriado por Portugal, subordinado que era no cenário europeu, para a Inglaterra. Tudo na colônia seria explicado, então, por esse “sentido profundo”, sendo, assim como em Caio Prado Júnior, o capital comercial a chave para a compreensão do sistema colonial: tudo o mais que existe na colônia será subsidiário e seu mercado interno, segundo Novais, será necessariamente reduzidíssimo (ibid., p. 109). 166

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Até mesmo a escravidão terá sua explicação pelo capital comercial e pela acumulação primitiva: para Novais, não é a instituição escravidão que explica o surgimento do tráfico negreiro, ao contrário, é o fato de o tráfico negreiro também contribuir para a acumulação primitiva de capital que explica o fato de se ter optado pela mão de obra escrava africana. A respeito dessa tese sobre a escravidão, cabe uma qualificação: aqui de fato soa teleológica a ideia de que é o tráfico negreiro que explica a escravidão devido à existência de um “sentido profundo da colonização”, que seria a acumulação primitiva. Assim, Novais parece ir além de Caio Prado no uso que dá à palavra “sentido”, de forma que às vezes se tem a impressão de que a acumulação primitiva de capital constituía um telos metafísico. Se não for isso, haveria então outra possibilidade: a de que haveria, senão uma razão histórica metafísica (que está mais para Hegel que para Marx), um Sujeito, à frente do processo de acumulação primitiva. Consideremos duas possibilidades: esse Sujeito poderia ser o próprio homem, ou seja, um sujeito dotado de intencionalidade, ou ainda o capital (ou uma de suas formas), ou seja, um sujeito automático. No primeiro caso, poder-se-ia considerar que a acumulação primitiva de capital era um objetivo deliberado dos comerciantes ou das elites europeias, que por isso teriam escolhido o escravo africano como mão de obra para a lavoura. Entretanto, essa possibilidade soa absurda, afinal, as elites teriam que conhecer previamente o resultado da história. Caberia considerar, ainda, a possibilidade, mais plausível, de haver como sujeito do processo o próprio capital, e então os homens surgiriam apenas como personificações de categorias econômicas, como suportes do capital. Entretanto, o capital, dentro do esquema teórico de Marx, só passa a existir efetivamente quando a sua forma capital industrial, com o trabalho assalariado, passa a ser dominante, o que só pode ocorrer logicamente depois da acumulação primitiva do capital. Dessa forma, uma vez considerado o capital – enquanto forma apenas (D – M – D’), embora sem conteúdo, isto é, sem o trabalho assalariado e a grande indústria que constituem em Marx seu fundamento social – como sujeito já antes do 167

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advento do capitalismo industrial, o argumento de Novais ganharia mais força contra as acusações de ser teleológico. Ou seja, parece-nos que falta a Novais, para fugir das acusações de ser teleológico, apontar qual o sujeito desse processo que gera a acumulação primitiva de capital. Entretanto, há que se ressalvar o uso impróprio que Fernando Novais faz do termo capitalismo quando lhe confere a adjetivação “capitalismo comercial”.6 Marx fala, sem dúvida, de “capital comercial” como uma das formas históricas do capital, assim como o capital usurário e o capital industrial. Entretanto, ele jamais se referiu a um “capitalismo comercial”. Ao contrário, Marx ressalta que apenas o capital industrial é uma forma autônoma, vale dizer, apenas ele pode constituir-se como Sujeito – ou seja, repor as condições de sua própria reprodução – e assim dar base a um modo de produção próprio (o capitalismo) – enquanto o capital comercial e o usurário sempre existiram em outras formas de organização social, exatamente porque não são formas autônomas e, portanto, não podem constituir um modo de produção específico. Dessa forma, coloca-se a questão lógico-teórica de se o capital comercial pode ser considerado o sujeito desse processo de acumulação primitiva de capital, questão que não é abordada por Novais, que como vimos trabalha com a categoria, a nosso ver problemática na perspectiva marxista, de capitalismo comercial.7 Poder-se-ia ainda tentar utilizar o mesmo argumento metodológico do “sentido”, discutido na seção I, para defender Novais. Assim, ele estaria vendo não um sentido teleológico, mas apenas vendo a posteriori um sentido que era contingente, mas se realizou efetivamente na história. 6 É importante ressaltar que Caio Prado Júnior foi mais cuidadoso que Fernando Novais, pois fala em capital comercial, mas não em “capitalismo comercial”, evitando, cautelosamente, usar a categoria modo de produção ao tratar do período colonial. Para uma discussão mais detalhada sobre a categoria “capitalismo comercial”, ver o texto de Horacio Ciafardini (1988). 7 Como veremos na seção 3, um dos modelos interpretativos mais recentes consegue resolver essa questão com a criação de uma nova forma do capital, o capital escravista-mercantil.

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Entretanto, aqui se coloca outra questão: em que medida a colonização e a extração do excedente colonial foram de fato condições necessárias para a acumulação primitiva de capital? Essa questão também suscitou várias discussões na historiografia, ao que nos parece inconclusivas. E ainda que essa relação entre extração do excedente colonial e acumulação primitiva de capital pudesse ser bem estabelecida, há um outro problema, de ordem lógica, para usar esse argumento quando se trata de Fernando Novais. Ele próprio acaba impossibilitando essa interpretação com a tese sobre a adoção da mão de obra escrava negra, visto que coloca essa opção como tendo se dado em função da acumulação primitiva, ou seja, uma escolha feita em função de um resultado histórico, mas antes que ele fosse conhecido, antes que a contingência se efetivasse historicamente. Na sua tese sobre os motivos da adoção do escravo negro é onde ele mais abre flancos para as acusações de teleologia. Assim, um aspecto interessante do ponto de vista metodológico é que, ao procurar aprofundar o modelo de Caio Prado Júnior, Novais o faz ao custo de tornar o modelo mais falseável – para usar a terminologia de Karl Popper (1972) – e, portanto, mais frágil às críticas. Isso talvez explique por que muitos críticos do modelo pradiano muitas vezes discutam em bloco os dois autores e, sem muito cuidado, transpõem críticas a Novais como se pudessem ser imputadas a Caio Prado Júnior. Dessa forma, a ideia de “sentido da colonização”, de Caio Prado, como defendemos anteriormente, não nos parece ser teleológica, embora as ideias de Novais a partir da noção de “sentido profundo da colonização” sejam menos facilmente defensáveis sob esse aspecto. De qualquer forma, a relação entre a colonização e o desenvolvimento do capitalismo, que entendemos ser o grande avanço de Fernando Novais, deve ser desenvolvida. Voltaremos a essa questão adiante.

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4. As críticas ao modelo pradiano Apesar das diferenças entre os três autores tratados anteriormente, os críticos como Fragoso e Florentino (2001) os tratam como constituindo um mesmo modelo interpretativo. Assim, o modelo interpretativo de Caio Prado Júnior e os desenvolvimentos feitos por Celso Furtado e Fernando Novais são tratados como o que se pode chamar de desenvolvimentos de um mesmo paradigma, dentro da chamada ciência normal, de Thomas Kuhn (1995). Esse modelo teria então as seguintes características: 1) Há dois tipos de produção: a principal, voltada para a exportação e realizada em grandes propriedades e com mão de obra escrava; a subsidiária, voltada para o abastecimento interno e que era feita ou em propriedades menores com predominância de trabalhadores livres ou dentro da grande lavoura de exportação, que buscava a autossufi­ ciência, como produção para subsistência; 2) Baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas em virtude do uso extensivo dos recursos naturais e da mão de obra escrava; 3) Como decorrência dos pontos anteriores, uma grande concentração da renda monetária na elite agrário-exportadora e um mercado interno reduzido, cuja dinâmica era dependente da dinâmica do comércio externo; 4) O capital comercial é a categoria-chave para se compreender a estrutura e o funcionamento da sociedade colonial, caracterizada pela falta de autonomia e pela dependência desta com relação ao mercado europeu. Adiantamos, na introdução a este trabalho, os tipos de críticas “teóricas”8 a esse modelo. A primeira, que já discutimos nas duas seções 8 Utilizo aqui uma separação, para fins didáticos, entre o que seriam as “críticas teóricas” e as “críticas empíricas”. Entendo por críticas teóricas aquelas que foram motivadas por ou partiram de discussões no plano lógico e metodológico, ou seja, de discussões

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anteriores, é a acusação de que a ideia de “sentido da colonização” seria teleológica. Embora Fernando Novais pareça às vezes incorrer em afirmações que soam teleológicas, não cremos ser justa a extensão de tais críticas a Caio Prado Júnior. As duas outras críticas teóricas – a relacionada à defesa da importância central do escravismo e a referente ao uso da categoria modo de produção – apontaram para a tentativa de superação do modelo, ou seja, para a construção de novos modelos interpretativos, e serão o objeto desta seção. Já quanto às críticas empíricas, elaboradas a partir de pesquisas empíricas baseadas em fontes documentais, particularmente com o desenvolvimento da demografia histórica, que indicaram um mercado interno amplo e alto grau de complexidade da economia colonial (não prevista pelo modelo pradiano e seus desenvolvimentos), são mais esparsas e monográficas.9 Elas funcionaram mais, dentro da perspectiva de Karl sobre a maneira como os autores incorporaram a leitura de Marx. E, por críticas empíricas, estamos entendendo principalmente os desenvolvimentos da pesquisa com fontes primárias que evidenciam os limites do modelo pradiano no que diz respeito à apreensão da complexidade da economia colonial e que partem dos estudos das fontes documentais. Claro que tanto as críticas empíricas não deixam de ser teóricas como tampouco as críticas teóricas deixaram de se fundamentar em evidências empíricas. Mas há distinções claras entre os dois tipos de crítica, de forma que achamos justificável a distinção que, ainda que imperfeita, será útil para nossos propósitos neste artigo. Agradeço a um parecerista anônimo da revista por ter apontado para a necessidade de desenvolver melhor essa distinção, que não estava clara no texto original, e assumo a responsabilidade pela opção de mantê-la no texto. 9 Remetemos aqui à noção abrangente de demografia histórica tal como apresentada por Motta e Costa (1997). Segundo os autores: “As centenas de trabalhos produzidos na área tiveram, ademais, regra geral, um caráter nitidamente monográfico. Amiúde detiveram sua atenção em uma ou poucas localidades, variando amplamente em termos do intervalo temporal contemplado. (...) O valor inestimável desses ‘transbordamentos’ de natureza monográfica está na própria demanda que ora se coloca no sentido da síntese dos achados neles presentes. De fato, os estudos monográficos apontaram claramente muitas das insuficiências, quer da aproximação, ainda paradigmática, de Caio Prado Júnior, quer de autores que o sucederam, perfilhando com maior ou menor intensidade ou criticando com maior ou menor contundência o modelo pradiano, tais como Celso Furtado, Fernando Novais, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender, dentre outros” (p. 156). Assim, há atualmente uma forte concentração dos esforços dos historiadores

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Popper, como testes empíricos para falsear o modelo pradiano, ou então, na perspectiva de Thomas Kuhn, explicitando anomalias dentro do paradigma. Não resultaram, assim, em um novo modelo interpretativo (novo paradigma teórico) – até pelos próprios limites de uma lógica indutiva, o caráter desses trabalhos não tem poder de ir muito além da dimensão dos estudos de caso, como de resto ocorreu com a Escola Histórica Alemã de economia10 –, mas incentivaram a busca de novas teorias e foram incorporadas pelos dois modelos que surgirão na década de 90 buscando superar os limites do modelo pradiano. Por isso, não dedicaremos a elas um tratanos estudos monográficos baseados em fontes documentais, o que tem gerado uma enorme riqueza nos estudos empíricos a respeito da sociedade colonial, mas, por outro lado, há uma escassez de trabalhos visando dar interpretações mais gerais, em modelos interpretativos da nossa história, agora enriquecidos pelas novas descobertas empíricas. Esse passo é sem dúvida o mais importante, como reconhecem Motta e Costa, os quais escrevem que se torna necessário agora “preocupar-se com a integração dos resultados alcançados no decurso dos últimos lustros em modelos mais gerais, interpretativos de nosso evolver histórico. Aí está, assim entendemos, o mais rico filão que se abre ao futuro da demografia histórica brasileira” (p. 156). 10 É interessante notar que, entre os historiadores (como entre outros cientistas sociais), há os dois extremos, aqueles mais voltados à teoria e que constroem estruturas teóricas que buscam dar conta de largos períodos históricos em interpretações mais gerais no espaço e no tempo, e aqueles mais voltados à pesquisa empírica, segundo os quais os dados refutam qualquer teoria que pretenda ter caráter geral. Isso nos parece ser parte da eterna discussão iniciada entre o positivismo e o historicismo na teoria do conhecimento: o positivismo (em sua versão do Círculo de Viena) recorrendo à lógica dedutiva, otimista com relação ao poder de explicação das teorias, na busca de “leis gerais”, e o historicismo recorrendo ao empírico (e às vezes cedendo à tentação de uma “lógica” indutiva) e com seu ceticismo quanto às abstrações e generalizações das teorias, com sua tendência a produzir estudos de casos e trabalhos monográficos (como ocorreu com a Escola Histórica Alemã de Economia, no século XIX). Nessa tensão, não podemos nos esquecer que há tentativas de superação, das quais as mais influentes são as de Max Weber (herdeiro da Escola Histórica Alemã que buscou conciliar as duas noções adotando uma postura neokantiana com a noção de tipos ideais) e a de Karl Marx (com a dialética materialista). Neste trabalho, discutiremos apenas a linhagem marxista, embora reconhecendo a importância de uma tradição weberiana de interpretação, inaugurada no estudo da sociedade brasileira com Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda. Como veremos, na historiografia brasileira, essa tensão também aparece, e as diferenças entre os autores muitas vezes está na solução (ou falta de solução) metodológica para essa questão, que é central neste trabalho.

