O caráter de classe da ditadura e a invisibiliade dos trabalhadores

July 24, 2017 | Autor: Alejandra Estevez | Categoria: Direitos Humanos, Ditadura Militar Brasileira
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Os casos apresentados nesse texto tem seus detalhes nos relatórios das Comissões de Transição brasileiras: CA-MJ, CEMDP e CNV.
Vide as concepções minimalistas de direitos humanos de Henry Shue e John Rawls.


O CARÁTER DE CLASSE DA DITADURA E A INVISIBILIDADE DOS TRABALHADORES
Alejandra Estevez, pós-doutoranda do CPDOC/FGV, foi pesquisadora da CNV
San Romanelli Assumpção, pós-doutoranda do IESP, foi assessora da CNV
Vítor Guimarães, coordenador do MTST e assessor da CEV-Rio
Resumo:
O artigo tem por objetivo afirmar o caráter de classe da ditadura civil-empresarial-militar e refletir sobre as razões para o silenciamento e invisibilização da classe trabalhadora na construção da memória nacional sobre o período em tela. Para tal, buscamos iluminar casos de violações aos direitos dos trabalhadores e suas implicações para a vida familiar, profissional e sindical. No plano teórico, apresentamos uma proposta de alargamento da definição de graves violações aos direitos humanos, na tentativa de ressaltar a gravidade dos impactos que violações de cunho econômico e social possuem na vida dos inúmeros trabalhadores atingidos pela repressão e monitoramento a eles impostos tanto via poder público estatal, quanto através das direções empresariais.

Introdução
Passados mais de dois anos do início dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pouco mais de três meses de seu encerramento e da publicação de seu relatório final, em dezembro de 2014, pudemos observar a retomada de casos adormecidos na memória nacional, que receberam, inclusive, atenção especial da grande mídia. Estes casos, salvo raras exceções, tratam de personagens representativos de setores da sociedade economicamente privilegiados e, consequentemente, silenciam não apenas as mortes e desaparecimentos de mais de 100 trabalhadores durante o regime militar, como também reduzem o impacto do monitoramento e repressão sistemáticos voltado contra a classe trabalhadora, que persistem, ainda hoje, por vezes em escalas maiores.
O esclarecimento das mortes dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart se destaca pelo espaço que receberam na imprensa, gerando curiosidade e interesse da sociedade em geral. Além destes, o caso de Rubens Paiva, que teve seu mandato cassado logo no dia 10 de abril de 1964, foi bastante noticiado, comprovando que o ex-deputado foi torturado e morto nas dependências do DOI-CODI, no Rio Janeiro. A morte de Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel, também recebeu atenção especial dos membros da CNV e revelou que o militante do MR-8 foi assassinado sob tortura por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), nas dependências da Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, em maio de 1971.
Personagens como o metalúrgico Manuel Fiel Filho, "suicidado" pelas forças repressivas no DOI-CODI de São Paulo, ou o líder sindical dos bancários, Aluízio Palhano, preso em 1971, barbaramente torturado e, provavelmente, morto na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), contudo, são histórias ainda pouco conhecidas do grande público. Na memória construída sobre o período militar, observamos um corte de classe, no qual ganham visibilidade casos representativos de setores sociais como os estudantes, jornalistas, políticos, ex-presidentes. Isso se deve a desigualdades de poder simbólico e a espaços de reverberação a que estes setores possuem mais acesso do que as camadas populares e os trabalhadores. Desigualdades de poder geram desigualdade de visibilidade social e política e conformam um viés de classe no campo político de memória, verdade, justiça e reparação. Aproximemo-nos mais de algumas histórias de violação a trabalhadores.
Manuel Fiel Filho migrou de Alagoas para a cidade de São Paulo aos 18 anos, onde foi padeiro, cobrador de ônibus e metalúrgico. Citado em investigação sobre o PCB, Manuel foi detido por dois homens que se identificaram como sendo do DOPS/SP em janeiro de 1976, levado ao DOI-CODI/SP, torturado e "suicidado" pela repressão ditatorial. Diversos operários testemunharam sua prisão ilegal e vários presos políticos atestaram sua tortura e questionaram o alegado suicídio, já que, no cárcere, não havia demonstrado nenhuma intenção nesse sentido. Em 1995, o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade pela prisão, tortura e morte de Manuel.
