O Caso Haximu: A construção do Crime de Genocídio em um Processo Criminal

Share Embed


Descrição do Produto

Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

O Caso Haximu A construção do Crime de Genocídio em um Processo Criminal

Martiniano Sardeiro de Alcântara Neto

Martiniano Sardeiro de Alcântara Neto

O Caso Haximu A construção do Crime de Genocídio em um Processo Criminal

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

título

de

Mestre

em

Antropologia Social. Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Rio de Janeiro Junho de 2007 2

O Caso Haximu A construção do Crime de Genocídio em um Processo Criminal Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre. Aprovada por:

_________________________________________ Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (Orientadora) PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________ Prof. Dr. Antônio Carlos de Souza Lima PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________ Prof. Dr. Henyo Trindade Barreto Filho Instituto Internacional de Educação no Brasil (IEB)

_________________________________________ Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira (Suplente) PPGAS/Museu Nacional/UFRJ _________________________________________ Profª. Dra. Laura Moutinho da Silva (Suplente) Instituto de Medicina Social/UERJ

Rio de Janeiro Junho de 2007

3

ALCÂNTARA NETO, Martiniano Sadeiro de. O Caso Haximu. A construção do Crime de Genocídio em um Processo Criminal/Martiniano Sadeiro de Alcântara Neto. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2007. xiii, 184; 31 cm. Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna. Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de PósGraduação em Antropologia Social, 2007. Referências Bibliográficas: pp. 179-184. 1. Antropologia do Direito 2. Crime de Genocídio 3. Funcionalismo Público. I. Vianna, Adriana de Resende Barreto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

4

Resumo O texto que se segue focas-se na construção do Crime de Genocídio num Processo Criminal específico. Tal Processo trata do conflito entre índios Yanomami da aldeia de Haximu e garimpeiros brasileiros na fronteira do Brasil com a Venezuela, no ano de 1993. A análise baseia-se, por um lado, na idéia de que a coerência dessa massa documental não é pré-dada, mas gradualmente produzida a partir do trabalho de diferentes especialistas, como Antropólogos, Policiais Federais, Advogados, Defensores Públicos, Procuradores da República e Magistrados do Judiciário Brasileiro. Por outro lado, tenta-se entender especialmente como os expertos do Direito trabalham a arbitragem desse conflito, erigindo condutas, punições e, enfim, todo um modelo teórico para dar conta, em termos judiciais, do embate entre garimpeiros e os Yanomami de Haximu.

Palavras-chave: 1. Antropologia do Direito; 2. Crime de Genocídio; 3. Funcionalismo Público

5

Abstract The following text focus on the construction of the Genocide Crime in a specific Criminal Process. That Process is concerned to the conflict between the Yanomami Indians of Haximu and some Brazilian goldwashers, which takes place in the political border of Brazil with Venezuela in 1993. The analysis is based, on one hand, in the gradually constructed coherence of the documents that constitutes the Process – what is the product of the work of different specialists, as Anthropologists, Lawyers, Federal Policemen, Counsels for indigents, General Attorneys, and Magistrates of the Brazilian Judiciary. On the other hand, it tries to understand especially the way in which the experts of the Right arbitrate this conflict, constructing ways of behaviors, punishments and, at last, all a theoretical model to comprehend, in judicial terms, the quarrel between goldwashers and the Yanomami de Haximu. Key-words: 1. Anthropology of Right; 2. Genocide Crime; 3. Public Office.

6

7

Foi assim que fizemos. Não inventamos nada, fora a disposição das peças. (Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault)

8

Agradecimentos

Se as páginas que se seguem realmente conformarem uma dissertação de mestrado em Antropologia Social, devo agradecer, primeiramente, à Carla Costa Teixeira. Foi ela que, no primeiro semestre de 1998, durante o curso de Introdução à Antropologia, me fez pensar seriamente em abandonar a graduação em História, logo nos primeiros dias de aula. Sempre guardarei comigo os cursos brilhantes dessa mestra e seus incontáveis ensinamentos. Da Universidade de Brasília, sou grato também à Joana, ao Sapequinha, ao Jorge-Burro, à Paloma, ao Cone, ao Tiaguinho e a todos os grandes amigos que por lá fiz e que, como eles sabem, não lembrarei o nome nem mesmo da metade – o que não quer dizer que os esquecidos tenham sido menos importantes. As horas de dominó e truco no CAHIS e todos os que por lá eu encontrava fazem parte das boas lembranças dos tempos de graduação na UnB. No Rio de Janeiro, agradeço inicialmente ao Antonio Carlos de Souza Lima. Sem as diversas oportunidades de pesquisa com as quais tive contato através dele, além da boa antropologia ensinada, a presente dissertação simplesmente não existiria. Agradeço também a todo o pessoal do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento. No LACED, não apenas ganhei experiência como pesquisador, mas fiz ótimo amigos, como o Chiquinho ou a Maria. Das aulas do PPGAS/MN, agradeço às considerações da mente pós-moderna da Júlia e às sempre úteis dicas da Ferni. Agradeço especialmente à Lets pela ajuda na revisão da primeira versão do texto e por todo o apóio que ela me deu, relacionado ou não à academia. Agradeço também aos amigos Levindo, Mundim e Pedro por terem me aturado como co-residente na Passagem. As cervejadas-sem-móveis, as festas-comemorativas e os almoços-explosivos com todos esses amigos ajudaram a desanuviar a mente nos momentos em que escrever se tornava quase um martírio. Nesse sentido, devo muito à Bia e aos seus sempre fantásticos conselhos-de-mesa-de-bar. Na pesquisa específica que deu origem à presente dissertação, sou particularmente grato à Doutora Déborah Duprat e à sua incansável solicitude em me ajudar na empreitada de conseguir uma cópia dos documentos que analiso a seguir. Sou grato também aos funcionários da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal pela presteza com que me atenderam. O mesmo pode ser dito do corpo de funcionários do Supremo Tribunal Federal. Agradeço especialmente aos bacharéis 9

em Direito Rafael Rodrigues de Alcântara e Maiuí Borba de Oliveira, que se esforçaram pacientemente em esclarecer certas vicissitudes do Direito a um completo leigo. Devo muito também ao Rato, Jotinha e à Potó, que direta ou indiretamente me levaram a estudar algo relacionado à temática do Direito. À Mary, ao Bigode, Alisson, Galego, Marcondes, Mocoquinha e toda a Barca pelos ótimos momentos, já de volta à Brasília. Agradeço especialmente ao seu Nizú, que tentou (e ainda hoje tenta) pacientemente entender o que eu fui fazer no Rio de Janeiro. Ainda em Brasília, sou grato à amiga Norma Breda dos Santos pela cuidadosa revisão de parte do texto. Por fim, agradeço à Adriana Vianna pela paciência quaseinfinita na orientação de um caótico pisciano. Essa dissertação vai dedicada à Cabeça, Sra. Edith Rodrigues Afonseca, que sempre se empolgou e acreditou nas minhas viagens, mesmo quando essas me distanciavam dela.