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mento sistemático, bastando-nos aqui lembrar suas conclusões e traços gerais, bem como sua utilização pelos autores dos novos modelos. Passemos a analisar então as duas principais críticas teóricas que surgiram entre as décadas de 70 e 80. Gorender (1985), em sua obra O escravismo colonial, propõe, seguindo uma ideia proposta por Ciro Flamarion Cardoso (1975), aplicar a categoria Modo de Produção para interpretar o período colonial no Brasil e nas colônias americanas em geral. Com isso, pretende o autor ser mais rigoroso que Caio Prado Júnior quanto à aplicação do materialismo histórico ao estudo do Brasil Colônia, propondo uma inversão metodológica no enfoque que ele chama de circulacionismo, ou seja, do centro no capital comercial e no comércio externo, para dar ênfase às relações de produção que configuram um modo de produção. Assim, Gorender destacará a dinâmica e a lógica internas à colônia, sua autonomia como um modo de produção distinto de todos os que já haviam surgido. A relação de produção nas colônias era o escravismo, sendo essa categoria, portanto, a chave para o estudo da colônia, e não mais o capital comercial. Assim, seus esforços na referida obra se concentram em mostrar que houve, nas Américas, um novo modo de produção, que ele, assim como Ciro Cardoso, chama de Modo de Produção Escravista Colonial. Sua argumentação é feita então para, no bojo das categorias da Economia Política, descobrir as “leis” que regulam esse novo modo de produção. Não entraremos nos detalhes de sua extensa obra, apenas nos centraremos em alguns pontos que julgamos centrais e nas suas proposições metodológicas. Ainda que existissem de fato certas determinações autônomas na economia colonial (o que levou alguns autores a questionar a ênfase que foi dada no modelo pradiano à extração do excedente colonial e à visão da colônia como mero apêndice de um sistema mais amplo com centro na Europa), o próprio Ciro Cardoso ressalta que o modo de produção colonial é dependente. 173

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Os aspectos principais e imediatos dessa dependência são: 1) a reprodução da força de trabalho – a mão de obra escrava africana – se dava fora do modo de produção e era-lhe, portanto, exterior; e 2) apesar de a produção da mais-valia se dar na colônia, a realização dessa maisvalia ou, como chamou Marx, o “salto mortal da mercadoria” (a passagem M – D’) dava-se no mercado europeu, dependia deste e, portanto, também era dada fora do modo de produção. Entretanto, e esta é uma das críticas feitas a Gorender, para Marx, o conceito de modo de produção implica uma totalidade orgânica, autônoma e que se reproduz a si própria. Dessa forma, torna-se frágil a ideia da existência de um modo de produção “dependente”, como sugere Ciro Cardoso, visto que o capital comercial parece ter grande influência nesse modo de produção que não se reproduz sem ele, seja na reprodução da força de trabalho, seja na realização da mais-valia, etapas fundamentais da lógica de funcionamento do referido modo de produção. Gorender tentou, em outro texto, responder a essa objeção (Gorender, 1980).11 De início, ele reconhece a necessidade do mercado externo para o Modo de Produção Escravista Colonial, quando escreve, à página 56, que enquanto para o capitalismo “a teoria marxista da reprodução ampliada do capital dispensa a vinculação necessária entre capitalismo e modos de produção não capitalistas”, para o modo de produção colonial, ao contrário, “tanto a reprodução ampliada como a reprodução simples não dispensam a realização da massa da produção mercantil no mercado externo, que deve ser um mercado não escravista”. Assim, continua o autor, se para o capitalismo “o mercado externo não constitui senão um prolongamento do mercado interno”, e, por isso, “do ponto de 11 Esse texto de Gorender é muito rico, e de grande importância para nossa discussão pelo seu caráter metodológico, inclusive porque o autor também discute o estruturalismo de Althusser (identificando sua noção kantiana de criação de conceitos como universais abstratos) e o historicismo, bem como se defronta com a teoria da dependência de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (Cardoso e Faletto, 1975) e com um texto do filósofo José Arthur Gianotti (1976).

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vista teórico, o mercado externo não precisa ser conceituado”, quanto ao escravismo colonial, entretanto, “o mercado externo não escravista constitui um pressuposto necessário do processo de produção”. Apesar desse reconhecimento, Gorender insiste na ideia de que o modo de produção escravista colonial não deixa de ser uma totalidade orgânica. Escreve ele: Enquanto o modo de produção capitalista cria seu próprio tipo de circulação, que o integra internamente, o escravismo colonial se vincula a um tipo de circulação externa, que ele próprio não cria, mas se limita a adequar ao seu processo de produção. Com isto, o modo de produção escravista colonial não deixa de ser uma totalidade orgânica, conceitualmente definida como tal, sobretudo pela vigência de leis rigorosamente específicas. (1980, p. 57)

Assim, Gorender continua afirmando, apesar da ressalva, que “o modo de produção escravista colonial não deixa de ser uma totalidade orgânica”, mas de forma alguma consegue arrolar argumentos suficientes para demonstrar essa afirmação ao longo do texto. Ainda que em sua obra sobre o escravismo colonial ele tenha buscado mostrar essas leis específicas do modo de produção escravista colonial, não nos parece de forma alguma suficiente dizer que pela existência de leis específicas ele pode ser considerado uma totalidade orgânica, ainda mais depois do próprio reconhecimento que o autor fez de que essa “totalidade orgânica” depende do mercado externo. Na seção seguinte do referido texto, após expor sua posição sobre a “totalidade dependente” sem, no entanto, defendê-la satisfatoriamente, Gorender parte para a crítica às interpretações alternativas, que constituem aquilo que ele chama de “integracionismo”, presente nas teorias da dependência e também em um texto de Giannotti (1976). Essa postura que ele chama de integracionista é a alternativa à ideia de se utilizar a categoria modo de produção para se compreender o período colonial. Uma das maneiras pela qual se apresenta esse integracionismo é na visão que 175

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subordina a dinâmica do interno à dinâmica do externo, e Gorender situa aqui as teorias da dependência, e mesmo na sua vertente mais rigorosa, que segundo o próprio autor seria a de Cardoso e Faleto (1975). Outra forma sob a qual aparece esse integracionismo (embora não incompatível com a primeira, senão mesmo complementar) é a visão que “acomoda sob a categoria de capitalismo as mais diversas realidades sócio-históricas” (Gorender, 1980, p. 59), eliminando assim uma diferença essencial entre capitalismo e não capitalismo, que estaria presente em Rosa Luxemburgo.12 A respeito desse segundo tipo de integracionismo, representado por Giannotti (1976), escreve Gorender: A explicação tem sido a de que, uma vez integrados no circuito da reprodução do capital, os modos de produção pré-capitalistas, que o capitalismo encontra ou mesmo recria, perdem seu caráter específico e passam a fazer parte do processo capitalista propriamente dito. (Ibid., p. 59)

Segundo Gorender, com esse procedimento “a realidade sóciohistórica é violentada e aplainada em benefício de um esquema histórico de fácil manejo, pois se esquiva de enfrentar as diferenciações e especificidades” (ibid., p. 59). Não acreditamos que as diferenciações e especificidades, enfim, que as particularidades, só possam ser enfrentadas com o uso da categoria modo de produção. Na verdade, seguindo rigorosamente o materialismo dialético, o rigor do discurso é prejudicado se se utilizam conceitos que não estão postos efetivamente, quando se utilizam os conceitos como puros universais abstratos, ainda que aplicados a “especificidades” e “diferenciações”, baseadas no “material empírico”, na “documentação factual”, nas “fontes documentais”, etc. (ibid., p. 54), pois o “material” do materialismo dialético não se confunde com o empírico: este é apenas o plano fenomênico, a aparência ou a superfície da realidade objetiva. 12 A versão citada por Gorender é a seguinte: Luxemburgo, R. (1978). La Acumulación del Capital. Barcelona, Grijalbo.

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Gorender, como muitos outros marxistas, compartilha de uma leitura não dialética do Prefácio de 1859, que o leva a concebê-lo como se fosse a apresentação de uma teoria geral da história. Como o próprio Marx afirmou no referido prefácio à sua obra Para a Crítica da Economia Política (1979), o uso das categorias criadas pela economia política para o estudo das sociedades passadas deve ser feito cum grano salis. Como a questão lógica e metodológica da leitura de Marx é fundamental para nossa discussão, convém esclarecer a visão do método e a leitura de Marx que aqui se abraça, que é o resgate da leitura dialética de Marx realizada por Ruy Fausto. Em seu texto Para uma crítica da apresentação marxista da História: sobre a sucessão dos modos de produção, Fausto (1988, cap.1), escreve que as categorias criadas por Marx para o capitalismo devem ser vistas não como categorias de uma teoria geral da História, pois seu estatuto teórico nas sociedades passadas é o de conceitos pressupostos, ou seja, como conceitos cujas determinações estão postas, mas aos quais falta a determinação posição. Em outro texto, intitulado Pressuposição e Posição: dialética e significações “obscuras”, Fausto (1988, cap. 2) mostra que, tanto na dialética hegeliana como na marxista, a posição do conceito (ou seja, sua existência efetiva) é também uma determinação do conceito. Isso não existe para a concepção kantiana, para a qual a posição é um atributo que só cabe ao objeto (à coisa-em-si), e a pressuposição é um atributo que só cabe ao sujeito. Para as dialéticas de Hegel e Marx, entretanto, é possível tanto a existência de pressuposições objetivas, ou seja, de objetos pressupostos, quanto da posição pensada, ou seja, que os conceitos não são meras representações subjetivas, mas dizem respeito a objetos efetivamente existentes. Quanto aos objetos pressupostos, escreve Fausto que eles são contraditórios, pois pertencem ao mesmo tempo ao campo do ser e do não ser. A pressuposição objetiva pode ser pensada na dialética, segundo Fausto, de duas maneiras: 1) o pressuposto como o possível – objetos plenamente determinados, mas aos quais falta a determinação posição (que é a posição efetiva 177

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do conceito). Nesse caso, a contradição vem do fato de que o objeto, apesar de já ter todas as suas determinações (e, portanto, pertence ao campo do ser), não tem a determinação posição, sendo portanto mera possibilidade ou contingência (pertencendo pois ao campo do não ser); 2) o pressuposto como posição negada – objetos cuja própria posição é uma negação, ou seja, o objeto ao se pôr nega a si mesmo. A contradição aqui vem não de um objeto pressuposto ao qual falta a posição, mas do fato de que a própria posição do objeto leva à sua negação. Para o primeiro caso, que é o que está em questão aqui, sem a determinação posição, o conceito permanece como pressuposição, portanto como conceito negado, generalidade negada, e, por isso mesmo, apenas um universal abstrato.13 A passagem da pressuposição à posição, que nesse caso é uma passagem da possibilidade ou contingência à efetividade, exige a negação do não ser (a negação da negação), ou seja, exige a posição efetiva da generalidade que permite a confecção do conceito. E quando a generalidade é posta, ela se nega em particularidade, pois é histórica, ou seja, é uma abstração real (abstração que se opera no próprio objeto, não como categoria puramente subjetiva). Sobre a categoria trabalho, para ficar num exemplo famoso, escreve Marx, no Prefácio: O trabalho parece ser uma categoria muito simples. E também a representação do trabalho, neste sentido geral – como trabalho em geral. Entretanto, concebido economicamente nesta simplicidade o “trabalho” é uma categoria tão moderna como são as relações que engendram esta abstração (...) esta abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado intelectual de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos podem passar com facilidade de um trabalho a outro e na qual o gênero determinado de trabalho é fortuito e, portanto, é-lhes indiferente. 13 Como mostra Fausto, nesse caso do pressuposto como o possível ou o ainda não posto, a distinção pressuposição/posição é próxima da distinção aristotélica entre potência e ato.

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Neste caso, o trabalho converteu-se não apenas como categoria, mas na efetividade, em um meio de produzir riqueza em geral (...) Assim, a abstração mais simples que a Economia moderna situa em primeiro lugar só aparece no entanto nesta abstração praticamente verdadeira como categoria da sociedade mais moderna. (1979, pp. 125-126)

Aqui fica claro que, para Marx, a abstração presente na categoria trabalho, como trabalho em geral, é uma abstração real, operada pela própria materialidade da vida social na sociedade moderna, e “não apenas o resultado intelectual de uma totalidade concreta de trabalhos”. É uma abstração “praticamente verdadeira” (apesar da confusão a que pode levar a tradução, o “praticamente verdadeira” aqui deve ser lido como “verdadeira na prática” e não como “quase verdadeira”). Assim, para a dialética marxiana, que é materialista, o que confere legitimidade ao conceito, ou seja, o que regula sua adequação ao objeto é o fato de que o surgimento dele está intimamente ligado à existência efetiva do objeto. Enquanto para a dialética hegeliana a passagem da posição pensada à posição objetiva (que é a chamada prova ontológica) é feita sem rigor, pois pensada como um movimento da própria ideia, em Marx adquire rigor pois é operada a partir de um argumento ontológico objetivo: a posição pensada só pode existir num meio social no qual o conceito tem existência efetiva, ou seja, num meio social no qual antes já se efetuou a posição objetiva do conceito, a posição efetiva da generalidade, o universal concreto. Escreve Marx a respeito de Hegel: Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si e se move por si mesmo; enquanto que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto.