Aloísio Palhano era bancário do Banco do Brasil, foi eleito presidente do Sindicato dos Bancários duas vezes, presidente da Confederação dos Trabalhadores dos Estabelecimentos de Crédito (CONTEC), em 1963, e vice-presidente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Com o Golpe de 1964, teve seus direitos políticos e sindicais cassados e passou a ser alvo da repressão política ditatorial. Tornou-se militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), fez curso de guerrilha em Cuba, viveu clandestinamente, exilou-se, voltou ao Brasil como clandestino, foi preso, torturado, assassinado e desaparecido. Relatos de companheiros de cela contam que esteve no DOI-CODI da Rua Tutoia em São Paulo, no DOI-CODI/RJ e na Casa da Morte, em Petrópolis, e que foi submetido a longas horas de interrogatório e barbaramente torturado nos três locais. Somente em 1991 seu nome seria encontrado em uma gaveta com a identificação "Falecidos" nos arquivos do DOPS/PR. Apesar de ter recebido algumas homenagens do Grupo Tortura Nunca Mais e da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, bem como ter se tornado nome de rua no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, sua história ainda é pouco conhecida do grande público.
São abundantes as histórias de trabalhadores perseguidos e que tiveram seus direitos violados pelo arbítrio ditatorial brasileiro.
Manoel da Conceição, camponês, líder de lutas pela terra no Maranhão, militante do Movimento de Educação de Base (MEB) e da Ação Popular (AP), perdeu metade de uma perna em decorrência de um tiro levado em um conflito com jagunços e policiais a serviço de latifundiários, foi preso diversas vezes em locais como o DOI-CODI/RJ e o CENIMAR e barbaramente torturado. Teve que se exilar em decorrência da repressão.
Além das graves violações, impressionam os casos de perseguição, monitoramento e atos arbitrários praticados contra a classe trabalhadora. Em outubro de 1963, os petroleiros da Refinaria de Petróleo União realizaram a Greve da Encampação, que durou 15 dias, reivindicando equiparação de direitos com os trabalhadores da Petrobrás e incorporação da refinaria pela estatal. A greve foi vitoriosa, mas, com o Golpe de 1964, 153 dos operários grevistas foram demitidos por subversão e entraram para uma "lista negra" amplamente distribuída entre as empresas da região, as delegacias policiais, o II Exército e, mais tarde, chegou até agências do SNI e à Divisão de Segurança e Informação do Ministério da Justiça. Esta lista negra impactou de diversas maneiras a vida destes trabalhadores, seja pela grande dificuldade em conseguirem empregos em outras empresas da região, seja pela impossibilidade de sustentarem suas famílias diante da situação de desemprego crônico. Os efeitos foram devastadores sobre a subsistência de suas famílias, como pudemos constatar em uma série de depoimentos que ouvimos com petroleiros de Mauá, durante a investigação empreendida no âmbito da CNV.

A violação sistemática e o caráter ideológico da perseguição à classe trabalhadora
Estas histórias são importantes em si, porque dão voz a cidadãos cuja memória e verdade é sistematicamente silenciada na esfera pública e no imaginário brasileiro. Este silenciamento é uma injustiça histórica que urge ser reparada. Olhar para a história dos trabalhadores e suas organizações representativas é central, se queremos esclarecer, tanto as razões para o Golpe de 1964, como dimensionar o impacto que a estruturação do sistema repressivo teve para o conjunto da sociedade e se queremos construir reflexões normativas, politicas e ideológicas sobre as relações entre repressão política e repressão econômica, entre desigualdade política e econômica, reflexões estas fundamentais para a discussão pública e democrática a respeito de que país e sociedade queremos. Nesse sentido, a ditadura civil-empresarial-militar, numa perspectiva dos trabalhadores, não se caracterizou apenas por algumas "violações de classe", mas foi um período de transformação institucional e imposição social de um determinado modelo de gestão e abordagens dos conflitos e lutas sociais. Sem essa compreensão, o processo político da justiça de transição e o entendimento do dever ser deste processo ficam reféns da própria estrutura de repressão política, econômica e social que vigia durante a ditadura.