10

Convenções a abreviaturas

Esclareço aqui as convenções e abreviaturas que usarei no decorrer do texto. Uso o termo Processo, com a primeira letra em caixa-alta, para me referir ao Processo específico analisado a seguir. Quando discuto algo que pode ser generalizável para além do objeto direto da presente dissertação, uso processo, em minúsculas. Sigo a mesma regra para os termos Autos e autos, utilizados como sinônimos de Processo e processo. Reservo o itálico sem aspas para marcar termos estrangeiros, como settlement na introdução que se segue. As aspas simples referem-se a termos que emprego no sentido figurado, como, por exemplo, ‘alimentação’ do processo no próximo parágrafo. O itálico combinado com a primeira letra em caixa-alta será usado para todas as categorias que tive contato durante a pesquisa e que pretendo destacar, como o termo Genocídio na próxima página, por exemplo. O negrito, fora as citações em que se usa tal destaque no documento original, será aplicado para dar ênfase aos meus próprios termos analíticos, a exemplo de sedimentação do processo no início da próxima página. Para as citações tanto de documentos quanto de referências bibliográficas, sigo a seguinte regra: as que alcancem até cinco linhas serão destacadas entre aspas duplas e itálico, enquanto as que superarem tal marca terão as duas margens recuadas, conservando-se o itálico e suprimindo-se as aspas. Caso pretenda dar ênfase especial a alguma citação, usarei o negrito combinado ao sublinhado, único tipo de destaque que não encontrei nos documentos aqui analisados. Meus destaques virão sempre seguidos do termo ênfase minha, enquanto as citações originalmente destacadas virão indicadas pela expressão ênfase do original. Uso as referências bibliográficas tendo como base o seguinte modelo FOUCAULT,2006, citando, no exemplo, a obra FOUCAULT, Michel. 2006. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. No que tange às fontes documentais, opto por dois tipos de referência: de início, todas as fontes do Processo serão referenciadas pela numeração dada nos Tribunais por onde os Autos passaram. Como deixarei mais claro quando estiver analisando a construção e ‘alimentação’ do Processo, praticamente toda folha constante nos Autos é numerada. Tal numeração vai do número um à quantidade final de páginas - até arquivamento do Processo, momento em que idealmente ele para de crescer. Mantenho, com isso, o tipo de referência que os próprios operadores do Direito usam quando querem citar algum documento anterior ao que eles próprios estão produzindo em 11

determinado momento – o qual também será, mais tarde, numerado e incorporado aos Autos. Tal expediente dará margem para que seja possível acompanhar o que batizo adiante de sedimentação do Processo. Por outro lado, trarei, sempre que possível, a natureza da documentação em foco. Como se verá, os Autos são formados por uma gama particularmente heterogênea de documentos, que podem ir desde um Recurso digitado e assinado por um Advogado de Defesa ou Promotor Público, até uma carta manuscrita de uma religiosa de Roraima que teve contato com os Yanomami de Haximu que sobreviveram ao Genocídio – cf. Anexo. Isso ajudará a complementar a referência mais geral, dada, como dito, pelo número de páginas, facilitando que se tenha mais informações sobre a parte específica do Processo a que faço referência. Um exemplo desse modelo de citação é o seguinte: ‘Processo Haximu (PH), :479-518, Relatório Final do Inquérito Policial’, citando-se, aí, o Relatório Final do Inquérito Policial escrito pelo Delegado de Polícia Federal Raimundo Soares Cutrim, numerado no Processo entre as páginas 479 e 518. Para a grafia dos nomes indígenas, conservo as que mais se repetiram nos documentos: uso, portanto, Yanomami para o grupo indígena mais geral e Haximu para identificar a aldeia Yanomami específica em que ocorreu o Genocídio relatado no Processo aqui em foco. Tal regra vale para todos os outros termos indígenas que por ventura sejam citados, como tuxaua ou curumim, ambos regularmente assim grafados nos Autos. Por fim, segue abaixo uma breve lista das abreviaturas recorrentes:

PH

Processo Haximu (Fonte Documental)

FUNAI

Fundação Nacional do Índio (Órgão Público)

STF

Supremo Tribunal Federal (Órgão Público)

STJ

Supremo Tribunal de Justiça (Órgão Público)

MPF

Ministério Público Federal (Órgão Público)

TRF

Tribunal Regional Federal da 1ª Região (Órgão Público)

PF

Polícia Federal (Órgão Público)

DPF

Departamento de Polícia Federal (Órgão Público)

CCPY

Comissão Pró-Yanomami (Organização-Não-Governamental)

12

CPP

Código de Processo Penal (Fonte Documental)

CP

Código Penal (Fonte Documental)

CF

Constituição Federal (Fonte Documental)

13

Sumário

1. Introdução ...............................................................................................15

2. Capítulo I ................................................................................................18

3. Capítulo II .............................................................................................39

4. Capítulo III ...........................................................................................55

5. Capítulo IV ..........................................................................................89

6. Capítulo V ...........................................................................................120

7. Conclusão ............................................................................................147

8. Anexo ................................................................................................. 143

9. Bibliografia ..........................................................................................179

14

Introdução

O antropólogo sul africano Max Gluckman, num estudo do processo judicial nos tribunais Barotse, argumenta que: “every [judicial] case is in a sense unique. How is a unique case to be settled?” (GLUCKMAN, 1967, :203). A partir daí Gluckman se preocupa em dar conta de como os mais diversos casos levados aos juízes Barotse são sedimentados, tendo como norte não só a jurisprudência e leis gerais dessa sociedade, mas o pano de fundo moral que alicerça tais contendas. É exatamente tal settlement ou ‘sedimentação’ de um caso específico que pretendo analisar na presente dissertação de mestrado, tendo como objeto primeiro os documentos que compõem o Processo Judicial originado da chamada Chacina ou Massacre de Haximu, ocasião em que um grupo de garimpeiros brasileiros matou cerca de duas dezenas de índios Yanomami, fato ocorrido na fronteira do Brasil com a Venezuela no fim do ano de 1993. Penso que o movimento feito pelos especialistas do Direito, de se partir, inicialmente, de um acontecimento único e, depois de uma apurada discussão e análise, poder se classificar esse acontecido a partir de um código legal previamente estabelecido, erigindo condutas e punições, não se dá de maneira mecânica ou sem conflitos. Por outro lado, nem tampouco estabelece uma hierarquia entre leis gerais que pretensamente abarcariam situações específicas. Tal procedimento depende, ao menos no que tange ao Direito dito Ocidental (e, num grau menor, também entre os Barotse estudados por Gluckman) de um cuidadoso e gradual trabalho de construção e análise de provas, da escolha e exposição de outros casos tidos como similares, de capacidades e modos diferentes de argüição e, enfim, de técnicas diferentes de um complexo sistema de resolução de conflitos que tem como norte um arcabouço científico ou positivo. No que tange aos Estados Nacionais, tal trabalho é quase sempre levado a cabo por uma série de ‘castas’ de indivíduos altamente especializadas, que monopoliza (ou, para ser mais preciso, visa monopolizar) praticamente todas as ações que podem ser pensadas, de modo geral, como passíveis de serem judicialmente tratadas1. 1

Com exceção dos chamados Tribunais Especiais ou Tribunais de Pequenas Causas, onde a presença de um advogado formalmente constituído não se faz necessária, praticamente todas as ações judiciais no Brasil demandam a representação de um especialista desse tipo. Para uma análise comparativa entre os

15

Nesse texto, Gluckman analisa uma disputa específica entre parentes que visavam definir quem teria ou não direito sobre uma determinada parcela de campos cultiváveis. O autor argumenta que “this case involved more than the question ‘who had the right to cultivate the disputated gardens’”. (idem, :75). Com isso, os julgadores barotse tiveram que levar em consideração mais do que a regra ‘dura’ e geral que dizia que aqueles que não residiam em determinado condado não teriam direito à produção agrícola dos campos aí situados. A tal procedimento analítico, que visa dar conta daquilo que não está, num primeiro momento, diretamente ligado ao caso que deve ser julgado (mas que acaba efetivamente compondo-o), Gluckman denomina crossexamination

