O capitalismo como religião e o sentimento religioso: aproximações iniciais entre Walter Benjamin e Sigmund Freud

September 3, 2017 | Autor: M. Sampaio de Mattos | Categoria: Walter Benjamin, Sigmund Freud, Repetição, Sentimento religioso, Capitalismo como religião
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Trabalho apresentado no IX Congresso Internacional de Teoria Crítica - UNIMEP  

Capitalismo como religião e o sentimento religioso: aproximações inicias entre Walter Benjamin e Sigmund Freud

Manuela Sampaio de Mattos*

O que proponho neste primeiro pequeno ensaio é um esboço de um diálogo entre Walter Benjamin e Sigmund Freud, aproximando algumas questões nomeadas por Benjamin no fragmento de 1921 “O capitalismo como religião”1 de outras construídas por Freud ao longo de sua obra, sobretudo no texto “O mal-estar na civilização”2 de 1930. O fragmento de 1921 inicia com a seguinte frase de Benjamin: “O capitalismo deve ser visto como uma religião”.3 Esta afirmação é desdobrada ao longo do texto, de modo a se diferenciar da concepção de Max Weber no sentido de que o capitalismo é uma espécie de formação condicionada pela religião. Benjamin esforça-se para argumentar que o capitalismo é, na verdade, um fenômeno essencialmente religioso, isto é, o capitalismo se constitui através de uma estrutura religiosa, onde podem ser identificados traços que caracterizam esta estrutura. O autor identifica especificamente três traços na estrutura religiosa do capitalismo. O primeiro diz respeito ao caráter cultual do capitalismo, dado que faz com que o utilitarismo, constitutivo do capitalismo, obtenha “coloração religiosa” apesar de o capitalismo não possuir nenhuma dogmática, nenhuma teologia. O segundo traço liga-se ao aspecto do culto em relação à duração permanente deste culto: “não há dia que não seja festivo no terrível sentido da ostentação de toda a pompa sacral, do empenho extremo do adorador”.4 O terceiro traço é aquele que indica que tal culto é culpabilizador e não expiatório, sendo aqui o local onde Benjamin lança seu entendimento na via do que, em suas palavras, resta inaudito do capitalismo: “a religião não é mais reforma do ser, mas seu esfacelamento. Ela é a expansão do desespero ao estado religioso universal, do qual se esperaria a salvação. A transcendência                                                                                                                        

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Mestranda PPGFIL/PUCRS, bolsista CAPES/PROSUP. [email protected] BENJAMIN, W. O capitalismo como religião. In: LÖWY, M. (Org.). O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013. P. 21-25. 2 FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-122. 3 BENJAMIN, W. O capitalismo como religião... p. 21. 4 BENJAMIN, W. O capitalismo como religião... p. 22. 1

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de Deus ruiu. Mas ele não está morto; ele foi incluído no destino humano”.5 E é precisamente neste sentido que Benjamin sustenta que esta passagem do ser humano pela casa do desespero caracteriza o éthos pensado por Nietzsche, o super-humano (Übermensch) que inicia o culto consciente da religião capitalista. Muito embora Benjamin inicialmente tenha mencionado que apontaria três traços, ao final da explanação dos primeiros traços ele acrescentou, ainda, um quarto traço decorrente dos demais, o qual revela que nesta religião “Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização. O culto é celebrado diante de uma divindade imatura; toda representação dela e toda a ideia sobre ela viola o mistério de sua madureza”.6 No parágrafo que vem logo após esta citação, Benjamin dirige uma importante crítica à teoria freudiana. Que tenha sido este o exato momento que Freud tenha aparecido como um autor a ser considerado nesta construção de Benjamin merece especial atenção. Isso porque Freud não é filósofo e nem teólogo, referências que poderiam ser buscadas em uma sequência lógica de argumentação. O motivo pelo qual Benjamin faz este endereçamento a Freud não é explícito, mas é possível traçar algumas suposições acerca de tal gesto. Benjamin oferece uma crítica forte à teoria do inconsciente, sustentando que a psicanálise criada por Freud integra o culto capitalista, pois, inclusive, foi uma teoria erigida em moldes capitalistas. Diz-nos Benjamin: “A partir de uma analogia muito profunda ainda a ser esclarecida, aquilo que foi reprimido – a representação pecaminosa – é o capital que rende juros para o inferno do inconsciente”.7 São estas as breves colocações críticas de Benjamin à teoria freudiana. É uma concisa passagem que certamente toca um ponto visceral, pois de fato o inconsciente freudiano está galgado em uma ideia de economia, onde o conteúdo reprimido rende juros sobre juros. Entendo que este é um espelhamento com o qual Freud deparou-se, espelhamento do que no sujeito fala do social e vice-versa. Não é por acaso que aquilo que faz sintoma no sujeito seja semelhante ao mecanismo capitalista ordenador do status quo. Foi desde dentro da culminância dos ideais iluministas que Freud criou e expôs um arcabouço teórico para a leitura do sintoma e do sofrimento humano, estrutura teórica que se constituiu em consonância com a sua época, ao mesmo tempo em que o dissonante inevitavelmente apontava em seu pensamento. Falar do inconsciente é falar de uma economia, mas é, também, falar do mecanismo da representação e do não representável, do que não se dá à consciência. O que se dá à consciência, quando se                                                                                                                         5