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E mais a diante: [a totalidade concreta] não é de modo nenhum o produto do conceito que pensa separado e acima da intuição e da representação, e que se engendra a si mesmo, mas da elaboração da intuição e da representação em conceitos. (1979, p. 117)

Assim, em Marx, para que o sujeito opere a posição pensada é necessário que o próprio objeto tenha efetuado a passagem da pressuposição à posição, ou seja, é necessária a posição objetiva. Mas, como coloca Fausto, para Marx, ao contrário de Hegel, a posição objetiva não está contida na determinação posição, ela continua existindo em sua autonomia, externa ao sujeito do conhecimento: O todo, tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, modo que difere do modo artístico, religioso e práticomental de se apropriar dele. O sujeito real permanece subsistindo, agora como antes, em sua autonomia fora do cérebro, isto é, na medida em que o cérebro não se comporta senão especulativamente, teoricamente. (Marx, 1979, p. 117)

Uma vez que a própria realidade objetiva possibilitou a confecção do conceito, não se pode, a partir daí, usar os conceitos como se fossem categorias que surgiram meramente no pensamento, por um processo de abstração subjetivo, para estudar um passado no qual esses conceitos não tinham existência efetiva. Esses são os limites do conhecimento, onde o marxismo se aproxima do historicismo. Dizer claramente esses conceitos – isto é, dizer que o conceito pertence ao campo do ser – é uma impropriedade, pois, como vimos, antes da posição objetiva ele permanece como pressuposição, pertencendo ao mesmo tempo ao campo do ser e do não ser. Dessa forma, a adequação da dialética ao objeto vem exatamente pelo fato de que, para um objeto contraditório, o discurso para dizê-lo deve ser também um discurso da contradição, para apropriar-se dialeticamente da contradição. Caso contrário, ao aplicar-se um discurso “claro”, ou seja, o 180

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discurso do entendimento, centrado na lógica formal, a um objeto que é “obscuro”, isto é, contraditório, a contradição passa para o discurso e o rigor científico se perde. Essa compreensão da relação entre posição e pressuposição apontada por Fausto já é advertência suficiente para que se tenha cuidado com o uso das categorias criadas por Marx para o capitalismo para estudar sociedades passadas (particularmente pela busca de “leis” baseadas em categorias abstratas), visto que os conceitos da economia política em sociedades passadas, por serem pressuposições, são afetados de negação. O problema mais evidente com a concepção metodológica de Gorender, a nosso ver, está explícito ainda na primeira seção de seu referido artigo quando, citando Engels, ele separa o “modo histórico” do “modo lógico” do método dialético. O primeiro seria o que “se aplica aos níveis do singular e do particular, mas que não ascende ao nível categorial sistemático de abordagem da matéria histórica” (1980, p. 44). O segundo seria o “estudo categorial-sistemático ou, se quiserem, estrutural, no sentido de que deve atravessar as aparências fenomenais e revelar a estrutura essencial” (ibid., pp. 44-45). Gorender diz então que enfatiza o modo lógico do método dialético, com a ressalva de fazê-lo sem suprimir o histórico. Entretanto, e isso se pressente quando ele usa o termo “estrutural” (e ressaltaremos aqui suas semelhanças com o estruturalismo), sua conciliação entre os dois modos se dá de forma frágil, de maneira não dialética. Isso ocorre porque ele, à maneira dos discursos do entendimento (pagando tributo à distinção kantiana entre sujeito e objeto, e isso ainda que se apresente como antikantiano por diversas vezes), concebe o lógico como sendo apenas o categorial, e concebe o histórico como sendo apenas o “particular” ou “acontecimental” (ibid., p. 45), à maneira do historicismo, e não como ontologia, como um devir ou processo de constituição do ser (passagem da pressuposição à posição ou da possibilidade à efetividade, ou ainda do não ser ao ser). Dessa forma, ao invés de se apropriar do processo histórico real (que é lógico-ontológico), há um esforço para encaixar deter181

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minações históricas acontecimentais numa estrutura teórica previamente concebida com categorias que, por não terem a determinação posição, são assim puros universais abstratos. Ora, para a dialética, especialmente a marxiana, tanto o “lógico” (o categorial ou geral) é histórico, visto que a abstração é real e, portanto, particular, como o “histórico” é lógico e geral, visto que é a generalidade posta, universal concreto. É dessa maneira contraditória que se deve compreender a concepção das significações de Marx, ou seja, o discurso deve aceitar a contradição para apreendê-la, reproduzir a contradição real, caso contrário a contradição, que é objetiva, passa para o discurso, mas como contradição vulgar. Como escreve Fausto, sofrer a contradição seria uma “visada clara do objeto obscuro”,14 quando para o objeto obscuro deve-se ter também uma visada obscura, ou seja, afetada de negação. Daí a adequação do discurso dialético, como adequação do objeto obscuro pensado ao objeto obscuro real. Falta a Gorender, como parece que também faltou ao próprio Engels (pelo menos na leitura que dele faz Gorender), a percepção de que não podem ser tratados em separado os modos lógico e histórico do método dialético, ainda quando se afirma que se irá “juntá-los” depois, pois isso só pode levar a um ecletismo que de nada resolve o conflito entre o positivismo e o historicismo.15 Na verdade, quando se separam os dois (ou quando se os une de maneira não dialética), é exatamente quando surgem as imprecisões historicistas ou positivistas/estruturalistas, ou ainda as ecléticas. Isso porque a dialética não é a rigor um “método” no sentido que se atribui a essa palavra dentro do discurso do entendimento. A dialética é um discurso que é lógico-ontológico, ou seja, método e objeto se 14 Com a ideia de obscuridade, Fausto (1988, cap. 2) refere-se aos objetos contraditórios, que rompem com os princípios basilares da lógica formal, como o princípio da não contradição. Assim, enquanto o discurso formal seria aquele que trata apenas de significações “claras”, ou seja, apenas a respeito do que se pode dizer que é ou que não é, a dialética trata das significações obscuras, às quais cabe tanto o ser como o não ser. 15 A esse respeito, ver Teixeira (2003), especialmente capítulos 2 e 3.

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determinam reciprocamente, tendo a primazia este último, ao menos no caso da dialética marxiana (não se pode dizer o mesmo, sem ressalvas, a respeito da dialética hegeliana).16 Quando Gorender privilegia o “modo lógico”, faz precisamente o mesmo que o estruturalismo: tentar encaixar situações factuais em categorias preestabelecidas, universais abstratos. O “modo histórico”, reduzido ao acontecimental e materializado nas fontes documentais, acaba tendo caráter secundário e quase que apenas confirmatório e ilustrativo do esquema teórico. Há ainda outro argumento contra a ideia da existência de modos de produção coloniais. O conceito de modo de produção surge a partir do capitalismo, e é inerente à crítica da economia política de Marx, cujos conceitos só poderiam ter sido formulados nessa sociedade, a partir das abstrações concretas efetuadas no e pelo capitalismo. Assim, parece-nos que a colonização, bem como o apresamento e o tráfico negreiro, devem ser vistos como um processo histórico efetivo, de constituição do capitalismo enquanto modo de produção que une todas as partes do mundo integrando-as numa divisão internacional do trabalho e tendo o capital como sujeito desse processo, que é um processo de constituição de uma história genuinamente universal. Voltaremos a esse ponto na próxima seção. Vamos agora para outro importante autor do debate, que é Antonio Barros de Castro. No seu texto A Economia Política, o Capitalismo e a Escravidão (Castro, 1980), assim como Gorender, o autor destaca, contra o modelo pradiano, a escravidão como categoria central para a compreensão do sistema colonial. Entretanto, ao contrário de Gorender, que busca apreender a categoria escravidão por meio das categorias da economia política, com o conceito de modo de produção, Castro tem uma leitura diferente que remete aos limites da economia política. 16 A exposição rigorosa a respeito da concepção dialética das significações, bem como da diferença entre as dialéticas de Hegel e Marx, está em Fausto (1988), especialmente o capítulo 2.

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Numa interessante argumentação, escreve que o procedimento desenvolvido por Marx em O Capital, buscando as “leis gerais” que regem a produção capitalista, não pode ser repetido para outras sociedades. Isso porque é apenas no capitalismo que se tem de fato a autonomia da esfera “econômica” da vida social ante as demais esferas, é apenas no capitalismo que as relações sociais entre os homens aparecem como se fossem naturais e portanto passíveis de serem estudadas por uma ciência que busca leis gerais e regularidades, e é apenas nessa sociedade, portanto, que o materialismo histórico, e, portanto, a economia política, poderiam ser rigorosamente aplicados. Por exemplo, a respeito do feudalismo, diz o autor: O que se pretende frisar é que o feudalismo tem em sua base uma “substância” histórica – união química entre o econômico e o político – inexistente no capitalismo. Num tal contexto, não tem, pois, cabimento discutir o peso relativo do “econômico”, que simplesmente não existe como tal. Tampouco tem sentido pretender sequer estabelecer a “lei econômica que preside o movimento desta sociedade”. Em outras palavras, este regime social e sua evolução são rigorosamente intratáveis pela economia política, e não se pode fazer com ela o análogo do que Marx fez para o capitalismo. (Castro, 1980, p. 84)

Partindo dessa concepção, Castro vai analisar as características da economia colonial para mostrar os limites da economia política na sua apreensão. Assim, pode-se resumir sua argumentação em três partes: 1) A estrutura da economia colonial foi moldada pela produção de mercadorias, ou seja, produção de valores de troca, e não apenas de valores de uso, como no escravismo patriarcal da Antiguidade; 2) Embora essa estrutura tenha sido moldada pela produção de mercadorias, ela também foi moldada pela escravidão, elemento estranho ao capitalismo. Nesse aspecto, é que ele se diferencia do modelo pradiano e se aproxima de Gorender; 3) A economia colonial tem, portanto, essa dupla determinação (a produção de mercadorias e a escravidão), e sua apreensão teórica não pode se ater apenas à produção de mercadorias – o “sentido da 184

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colonização” –, pois a presença do escravismo torna insuficientes as teorias da economia política cujas categorias foram elaboradas para a economia capitalista, de produção de mercadorias. Nesse aspecto ele vai então num caminho oposto ao de Gorender, que tem como premissa metodológica a possibilidade de aplicação das categorias da economia política, que constituiriam uma estrutura teórica de análise, a todos os modos de produção, apesar de se colocar como crítico do estruturalismo de Althusser. Para Castro, a economia colonial teria uma parte previsível, ou seja, passível de ser estudada pelas leis da economia política (já que é uma sociedade de produção de mercadorias, com as regularidades trazidas pelas relações mercantis), e outra parte imprevisível, regida pela luta de classes (escravos e senhores), cuja motivação é primordialmente política e não econômica. Apenas no capitalismo, em que a extração do excedente da força de trabalho se dá de forma puramente econômica, dentro das leis do mercado (já que juridicamente todos são iguais), é que a luta de classes se torna de certa forma “previsível” pelas leis da economia política. No escravismo (e de resto nas demais sociedades pré-capitalistas), como a coação ao trabalho e a extração do excedente são extraeconômicas (baseadas em relações jurídicas de dominação), essa luta de classes não pode ser estudada pelas leis da economia política. Assim, Castro destaca os limites do materialismo histórico para compreender a economia colonial: Estas são razões fundamentais que impossibilitam estudar o regime social imperante no nosso passado, através das condições e necessidades da produção de mercadorias. As determinações que daí provêm existem e têm o seu espaço. Limitar-se a elas – e/ou ao seu “sentido” – no entanto, é tomar os escravos como se apenas emprestassem um colorido especial à história, ou pior, talvez, como se as características por eles introduzidas na economia e na sociedade fossem apenas outras tantas “irracionalidades”. (1980, p. 106)

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Ele permanece próximo de Gorender e Ciro Cardoso, entretanto, por destacar a reprodução interna à colônia. Assim, para ele, o “sentido” poderia explicar apenas a implantação do sistema colonial, mas o desenvolvimento posterior desse sistema traria uma dinâmica interna que a ideia de “sentido” era insuficiente para explicar, pois a partir de agora a sociedade colonial deveria reproduzir a si própria: A produção em massa de mercadorias cria raízes no Novo Mundo, objetivando-se sob a forma de um complexo aparato produtivo. O “objetivo” maior desta realidade – o seu “sentido” se se quiser – lhe é agora inerente: atender as suas múltiplas necessidades, garantir a sua reprodução. Em tais condições o comércio é estruturalmente recolocado e os interesses mercantis – bem como os da Coroa – terão necessariamente que ter em conta as determinações que se estabelecem no nível da produção. Em outras palavras, a forma pela qual os interesses externos atuam sobre a colônia passa a depender “primeiramente da sua solidez e da sua estrutura interna”. O “projeto” colonial e/ou mercantilista subsiste, sem dúvida: o seu raio de incidência – especialmente em conjunturas adversas – fica no entanto severamente limitado pelo surgimento na colônia de uma estrutura socioeconômica, com seus elementos de rigidez, suas regularidades, seus interesses e, por último, mas também importante, pelos conflitos que lhe são próprios. (Ibid., pp. 88-89)

A crítica de Castro ao uso das categorias da economia política para estudar as sociedades passadas está, a nosso ver, correta. Concordamos no que diz respeito aos modos de produção não serem homólogos, para o que Marx alertou que se deveria ter cuidado ao aplicar as categorias da economia política, construídas a partir da sociedade burguesa (capitalista) para estudar o passado. Assim, a nosso ver, Marx não tinha como objetivo construir uma “teoria geral da história”, como parece entender Gorender, que, neste ponto, apesar das críticas ao estruturalismo, aproxima-se muito de Althusser. E isso ocorre porque Gorender, como os estruturalistas, 186