- e ele próprio argumenta a examinação-cruzada não está, de forma

alguma, ausente nos julgamentos ocorridos nos Tribunais Ingleses então vigentes na África do Sul. Como penso em mostrar à frente, a examinação-cruzada é um expediente de inquirição também amplamente usado no Direito pensado e vivido como brasileiro. É preciso lembrar que o Processo aqui em foco guarda uma peculiaridade: ao que tudo indica, foi nele que, pela primeira vez, condenou-se alguém no Brasil por Genocídio. Tal Genocídio é, por sua vez, também especial: as vítimas não são simplesmente minorias sociais, religiosas ou raciais. Os Yanomami, na verdade, são todas essas coisas juntas, encapsulados pelo termo ‘étnico’ ou ‘indígena’. Esses são, portanto, os pontos principais que pretendo esclarecer nas páginas que se seguem: primeiramente, foco minha atenção na maneira como o Processo Haximu se ‘sedimenta’, tendo como base, principalmente, a evolução dos depoimentos inquisitoriais e judiciais que o compõem – e, por outro lado, como tais depoimentos são apropriados pelos diversos especialistas no Direito que tomam parte no caso. Ao mesmo tempo, tento também mapear de que maneira um certo ‘de fora’ do Direito, um certo conjunto de características que, a priori, podem ser pensadas como não propriamente constitutivas de um caso judicial, vão sendo gradualmente incorporadas aos argumentos daqueles que estão envolvidos nessa disputa. Para tanto, tenho como base principal os textos produzidos pelos defensores legais tanto de garimpeiros como dos sobreviventes de Haximu – e, é claro, de que maneira tais textos se interpelam mutuamente. Esses dois pontos, como se pode notar, estão sensivelmente intricados e são caudatários da idéia de que o acontecido em Haximu não foi propriamente um assassinato em massa ou um massacre, mas sim um Crime de Genocídio étnico. Tribunais de Pequenas Causas brasileiros, canadenses e estadunidenses, cf. CARDOSO DE OLIVEIRA, 2001.

16

Por fim, o próximo capítulo é uma análise das notas de campo que escrevi durante a tentativa de conseguir uma fotocópia do Processo Haximu. No segundo, tento contextualizar minimamente toda essa massa documental. Já os três últimos capítulos, dedico à análise do Processo em si. Na Conclusão, tento ajuntar mais coerentemente as digressões de todo o texto, além de esboçar possíveis desdobramentos do presente trabalho.

17

Capítulo I: O processo para ter acesso ao Processo Haximu

Esclareço aqui como fiquei sabendo da existência do Caso Haximu, de que maneira acabei me interessando por analisá-lo e como consegui ter acesso a tal massa documental. Logo após minha graduação em História na Universidade de Brasília, durante o primeiro semestre do ano de 2003, fiz um curso como aluno especial no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do PPGAS/UnB, intitulado Estudos Etnológicos de Problemas Sociais – Antropologia da Conquista. Durante as aulas de Alcida Rita Ramos e Nádia Farage no PPGAS/UnB, fiquei sabendo, por relato de Alcida, de um caso judicial que seria a primeira condenação por Genocídio da Justiça Brasileira. Entre outros casos relatados, como o de garimpeiros que jogavam de avião roupas contaminadas de doentes hospitalares em aldeias indígenas para dizimar populações inteiras de índios, o caso da aldeia Yanomami de Haximu se destacava porque parte dos acusados havia sido presa pela Polícia Federal e condenada nos tribunais nacionais. Tais condenados eram garimpeiros que atuavam na fronteira do Brasil com a Venezuela e que haviam dizimado cerca de duas dezenas de índios Yanomami, entre crianças, mulheres, idosos e homens adultos. Em outubro de 1993 instaurou-se, depois das investigações da Polícia Federal de Roraima, um Processo Criminal iniciado por Denúncia do Ministério Público Federal (MPF), o que deu origem, oficialmente, ao que venho chamando aqui de Caso Haximu designação comum do próprio Processo para se referir ao evento da morte dos índios Yanomami. No segundo semestre de 2003, tive contato com uma publicação da Comissão Pró-Yanomami (CCPY2 - Organização-Não-Governamental que participou diretamente do Processo aqui em foco, sendo a primeira a atender os índios sobreviventes em seu Posto de Saúde) sobre o Genocídio relatado por Alcida Rita Ramos. O texto trazia uma pequena parcela dos Autos, mais precisamente a decisão da 5ª turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Devo esse contato preliminar com o Processo a Henyo Trindade Barreto, que no segundo semestre de 2003 ofereceu a disciplina Antropologia Aplicada no PPGAS/UnB, da qual pude participar, novamente, 2 Não tenho as referências da publicação em questão, mas os documentos podem ser igualmente acessados atualmente (2006) através da página eletrônica da CCPY: http://www.proyanomami.org.br/.

18

como aluno especial. Apresentei à turma os documentos disponibilizados pela CCPY durante um dos encontros da referida disciplina. Henyo também foi o responsável por me indicar onde achar novamente tal documentação, anos mais tarde (cf nota 1, acima). Já como aluno regular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ), decidi analisar tal fonte documental como objeto de minha dissertação de mestrado. Vários foram os fatores que me levaram a retomar o Caso Haximu: primeiramente, inúmeras discussões e textos lidos nos cursos que participei no PPGAS/MN/UFRJ fizeram-me criar gosto e me aproximar cada vez mais do que chamo genericamente aqui de uma etnografia dos arquivos judiciais. Inicialmente, meu intuito era trabalhar com as confissões tomadas pela Inquisição Portuguesa na América no final do século XVI, com foco principal nas chamadas heresias indígenas. Contudo, além de ser praticamente impossível ter contato com tal documentação em sua plenitude (os originais se encontram na Biblioteca da Torre do Tombo, em Portugal), as discussões e leituras da qual vinha participando acabavam por me sintonizar mais com o Caso dos Yanomami de Haximu do que com as Confissões colhidas pelos primeiros Inquisidores Portugueses na América. É importante frisar que as discussões e leituras não se restringiram às disciplinas oficiais do PPGAS/MN/UFRJ: grande parte da inspiração (e também das próprias possibilidades efetivas de pesquisa) para se trabalhar com o Processo aqui em foco nasceu dos encontros organizados por Antonio Carlos de Souza Lima e Adriana Vianna entre alguns pesquisadores do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED, da qual eu mesmo fazia parte) e alunos do PPGAS/MN/UFRJ. Assim, alguns meses depois de cursar a disciplina Legalidades e Moralidades, oferecida por Adriana Vianna nessa última instituição durante a segunda metade do ano de 2005, decidi que o Processo Haximu seria meu objeto de estudo e, a partir de então, passei a tentar ter acesso aos Autos na íntegra. A documentação da CCPY trazia a introdução de Luciano Mariz Maia, um dos Procuradores da República que produziu a referida Denúncia, dando, como visto, origem ao Processo. Através da página eletrônica de pesquisa Google3 consegui o endereço de correio-eletrônico de Maia e lhe mandei uma mensagem na qual me identificava como um pesquisador do Museu Nacional que estava procurando ter acesso 3

http://www.google.com.br. Os acesso aconteceram durante o 1º semestre do ano de 2006.