BENJAMIN, W. O capitalismo como religião... p. 22. BENJAMIN, W. O capitalismo como religião... p. 22. 7 BENJAMIN, W. O capitalismo como religião... p. 22. 6

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fala em inconsciente e formação de compromisso, é um representante representativo de algo que não se faz acessível à consciência, pois se trata de uma cena perdida. Que isto encene a incidência de juros sobre juros não é uma mera coincidência para os nossos tempos. Passando para outro viés, para onde poderia enveredar a crítica de Benjamin à psicanálise, nos dias atuais a atribuição de um juízo de caráter burguês/capitalista invariavelmente dirigido a esta área ganha, através de alguns autores, o espaço merecido no permanente processo de construção da psicanálise, pois esta não é um todo acabado e, para continuar existindo enquanto tal, necessita que a autocrítica seja uma constante. São passos ainda lentos, mas o desdobramento da crítica à prática de contornos elitistas provocou que a clínica psicanalítica e a teoria que a sustenta tenham alcançado diferentes âmbitos sociais, atingindo, programas de saúde pública e a elaboração de discursos de psicanálise da cultura. É o caso do cuidadoso trabalho de Maria Rita Kehl, bem como do projeto Clínicas do Testemunho, apenas para citar alguns exemplos. Logo após lançar um quarto traço na estrutura religiosa do capitalismo, rastro de um Deus ocultado e representado sempre de forma imatura, Benjamin remeteu-se a Freud. Uma especulação possível para que o autor tenha feito tal endereçamento pode calcar-se não somente na concepção de que o inconsciente possui uma economia, mas, principalmente, no meu entendimento, no fato de uma das bases do inconsciente ser, segundo Freud, o recalcamento do assassinato do pai, figura mítica e fundadora da horda primitiva, conforme a construção feita em “Totem e Tabu”. Os preceitos da gênese do inconsciente freudiano tem condições de ser fonte de diálogo com tal afirmação de Benjamin, pois a culpa e a dívida herdada por cada ser humano em virtude de, para constituir-se como sujeito moral, este ter reprimido a representação do assassinato da figura mítica de um pai todo poderoso, diz das necessidades inerentes a cada sujeito de criar ilusões necessárias para lidar com as frustrações e angústias decorrentes de tais conflitos inconscientes. No conhecido texto “O mal-estar na civilização”, Freud interroga a situação de malestar sempre presente na civilização. Nesta obra, muitos conceitos fundamentais da psicanálise se articulam em um documento que coloca em estreita relação os fenômenos verificados em âmbito individual com os fenômenos fundadores e organizadores da civilização. Para o autor, algo que contribui essencialmente para uma certa coesão social é a repressão instintual à qual cada sujeito se condiciona para viver em sociedade. Os ideais de felicidade certamente restam não concretizáveis, uma vez que não é possível que alguém satisfaça de modo idêntico as exigências instintuais conflitantes no inconsciente. Há uma extensa rede conceitual em diálogo neste texto, mas neste momento focarei na diferenciação