Para além das graves violações (prática sistemática de prisões arbitrárias, torturas, mortes, desaparecimentos e ocultações de cadáver), o regime militar violou uma série de direitos civis básicos: direito de livre associação, liberdade de consciência, direito de expressão, direito de ir e vir, direito à integridade física e psicológica, entre outros. Além disso, a política de forte arrocho salarial imposta a toda a classe trabalhadora resultaria na pauperização da sociedade, violando também direitos socioeconômicos de subsistência básica como o direito a uma renda mínima necessária para uma vida digna, o custeio da saúde, educação e moradia. Lembremos, ainda, as violações das habitações, destruição de casas e o forte impacto familiar. As famílias, em geral se desestruturavam, ou os prejuízos (não apenas financeiros) eram tão significativos que impuseram uma vivência incompleta, porque calcada em medo e receio, de tudo e todos.
Diante do exposto, fica evidente a estruturação de classe da repressão. Durante a ditadura civil-empresarial-militar brasileira, observamos a convergência dos interesses dos órgãos repressivos ligados ao aparato estatal e os interesses de exploração da força de trabalho próprios das classes patronais. Isso se refletiu em uma repressão preventiva ou reativa a toda forma de organização e manifestação coletiva dos trabalhadores (restrição à filiação aos sindicatos, proibição de greves, exigência de atestado ideológico para participar das eleições sindicais etc.), culminando, em muitos casos, no uso indiscriminado, por parte dos patrões, da demissão por justa causa, monitoramento sistemático de trabalhadores, construção de listas negras de trabalhadores grevistas, desemprego por longos anos, repressão violenta a greves, prisões. Esta faceta da máquina repressiva, porque aplicada desde os primeiros dias do golpe, mostra que os "direitos sociais e políticos" desses cidadãos, enquanto trabalhadores, já estavam suspensos desde muito antes do AI-5.
A organização de um poderoso sistema de controle e vigilância nos locais de trabalho apresentou-se como aspecto crucial das arbitrariedades praticadas pela ditadura contra a classe trabalhadora: desde a exigência, por parte das empresas, das delegacias policiais e das Delegacias Regionais do Trabalho (DRT), de atestados de antecedentes ideológicos, produzidos pelos DOPS, de maneira a evitar a contratação de trabalhadores considerados "subversivos", até a instauração de uma rede de delatores que contou com participação dos interventores sindicais, com a incorporação à segurança privada das empresas de agentes com formação policial ou militar, agentes patronais infiltrados nos locais de convivência, transporte e lazer dos trabalhadores e inúmeros outros atos abusivos.
Tal sistema utilizou como mecanismo privilegiado de controle, as cassações de mandatos de lideranças sindicais e as intervenções dos sindicatos, através da atuação bastante ativa do Ministério do Trabalho e das DRTs. As intervenções, acompanhadas de outras práticas repressivas voltadas contra a classe trabalhadora (criação do FGTS e do INSS, política de arrocho salarial, demissões em massa, lei anti-greve, entre outras), marcaram as relações entre Estado e movimento operário durante o período ditatorial, caracterizadas pela transformação das reivindicações políticas e econômicas da classe trabalhadora em assunto de interesse da segurança nacional. Por meio de portarias ministeriais, o regime militar lançaria mão das intervenções logo nos primeiros dias após o Golpe de 1964. Nos dois primeiros anos do regime militar (1964 e 1965), foram atingidos cerca de 80% dos sindicatos que sofreram intervenção entre 1964 e 1970. Dentre as entidades mais afetadas, encontram-se os grandes sindicatos (com mais de cinco mil membros), bem como as confederações e federações, numa clara tentativa de desestruturação do movimento sindical hegemonizado até então pelos grupos de oposição aos governos autoritários.
A produção do terror como forma de intimidação e desmobilização pode ser considerada a ação mais devastadora para a classe trabalhadora, uma vez que não apenas elimina a possibilidade de reação no presente, como acaba com as possibilidades de resistência dos trabalhadores no futuro próximo. A instalação do terror, no meio operário, é feita através de diferentes mecanismos que vão desde a prisão seletiva de lideranças sindicais e prisões de militantes articulados em seus locais de trabalho, até os ainda não mensurados casos de trabalhadores torturados ou obrigados a viver na clandestinidade, sem emprego, isolados de seus companheiros de militância e de suas famílias, discriminados pela comunidade local.