19

à completude dos Autos do Caso Haximu. Maia me informou que não era mais responsável pelo Processo e me passou o contato de Aurélio Rios, Subprocurador Geral da República que, segundo Luciano, poderia me dar maiores informações sobre o Caso Haximu. Rios também já não estava mais responsável pelo Processo, encaminhando, por sua vez, meu pedido à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (6ª Câmara/MPF) - que é o órgão idealmente responsável por tratar judicialmente todos os episódios envolvendo “Índios e Minorias”, como a placa na porta de entrada da 6ª Câmara em Brasília deixa claro. Além da indicação de Aurélio Rios, devo o contato com o pessoal da 6ª Câmara, principalmente com sua então Coordenadora, a Doutora Déborah Duprat, às possibilidades de pesquisa que o trabalho no LACED me proporcionou. Meu primeiro contato com a Coordenadora da 6ª Câmara foi durante o Seminário Interamericano sobre o Pluralismo Jurídico e Povos Indígenas, realizado em Brasília entre os dias 30-11 a 02-12 de 2005 – e do qual eu então participava

como

representante

do

Projeto

Trilhas

do

Conhecimento,

de

4

responsabilidade do LACED . Uma das organizadoras do referido evento era a Doutora Duprat, juntamente com Rita Segato, docente do PPGAS/UnB. Nesse momento ainda não havia me decido por completo se estudaria mesmo o Caso Haximu e não tracei, assim, nenhum contato especial com a Coordenadora da 6ª Câmara. Tive, ainda, uma segunda oportunidade de me apresentar pessoalmente à Procuradora: ela era palestrante na 25ª Reunião Brasileira de Antropologia (25ª RBA), ocorrida em Goiânia no ano de 2006. Novamente não me foi possível tecer maiores contatos com a Coordenadora da 6ª Câmara, mas Adriana Vianna, que também participava da RBA e sabia de meus interesses de pesquisa, se apresentou à Procuradora, conseguindo, por fim, apresentar meu tema de pesquisa a ela, que prontamente disponibilizou-se a me ajudar. Entre mensagens eletrônicas e telefonemas, já se passavam três meses (abril a junho de 2006) que tentava ter acesso aos Autos, sem conseguir qualquer avanço além dos já citados documentos compilados pela CCPY. Resolvi então viajar à Brasília pela primeira vez, mesmo sem conseguir combinar nada previamente para ter acesso a tal massa documental. O Processo se encontrava no Supremo Tribunal Federal (STF), mas decidi ligar primeiro na 6ª Câmara, pois a Doutora Déborah Duprat era a única pessoa 4

O Projeto Trilhas do Conhecimento — O Ensino Superior de Indígenas no Brasil visa incentivar a inserção de indígenas no Ensino Superior brasileiro através do fomento à implantação de núcleos universitários modelares e da realização de seminários, pesquisas e publicações voltados ao Ensino Superior Indígena.

20

que havia, até então, se disponibilizado explicitamente a me ajudar. Resolvi ir pessoalmente à 6ª Câmara, onde prontamente tive acesso a cerca de quinhentas páginas das mais de duas mil que compõem o Caso Haximu. Tal acervo documental faz parte de um arquivo que esse Órgão mantém sobre os processos em que seus procuradores atuam – e devo meu acesso a ele aos contatos que mantive com a Doutora Déborah Duprat. Não há aí a cópia da íntegra dos Autos, porém me foi possível acessar os textos com as principais decisões judiciais sobre o Caso – a Sentença de Primeira Instância, alguns Laudos Periciais e Recursos a Tribunais Superiores, entre outros. Ficavam faltando, ainda, os depoimentos (nos Tribunais e aos Policiais Federais) de acusados e testemunhas, além de documentos em que eu pudesse ter contato maior com os argumentos dos defensores dos garimpeiros – papéis que, logicamente, faltavam tanto na compilação da CCPY quanto na do MPF. Desconfio que é praticamente impossível conseguir acessar qualquer documento nos moldes do Processo Haximu (um caso judicial de grande repercussão, ao menos na época em que foi noticiado e, até então, ainda não julgado definitivamente) tendo como contato preliminar apenas mensagens eletrônicas a funcionários desconhecidos. Enquanto tentava, do Rio de Janeiro, firmar laços mais estreitos e obter maiores informações sobre os Autos por essa via, a fim de chegar à Brasília com as coisas mais acertadas, não consegui nada além de novos endereços de correio-eletrônicos e reticentes informações. É altamente improvável que um outsider consiga, de antemão e sem qualquer tipo de intermediação, um contato privilegiado com os escalões superiores de instituições como o MPF. De todo modo, as coisas só começaram a mudar quando apareci pessoalmente nos lugares onde antes apenas me correspondia por mensagens de correio eletrônico ou telefone. Essa última tecnologia de comunicação, apesar de mais antiga, foi-me muito mais útil para acessar informações que me levariam a conseguir uma cópia da íntegra do Processo. É impossível ignorar um desconhecido do outro lado da linha da mesma maneira que se ignora uma mensagem de correio eletrônico de uma pessoa que conserva esse mesmo status – ainda mais quando o desconhecido passa a ligar diariamente, pedindo informações sempre ao mesmo funcionário. Porém, no que tange a respostas evasivas, o telefone não é tão superior ao correio eletrônico.

21

Eu já sabia, por intermédio de um funcionário da 6ª Câmara, que o Recurso Extraordinário5 impetrado pelos advogados dos garimpeiros ao Superior Tribunal Federal (STF) seria julgado em breve. Mesmo ligando ao menos uma vez por dia ao STF, acabei perdendo a data do julgamento e só fiquei sabendo do acontecido um dia depois, por mensagem eletrônica repassada por uma amiga antropóloga que sabia de meus interesses de pesquisa. Adianto aqui que consegui toda a documentação do Caso Haximu que havia na 6ª Câmara antes de conversar pessoalmente com a Coordenadora dessa repartição pública – mas, é claro, usando reiteradamente seu nome, pois, como já dito, ela havia se disponibilizado previamente a me ajudar a conseguir ler os Autos, e sempre usei tal argumento com os funcionários que me atendiam nas visitas que fazia à 6ª Câmara. A Doutora Déborah Duprat se dispôs, por fim, a mediar pessoalmente meu acesso ao Processo – e realmente ela conseguiu que uma cópia dos Autos fosse encaminhada à 6ª Câmara, só que dias depois que eu já havia conseguido fotocopiá-los integralmente no STF. Na segunda ida à Brasília, foquei minha atenção mais no STF (local onde realmente os Autos estavam) do que na 6ª Câmara (para onde a Doutora Duprat havia se comprometido em trazê-los). Minha esperança era que, depois de julgado, fosse mais fácil conseguir ter acesso ao Processo na íntegra. Em termos estritamente legais, seria possível olhar os Autos do Caso Haximu a qualquer momento, pois os mesmos não corriam em Segredo de Justiça, sendo, portanto, um Processo Criminal em que a publicidade é legalmente garantida. De todo modo, passei a última quinzena do mês de agosto de 2006 ligando diariamente ao STF e indo pessoalmente ao Tribunal pelo menos três vezes por semana. Cito aqui algumas repartições para as quais liguei ou passei, sem nada conseguir: Seção de Informações Processuais, Seção de Controle de Acórdãos, Protocolo Judicial, Protocolo Administrativo (a confusão entre esses dois Protocolos me fez pedir informações judiciais onde eu só poderia obter notícias do corpo administrativo do STF), Gabinete do Ministro Cesar Peluso, entre outros. Contudo, só pude efetivamente fotocopiar os Autos quando os mesmos estavam na Seção de Xerox do Tribunal. Como na 6ª Câmara, o STF também guarda uma cópia dos processos que se mostram mais importantes, como me informou o operador da

5

Esse tipo de Recurso é feito somente ao Supremo Tribunal Federal e precisa envolver algum possível desrespeito à Constituição Federal. Discutirei mais detidamente essa questão à frente.