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exagera ao destacar um pretenso caráter cientificista em Marx,17 o que torna sua leitura da obra marxiana pouco dialética, particularmente no que diz respeito à relação dialética entre a particularidade e a generalidade dos conceitos, que é essencial à compreensão da concepção marxiana da História. Entretanto, a limitação da economia política apontada por Castro para estudar o período colonial parece-nos exagerada. Ele aponta para o caminho oposto ao do estruturalismo e de Gorender, para negar qualquer caráter de generalidade aos conceitos da economia política, que não poderiam ser aplicados a outras sociedades em que a dominação e a extração do excedente não fosse de caráter puramente econômico, como ocorre com o trabalho assalariado no capitalismo, e, portanto, não poderiam ser aplicados ao escravismo colonial. Essa questão metodológica da generalidade dos conceitos é central para a discussão e voltaremos a ela adiante, pois aqui nos deparamos com a questão da legitimidade dos conceitos criados para se apreender a realidade social, ou seja, com a questão da adequação do discurso científico ao objeto. Por ora, cumpre notar que essa posição de Castro obriga a optar por uma abordagem próxima às vertentes dualistas da historiografia, como as de Roger Bastide e Jacques Lambert, que viam no Brasil uma sociedade dual (um setor moderno, capitalista, e outro arcaico, feudal), e que já tiveram sua crítica a nosso ver mais consistente na obra de Francisco de Oliveira,18 Crítica à Razão Dualista (2003). No caso de Castro, haveria dois elementos de natureza distinta convivendo simultaneamente – a produção 17 Entendemos que a crítica de Gorender seja mais quanto à rigidez do esquema de combinações do estruturalismo, nos quais ele não encontraria espaço para um novo modo de produção escravista colonial, do que ao esquema abstrato propriamente dito. Ele tem a mesma concepção de generalidade do uso das categorias da economia política para se estudar outras sociedades, como se constituíssem uma teoria geral da história (ou estruturas conceituais gerais), o que, no nosso entender, não era o objetivo de Marx, o que ele próprio explicitou várias vezes. 18 Apesar de Oliveira (2003) ter feito sua crítica ao esquema interpretativo dualista analisando a sociedade brasileira já depois de 1930, acreditamos haver um importante para-

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de mercadorias, capitalista, e o escravismo, elemento estranho ao capitalismo – e da combinação desses elementos é que emerge a sociedade brasileira: No regime social que aqui se instala há dois teclados; os teclados são dois, mas a música é uma só. Há a produção de mercadorias, com a sua partitura composta de determinações econômicas. E há a escravidão, um velho tema, que permite improvisos de muita força. A teoria desta realidade está por ser produzida. Mas não será negando características fundamentais do regime social, aqui surgido, que ela poderá vir a ser construída. Nesta empresa, como se procurou mostrar neste trabalho, há que resistir a duas tentações: tomar esta realidade como uma história sem determinações próprias, com o que se resvala, inexoravelmente, para a teleologia; ou concebê-la como um sistema socioeconômico homólogo ao capitalismo e, como tal, passível de ser apreendido através de uma Economia Política. (1980, pp. 106-107)

A primeira tentação, como se percebe, é aquela em que incorreu Fernando Novais, e a segunda, a que incorreram Gorender e Ciro Cardoso. Não nos parece, todavia, um procedimento metodológico correto partir de interpretações dualistas, com a pretensão de se apropriar da totalidade concreta a partir de combinações ou justaposições de elementos estranhos entre si. O procedimento correto e o grande desafio teórico, a nosso ver, seria ver o papel do escravismo dentro da produção de mercadorias, como elemento dela, não como algo exterior e estranho a ela. Do exposto até aqui identificamos alguns problemas que uma teoria com a pretensão de fazer uma superação das questões ainda não respondidas pela historiografia deveria conseguir resolver: 1) o fato de que o “sentido da colonização”, como foi apontado pelas críticas teóricas e também pelos estudos empíricos empreendidos nas últimas décadas, não consegue explicar toda a riqueza de lelo entre sua análise e as discussões presentes nesse trabalho, particularmente com as ideias de Castro como também com as de Fragoso e Florentino. Voltaremos a essa questão adiante.

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determinações da sociedade e economia coloniais, que se mostraram muito mais complexas do que o modelo previa, havendo, pois, de fato, um grau de autonomia ante o capital comercial; 2) que apesar dessa relativa autonomia, há problemas lógicos quando se tenta aplicar a categoria modo de produção à economia colonial, dado o caráter dependente da sua reprodução; 3) além do caráter dependente, o uso da categoria modo de produção também encontra dificuldades de aplicação em virtude de a economia colonial ter sido caracterizada, ao mesmo tempo, pela produção de mercadorias e pela escravidão, que em princípio seria incompatível com o capitalismo. Surge então a necessidade de conciliar, teoricamente, a produção de mercadorias com o escravismo, evitando as fáceis soluções de mera justaposição ou combinação de elementos. Na próxima seção, veremos como os novos modelos teóricos propostos na década de 90 buscaram lidar com esses problemas.

5. Os modelos interpretativos da década de 90 Buscando uma nova interpretação que levasse em conta a complexidade das atividades da economia colonial, que não se resumiriam à plantation agrícola nem se subordinavam completamente a ela, dois autores da que se convencionou chamar “Escola do Rio” desenvolveram um modelo alternativo cujo foco principal é a crítica aos dois postulados que derivam dos modelos explicativos anteriores: 1) a reduzida importância do mercado interno da colônia e 2) a dependência e subordinação da colônia com relação à metrópole. Segundo os autores, esses postulados estão presentes não apenas na versão do “sentido da colonização” (na qual eles incluem Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Fernando Novais e João Manuel Cardoso de Mello) como também na versão do Modo de Produção Escravista Colonial (Ciro Cardoso e Jacob Gorender). 189

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Para desenvolver essa tese, o trabalho de Fragoso (1998) destacou o conceito de formação social para tentar superar os problemas trazidos pelo uso da categoria modo de produção. Na tradição marxista, esta última categoria é vista como uma espécie de tipo ideal ou puro, enquanto a formação social seria a forma como se manifesta, fenomenicamente, o modo de produção. Assim, na realidade fenomênica, uma formação social pode conter elementos de diferentes modos de produção, entre os quais um é dominante. Fragoso destaca que as formas não capitalistas de produção, ligadas ao mercado interno, que era muito expressivo (como evidenciado pelas pesquisas empíricas), eram essenciais na acumulação da economia colonial: A existência de um mercado doméstico e de segmentos produtivos para ele voltados introduz um novo elemento na lógica de funcionamento da formação colonial – referimo-nos à possibilidade de reproduções endógenas. (...) o processo de reprodução desses segmentos se dá em meio ao mercado interno, constituindo-se, assim, em movimentos de acumulação introversas na economia colonial. Disso infere-se uma maior possibilidade de retenção do sobretrabalho na própria economia colonial e, portanto, de autonomia dessa última diante de flutuações externas. (...) Em realidade, a possibilidade de se apreender os movimentos de acumulação endógena à economia colonial prende-se à compreensão dessa última enquanto formação econômico-social. Desse modo, aquela acumulação resultaria, a princípio, da interação mercantil dos processos de reprodução do escravismo colonial com os setores produtivos ligados ao mercado doméstico. (Fragoso, 1998, pp. 131-132)

Em obra mais recente, João Fragoso, juntamente com Manolo Florentino, desenvolvem as ideias que enfatizam a dinâmica interna da colônia, contrapondo-se à ideia do “sentido”. Como essa obra conjunta é a versão mais acabada dessa nova interpretação, nos centraremos nela. Os autores destacam, em sua obra O Arcaísmo como Projeto (Fragoso e Florentino, 2001), a ascensão da classe dos comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro como nova classe hegemônica – tomando o lugar dos 190

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senhores de terras, a partir do fim do século XVIII. A existência dos comerciantes como classe hegemônica é apresentada pelos autores com respaldo em dados empíricos que mostram as grandes fortunas que possuíam e as vultosas transações econômicas e negócios empreendidos por eles, seja na compra e venda de imóveis, terras e escravos, seja no financiamento às atividades produtivas, etc. Assim, haveria um predomínio da forma mercantil de acumulação, assentada no capital mercantil residente. Além de apontar a ascensão dessa nova classe hegemônica, os autores buscaram explicar tal preeminência dos grandes mercadores, o que os levou a buscar compreender a própria lógica de reiteração temporal da economia colonial. Em sua argumentação, eles vão defender a importância de processos endógenos (isto é, à margem do comércio atlântico) de acumulação, assentados em um “mosaico de relações não capitalistas” (como a produção “camponesa”, o trabalho livre não assalariado, a produção escravista de alimentos, a estância gaúcha, entre outros), que conferiam autonomia à economia colonial em face das flutuações do comércio internacional. A acumulação interna, comandada pelo capital mercantil carioca, é evidenciada pela importância que tinha a praça mercantil do Rio de Janeiro como reexportadora de produtos e escravos e de compradora de produtos de outras regiões da colônia, configurando uma complexa rede de transações triangulares internas à colônia: Embora transações triangulares deste tipo não estejam contempladas pelas balanças de comércio, o fato é que eram frequentes e altamente lucrativas para o capital mercantil carioca, com os ganhos se realizando no mercado interno brasileiro. (Fragoso e Florentino, 2001, p. 115)

Como raízes estruturais para o predomínio da forma mercantil de acumulação, os autores apontam dois fatores que tornavam o mercado extremamente restrito: 1) o regime compulsório da produção, assentado em uma frágil divisão social do trabalho, o que torna a circulação mone191

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tária débil, com poucas opções de investimento; e 2) a monopolização da riqueza, de forma que poucos homens tinham recursos para pôr o sistema econômico em funcionamento. Daí deriva o poder dos comerciantes, que controlavam a liquidez e demandavam a venda em bloco de grandes lotes de mercadorias, submetendo pequenos comerciantes e varejistas, pois controlavam o crédito. Esse poder estendia-se, segundo os autores, inclusive para as transações com os agentes metropolitanos, colocando dúvidas sobre a subordinação das atividades domésticas ao capital comercial metropolitano. Em seus estudos, os autores constatam um paradoxo: por que o setor agrário, produtivo e que gera riqueza, demandava menos investimentos que o mercantil, que apenas esteriliza a riqueza?19 E como essa economia sobreviveu e, além disso, cresceu ao longo do tempo, mesmo se concentrando nas atividades mercantis que não criam valor? A resposta dos autores está na estrutura da oferta de fatores: terra, mão de obra e alimentos. Do lado da oferta de terras, a fronteira agrícola aberta e a abundância de terras possibilitavam sua obtenção a baixos custos. Quanto a esse aspecto, os autores não diferem da linhagem historiográfica que combatem, pois todos, e em particular Celso Furtado, destacam a abundância de terras como uma das características fundamentais da economia colonial, que faz com que a exploração econômica mais racional seja a do crescimento extensivo, sem progresso técnico. No que diz respeito à mão de obra, composta por escravos negros, a produção social desta também garantia preços baixos, segundo os autores, porque os cativos eram vendidos abaixo do seu valor, ou seja, fora das leis da equivalência da circulação. Na primeira seção de O Capital, Marx explicita as leis da circulação simples, dentro da qual as mercadorias são 19 Lembremos que os autores buscam se situar dentro da perspectiva marxista, na qual o processo de valorização, enquanto processo de criação de valor, se dá na produção e não no comércio ou na esfera financeira, onde apenas se dá a transferência de valor gerado na produção.

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trocadas por equivalentes, ou seja, por outras mercadorias de igual valor. E mercadorias de igual valor são aquelas que têm igualdade dos tempos de trabalho abstrato necessários à sua produção. No caso do escravo, sua produção é entendida pelos autores como: [...] a soma dos gastos, em horas-trabalho, necessários à produção e manutenção do homem desde seu nascimento até o instante em que ele se transformava em prisioneiro de guerra. Era o seu grupo familiar – e, em última instância, sua comunidade – quem efetivamente o produzia. Antes da mutação em cativo, o indivíduo era, portanto, uma espécie de repositório de milhares de horas-trabalho despendidas por toda a comunidade. Ora, como a violência representava o meio fundamental pela qual o homem era retirado de sua comunidade e escravizado, o custo social de sua produção não era de maneira alguma reposto. (Ibid., p. 147)

Assim, a captura possibilitaria a venda do escravo abaixo do custo social de sua produção, e os autores entendem por isso que essa acumulação não seria, portanto, capitalista, mas pré-capitalista, pois se baseia na troca de não equivalentes. Esse argumento, que busca mostrar o caráter não capitalista da acumulação com o comércio de escravos, não procede, a nosso ver. Em primeiro lugar, porque o valor para Marx só surge (só tem existência efetiva) quando os produtos do trabalho já são mercadorias, antes mesmo de irem ao mercado, ou seja, quando a finalidade da produção é o mercado. Esse caráter social do valor é claramente apresentado por Marx na seção sobre o fetichismo da mercadoria. Desta forma, não se pode falar em valor ou em mensuração do valor a partir do “tempo de trabalho” que a família ou a comunidade levaram para “produzir” o futuro cativo, visto que essa “produção” não tinha como objetivo o mercado. Em segundo lugar, se se quer pensar a produção do escravo para o mercado, o que consideramos ser o procedimento correto – com o que então faz sentido falar em “valor” – sua “produção” é a própria captura, e então o valor do escravo deve ser calculado tendo em vista o dispêndio de horas de trabalho necessário à sua captura. Lembrando o velho Adam Smith: “Por exemplo, se em uma 193

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nação de caçadores, abater um castor custa duas vezes mais trabalho do que abater um cervo, um castor deve ser trocado por – ou então vale – dois cervos” (1984, p. 77).20 Quanto à estrutura da oferta de alimentos, os autores buscam acabar com a ideia de autarquia da plantation, mostrando a importância das produções de gêneros alimentícios de consumo doméstico para a manutenção da agricultura exportadora. Segundo os autores, havia nos setores voltados ao consumo interno (pecuária e agricultura) uma ampla variedade de relações de produção que associavam o trabalho escravo, a peonagem e formas camponesas que se assemelhavam à servidão. Assim, concluem: Podemos agora pensar nesse mosaico de formas de produção como uma verdadeira formação econômica e social. Seu conteúdo – na verdade, o conteúdo do próprio mercado colonial – seria constituído pelos processos de reprodução de diversas estruturas produtivas, os quais teriam por eixo a reiteração da agroexportação fundada no trabalho escravo. Tal afirmação deve ser, entretanto, matizada. O mercado interno formado por diferentes tipos de produção redefiniria o próprio funcionamento da plantation, pois a recorrência temporal desta última dependeria de recursos endógenos (acumulações internas) à formação colonial. Em suma, a reprodução da plantation dar-se-ia, ao menos parcialmente, à margem do mercado internacional. Isso lhe permitiria reiterar-se no tempo apoiando-se em formas coloniais não capitalistas – o que, além de reduzir seus custos operacionais, lhe daria uma ampla margem de autonomia diante das flutuações dos preços no mercado externo. (Ibid., p. 158, grifos meus)

Destacamos no trecho acima as duas expressões que julgamos mais importantes para a discussão. Os autores usam explicitamente a categoria formação social, embora sem explicitar o que entendem pelo 20 Claro que, se a produção de castores em cativeiro for possível e menos custosa que sua caça, a primeira será preferida e a nação de caçadores se torna uma nação de criadores de castores. No caso do mercado de escravos no Brasil, ao que tudo indica, era mais atrativo importar o escravo do que a produção local de “gado humano”, conforme Castro (1977, p. 206).