Além desta forma "clássica" de construção do terror, o terror, entre trabalhadores, apresentava a especificidade de ser construído também pelo medo de, ao participar de atividades políticas e sindicais, relegar suas famílias ao desamparo advindo da situação de desemprego por longos períodos por inclusão em "listas negras". É recorrente na fala dos trabalhadores ouvidos pública e privadamente pelas Comissões da Verdade, a alusão constante aos efeitos do desemprego por razões políticas sobre a subsistência da família e a menção de que trabalhadores raramente podem viver na clandestinidade, pois suas famílias dependem de que estejam em empregos incompatíveis com tal situação.
No meio operário, a ameaça ao direito à subsistência básica é um dos principais instrumentos de repressão, numa vinculação poderosa entre repressão política e econômica, que une os mais diversos interesses das classes dominantes política e economicamente e que mina as bases da possibilidade de construção de autodeterminação pessoal num nível basilar e elementar. Isso significa que além do medo da prisão e pela própria vida, também difundido aos da classe média, a classe operária teme pelas condições mesmas de sua subsistência. As histórias contadas no início deste artigo, exemplificam estas duas formas através das quais o terror pode ser instalado na vida das pessoas, de modo a afastá-las da resistência política e da luta por melhores condições políticas e econômicas para si, para suas famílias e para sua classe. Até hoje, o dispositivo do medo e do terror difundido e irradiado é utilizado para tolher o ímpeto de resistência e insurreição de quaisquer setores sociais. As demissões em represália a greves ou a brutal repressão que se impõe sobre ocupações rurais e urbanas têm uma função de "exemplo", para gerar afastamento.

A necessidade de ampliação da concepção de direitos humanos no Brasil
Por tudo isso, os pesquisadores interessados em investigar os crimes praticados durante a ditadura militar não devem concentrar-se unicamente nos casos dos mortos e desaparecidos, que hegemonizaram as pesquisas até o momento, mas precisam voltar-se para estas outras práticas repressivas que, em última instância, serviram de contexto para a prática das graves violações aos direitos humanos e que tiveram implicações gravíssimas nas vidas dos trabalhadores e seus familiares. Cabe olhar igualmente para o impacto que os expurgos, demissões em massa, perseguições políticas nos locais de trabalho, desemprego, afastamento da vida política e sindical tiveram não apenas sobre a classe trabalhadora, mas sobre a sociedade civil como um todo. Estas medidas repressivas, não somente impediram que os trabalhadores pudessem continuar expressando suas reivindicações, como implicaram em sérias consequências no plano subjetivo, tais como a depressão, o alcoolismo, a separação de casais, a pauperização e mendicância, a falta de auto-estima, de estabilidade emocional e financeira e uma série de outras questões ofuscadas pela dor da morte e do desaparecimento, mas igualmente relevantes simbolicamente para aqueles que foram vítimas de suas arbitrariedades. Esta realidade de repressão e violação é indissociável de uma violação que é consensualmente entendida como violação de direitos humanos até mesmo quando estes são concebidos minimalistamente: a violação à liberdade básica de subsistência.
O conceito de direitos humanos é formado por vários componentes. Um primeiro, muito conhecido e amplamente repetido pela Organização das Nações Unidas (ONU), é a afirmação de que direitos humanos são direitos e liberdades inalienáveis, dos quais todos somos universalmente titulares simplesmente por sermos humanos, independentemente de classe, raça, etnia, gênero, sexualidade, religião, país de nascimento ou quaisquer outros pertencimentos, circunstâncias e particularidades que nos constituem enquanto pessoas. Além disso, direitos humanos são individuais, isto é, as pessoas são portadoras destes direitos e não suas comunidades, associações, coletividades diversas e países: estes direitos são individuais e estão acima de direitos cujo sujeito são coletividades. Universalidade, inalienabilidade e sujeitos de direitos individuais são os principais elementos definidores dos direitos humanos.
Diante da questão de quais direitos e liberdades são simultaneamente inalienáveis, universais e individuais, Estados e movimentos teóricos e políticos dividem-se em perspectivas que afirmam listas mais ou menos extensas de direitos qualificados como "humanos". Por exemplo, o direito à igualdade de gênero não é considerado um direito humano pela maior parte dos Estados, sendo a "Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher" a declaração da ONU que menos países ratificaram.