22

fotocopiadora. No Caso Haximu, houve um Ácordão do Plenário6 desse Tribunal em que se definiu de quem seria a competência específica para julgar o Crime de Genocídio, provável motivo do arquivamento de uma cópia dos Autos nesse Tribunal. É necessário aqui um breve parênteses: em conversas informais com operadores do direito e funcionários de diversas repartições, descobri que tais decisões do Supremo são objeto constante de provas de concursos públicos para procuradores, juizes e analistas judiciais, entre outros cargos, formando, assim, um corpus de conhecimento acumulado que os juristas batizam de Jurisprudência. O conhecimento de tal Jurisprudência serve, entre outras coisas, para medir o grau de atualização que determinado estudioso do Direito possui frente a um sistema de códigos legais em constante desenvolvimento. Nessa segunda ida à Brasília, havia falado por telefone e, mais tarde, pessoalmente com um funcionário da Seção de Recursos Extraordinários da Segunda Turma, que me disse o dia em que seriam feitas as cópias para o arquivo do STF. Combinei então de visitar a referida Seção exatamente nesse dia – 23-08-2006. Este funcionário pediu que um estagiário seu me acompanhasse até a sala da Seção de Xerox, onde pude requerer uma cópia das 2.304 páginas que compõe o Processo, incluindo aí nove volumes e quatro apensos. Como me informou um outro funcionário, ainda na Seção de Xerox, os apensos são compostos, basicamente, de documentos que não tocam o Mérito Principal do caso, como alguns pedidos de liberdade provisória, recortes de jornal e, no presente caso, até mesmo uma fita de vídeo de uma excursão da Polícia Federal à aldeia de Haximu – vídeo que, até o presente momento, não me foi possível ter acesso. Os outros volumes, por conseqüência, tratam do Mérito em si – o que, de maneira geral, pode ser resumido aos documentos que se referem, primeiramente, ao julgamento dos acusados e, num segundo momento, à competência, no Judiciário Brasileiro, para o julgamento do Crime de Genocídio.

II. O papel dos papéis.

6

Acórdão é a decisão de um colegiado de julgadores sobre determinado caso – ele faz par com a Sentença, que é a decisão de um único juiz. Plenário é a reunião dos juízes ou ministros que compõe as várias Turmas de um tribunal.

23

As situações com as quais um pesquisador tem que lidar para conseguir certos documentos – e, é claro, aquilo que ‘orbita’ em torno deles - são também parte efetiva do trabalho de pesquisa de tais fontes. Assim, esforço-me aqui em traçar o esboço de uma análise sociológica da empreitada narrada acima. Enfatizo o termo “certos documentos” pois, por exemplo, tive acesso fácil a determinados laudos antropológicos de outros casos judiciais envolvendo indígenas, tendo apenas que combinar um horário, por mensagem eletrônica, para buscar as cópias. Em outras ocasiões, como na leitura dos códigos legais citados no Processo, simplesmente acessei a página eletrônica de determinada organização internacional ou repartição pública para conseguir, na íntegra e com comentários, a documentação em questão. Porém, como visto, a cópia da íntegra dos autos do Caso Haximu envolveu contatos, negociações e tensões que merecem um estudo mais detido. Primeiramente, vale voltar a um termo que usei sem maiores ressalvas acima: o funcionário desconhecido. Na verdade, quem é realmente desconhecido, um outsider alheio à rotina comum de um tribunal qualquer, é o antropólogo que tenta acessar tais documentos. Nas primeiras ligações que fiz ao Gabinete do Ministro Cesar Peluso, Relator7 do Caso Haximu no STF, os funcionários sempre estranhavam meu interesse em tentar acessar os Autos. A primeira pergunta que me faziam era: “o senhor é interessado?”. Demorei algum tempo para responder corretamente essa questão, pois por “interessado” deve-se entender aqueles que acusam e os que são acusados num processo qualquer, também denominados genericamente por Requerido(s) (os que são alvo da ação judicial, no caso os garimpeiros) e Requerente(s) (os autores da ação, no caso o MPF, representantes legais dos indígenas de Haximu). Tais pessoas têm acesso privilegiado aos autos justamente porque são elas que, em termos nativos, deram-lhes origem, alimentam-no e é sobre o destino delas que o processo versará. Assim, eu tinha, sem dúvida, interesse no Caso Haximu, mas ele divergia sobremaneira dos que, na linguagem judicial, são “os interessados”. Conversando principalmente com analistas e técnicos judiciais, que são as pessoas que atendem primeiramente qualquer um que chegue buscando informações num tribunal, tento compreender melhor parte da tensão envolvida em ter acesso a um processo.

7

Membro de um colegiado de julgadores que é responsável por fazer a leitura mais detida de um processo, escrevendo um Relatório sobre o caso, apresentado, mais tarde ao colegiado como um todo.

24

Vale aqui um novo parênteses: a diferença fundamental entre um técnico e um analista é que o primeiro ganha um salário menor e presta um concurso público de nível médio para ser funcionário num tribunal, enquanto o último tem um ordenado sensivelmente maior e, por título, necessita do diploma de bacharel em Direito para assumir o cargo. No que tange ao trabalho feito, contudo, ambos parecem exercer funções similares: atendem aqueles que chegam pedindo informações sobre os processos em andamento, revisam os textos das Sentenças, Votos ou Relatórios dos juizes, quando não são eles mesmos que escrevem tais documentos. Cheguei a conhecer um técnico que ganhava mais que um analista pois o juiz responsável reservou uma Função Comissionada (abono salarial considerável) ao primeiro em detrimento do último. Tal técnico judicial, quando me atendeu, escrevia o Voto8 do juiz num caso a ser julgado em breve. Algumas visitas depois, ele me esclareceu que esse é um expediente comum entre os que ganham a tal Função. Assim, apesar de ocupar um cargo de nível médio, ou seja, sem possuir o diploma de bacharel em Direito, tal funcionário redigia documentos que, após uma rápida passagem de olhos, seriam assinados pelo juiz responsável - segundo o relato do próprio técnico, é claro. Voltando ao caso aqui em foco, depois de alguma insistência, conseguir falar, por telefone, com a Chefe de Gabinete do Ministro Peluso – todos os outros funcionários foram reticentes em dizer se eu poderia ou não fotocopiar o processo. Ela me informou que seria preciso uma carta escrita por minha orientadora, timbrada pelo Museu Nacional e mandada, com registro dos Correios, ao Gabinete do Ministro. Depois de avaliar tal carta, a Chefe de Gabinete autorizaria ou não meu acesso ao Processo. Dias depois, a Doutora Déborah Duprat, Coordenadora da 6ª Câmara, informou-me que esse expediente é comum e necessário, e que a referida carta poderia, inclusive, ser anexada ao Processo – o que, segundo ela, mostraria que “o pessoal do Museu Nacional está interessado no caso”. De todo modo, a carta à 6ª Câmara foi mandada, mas, antes de enviá-la também ao Gabinete de Peluso, consegui, como já dito, fotocopiar os Autos na Seção de Xerox do STF. Todo esse cuidado com quem pode ou não folhear um processo (principalmente se ele ainda não foi arquivado) se deve, entre outros fatores, a um motivo relativamente simples: há sempre o perigo de tais documentos serem destruídos, roubados ou 8

O Voto é um parecer apresentado por um julgador frente a um colegiado de julgadores, demonstrando qual a posição desse magistrado específico sobre o caso em questão. Cada julgador, inclusive o Relator, apresenta um Voto.