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termo. Dentro da tradição marxista, a formação social seria a manifestação concreta de um modo de produção dominante, que nunca existe em estado puro, mas convive com resquícios de modos de produção passados e também com elementos da forma futura. Tendo em vista essa noção, surgem dois problemas no uso da expressão que fazem Fragoso e Florentino. Em primeiro lugar, qual é o modo de produção dominante? Assim, os autores na verdade apenas se esquivaram da discussão a respeito da adequação do uso da categoria modo de produção na economia colonial, sem resolver essa questão. Evitam, assim, o uso explícito do conceito de modo de produção capitalista ao se referirem ao período colonial, embora usem o conceito de formação social, que pede o primeiro, e que a rigor não diz nada sem ele. Em segundo lugar, se o capitalismo é o modo de produção dominante, o papel dos modos de produção não capitalistas na estrutura apresentada, de maneira alguma, é o de meros resquícios que coexistem com o modo de produção dominante, pois, segundo os autores, as “formas coloniais não capitalistas” são essenciais para se compreender a reiteração temporal de toda a economia colonial, bem como sua autonomia ante as flutuações externas – o que recoloca e torna mais complexa a procura pelo modo de produção que seria dominante. É interessante destacar que o papel que têm tais formas não capitalistas para esses autores lembra muito o argumento de Francisco de Oliveira em sua obra Crítica da Razão Dualista (2003 – a primeira edição é de 1973). Nessa obra, Oliveira busca combater as interpretações dualistas, muito difundidas à época (e que aparecem nas obras de Roger Bastide e Jacques Lambert, no modelo de desenvolvimento econômico de oferta ilimitada de mão de obra de Lewis, e que também teve influência nos teóricos da Cepal). Segundo essas interpretações, haveria dois mundos diferentes no Brasil, um moderno (que seria o setor urbano-industrial) e outro arcaico (o setor rural-agrícola), e a raiz dos nossos problemas estaria 195

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no fato de que o setor arcaico21 impede ou entrava o progresso que seria trazido pelo setor moderno. Oliveira mostra, entretanto, que a existência do setor dito atrasado é fundamental para a dinâmica do setor moderno, ou seja, na verdade o moderno se alimenta do atraso. O subdesenvolvimento (caracterizado pela permanência das estruturas arcaicas) não é, portanto, uma anomalia ou estágio, mas um tipo particular de desenvolvimento capitalista. Esse tipo de abordagem não é novo, portanto, na historiografia brasileira, ainda que Oliveira esteja tratando da economia brasileira entre as décadas de 30 e 70.22 Entretanto, Fragoso e Florentino não fazem referência a esse texto clássico. Na verdade, o que Fragoso e Florentino perceberam, a nosso ver, é o poder da forma capital de subordinar a ela todas as demais relações, o que não enfraquece, mas reforça a ideia do sentido da colonização, ainda que numa nova ótica, como buscaremos argumentar adiante. Outro aspecto importante da obra é o papel atribuído às características da sociedade portuguesa (a nossa metrópole) na definição dos contornos da sociedade colonial, particularmente nas dimensões social e política. A estrutura social portuguesa é caracterizada como parasitária: há uma reduzida parcela de produtores diretos (camponeses) e uma ampla parcela da população (cerca de dois terços) composta pelo clero, fidalgos, mercadores, pescadores, artífices e ociosos, o que tornava extremamente 21 A idéia de “arcaísmo” aqui, embora distinta quanto ao conteúdo e período histórico da ideia de arcaísmo que dá título à obra de Fragoso e Florentino, tem relação com aquela, e buscaremos desenvolver tal relação adiante. 22 No que diz respeito ao uso da categoria modo de produção para estudar a sociedade brasileira, é importante mencionar ainda a chamada “tese feudal”, defendida por intelectuais do Partido Comunista Brasileiro (PCB) como Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré. Esses autores viam na predominância do latifúndio e das relações de trabalho não assalariadas no campo brasileiro (as relações “arcaicas”) uma razão para defender que o país ainda não havia chegado ao capitalismo (isso já em meados do século XX), e que a sociedade brasileira era uma sociedade feudal. Os defensores da tese feudal, tendo em vista uma noção etapista da sucessão dos modos de produção, defendiam uma aliança entre o PCB e a burguesia industrial para construir primeiro o capitalismo nacional e só mais tarde buscar o socialismo, com a ideia de “não pular etapas”. Como se sabe, Caio Prado Júnior sempre apresentou resistência a essa tese.

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frágil o abastecimento pela produção de alimentos. A expansão ultramarina, com a transferência da renda para a metrópole, mostrou-se uma solução para a perpetuação dessa estrutura parasitária, e não um instrumento para o desenvolvimento capitalista, como na versão de Fernando Novais. A manutenção dessa estrutura arcaica era, na visão dos autores, um projeto social das elites portuguesas que rumava na contramão do desenvolvimento do capitalismo. Essa característica da metrópole tem seus efeitos sobre a colônia, gerando aqui também um ideal “arcaizante”, que se reflete, por exemplo, no fato de os grandes mercadores, ao acumularem riquezas, abandonarem as atividades mercantis para se tornarem rentistas urbanos ou senhores de terras e homens, ainda que essas atividades apresentassem taxa de lucro inferior às mercantis. A concentração de poder, advinda da posse de imóveis, terras e escravos, assume aqui o papel das relações de produção. Dessa forma, a sociedade colonial não pode ser compreendida sem considerar os aspectos não econômicos, particularmente sem ter em vista esse “projeto arcaizante” que se baseia na concentração de poder e na reiteração de uma sociedade arcaica e excludente. Temos, para concluir, duas críticas mais gerais ao modelo interpretativo de Fragoso e Florentino, as quais levam a um questionamento do próprio título da obra. Em primeiro lugar, a ideia de “arcaísmo”, presente no título, precisa ser revista, já que a reprodução dessas relações “arcaicas” não nos parece representar um atraso, mas sim a própria forma como o capitalismo nasce e se desenvolve nas colônias, num movimento sistêmico que precede as posteriores relações centro-periferia. Essa noção de um capitalismo que recria e incorpora o atraso em sua lógica aparece não apenas em Francisco de Oliveira, já mencionado acima, como também antes, em duas obras importantes. Ela está presente na obra Capitalismo e Escravidão, na qual Fernando Henrique Cardoso desenvolve as ideias a respeito de como o capitalismo realizava suas necessidades reproduzindo a escravidão, uma escravidão que é moderna e ao mesmo tempo incompatível com a modernidade. Tal noção aparece também no famoso ensaio 197

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de Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar (1998, p. 16), na qual o autor, reconhecidamente inspirado no próprio Fernando Henrique, mostra o mesmo movimento contraditório no plano das ideias, ou seja, mostra como o atraso das ideias e das instituições tinham uma racionalidade na forma como o capitalismo se desenvolve em nossa sociedade, contradição explorada com maestria por Machado de Assis. Em segundo lugar, e voltando à discussão sobre a teleologia e a questão do sujeito que iniciamos a partir da interpretação de Fernando Novais, a ideia de “projeto”, também presente no título, parece referir-se a um sujeito consciente – no caso, uma classe ou as elites – na reiteração de tal sociedade “arcaica”. O arcaísmo aparece assim como um projeto das elites, de uma classe social, com o que os autores enfatizam então a dimensão política da reprodução e da dominação social, em detrimento da que seria a reprodução e dominação “econômica”. Esta última é a que Marx enfatiza quando escreve que o capital é um sujeito automático, um sujeito não consciente e no qual os aspectos políticos são derivados do fato de os agentes – as classes – serem meros suportes do capital, apenas personificações de categorias econômicas. Os problemas acima derivam de uma visão a nosso ver equivocada, que os autores compartilham de certa forma com o próprio Gorender, do que seria um “capitalismo ideal”, quando o mais importante é reconhecer que “nem a escravidão é necessariamente arcaica, nem o capitalismo assegura o domínio do trabalho livre”, e também que “o capitalismo tomado como um movimento global engendra significações contraditórias, mesmo em relação às suas categorias centrais, que não se universalizam” (Schwarz, 1998, pp. 16-17). Assim, não há que se evitar falar de capitalismo na sociedade colonial, nem há que se referir a “relações não capitalistas”. As atividades econômicas, independentemente das formas de organização social (relações de produção) sob as quais se apresentassem, estavam todas subordinadas à mais importante das formas: a forma capital. Ou seja, estavam todas integradas ao movimento global do capital. E em seu movimento, o capital enquanto forma (D – M – D’), na busca cega pela 198

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valorização infinita, prescinde, se necessário, do seu conteúdo, seja utilizando-se de relações de produção não burguesas, como o trabalho escravo, seja prescindindo da própria produção, como nos períodos em que a esfera financeira se torna o centro da valorização e o movimento do capital se abrevia para a forma D – D’, o que Marx, na seção V do livro III de O Capital, chamou de capital portador de juros. Voltaremos a essas questões na conclusão. Vamos apresentar agora o outro modelo interpretativo, proposto por Iraci Costa e Julio Pires. Mas, antes, para melhor compreender a posição dos autores, apresentaremos algumas críticas que Costa (sozinho e em coautoria com outros autores) já vinha desenvolvendo ao modelo de Fragoso e Florentino e que estão em sintonia com algumas críticas que já desenvolvemos anteriormente. Como vimos, a interpretação de João Fragoso e Manolo Florentino radicaliza a visão, contrária à ideia de “sentido”, de que a economia colonial tinha uma reprodução autônoma, que o processo de acumulação no interior da economia colonial era o principal fator para compreender a reprodução dessa sociedade. Daí advém uma das críticas de Costa e Motta a esse modelo, para a qual os autores buscam apoio no próprio Ciro Cardoso, insuspeito de ser um defensor da ideia de “sentido”: Tendo combatido por muitos anos as posturas que enfatizam unilateralmente as relações metrópole-colônia ou centro-periferia, a extração de excedentes, o capital mercantil (hipostasiado em “capitalismo comercial”) e mais em geral a circulação de mercadorias como locus explicativo privilegiado, só posso me regozijar com esses novos e sólidos argumentos. Desde que também neste caso não se ceda à tentação de mais uma ênfase unilateral. (...) não estarão esquecendo exageradamente, empurrando um tanto para fora do horizonte, a dependência colonial e neocolonial – e as determinações e condicionamentos que ela sem qualquer dúvida implicava (ainda que tais análises tenham demonstrado que algumas das determinações imputadas a fatores externos eram falsas)? Fique como questão a ser pensada esta minha dúvida. (Cardoso, 1988, p. 58)

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Ou seja, a crítica de Ciro Cardoso procura evitar uma posição extremada à ideia de sentido que implica esquecer que a economia colonial era dependente, embora algumas das suas determinações que foram imputadas a fatores externos (ao “sentido”) não eram explicadas por eles (conforme a pesquisa empírica demonstrou fartamente). A questão da dependência, que remete à questão da totalidade, já discutimos na seção anterior na crítica aos argumentos de Gorender. A outra crítica de Costa e Motta a Fragoso é que [...] o entendimento da economia colonial enquanto formação econômicosocial encobre, mas não resolve, a impropriedade presente na utilização do conceito de modo de produção (“problema” que Fragoso, aliás, compartilha com Ciro Cardoso e Jacob Gorender). (Motta e Costa, 1995, p. 29)

Assim, os autores resgatam ideias presentes em textos do próprio Costa (1985a, 1985b, 1995 e 1999), nos quais o autor critica o uso da categoria modo de produção para se estudar o período colonial. Nesses textos, o autor defende que tal impropriedade está no fato de que Marx concebeu os modos de produção não como uma teoria geral da história, mas como um continuum histórico-lógico próprio da Europa Ocidental, continuum esse do qual o capitalismo é o ponto culminante. E o capitalismo é o ponto culminante no sentido de que a partir dele a história se fez universal, pois o capitalismo tende a exportar-se a si próprio, homogeneizando as relações sociais nas distintas sociedades e áreas do planeta através do desenvolvimento nunca antes visto das formas mercadoria, dinheiro e capital. Todas as áreas do mundo ficam então unidas pelo capital e pelo capitalismo. Assim, não faria sentido falar em outros modos de produção depois de fundada a história universal pelo capitalismo, e o autor insere a sociedade colonial como uma sociedade que se desenvolve correlatamente ao desenvolvimento do capitalismo, ou seja, como uma sociedade posta pelo capital e cujo desenvolvimento resultou no capitalismo. 200