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que o autor faz entre sentimento oceânico e sentimento religioso. Para elaborar esta diferenciação de sentimentos, Freud se remete a um estágio primitivo da constituição psíquica, admitindo a dificuldade de “trabalhar com tais grandezas quase inapreensíveis” 8 e afirmando que “nada resta senão ater-se ao conteúdo ideativo que primeiro se junta associativamente ao sentimento”9 pois, para ele, “isso tem antes o caráter de uma percepção intelectual, certamente com uma tonalidade afetiva”.10 Para delinear o que entende por sentimento oceânico, Freud novamente trabalha neste texto a delimitação do Eu com o mundo externo: “no início, o Eu abarca tudo, depois separa de si um mundo externo”.11 O sentimento oceânico corresponde, então, à preservação de um primário sentimento do Eu de “uma mais íntima ligação do Eu com o mundo em torno”12 na vida psíquica de muitos homens. Tal sentimento ficaria, então, como uma espécie de contraparte do Eu na vida madura, “e os seus conteúdos ideativos seriam justamente os da ausência de limites e da ligação com o todo”,13 de ser uno com o mundo externo, como um sentimento oceânico de pertencimento ao todo, sendo o eu idêntico ao seu universo representacional. Desde esta elaboração, Freud questiona se o sentimento oceânico teria o direito de ser visto como fonte das necessidades religiosas de cada um. A resposta que o autor passa a conjecturar inicia com a concepção de que tal direito não é seguro, pois entende que parece irrefutável a derivação do sentimento religioso do desamparo infantil e da nostalgia do pai despertado por esse desamparo. Desse modo, a busca do restabelecimento do narcisismo ilimitado deflagrado pelo papel do sentimento oceânico resta excluído do primeiro plano para uma tentativa de explicação do sentimento religioso. O sentimento oceânico se ligaria posteriormente à religião. No sentimento religioso “trata-se da manutenção da posição infantil do sujeito diante de um pai protetor. A imagem de Deus é aí evocada como uma forma de amparo a que os homens coletivamente recorrem para lidar com o desprazer imposto pela realidade”.14 Freud entente que cada um, em algum ponto, age como um paranoico na medida em que tenta modificar algum traço inaceitável do mundo em relação ao seu desejo, inscrevendo tal delírio na realidade. Do mesmo modo tal comportamento também se verifica na massa, quando um grande número de pessoas age através de uma delirante modificação da realidade com o                                                                                                                         8

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930)... p. 26. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930)... p. 15. 10 FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930)... p. 15. 11 FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930)... p. 19. 12 FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930)... p. 19. 13 FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930)... p. 19. 14 POLI, M. C. Clínica da exclusão: a construção do fantasma e o sujeito adolescente. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 78 9

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intuito de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento. É como um delírio de massa que Freud caracteriza as religiões da humanidade. Da mesma forma o autor caracteriza a arte e a ciência. 15 Para Maria Cristina Poli: Pode-se dizer que, neste sentido, para a psicanálise, ‘Deus é uma criação desiderativa’ dos homens. Trata-se de um ‘objeto’ que só existe no universo representacional. Sua consistência não provém de nenhuma fonte perceptiva, nem interna nem externa ao organismo, que não seja o sentimento de desamparo.16

Voltando, então, ao quarto traço da estrutura da religião capitalista, me parece que é precisamente o ponto de ignorância sobre o mistério relacionado à tensão entre a imaturidade concomitante à efetiva madureza da divindade adorada no culto capitalista que enreda a humanidade à aderência a uma travessia do desespero. É neste ponto que acho possível o diálogo entre Benjamin e Freud, pois entendo que este desespero de que fala Benjamin, é um desespero por desamparo, pois o ser, no capitalismo, está esfacelado. As representações de amparo são sempre imaturas porque estão adstritas ao campo representacional, onde o juízo de existência das representações não se efetiva. Acontece que o sentimento de desamparo no capitalismo não encontra abrigo em uma figura mítica de proteção, conforme o pai protetor pensado por Freud. O desamparo, no capitalismo, é seguido pelo desespero, pois a divindade cultuada é aniquiladora. Nas palavras de Benjamin: “Vem-me à mente que nada podemos dizer sobre o deus e a doutrina dessa religião e pouco sobre a sua vida de culto; que a única coisa concreta é a sensação de um dado novo inaudito que nos faz sofrer.”17

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FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930)... p. 38. POLI, M. C. Clínica da exclusão: a construção do fantasma e o sujeito adolescente... p. 78. 17 BENJAMIN, W. Diálogo sobre a religiosidade do nosso tempo. In: LÖWY, M. (Org.). O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 27-52. 16

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REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. Diálogo sobre a religiosidade do nosso tempo. In: LÖWY, M. (Org.). O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 27-52. _____________. O capitalismo como religião. In: LÖWY, M. (Org.). O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013. P. 21-25. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-122. POLI, M. C. Clínica da exclusão: a construção do fantasma e o sujeito adolescente. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

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