25

adulterados, principalmente pelos Interessados. São comuns as anedotas entre técnicos e analistas, que contam casos de advogados que literalmente comeram as folhas dos autos para sumir com alguma evidência ou documento. Num caso menos dramático, um técnico judicial me narrou a seguinte história: um advogado havia entregue um documento a ele “em branco”, ou seja, não devidamente assinado. O funcionário só notou isso depois, juntando outro documento ao primeiro que dizia que este último não tinha efeito, já que não assinado pelo advogado. O advogado, dias depois, voltou ao Tribunal em questão e, sem que o funcionário visse, sumiu com o segundo documento produzido pelo técnico judicial e assinou o documento que ele mesmo havia esquecido de assinar dias antes. O problema é que o advogado não poderia simplesmente ter assinado o documento mais tarde, pois o prazo para o pedido que ele fazia já havia se esgotado nesse interregno. A partir de tal acontecido, o técnico guarda agora uma cópia de tudo que ele faz num processo em sua gaveta pessoal de trabalho, e toma especial cuidado com as visitas de todos que querem olhar os autos. Tanto técnicos como analistas dizem que o ideal é que sempre exista um funcionário vigiando qualquer um que folheie qualquer processo. Assim sendo, nunca se permite que alguém tenha acesso a tais documentos fora do balcão de atendimento, o que faz com que seja necessário um pedido oficial para retirar os autos, ainda que seja para uma simples fotocópia. Por outro lado, é igualmente impossível que se consiga ler quase duas mil e quinhentas páginas de pé, apoiado apenas em um balcão. Como se pode notar, há, nesse contexto, uma forte valorização da documentação escrita. Como deixarei mais claro quando estiver analisando os depoimentos dos envolvidos no Processo, tudo o que é dito, pedido ou oficialmente requerido numa disputa judicial precisa constar em documentos escritos nos autos. Ressalvo, contudo, que tais documentos não dão conta, exclusivamente, de tudo que acontece num processo. É claro que existem comentários em testemunhos judiciais que são suprimidos e não aparecem na versão escrita, há discussões nos tribunais entre juízes e representantes das partes que não são anotadas por escrito – enfim, existe todo um ‘silêncio’ dos documentos que é central numa disputa qualquer mas que não é, contudo, incorporado aos autos. Não me foi possível acompanhar tal faceta no Processo aqui em foco e, como já dito, centro-me apenas na versão condensada em documentos dessa contenda judicial

26

Nesse sentido, cabe dar maior atenção ao papel dos papéis num processo judicial. Jack Goody, numa análise focada na apropriação da escrita por diversos grupos humanos, mais particularmente pelo Ocidente (GOODY, 1986), chama atenção para o fato de que a escrita não é apenas uma nova técnica de comunicação. Para o autor, a escrita muda também a natureza das interações sociais, uma vez que altera as próprias possibilidades de comunicação. É, portanto, uma nova forma de sociabilidade, diferente da forma oral, com outras propriedades e características gerais: The uses of writing affected not only the forms of interaction but also helped to change the nature of its rules, substituting the variable utterance for the fixed text (Goody, 1986:99). Esclarecendo melhor tal ponto, o argumento geral de Goody é de que a introdução da escrita, tanto no campo do Direito quanto no da religião, por exemplo, pode dar margem a um maior e mais eficaz controle social sobre os indivíduos, tanto entre os crentes quanto entre os operadores judiciais. Contudo, para o autor, a escrita pode ser usada tanto para estabilizar quanto para desestabilizar uma instituição ou organização social qualquer: “writing gets used not only to promote government and participation in government but to attack the existing regime, by mass communication where the democratic system permits, by samizdat where it does not” (Goody, 1986, :121). Segue-se, numa nota (Goody, 1986:191, nota 13 do capítulo 3), um breve comentário sobre a Revolta dos Malês no Brasil e como ela foi potencializada, em sua organização, pelo fato dos revoltosos poderem se comunicar por uma linguagem escrita que era desconhecida pelos senhores de escravo. Porém, como já dito, o norte do autor é mostrar como, por exemplo, uma ordem escrita – como um Mandado de Prisão – é mais exata, individualizada e direta que uma ordem oral, atando mais eficazmente o mandatário à própria ordem. É exatamente tal faceta coerciva da escrita que explorarei nas páginas que se seguem. Voltando ao Caso Haximu, a desconfiança constante com os processos ainda em andamento é, penso eu, um dos motivos do pedido de uma carta de apresentação institucional pela Chefe de Gabinete de Peluso. A carta me situaria, diria oficialmente de onde eu vinha e porque queria ler os Autos – podendo ser mesmo ajuntada ao processo, como sugeriu a Doutora Déborah Duprat. Eu deixaria de ser, assim, um simples curioso ou uma potencial ameaça. Estaria filiado a uma instituição maior e, caso 27

algo acontecesse ao Processo, seria possível saber mais tarde de quem cobrar e onde me achar. Contudo, todos esses esclarecimentos eu já havia feito verbalmente em várias repartições do próprio STF, explicando que eu era um pesquisador em antropologia interessado no Caso Haximu, apresentando, inclusive, documentos que comprovavam tal identidade. Não consegui, porém, ler uma página dos Autos nessas ocasiões, nem mesmo no balcão do STF. O que vale a pena notar é que tal identificação teria que ser feita por escrito e com a assinatura de algum responsável superior – no caso, minha orientadora, funcionária de uma outra instituição pública, o PPGAS do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não bastava dizer quem eu era: era preciso atestar isso por escrito, numa mídia que pudesse ser impressa e arquivada nos Autos9. Há aqui um paralelo entre tal carta e o documento que o advogado esqueceu de assinar: certos papéis que se encontram num processo não são meros papéis; eles são produzidos por detentores de uma autoridade específica que os fazem adquirir um poder especial – inclusive o de transferir o poder de representar legalmente os Interessados, como na situação em que um advogado delega, por Procuração, poderes ao colega de profissão que reside em outro estado e que tem melhores condições de conseguir atuar num caso determinado. Jack Goody, no trabalho já citado, argumenta que o ato de assinar um documento pode ser visto como “a substitute for the person [...]. But it is not only a card of identity, as individual as the print of the finger or the hand, but also an assertion of truth or of consent” (Goody, 1986:152). Nesse sentido, a assinatura não é somente garantidora da individualidade das pessoas, mas o próprio signo da veracidade dos documentos, uma espécie de atestado de autoria e reconhecimento de poder. É preciso lembrar, contudo, que tais poderes representados nos documentos são dependentes de uma complexa série de intervenções autorizadas e autorizadoras – que, no caso do advogado, girava em torno da sua própria condição de bacharel em Direito inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil10, da assinatura do documento, da entrega

9

Jack Goody, em estudo já citado, faz o seguinte comentário sobre os casamentos na América espanhola: “All unwritten marriages are consequently defined as common-law unions or as some form of concubinage. Under such a system, “Are you married?” means “Have you got written proof of having spoken certain written formulae?”” (: 158). Assim, não basta apenas dizer que se é casado: é preciso ter a prova escrita de tal casamento. 10

Ana Lúcia Lobato de Azevedo (AZEVEDO, 1998), na análise da contenda judicial de um grupo Potiguara frente à ação de fazendeiros locais, nota que o depoimento de uma testemunha dos últimos foi “redigido diretamente pelo depoente, em deferência do juízo por se tratar de bacharel em direito” (Idem, :156, apud próprio depoimento). Em nenhuma passagem do Processo Haximu há algo parecido, mas o