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Além disso, criticando a ideia de uma teoria geral da história e das revoluções, ou seja, da passagem de um modo de produção para outro, escreve Costa: [...] a gênese de um modo de produção pode ser única, específica, sendo impossível, portanto, confundir os constituintes genéticos – elementos constitutivos, bem como as inter-relações que os vinculam – de um modo de produção com os de outro. Ademais, à medida que não tem de haver, necessariamente, apenas um padrão genético, torna-se impossível o estabelecimento de uma lei, ou conjunto de regularidades, que explique, de maneira abrangente e genérica, a passagem de um para outro modo de produção, ou seja, é impossível formular-se uma teoria geral das revoluções. Além disso, o próprio funcionamento interno, bem como a eventual “dinâmica” ou “rigidez” de cada modo de produção não são passíveis de equacionamento único, pois poderão ser peculiares a cada um deles. Logo, tanto pela sua gênese como pelo seu “funcionamento”, os modos de produção podem diferir entre si. Disto se conclui que eles não são isonômicos, vale dizer, não existe um conjunto único de leis ou regularidades que os reja. (Costa, 1999, p. 2)

Ainda segundo Costa, além de não serem isonômicos, os modos de produção também não são homólogos, ou seja, não há necessariamente correspondência entre todos e cada um dos elementos constitutivos dos modos de produção, e esses elementos nem sempre se repetem em modos de produção diferentes ou aparecem com funções ou papéis totalmente distintos. Dessa forma, não há como “emparelhar” os modos de produção para compará-los por meio de um conjunto único e abstrato de conceitos com pretensão de generalidade, o que foi feito pela vulgarização do marxismo a partir de Stálin e também tanto pelos estruturalistas quanto pelo próprio Gorender que os critica. Assim, a partir de uma leitura de Marx, segundo a qual os modos de produção representariam não uma teoria geral da história, mas apenas um continuum histórico-lógico próprio da Europa Ocidental (portanto um “sentido” reconstruído a posteriori pelo cientista, não um a priori teleológico e nem a construção de puros universais abstratos), Costa defende 201

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que os modos de produção não são nem isonômicos nem homólogos, aproximando-se da crítica de Barros de Castro, pois é uma crítica que aponta para os limites da utilização dos conceitos da economia política. Entretanto, como defenderemos adiante, o modelo proposto por Costa encontra elementos de generalidade no escravismo colonial que permitem, ao contrário da crítica de Castro, estudá-lo com as categorias da economia política de Marx. Esses elementos de generalidade, como veremos, são encontrados a partir de uma retomada da ideia do “sentido”, de Caio Prado Júnior, e essa retomada assume, entretanto, a forma de uma superação dialética, ou seja, que supera e ao mesmo tempo conserva a ideia do “sentido da colonização”. Passemos agora ao modelo interpretativo proposto por Julio Pires e Iraci Costa – Costa e Pires (1994) e Pires e Costa (2000) – para ver como os autores buscam resolver essa tensão entre, de um lado, os limites do uso dos conceitos da economia política, apontados com certa razão por Castro, e, de outro, a existência de determinações reais que parecem permitir (e pedir) o uso das categorias da economia política de Marx no período colonial. O modelo teórico desses autores tem como centro a consideração das formas do capital estudadas por Marx. Essas seriam três: o capital comercial, o capital usurário e o capital industrial. Como se sabe, as duas primeiras formas estiveram presentes em quase toda a história, não têm raízes em nenhum modo de produção e são formas consideradas parasitárias, porque não se reproduzem autonomamente. Apenas o capital industrial tem autonomia, ou seja, apenas essa forma do capital reproduz a si própria, pois a valorização se dá na esfera da produção, na criação de valor pelo trabalho. O trabalho socialmente necessário permite a reprodução dos trabalhadores e o trabalho excedente gerado é apropriado pelo capitalista como mais-valia, fonte dos lucros que poderão ser reinvestidos na produção. Assim, o ciclo do capital industrial repõe as próprias condições necessárias para se reiniciar o processo, permitindo a reprodução do capital, que se torna um sujeito automático. 202

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Pires e Costa defendem que existiu ainda uma outra forma do capital, que eles chamam de capital escravista-mercantil. Essa forma do capital, como o capital industrial, é caracterizada pela produção e extração de excedente, entretanto, com uma peculiaridade: a geração do excedente se dá com mão de obra escrava e não com trabalho assalariado, como seria típico do capitalismo. Assim, apoiando-se em citações de Marx, Pires e Costa chegam a três conclusões: 1) a escravidão localizada não é incompatível com o modo de produção capitalista, mas com o desenvolvimento do mesmo e, portanto, irremediavelmente fadada ao desaparecimento; 2) estamos em face de um escravismo produtor de mercadorias (escravidão puramente industrial) e dependente dos mercados mundiais aos quais deve sua existência; 3) os escravistas são capitalistas, vale dizer, acrescentamos nós, personificam o capital escravista-mercantil. (2000, p. 90) O primeiro ponto apresentado defende que o capitalismo, em seu desenvolvimento, pode eventualmente utilizar-se da escravidão. Foi o que teria ocorrido nas colônias americanas, que teriam passado por um lento e contraditório processo de formação/incorporação/adequação ao capitalismo: A nosso juízo, só há uma maneira de apreender tal processo [o período colonial no Brasil - RAT]: cumpre assimilá-lo enquanto tal, vale dizer, como processo histórico concretamente dado. Este é o programa que nos cabe desenvolver; embora dos mais complexos, podemos sumariá-lo com poucas palavras: é preciso descrever como se deu o processo de “formação/ incorporação/adequação” da sociedade brasileira “segundo o/ao” modo de produção capitalista, o qual se deve tomar, a um tempo, como causativo e resultante do aludido processo. (Costa, 1985, p.2)

Aqui, Costa defende que não se deve ver o período colonial buscando lá outro modo de produção. Como já vimos anteriormente, para 203

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esse autor, uma vez fundada a história universal pelo capitalismo, só faz sentido falar-se em capitalismo, e o processo de formação da sociedade brasileira é inseparável do desenvolvimento do capitalismo. Os dois outros tópicos acima completam o quadro: o escravismo que se produziu aqui é um escravismo produtor de mercadorias com vistas à valorização do valor, e, assim, o nosso escravismo pode ser estudado da perspectiva da economia política, ou seja, com os agentes sendo vistos como personificações de categorias econômicas (contrariamente às opiniões de Castro). Isso é possível, acrescentamos nós, pois o capital é o sujeito desse processo, e os homens são, portanto, apenas suportes dessa categoria econômica. É exatamente pelo fato de o capital ser o sujeito desse processo, por ser ele o responsável pela universalidade e pela generalidade, que se torna legítimo que nosso período colonial seja estudado pelas categorias da economia política. Assim, Pires e Costa veem a adequação da generalidade dos conceitos, coerentemente com a postura do materialismo dialético, na própria realidade concreta, que é a da inserção do período colonial no processo mais amplo de constituição do capitalismo. Cabe agora compararmos essa postura com uma questão que colocamos à obra de Fernando Novais. Como destacamos anteriormente, há um problema lógico-teórico se, para defender Novais das acusações de teleologia, recorrêssemos à consideração do capital comercial como sujeito do processo que leva à acumulação primitiva de capital. Isto porque, como se sabe, o capital comercial não é uma forma autônoma, e, portanto, não pode se constituir como sujeito dando origem a uma totalidade. Novais, apesar de aparentemente não se dar conta desse problema ou de não enfrentá-lo, contorna-o, de uma forma que não é rigorosa, com o uso da categoria capitalismo comercial. Entretanto, essa categoria é imprópria dentro da perspectiva marxista, visto que o capital só ganha autonomia quando o conteúdo da relação formal D – M – D’ é a produção e extração do excedente, a partir do momento em que a força de trabalho se encontra disponível no mercado como mercadoria a ser utilizada no processo produtivo. 204

CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Entretanto, Costa e Pires, a nosso ver, conseguiram superar esse problema por meio de uma categoria, o capital escravista-mercantil, que antecipa uma característica do capital industrial,23 que é o fato de a valorização se dar com base na criação de excedente por meio da produção de mercadorias e não apenas no comércio ou na cobrança de juros, que apenas transferem ou redistribuem o produto.24 Assim, se por um lado a crítica de Gorender ao circulacionismo leva a uma posição extremada no sentido de se buscar um novo modo de produção, com o deslocamento da esfera da circulação para a esfera da produção, a categoria capital escravista-mercantil retoma a esfera da produção, sem precisar, entretanto, recorrer à categoria modo de produção. Essa característica do capital escravista-mercantil de ser produtor de mercadorias permite, a nosso ver, falar no capital como sujeito durante o período colonial, ou seja, com o 23 A nosso ver, o capital escravista-mercantil antecipou outra característica do capital industrial. Se essa forma do capital não tinha a relação de produção capitalista típica (o trabalho assalariado) ela desenvolveu bem antes do capital industrial, entretanto, as forças produtivas capitalistas. Como mostra Castro (1977), os engenhos tinham uma divisão do trabalho avançada, que antecipou a própria divisão taylorista do trabalho. Faltava, com relação ao século XX, o componente fordista que sustentou o regime de acumulação fordista/keynesiano (para usar uma expressão da escola regulacionista), que era o consumo de massas, visto que os escravos, ao contrário dos trabalhadores da indústria fordista, não faziam parte do mercado consumidor para os bens que produziam. Ou seja, dentro da base econômica, no seio da qual há uma forma (relações de produção) e a matéria (forças produtivas), embora no plano da forma a colônia não apresentasse as relações tipicamente capitalistas (trabalho assalariado), no plano da matéria antecipou o próprio desenvolvimento da divisão do trabalho que na Europa viria apenas com a Revolução Industrial. Essa observação torna ainda mais complexa a discussão clássica a respeito da adequação do escravismo ao desenvolvimento das forças produtivas. Não há espaço para essa questão neste trabalho. 24 Uma importante discussão, que não poderemos desenvolver neste trabalho por motivos de espaço, é a da existência do valor na sociedade colonial, e portanto a da possibilidade de se chamar de mais-valia o excedente gerado pela produção escravista, já que Marx usou o termo falando da exploração de trabalho assalariado. Costa e Pires utilizam a expressão ao dizerem que o escravismo moderno era produtor de mais-valia. A nosso ver, essa afirmação exige uma análise mais rigorosa do conceito de valor, e por isso preferimos utilizar, por enquanto, a expressão excedente, mais geral, ainda que esse excedente se apresente sob a forma monetária. Essa questão deverá ficar para trabalho posterior.

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capital escravista-mercantil sendo sujeito de um processo que culminará com o desenvolvimento pleno do capital industrial e posteriormente levará à própria superação do capital escravista-mercantil. Cabe lembrar que, para a dialética materialista de Marx, é a generalidade concreta (generalidade posta) que legitima a generalidade dos conceitos, que os conceitos são, portanto, universais concretos (e não apenas universais abstratos, como na concepção de Kant que norteia a visão convencional de ciência, guiada pela lógica formal). A adequação do discurso científico ao objeto, para Marx, portanto, se dá pelo fato de na própria realidade a abstração ter sido efetuada. No presente caso, da sociedade colonial, a adequação dos conceitos da economia política se dá exatamente pelo fato de as formas mercadoria e capital trazerem a generalidade posta e conduzirem o “sentido” da dinâmica social. É esse resgate do “sentido”, do fato de nossa sociedade ter-se constituído dentro do movimento mais geral de constituição do capitalismo, que traz a adequação ao uso dos conceitos da economia política para o estudo de nossa sociedade. Não, naturalmente, de todos os conceitos, como o de modo de produção, o que seria uma categorização arbitrária e subjetiva, ou seja, um idealismo que parte de categorias preconcebidas que nada têm a ver com a realidade concreta do período colonial e nem com o materialismo dialético de Marx. A adequação se dá apenas àqueles conceitos que têm existência efetiva na realidade colonial, o que no caso é o conceito de capital, ainda que seja uma forma bastante peculiar do capital, que sequer havia sido tratada pelo próprio Marx. O resgate da ideia de “sentido” se evidencia assim nas características desta nova forma do capital, o capital escravista-mercantil. Entretanto, uma observação importante deve ser feita. Ainda que, ao contrário das formas do capital comercial e usurária, essa forma não seja parasitária, pois ela está assentada, como o capital industrial, na produção de mercadorias (e não apenas na sua circulação e redistribuição), ela não é autônoma como o capital industrial, não podendo dar origem a um modo de produção específico, como defendido por Gorender: 206

CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Como evidenciado, o capital escravista-mercantil, por não trazer implícita a plasticidade do comercial e usurário, é imediatamente dependente de uma específica relação de produção (a escravista) e igualmente dependente de específicos modos de produção (o escravista e o capitalista). Assim (...) tal forma não traz em si seus pressupostos não sendo capaz, portanto, de per se, repô-los; vale dizer, as condições objetivas de sua existência e subsistência lhe são externas e dadas pelos modos de produção retro assinalados. Logo, a forma capital escravista-mercantil é incapaz de dar suporte a um modo de produção que lhe seja próprio e que dela decorra. (Pires e Costa, 2000, p. 91)

Assim, apesar de surgir paralelamente ao desenvolvimento do capitalismo, essa forma do capital é incompatível com o desenvolvimento do mesmo, noção essa que está presente na análise da relação entre capitalismo e escravidão presente em Cardoso (2004). Mas é nessa situação contraditória, negativa, que ela deve ser considerada. O papel da categoria capital escravista-mercantil na solução dos problemas teóricos discutidos neste artigo é tratado por Costa em outro texto: Repensando o Modelo Interpretativo de Caio Prado Júnior (Costa, 1995). Falando da limitação do modelo pradiano, escreve o autor: [...] as articulações presentes na sociedade brasileira sobrepujavam largamente um mero empreendimento dirigido pelo capital comercial e imediatamente voltado para o mercado mundial e dele totalmente dependente. Neste sentido tratava-se de uma economia com expressivos traços de integração endógena e que comportava uma gama diversificada de atividades produtivas votadas para o atendimento de suas próprias necessidades, dando-se, também, processos internos de acumulação. Disto decorria a geração, na órbita doméstica, de condições que permitiam um espaço econômico relativamente autônomo vis-à-vis a economia internacional e o capital comercial, espaço econômico este ao qual, ademais, deve-se atribuir expressivo contributo no que tange à formação da renda e do produto. (Costa, 1995, p.14)