Dentro da diversidade do que se considera direitos universais e inalienáveis, podemos considerar que existem concepções maximalistas e minimalistas de direitos humanos. A ONU e diversos organismos multilaterais, por exemplo, afirmam um amplo rol de direitos que seriam universalmente inalienáveis, afirmando concepções maximalistas dos direitos humanos que incluem igualdade de gênero, igualdade étnica e racial e, inclusive, direitos culturais. Mas, dentro da prática internacional, direitos humanos são um grupo bastante restrito de direitos e liberdades, mais compatíveis com concepções minimalistas de direitos humanos universais, como são as concepções de autores como Henry Shue, John Rawls, Michael Walzer e Charles Taylor.
A partir de diferentes perspectivas teóricas, estes autores afirmam que dentro da pluralidade de circunstâncias, culturas e concepções de boa vida existentes nos diferentes países do mundo, direitos universais inalienáveis, como são os direitos humanos, são apenas direitos que dizem respeito à integridade pessoal em um nível basilar, como são a segurança pessoal, as liberdades civis básicas e a subsistência. Do contrário, direitos humanos atentariam contra a diversidade cultural e a soberania política. E aqui entra mais um componente da definição dos direitos humanos: justificam o questionamento da legitimidade da soberania estatal nacional e internacionalmente. Ou seja, um Estado que viola direitos humanos pode ser politicamente afirmado como ilegítimo e ser objeto de preocupação internacional. Isso é tão grave que poucos direitos atenderiam a este requisito, daí a força argumentativa das concepções minimalistas de direitos humanos. Ainda mais restritiva que a concepção minimalista de direitos humanos é a concepção de "graves violações de direitos humanos", que inclui apenas genocídios, limpeza étnica, massacres, assassinatos sistemáticos, desparecimentos forçados sistemáticos, ocultação de cadáver sistemática, trabalho escravo e prisões arbitrárias sistemáticas (sendo esta última nem sempre incluída neste rol).
Pois bem, partindo de uma concepção minimalista de direitos humanos própria do entendimento de "graves violações de direitos humanos" expresso na lei que constituiu a Comissão Nacional da Verdade, podemos evidenciar o caráter de classe da repressão ditatorial através da listagem de mais de cem trabalhadores mortos e desaparecidos realizada pelo Grupo de Trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical da CNV, bem como a afirmação alternativa, construída pela Comissão da Estadual da Verdade de São Paulo - Rubens Paiva, segundo a qual 57% dos mortos e desaparecidos oficiais são trabalhadores. Acrescem-se a estes trabalhadores, os 1.1996 mortos e desaparecidos do campo entre 1961 e 1988, que constam do livro Camponeses Mortos e Desaparecidos: Excluídos da Justiça de Transição, resultado de pesquisa do projeto Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), coordenado por Gilney Viana. Temos aqui apenas o início do fio da meada das graves violações de direitos humanos contra trabalhadores, pois a estes assassinatos, desaparecimentos forçados e ocultações de cadáver, cuja dimensão quantitativa se refere apenas ao que foi reconhecido pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela SDH, soma-se ainda a questão das torturas e prisões arbitrárias contra trabalhadores, cuja dimensão ainda nos é desconhecida, mas que os depoimentos ouvidos privada e publicamente pela CNV e os trabalhos acadêmicos dedicados à repressão ditatorial aos trabalhadores indicam ser um universo amplo de violações e violados. Temos aqui o indício claro de um amplo cenário de repressão aos trabalhadores enquanto setor social e uma afirmação do caráter de classe de nossa última ditadura.
Mas, e se, às chamadas graves violações de direitos humanos, nós juntarmos as violações de direitos humanos, incluindo, como fazem Henry Shue e Rawls, o direito à subsistência e não apenas à segurança pessoal e às liberdades civis básicas? Se fizermos, teremos mais uma evidência clara de violações e estrutura da repressão voltados contra os trabalhadores, pois (1) as liberdades sindicais são liberdades políticas e civis básicas, constituindo direito à liberdade de consciência, à liberdade de expressão, à liberdade de associação, à liberdade de greve e à liberdade de negociar contrato de trabalho e (2) as liberdades sindicais foram violadas ditatorialmente com vistas à realização de um projeto de desenvolvimento econômico que violava o direito à subsistência básica. Tudo isso sendo realizado por estruturas da repressão ditatorial que, como vimos, incluíam não apenas forças policiais e militares, mas também DRTs, o Ministério do Trabalho e as próprias empresas estatais e privadas que faziam parte dos arranjos institucionais público-privados de monitoramento, troca de informações e repressão no ambiente de trabalho e nas políticas de segurança privada e recursos humanos. Bem como incentivou os próprios trabalhadores a se verem como inimigos, dedurando, perseguindo e reforçando uma lógica geral de inimigos.