28

do mesmo no prazo correto, entre outros artifícios. Contudo, volto a tal tema mais detidamente nos próximos capítulos dessa dissertação, deixando claro, de antemão, que não fiz uma etnografia exaustiva de tal conjunto de ingerências que garante a especialidade de certos documentos. Os relatos que apresentei até aqui e os que se seguirão são, como já dito, apenas uma breve tentativa de enxergar uma sociológica nas esparsas situações que tive contato enquanto tentava acessar uma peça judicial específica. Há de se notar também que todas as dificuldades para se ter acesso a tais documentos pareceram se desmontar quando consegui ler os Autos pela primeira vez. Depois de ter feito as fotocópias no STF, seria possível ler o Processo mais confortavelmente na Seção de Recursos Extraordinários da Segunda Turma, como fui informado em outras ligações que fiz após conseguir a íntegra do Processo. Como visto, poderia também tê-lo lido no Gabinete da Coordenadora da 6ª Câmara – tudo isso depois de já ter as fotocópias em mãos. De todo modo, não é que os empecilhos que narrei até aqui simplesmente tinham deixado de existir depois que consegui uma fotocópia dos Autos: é que eles não operavam mais da mesma maneira para quem havia se tornado relativamente conhecido. Isso não quer dizer que a exibição de tais dificuldades para os desconhecidos seja apenas mera retórica sem sentido ou simples encenação. A apresentação, num primeiro momento, de uma regra rígida e impessoal para se ler o Processo parece ajudar a filtrar quem realmente está disposto a se esforçar em cumpri-las – ainda que, mais tarde, essas regras parem de operar e seja possível acessar o Processo com maior liberdade. Assim, tal acesso ao Processo não é problemático apenas porque se tem medo de perder os importantes papéis que o compõem. Há também um jogo de quem se conhece, de quem é visto e se deixa ver, enfim, de quem consegue se inserir um pouco no cotidiano de uma repartição pública e passa a ser visto, gradualmente, como menos estranheza. Ou, por outro lado, de quem tem indicação de um funcionário superior com ordens explícitas para que se deixe um terceiro ler tais documentos, como no caso das intervenções feitas a meu favor pela Doutora Déborah Duprat. Sobre o Processo em si, é interessante notar, primeiramente, que pelo simples fato de um papel constar nos Autos, ele ganha, no mínimo, uma numeração única, um exemplo pode servir para melhor matizar o poder dos especialistas no Direito, mesmo quando eles não são os representantes diretos das nenhuma das partes numa contenda judicial.

29

carimbo específico com a data em que foi ajuntado e entra numa ordem cronológica de arquivamento junto com uma série de outros documentos11. O novato funcionário da Seção de Xerox do STF que me atendeu disse que alguns advogados que lá pediram fotocópias de processos reclamaram que faltavam páginas no serviço feito por ele. Contudo, o funcionário esclareceu que deixava apenas de fotocopiar páginas totalmente em branco - o que comprometia, é claro, a contagem total das folhas dos autos. A partir de então, o operador da fotocopiadora passou a fazer cópias de tudo nos processos, inclusive dos versos dos documentos. Tive que fazer um pedido especial para que ele não fotocopiasse tais páginas no serviço que fazia para mim. Esse ponto merece uma atenção maior: há carimbos específicos no verso de tais folhas (ou nas folhas em branco) onde se lê, em letras garrafais, apenas expressões como “FACE EM BRANCO” ou “EM BRANCO”. Há aí o pressuposto de que aquilo que consta nessas páginas tem uma força tal que alguém mal intencionado poderia abusar desse poder, escrevendo nos versos dos documentos ou nas folhas em branco algo que deturpasse seu sentido original. Assim, como bem nota Jack Goody, o que prova ou não a existência judicial de algo não é a palavra empenhada (como o condenado Zande tem a boca amordaçada para não amaldiçoar aqueles que proferem a sentença) mas sim a palavra escrita (o condenado ou os interessados assinam um documento para dar ciência do que foi decidido) (GOODY, 1986, :151). Contudo, o autor ressalta que a escrito não ‘engessa’ ou torna as mudanças impossíveis no aparato judicial pelo simples fato da criação e arquivamento de uma mídia escrita: The norms of written religions often remain guides to ideal rather than to practical action, for saints rather than for sinners. To translate these general norms into everyday terms often requires a set of oral adjustments, or even written commentaries, which may serve both to interpret and even to change the law (Goody,1986:167). Na tentativa de apenas esboçar melhor a dimensão desse poder conferido aos papéis ajuntados no Processo, relato uma situação narrada como comum por determinado técnico judicial: esse funcionário me disse que certos condenados são 11

Essa ordem perpassa todos os nove volumes do Caso Haximu – a não ser pela Denúncia, primeiro documento dos Autos, mas que é cronologicamente anterior ao Inquérito Policial. Após o Inquérito, todos os documentos seguem uma ordem cronológica direta. Para uma visão melhor do que acabo de descrever, conferir a tabela data/documento das principais peças aqui analisadas, anexada no final da presente dissertação.

30

presos dentro do próprio tribunal, no exato momento em que estão lendo o processo que são Interessados. Ele ressaltou que funcionários experientes, quando pedem a identidade de alguém para que o último possa olhar os autos, conferem se há algum documento no processo que exija a prisão imediata dessa pessoa. Em caso positivo, antes de levar o processo ao balcão, o funcionário liga para a segurança do tribunal e pede que um policial militar (sempre há um por perto, principalmente nas varas criminais, me esclareceu ele) prenda o indivíduo. Assim, o Interessado é levado à cadeia no momento preciso em que lê o documento que o condena. Sobre o Processo Haximu, é interessante notar que a capa de todos os volumes contém a inscrição, em caixa alta e negrito, “RÉU PRESO”12. Ainda sobre a força de certos papéis num processo, há uma conhecida máxima entre os operadores do direito no tocante a tais documentos: “se não está nos autos, não está no mundo”. Max Weber, em sua análise clássica sobre o campo jurídico, chama atenção para que “aquilo que o jurista, com seu acervo conceitual não pode “construir”, não podendo “pensá-lo”, não pode existir juridicamente” (WEBER, 1999, v. II, :32). Como tentarei mostrar a seguir, grande parte da contenda judicial em torno do Crime de Genocídio está relacionada à discussão de como classificar, em termos jurídicos, o que conformaria tal Genocídio. Assim, alguns julgadores entendem que tal Crime atentou, primeiramente, contra o direito individual à vida de cada um dos Yanomami – o que tornaria o Caso julgável apenas pelo Tribunal do Júri. Por outro lado, os Procuradores do MPF constroem o mesmo Genocídio como ameaça, em substância, à vida coletiva dos habitantes de Haximu – e os garimpeiros, nessa versão, não queriam matar apenas um ou dois índios, mas dar cabo de todos os Yanomami da Aldeia. Nessa última situação a competência de julgamento não seria do Júri Popular, mas do Juiz Singular, como analisarei à frente. Assim, é possível dizer que o conflito em questão não é apenas mediado e resolvido pelo judiciário, mas em grande medida também criado dentro do vocabulário e possibilidades do próprio campo do Direito. No mesmo sentido, Pierre Bourdieu, num artigo que visa justamente abordar as possibilidades de uma sociologia de tal campo, argumenta que “le champ juridique est le lieu d’une concorrénce pour le monopole du droit de dire le droit” (BOURDIEU, 1986, :4) - ou seja, as disputas judiciais se pautam, 12 Maiuí Borba, Bacharel em Direito, me esclareceu que tal inscrição serve também para que se dê prioridade na tramitação de processos em que o réu já está preso – e, portanto, já cumprindo uma pena da qual ele poderá ser, mais tarde, inocentado.

31

de antemão, na idéia de que toda demanda entre os disputados deve ser construída, para ter validade, dentro de um arcabouço judicial específico (prazos, assinaturas e um vocabulário especial compõe, entre outras coisas, tal arcabouço). Os demandantes, nesse sentido, são representados por especialistas do Direito que irão ‘traduzir’ suas demandas em termos jurídicos. A disputa, a partir de então, não se dá mais entre dois indivíduos que discordam em determinado ponto, mas sim entre expertos que, como também chama atenção Bourdieu no texto já citado, são “capables de mobiliser les resources juridiques disponibles par l’exploration et l’explotation des “regles possibles” et de les utiliser efficacement, c’est-à-dire comme des armes symboliques, pour faire triompher leur cause” (Idem, :8).