Não obstante, o próprio autor afirma não ser seu objetivo negar (em sentido vulgar, não dialético) o modelo pradiano: 207

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Do acima exposto pode-se inferir, esperamos que de modo claro, nossa postura com respeito ao modelo interpretativo de Caio Prado Júnior. Não pretendemos negá-lo, mas, qualificando-o, evidenciar a possibilidade de superá-lo de sorte a chegarmos a uma nova síntese, adequada às realidades com quais nos deparamos quando observada a evolução da sociedade e da economia brasileiras à luz de estudos recentes. (Ibid, p.18)

Assim, a melhor maneira de ver seu projeto é a partir da expressão alemã Aufhebung, que é a que melhor designa a negação dialética, pois tem ao mesmo tempo o sentido de “negar” mas também de “conservar” e “superar”. Assim, Costa propõe três frentes teóricas para superar o modelo pradiano. A primeira é no campo metodológico: explicitar as mediações, que em Caio Prado não existem, entre a essência da sociedade colonial, seus determinantes em última instância (o “sentido”), e a sua aparência (plano fenomênico, ou seja, a complexidade da economia colonial). A segunda é no campo abstrato, na compreensão da acumulação na economia colonial e do papel desempenhado nela pelo capital comercial e pelo capital escravista-mercantil. Este último é visto como o principal elemento da necessária mediação no campo metodológico, mediação entre o capital comercial e as condições internas da acumulação. Daqui percebese que a crítica a Caio Prado Júnior é que o seu modelo coloca nossa economia como uma projeção imediata do capital comercial, quando, na verdade, ela era mediada pelo capital escravista-mercantil, que lhe conferiu traços fenomênicos (no plano da aparência) específicos e não explicados apenas pela essência representada pelo capital comercial. A terceira é na esfera do concreto, na qual defende o autor uma reformulação dos setores econômicos pensados por Caio Prado Júnior, pois a bipartição feita por ele (grande lavoura escravista e agricultura de subsistência) é insuficiente para apreender toda a gama de articulações econômicas da colônia. É interessante notar que Costa trabalha, sendo fiel ao próprio Marx (e Hegel), com distintos níveis da realidade: o nível da essência e o da aparência (ou realidade fenomênica). Assim, destaca que a teoria e 208

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suas categorias de análise devem não apenas explicar aquela essência (o que fez Caio Prado Júnior), nem tampouco ater-se à aparência (como as críticas empíricas), mas deve principalmente explicar as mediações entre a essência e a realidade fenomênica.

6. Conclusões Buscamos mostrar neste trabalho como distintos olhares metodológicos da obra marxiana levaram a distintas interpretações do período colonial. No plano metateórico, demos particular atenção à existência de uma tensão na historiografia que retoma, de certa forma, o debate entre a visão historicista do conhecimento, segundo a qual os conceitos são históricos, particulares, e assim os conceitos criados para estudar uma sociedade não podem ser generalizados para o estudo de outras; e a visão positivista e também a estruturalista, que buscam os “invariantes universais” ou as leis gerais que regem as diferentes sociedades. No plano teórico, enfatizamos as discussões a respeito da utilização dos conceitos da economia política marxista (modo de produção, formação social, relações de produção e capital) e também as discussões a respeito da importância relativa do mercado interno da colônia, com a correspondente discussão sobre a autonomia da economia colonial em face das flutuações do mercado internacional (e as “críticas empíricas” que vieram questionar a ideia do “sentido”). Apesar de termos feito aqui as distinções entre os planos metateórico, teórico e empírico, nunca é demais lembrar que esses planos estão interrelacionados, e ao longo do texto buscamos explicitar a dificuldade dessa separação, particularmente quando se trata de uma abordagem dialética. Na primeira e segunda seções, fizemos uma exposição sobre o modelo pradiano e seus desenvolvimentos. O principal foco das críticas “empíricas” a esse modelo era a falta de autonomia da economia colonial, que decorre de sua lógica, o que mais tarde foi falseado pelas pesquisas empíricas. 209

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Quanto às críticas “teóricas”, apresentamos, na terceira seção, as de Barros de Castro, Ciro Cardoso e a de Jacob Gorender. Este, partindo das críticas de Ciro Cardoso ao que seria um circulacionismo no modelo pradiano, ou seja, das críticas à ênfase na circulação e partindo então da proposição de que o estudo da colônia deveria centrar-se nas relações de produção, buscou utilizar as categorias de Marx, particularmente as relacionadas ao conceito de modo de produção, para estudar a sociedade colonial. Defendeu, assim, que esta se constituiu em um novo modo de produção, o Modo de Produção Escravista Colonial. Barros de Castro criticou o uso da categoria modo de produção, defendendo que a economia colonial tinha duas faces: uma capitalista, que poderia ser estudada pelas leis da economia política, mas outra escravista, cuja dominação era política e não econômica, e que esta trazia à economia colonial um caráter de imprevisibilidade, pois não poderia ser apreendida pelas categorias da economia política. Assim, se Gorender e Cardoso têm uma visão metodológica e uma leitura de Marx que implica conceber generalidade aos conceitos da economia política marxista (aproximando-se do positivismo e também do estruturalismo), Castro tem uma compreensão de que esses conceitos não podem ser utilizados para outras sociedades, pois seriam próprios da economia capitalista (aproximando-se da concepção historicista do conhecimento). Entretanto, esse autor propõe uma abordagem que nos parece frágil, pois é dualista, ou seja, propõe a busca de uma explicação para o período colonial que se baseia numa mera justaposição ou combinação de elementos de diferentes sociedades. Se nem todos os conceitos criados para a sociedade capitalista podem ser estendidos para analisar sociedades passadas, é preciso, entretanto, evitar o erro extremo de se dizer que não se pode usar a economia política para se estudar o escravismo, pelo menos quanto ao escravismo moderno. A adequação da abstração científica e, portanto, do caráter da generalidade do conceito em Marx, como se sabe, está exatamente no fato de a abstração ser real, processar-se na materialidade da vida social e, 210

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portanto, ser antes atributo do objeto e não apenas categoria arbitrária do sujeito (como na tradição de Kant, da qual parte o moderno positivismo). Assim, é possível estudar o período colonial a partir dos conceitos da economia política, mas apenas a partir daqueles conceitos que de fato têm o atributo da generalidade posta, isto é, generalidade efetivamente existente, e que por isso se nega em particularidade. Como notou Marx, a sociedade capitalista é uma máquina de abstrair, ou seja, uma sociedade que produz universais concretos e que assim se universaliza e tende a homogeneizar as relações sociais no mundo, exportando sua determinação característica, a forma capital (D – M – D’). E a forma capital estava presente na sociedade colonial, foi o fundamento do escravismo e da constituição dessa sociedade, ao contrário do escravismo patriarcal da Antiguidade, onde ela só aparecia esporadicamente. Assim, a partir da forma capital, particularmente da forma capital escravista-mercantil, é possível dizer que o capital era o sujeito que movia a sociedade colonial e que trouxe a generalidade a partir da qual se tornou legítima e adequada ao objeto a utilização da economia política para tratar do escravismo colonial (embora não com o uso da categoria modo de produção, que não faz sentido). Concordamos, assim, com a posição de Costa, segundo a qual a sociedade colonial deve ser estudada como sendo um processo de formação/incorporação/adequação daquela parte do planeta ao capitalismo, e que é aí, nesse “sentido” essencial que está a universalidade concreta que permite o uso da universalidade também dos conceitos da economia política, particularmente pela presença marcante e determinante da forma capital, que trouxe consigo uma divisão internacional do trabalho sob a égide da valorização do valor. Além disso, a categoria capital escravista-mercantil parece-nos extremamente adequada para explicitar as mediações que não apareceram no modelo pradiano entre o capital comercial e as formas internas de acumulação, tão enfatizadas por Fragoso e Florentino, abrindo caminho para a superação daquele modelo (entretanto, essa tarefa ainda está por ser 211

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realizada). Tal categorização também evita o erro oposto ao de Caio Prado Júnior, que destacou a essência em face do plano fenomênico, que é se ater ao plano fenomênico (a aparente autonomia da economia colonial) e se esquecer da essência (sua relação de dependência com relação ao desenvolvimento do capitalismo no plano mundial). O modelo proposto por Fragoso (1998) e Fragoso e Florentino (2001) incorre exatamente no outro erro apontado, que é privilegiar o nível da aparência, dos fenômenos, através do que eles chamam de “mosaico de formas não capitalistas de produção”, e atribuir à acumulação que se dá nesses interstícios sociais “não capitalistas” um papel preponderante na reprodução da sociedade colonial, esquecendo-se do seu caráter dependente, e esquecendo-se de que essas relações “não capitalistas” foram criadas pelo próprio movimento do capital. Dessa forma, a partir de um olhar metodológico, a interpretação trazida por Costa e Pires é a mais coerente com a dialética marxiana, pois ela supera conservando os momentos do historicismo e do positivismo, de uma forma dialética e materialista. É dialética, pois percebe a existência das abstrações reais e, portanto, da contradição, já que quando o universal se torna concreto ele se nega em particularidade. Assim, o momento do positivismo está conservado, pois há o momento da abstração (da generalidade). Da mesma forma, o momento do historicismo também é conservado, pois a abstração é real, empreendida pelo próprio objeto, e, assim, ao mesmo tempo em que é geral, a abstração é também particular, pois é histórica. E além de dialética é materialista, pois a posição do conceito é antes posição efetiva da coisa, ou seja, a abstração surge antes na materialidade da vida social para depois ser apreendida pelo sujeito do conhecimento. O conceito não é assim mera subjetividade, não é apenas um universal abstrato, mas universal concreto, que como tal se nega em particularidade. A adequação dos conceitos da economia política é garantida então pelo próprio objeto: pelo fato de o capital ser o sujeito histórico do processo 212

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e conferir o “sentido” do movimento histórico, o objeto é colocado como exterior ao sujeito do conhecimento e torna-se passível de ser estudado como uma coisa, não no sentido positivista, mas como coisa social. Em suma, é pelo fato de o capital ser o sujeito do processo de constituição da sociedade brasileira no período colonial – ainda que não como capital industrial, mas sob a forma do capital escravista-mercantil – e por ser o capitalismo ao mesmo tempo causativo e resultante desse processo, exatamente por isso a ideia de “sentido”25 de Caio Prado Júnior não pode ser descartada: é necessário, como faz Costa, encontrar as mediações entre o “sentido” no plano abstrato da essência (abstrato não por ser puramente ideal ou teleológico, mas porque o próprio capital realiza abstrações reais) e a complexidade da economia colonial no plano concreto-fenomênico. A categoria capital escravista-mercantil parece-nos ser, assim, um frutífero caminho para desempenhar essa tarefa. Além dessa justificativa de caráter mais propriamente lógico-metodológico para a defesa do modelo baseado no capital escravista-mercantil (sua adequação dialética, que conserva tanto os momentos do positivismo como do historicismo, superando-os), temos outra, que diz respeito à própria noção de capitalismo enquanto um sistema histórico e mundial, o que nos leva a repensar a noção do “sentido da colonização”, tal como proposta por Caio Prado Júnior, e também a noção do “sentido profundo da colonização”, de Fernando Novais. Nossa argumentação aqui desenvolve-se numa visão do capitalismo que não reduz esse conceito apenas à busca da extração do excedente baseada no trabalho assalariado. Damos destaque à forma capital e ao seu poder de prescindir das relações de produção tipicamente burguesas ou mesmo do conteúdo dessa relação, que é a extração de excedente no interior da produção. 25 A noção de “sentido” aqui proposta, entretanto, não é exatamente aquela de Caio Prado Júnior, nem a do “sentido profundo”, de Fernando Novais, como ficará claro adiante. Entretanto, ela guarda relações com essas duas noções.

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Essa visão, por sua vez, está ligada à consideração do capitalismo como um modo de produção mundial, que não se restringe a um território, como o fazem as interpretações que buscam ver modos de produção em cada país. O capitalismo deve ser visto como um todo orgânico, cujos traços apontados por Marx não são necessariamente generalizados a todos os locais para onde se expande o capitalismo, ao contrário do que Marx parecia acreditar ao advertir o leitor da atrasada Alemanha, no prefácio à edição alemã de O Capital, com a expressão “de te fabula narratur”, argumentando que as categorias ali apontadas, ainda que tenham sido desenvolvidas tomando-se como ponto de partida a Inglaterra, se estenderiam em breve à Alemanha e outros países. Essa ideia de progresso que surge com o capitalismo gerou e gera ainda vários equívocos. Nossa posição aqui pode ser pensada a partir da oitava tese de Walter Benjamin sobre o conceito de história: A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica. O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos “ainda” sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da história donde provém aquele espanto é insustentável. (Benjamin, 1994, p. 226)

Os equívocos das interpretações que veem um “capitalismo ideal” ou uma “sociedade burguesa” ideal (com trabalho livre assalariado, democracia, etc.) extraídos de esquemas pré-concebidos parecem-nos ser perfeitamente encaixados nessa crítica de Benjamin às concepções da história 214

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que veem no progresso uma norma histórica. O “estado de exceção”26 trazido pelo capitalismo continua sendo a regra, particularmente para os países que nunca saíram da exceção, caso das ex-colônias. Esses países continuam até hoje esperando as promessas da modernidade, e a expressão econômica dessa espera foram os modelos de crescimento e desenvolvimento econômico em suas várias versões, que supunham que o subdesenvolvimento seria superado e todos seriam países ricos e democráticos um dia. Hoje parece claro, ao menos para as tradições críticas e não dogmáticas de pensamento, que o subdesenvolvimento é um tipo de desenvolvimento capitalista, e não uma “etapa”, e que a roda da história pode girar para trás com relação às conquistas que antes se tinha como certas, desde que isso seja necessário para a continuidade ou segurança da acumulação capitalista.27 O curioso é que nos manuais de economia e nas teorias do desenvolvimento econômico, as condições dos países periféricos, subdesenvolvidos ou “em desenvolvimento”, são sempre vistas como exceções. Cabe aos países descobrirem quais são as características que os “desviam” do modelo ideal para se colocarem nos trilhos do desenvolvimento (copiando padrões). E é interessante como, na verdade, o que nos modelos é a 26 O tema da exceção foi resgatado por Francisco de Oliveira em recente debate sobre a obra de Michael Löwy na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Entendemos que em seu polêmico texto recente, O ornitorrinco, Oliveira mostra com maestria o monstrengo social que o capitalismo gerou no Brasil de hoje, com sua capacidade de gerar a exceção e colocar lado a lado o moderno e o atraso, que também são forma de manifestação da imensa desigualdade social neste país. 27 Basta atentar para o retrocesso nos direitos trabalhistas verificado nas três últimas décadas, mesmo nos países centrais, após o fim da Era de Ouro do capitalismo e do Welfare State, e para os frequentes retrocessos nos direitos políticos que sofreram vários países ao longo do século XX (do fascismo, apontado por Benjamin, às ditaduras militares na América Latina), geralmente tendo a “segurança” como motivo. Para acontecimentos mais recentes, basta ver os retrocessos atuais, no plano das relações internacionais e mesmo dos direitos individuais, vindos das nações que seriam as “guardiãs” da ética e da democracia burguesas, agora tendo como mote o “combate ao terrorismo”.