Considerações Finais
É exatamente para esta conjunção de graves violações de direitos humanos, violações de direitos humanos e estruturas institucionais público-privadas de repressão aos trabalhadores que olham os chamados onze pontos, pauta de pesquisa política formulada pelas centrais sindicais que compuseram o Coletivo Sindical de Apoio ao Grupo de Trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical da CNV. Ao cultivarem este foco, os onze pontos dão também conta da articulação entre direitos humanos, justiça social e democracia, pois, se direitos humanos minimalistamente entendidos atentam para o mínimo necessário para haver legitimidade estatal, o olhar sobre as estruturas da repressão nos permitem abordar os pontos de estrangulamento das possibilidades de igualdade política democrática – na política e no ambiente de trabalho – e da igualdade econômica e liberdade econômica. Os onze pontos, são, sem dúvida, o grande legado do GT Trabalhadores para um entendimento mais progressista, democrático e igualitário da memória e verdade a partir de uma perspectiva da classe trabalhadora. São eles:
Levantamento dos sindicatos que sofreram invasão e intervenção no golpe e após o golpe;
Investigação de quantos e quais dirigentes sindicais foram cassados pela ditadura militar;
Quais e quantos dirigentes sindicais sofreram prisão imediata ao golpe;
Levantamento da destruição do patrimônio documental e físico das entidades sindicais;
Investigação sobre prisões, tortura e assassinatos de dirigentes e militantes sindicais urbanos e rurais;
Vinculação das empresas com a repressão;
Relação do serviço de segurança das empresas estatais e privadas com a repressão e atuação das forças armadas;
Legislação antissocial e antitrabalhadores (lei de greve, lei do arrocho salarial, lei do fim da estabilidade no emprego, entre outras);
Levantamento da repressão às greves;
Tratamento dado a mulher trabalhadora durante a repressão;
Levantamento dos prejuízos causados aos trabalhadores e suas entidades pelo regime militar para reparação moral, política e material.
O caráter de classe da ditadura militar brasileira não apenas é pouco ventilado por jornalistas e no interior do mundo acadêmico, como parece ser invisibilizado ideologicamente. Nossa provocação inicial remetendo aos ex-Presidentes da República; ao ex-deputado, rico, que foi brutalmente torturado e assassinado; ao filho consciente e militante do estrangeiro estadunidense e da rica estilista, também brutalmente torturado e assassinado vem não para questionar suas trajetórias ou de suas famílias, mas para nos levar a entender a luta por memória, verdade e justiça como um campo das lutas sociais que ainda reproduz estruturas simbólicas muito naturalizadas mas que todas e todos devemos nos propor a desconstruir.
Além disso, as permanências candentes da ditadura quanto 1) ao ciclo econômico; 2) às permanências de mecanismos repressivos, de tortura, morte, desaparecimento e impunidade; 3) à corrupção endêmica e invariavelmente impune do período ditatorial; e 4) às elites que eram dominantes nos 21 anos de ditadura e assim se mantém, faz com que os trabalhadores permaneçam em condições semelhantes ao período ditatorial (sob o jugo do capital), sujeitos à dominação e opressão, a violações e graves violações. Cabe à sociedade civil de maneira geral, e em especial ao movimento social, conseguir fazer com que a evocação pública da memória da ditadura no Brasil possa expressar-se não apenas na sua dimensão de direito, mas seja capaz, principalmente, de afirmá-la como uma obrigação socialmente compartilhada, e não apenas como uma questão de responsabilidade restrita ao Estado brasileiro. O advento mais recente das Comissões da Verdade da Democracia, como a das Mães de Maio em São Paulo, e as articulações que já ocorrem no Rio, em Salvador e em Porto Alegre, certamente trarão informações e abordagens no sentido do que dissemos aqui: se a sociedade é de classes, e a relação entre elas é conflituosa, em determinados momentos históricos os inimigos do poder podem ser oriundos das classes altas e médias ou pertencentes a determinado grupo étnico, mas invariavelmente, ao lado deles, para ser oprimidos, mortos, torturados e alijados de direitos estará a classe trabalhadora. Nossas lutas diárias devem ser respostas a esse fenômeno.


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