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exceção, na realidade é a regra: o que é a “regra”, para tais modelos, aplicase a pouco mais que uma dezena de países em todo o mundo. Benjamin aqui é atualíssimo. Da mesma forma, e voltando ao nosso tema neste artigo, o escravismo foi um desdobramento do capitalismo, a maneira como a forma capital surge na periferia do sistema e como ela incorporou as colônias na divisão internacional do trabalho. Não se trata, pois, a nosso ver, de “arcaísmo”, como sugerem Fragoso e Florentino, ou de outro modo de produção, como sugere Gorender, mas simplesmente do estado de exceção como regra, trazido pelo próprio desenvolvimento contraditório e desigual do capitalismo. Essa visão do capitalismo como um sistema mundial, e que se desenvolve de forma desigual e contraditória, tornando a exceção uma regra, não é nova, como já apontado. Ela está presente na concepção do papel do escravismo moderno em Fernando Henrique Cardoso, na noção de “ideias fora do lugar” de Roberto Schwarz, e também no papel do setor arcaico na acumulação do setor moderno em Francisco de Oliveira, na sua crítica à razão dualista. O capitalismo prescinde da superestrutura burguesa28 ou ao menos não precisa dela em todas as partes do mundo, sendo mesmo necessária, em alguns momentos, a sua ausência, para acelerar a acumulação. Em nossa visão, a forma capital, na busca da valorização infinita, é tão forte que, quando pode, prescinde das relações de produção capi28 Penso aqui na análise que Fausto (1988, cap. 4) faz sobre o papel do Estado e da posição do Direito na sociedade capitalista, na visão marxiana. Segundo o autor, a posição do Estado e do Direito, ou seja, a posição da igualdade e da não contradição de classes no plano jurídico (com o trabalho livre e sua transformação em uma mercadoria como outra qualquer), que é a igualdade no plano da aparência do sistema, servem para esconder a desigualdade no plano da essência. Assim, aponta o autor que a contradição que Marx apresenta em O Capital, particularmente na passagem da seção I para a seção II, não é a contradição de classes, mas uma contradição entre a contradição de classes e a aparente ausência de contradição. O interessante para nossa discussão é que, na periferia do sistema capitalista, essa aparência por diversas vezes foi dispensada, ou seja, a acumulação capitalista aqui, baseada na exploração de classe, por diversas vezes prescindiu da máscara que precisou usar para prosseguir na Europa, seja utilizando-se do trabalho escravo, seja nas formas camponesas como a meação, formas nas quais fica clara a extração do excedente.

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talistas (caso do escravismo moderno e das formas de trabalho livre não assalariado que existiram e ainda hoje existem no campo brasileiro). Ou pode prescindir, também, do conteúdo da valorização, que é a extração da mais-valia na esfera produtiva (caso do imenso circuito de valorização puramente financeira que reina hoje na economia mundial, cuja forma é D – D’, ou seja, busca valorizar-se na esfera financeira sem passar pela produção). É pelo fato de a forma capital ter tal força que ela pode prescindir então das características que constituiriam o “capitalismo ideal” – ideal tanto num sentido normativo como também no sentido de existir, ao menos em forma pura e generalizável a todo o globo, apenas no plano das ideias –, reproduzindo constantemente o “estado de exceção” que assim se interverte em regra. O arcaísmo, nesse sentido, não é pré-capitalista, não capitalista ou anticapitalista, mas trazido pelo capitalismo em seu desenvolvimento contraditório. Como escreveu Marx nos Grundrisse (1986), a principal característica que distingue o capitalismo dos modos de produção29 pré-capitalistas é o fato de que nestes a finalidade da produção é o valor de uso, ao passo que no primeiro a finalidade é a valorização do valor. As relações de produção são o meio para isso, mas, uma vez que o movimento da forma ganha dinamismo, a finalidade é o mais importante, e o capital não faz questão de saber se o que gera o D’ ao final foi trabalho escravo, assalariado ou outra forma qualquer: o que importa é o resultado. Para o capital, os fins justificam os meios. Tal força da forma capital também se desdobra em outra característica: o capital é o sujeito, e, portanto, não há um projeto das elites, seja ele modernizante ou arcaizante, mas o movimento de um sujeito automático, do qual os homens são meramente suportes, por meio das relações sociais 29 Na verdade, como destaca Fausto (1988, cap. 1), ao falarmos de sociedades passadas usando a expressão “modo de produção”, como em “modo de produção feudal”, o adjetivo “feudal” nega “modo de produção”, pois só no capitalismo a produção torna-se a dimensão central das relações sociais, visto que a finalidade do sistema é a valorização do valor, que deve passar pela produção. Assim, o próprio conceito de modo de produção deve ser interpretado como um conceito afetado de negação ao usá-lo para se referir a sociedades pré-capitalistas.

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de produção. Ou se pode dizer que desde o início o projeto de nossas elites, incluindo as mudanças de projeto com a mudança das elites hegemônicas, foi impulsionado pelo movimento do capital,30 movimento do qual as elites se alimentam e em função do qual atuam como classe. Se os resultados que isso trouxe para a periferia do sistema capitalista mundial foram diferentes dos casos “clássicos” de desenvolvimento capitalista, não se deve atribuir isso a uma anomalia ou dizer que se tratou de um outro modo de produção, mas compreender tais resultados como fruto do próprio desenvolvimento contraditório, desigual e excludente do capitalismo. Uma última observação a ser feita, agora sobre a relação entre as classes dominantes domésticas (as elites) e sua relação com o movimento do capital no plano internacional. É curioso notar que as ideias de Fragoso e Florentino se aproximam das de Gorender nesse aspecto, e ambas as concepções desembocam numa mesma linha de interpretação: a de que as mazelas dos países que foram ex-colônias são fruto de decisões equivocadas tomadas por eles mesmos (ou pelas suas elites, já que as classes populares nunca tiveram poder de decisão) e não resultado histórico da exploração ou da extração do excedente colonial, ou ainda do “imperialismo”. Gorender (1980, p. 65), após criticar a teoria da dependência e outras linhas interpretativas que enfatizam fatores externos como determinantes dos problemas nacionais, destaca que o foco dinâmico, em certos momentos cruciais, esteve na economia brasileira, nas atitudes das classes 30 Fragoso e Florentino, para reforçar seu argumento de que as ações das elites mercantis do Rio de Janeiro eram primordialmente políticas e não econômicas, mostram que a rentabilidade das atividades rentistas para as quais se voltavam os comerciantes após enriquecerem (compra de imóveis, terras, escravos, etc.) eram menos lucrativas que as atividades mercantis. Eles concluem com isso que o que eles buscavam era, portanto, status, poder, o que estaria de acordo com a ideia de um projeto arcaizante, não capitalista. Uma objeção a se fazer é que, ainda que as taxas de rentabilidade nessas atividades de fato fossem menores, isso não habilita a concluir que eram ações não racionais ou não motivadas pela lógica da acumulação capitalista. Optar por um investimento menos rentável pode significar simplesmente aversão a risco. De qualquer forma, o consumo ostentatório, bem como a acumulação de riquezas pessoais e certos tipos de bens que trazem status não são de forma alguma estranhos a uma sociedade capitalista, como já mostrou Thorstein Veblen na sua famosa Teoria da Classe Ociosa.

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dominantes nacionais, e não apenas no “imperialismo” externo. De forma análoga, Fragoso e Florentino, como vimos, destacam o poder da elite nacional em face do capital mercantil europeu e o papel protagonista (ou antagonista) dessas elites na reprodução de nosso “arcaísmo”. Isso é um desenvolvimento lógico nos dois modelos pelo fato de destacarem a dinâmica interna da colônia, seja como modo de produção escravista colonial, seja como formação econômico-social. Perde-se com isso, entretanto, a visão do capitalismo como um sistema mundial. É como se, na ânsia por combater as teses que enfatizavam a extração do excedente colonial – que têm seu ápice em Fernando Novais –, os autores joguem fora o bebê com a água do banho, desprezando a posição da colônia no conjunto de um sistema mundial em formação. Não queremos com isso defender interpretações fatalistas que retiram qualquer papel emancipador que possa surgir internamente ao país. Apenas acreditamos que foi exagerada a crença de que nossas elites poderiam ter mudado o rumo da história. E isso não se deu por mera “incompetência” dessas elites, mas pelas opções tomadas que envolviam as relações entre as elites internas e as elites do centro ou entre o capitalismo nacional e o capitalismo mundial. É por meio dessa relação que Fernando Henrique Cardoso, em sua versão da teoria da dependência, buscava (contra a esquerda embasada nas teorias do imperialismo) extrair os benefícios de um desenvolvimento “dependente e associado”, apoiado politicamente na facção “esclarecida” da burguesia nacional, aquela mais atenta às oportunidades criadas pela internacionalização da economia e pela nova divisão internacional do trabalho que estava surgindo na década de 60 com a expansão das multinacionais. Entretanto, sabemos bem o rumo a que essas ideias levaram quando ele teve sua oportunidade na presidência da república, já numa nova configuração do capitalismo mundial, na qual o processo de mundialização financeira se tornou muito mais relevante que a mundialização da produção e a dependência anteriormente diagnosticada transformou-se 219

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em uma dependência do mercado financeiro internacional que, até bem recentemente, funcionou como uma bola de ferro para o crescimento econômico brasileiro. Acreditamos haver aqui uma lacuna ainda a ser preenchida, que é a de pensar o papel da periferia no sistema capitalista: que não se cometa o erro de atribuir todas as nossas mazelas ao “imperialismo” ou a fatores externos, nem tampouco se cometa o erro oposto, de atribuí-las puramente a “decisões equivocadas” das elites e dos governantes locais ou às “instituições” domésticas, ou ainda à “corrupção”, como se esta não existisse nos países centrais e não fizesse parte das regras do jogo capitalista. É preciso entender a relação entre as elites nacionais e os demais grupos sociais dentro dos países periféricos, as relações entre essas elites e as elites do centro, no movimento geral do capital no plano internacional, bem como a maneira como tais elites defendem seus interesses por meio de seus respectivos Estados nacionais e organismos internacionais. Essas são, a nosso ver, as mediações fundamentais que devem ser investigadas para se compreenderem os diferentes períodos de nossa história. Tais reflexões deverão, também, conforme defendemos ao longo do texto, pensar no período colonial e no escravismo moderno não como um parêntesis, mas como a forma sob a qual o capitalismo se desenvolveu na periferia do sistema capitalista mundial, a forma como a inseriu na divisão internacional do trabalho, bem como na divisão internacional do poder. O “sentido da colonização”, de nossa perspectiva, é este: a criação da periferia de um sistema capitalista mundial. Não é um sentido teleológico, conforme já discutimos anteriormente, mas um sentido percebido a posteriori, e que tem à sua frente um sujeito histórico. Não um sujeito consciente, pois isso só viria, para Marx, com o fim da história – o socialismo – que, na verdade, seria o início da história com o homem surgindo como sujeito (ver Motta e Costa, 1995b). Mas um sujeito automático, que impede que o homem se torne sujeito: o capital. Acreditamos que a partir dessa noção do “sentido da colonização” se poderá chegar a uma síntese não só dos diversos modelos interpretativos 220

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de nossa formação como também a uma síntese entre nosso passado e o presente, ou seja, iluminar o passado não apenas por erudição ou curiosidade intelectual, mas para que este lance luz sobre os problemas do presente. Essa, como escreveu Caio Prado Júnior, é a principal tarefa de quem se debruça sobre nossa História.

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10. Sobre os autores

Iraci del Nero da Costa é Mestre, Doutor e Livre-Docente em Economia pela FEA-USP; aposentou-se como professor associado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.  João Paulo A. de Souza é Mestre em Economia pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo e doutorando em Economia pela Universidade de Massachusetts-Amherst.    Julio Manuel Pires é Mestre e Doutor em Economia pela FEA-USP e é atualmente professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.  Rodrigo Alves Teixeira é Mestre e Doutor em Economia pela FEA-USP; atualmente é professor do Departamento de Economia da  Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e servidor público  federal no departamento econômico do Banco Central do Brasil.

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