III. Sociabilidades distintas e complementares Detenho-me aqui nos tipos de interação que tracei para conseguir acesso ao Processo. Como já argumentei, penso ser bastante improvável que se tenha contato com qualquer documento comparável aos autos Haximu (um caso judicial de relevância e ainda em andamento) tendo como contato preliminar apenas mensagens de correio eletrônico a funcionários que não me conheciam. Como também já disse, é muito mais difícil evitar um inoportuno pesquisador por telefone do que pela Internet. Graduando melhor tais interações, penso que a o contato face-a-face foi primordial para conseguir fotocopiar na íntegra o objeto primeiro da presente dissertação – e, é claro, também entender parcialmente o contexto em que ele foi produzido. Nas interações exclusivamente por telefone, era comum que me pedissem que ligasse outro dia, pois o funcionário responsável não poderia me atender naquele momento. Não é muito improvável, por outro lado, que se espere minutos a fio a transferência de um telefonema e, no final, a linha caia. O pior é que, quando se liga novamente, segundos depois, não se consegue falar com o funcionário que se falava anteriormente porque ele está, agora, ocupado. É preciso, então, explicar novamente o motivo da ligação e, a partir daí, ter a sorte de falar com alguém que não corte o diálogo rapidamente, dizendo que irá, mais uma vez, transferir a ligação. Contudo, visitando regularmente a repartição onde se encontra o documento, trajando sempre terno-egravata enfeitado com um crachá de visitante, corre-se o bom risco de ser confundido com um advogado ou outro especialista do Direito. A partir daí é mais fácil escutar e, 32

por vezes, até tomar parte em conversas que não estão diretamente relacionadas ao objeto primeiro da visita – como as histórias transcritas na subseção anterior. Quando se passa a conhecer um funcionário pessoalmente (face-a-face), sabendo seu nome, a seção em que trabalha e a função que exerce, conversas por telefone e mensagens de correio eletrônico mudam de tom. Se a pessoa que atende não é exatamente aquela que se conhece, pode-se pedir para que ela chame o outro funcionário sem maiores problemas. Nessa nova interação, raras vezes ocorreu de me dizerem que o funcionário com quem eu gostaria de falar estava ocupado. Além disso, quando eu pedia para falar diretamente com alguém, quase nunca me perguntavam qual era o “meu problema” – a única vez que isso aconteceu com alguém que eu já conhecia pessoalmente foi quando tentei conversar diretamente com a Coordenadora da 6ª Câmara. Assim, eu havia aparecido pessoalmente algumas vezes na Seção de Recursos Extraordinários da 2ª Turma; havia conversado com seu Chefe e vários funcionários que lá trabalhavam sabiam que eu era um antropólogo com interesses de pesquisa no Caso Haximu. Pelas conversas que tive, é provável que nenhum deles desconfiasse que eu pudesse estar interessado em fazer um estudo de tal peça judicial e do que girava em torna dela - ou seja, também deles próprios, ao menos em parte. Penso que, pelo fato do Processo envolver um grupo indígena e eu me identificar como um antropólogo social, tomava-se como certo que eu estava interessado somente nos ‘aspectos indígenas’ do mesmo, por assim dizer. Mais de um funcionário comentou comigo que o acontecido com tais índios era um absurdo e que os brancos não poderiam tratar os silvícolas dessa maneira. Um funcionário mais prestativo, justamente o que me indicou o dia em que os Autos estariam na Seção de Xerox, perguntou porque eu queria fotocopiar o Processo inteiro se eu estava “apenas interessado em estudar os índios”. Esclareci, então, que meu objeto de estudo não era exatamente os índios, mas a resolução, pelo Judiciário Brasileiro, de um determinado conflito entre índios e garimpeiros. Contudo, de maneira geral, tal confusão foi positiva pois, a partir do momento em que se ‘colava’ minha ocupação de pesquisador em Antropologia com a de um estudioso dos Yanomami de Haximu, diminuía visivelmente o incômodo sobre meu interesse no Processo. Nesse sentido, é preciso contextualizar a já citada frase da Coordenadora da 6a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Quando a Doutora Déborah Duprat ressaltou que, a partir do momento que eu mandasse uma carta oficial seria mais fácil mostrar que “o pessoal do Museu Nacional está interessado no caso”, é 33

provável que ela estivesse fazendo uma correlação com outras organizações que aparecem no Processo - como a CCPY, que pedia informações sobre os Autos no intuito explícito conferir se os garimpeiros seriam ou não condenados. A partir do momento que me identifiquei como um mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, penso que, como outros operadores do Direito, a Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão - Índios e Minorias, me viu mais como um etnólogo engajado do que como um pesquisador indevidamente curioso. Antes de passar à análise interna dos Autos, gostaria apenas de esclarecer que não estou argumentando, frente a todos os diversos interessados no processo que relatei acima, que pretendo fazer um estudo neutro, diferente daqueles que não têm uma postura cientifica para analisar tais documentos, como se poderia pensar dos Interessados a que fiz referência acima. Ao contrário: tentei deixar claro nesse primeiro capítulo que, na procura pelo Processo Haximu, eu tinha, é claro, um interesse específico – mas que diferia pontualmente de outras pessoas que também procuravam ler os Autos. Além desse interesse particular, procurei mostrar, nessa última parte, que os responsáveis pelo arquivamento de tais documentos (ou aqueles que têm a possibilidade de franquear o acesso de diferentes pessoas aos autos, mas que muitas vezes não se confundem com os primeiros, a exemplo da Doutora Déborah Duprat) necessitam situar minimamente qualquer um que venha a pedir acesso a determinado processo - e, baseado nessa classificação, dizer se ele pode ou não ter contato com tal massa de documentos. Essa classificação, é claro, nem sempre condiz com os interesses que o classificado realmente tem (ou, no mínimo, pensa ter) e essa espécie de gap ou mal entendido entre funcionários do Judiciário e, no presente caso, um pesquisador em Antropologia Social, foi uma boa porta de entrada para colher pistas em que pude entender melhor o que ‘orbita’ em torno dessa massa documental. Adianto que no próximo capítulo tentarei contextualizar melhor o Caso Haximu, passando, em seguida, à análise dos documentos em si. Contudo, voltarei reiteradamente a determinados temas aqui tratados, a fim de concatená-los melhor com passagens específicas presentes nos documentos que compõe o Caso Haximu.

IV. O Recorte dos documentos

34

Primeiramente, a seleção do material que me detenho se baseia, em grande medida, nos documentos (ou excertos deles) que, durante as leituras que fiz do Processo, foram se repetindo nas argumentações de Advogados, Procuradores, Juízes e outros pensadores ou operados do Direito13. De certo modo, tomo como norte uma seleção nativa, já existente no Processo, ainda que não de maneira explícita. Para dar um exemplo, há vários excertos de depoimentos que irão se repetir constantemente nos Autos, o que faz com que eu me detenha especialmente nesses documentos e nos próprios excertos. É exatamente esse o caso do Relatório do antropólogo Bruce Albert, por exemplo, a ser analisado no capítulo III. Por outro lado, minha idéia de que o Processo se sedimenta, de que é construído, gradualmente, uma espécie de ‘núcleo duro’ que será a base das argumentações tanto de Requeridos como de Requerentes – a percepção desse movimento só foi possível depois de voltar a documentos que até então eu havia dado pouca ou nenhuma atenção. Exemplo disso são os Termos de Declarações dissonantes que analisarei a seguir: eles nunca serão citados posteriormente e, como deixo claro no capítulo III, isso se dá por uma espécie de ‘emolduração’ gradual de alguns temas no Processo. Assim, no que tange ao tipo de documentos que escolhi para embasar a presente análise, eles são exatamente da mesma categoria daqueles que embasaram, por exemplo, a Denúncia dos Procuradores do MPF que dá início ao Processo: Termos de Declarações ou Depoimentos Judiciais, Laudos Periciais e, mais tarde, as Decisões, Acórdãos e Recursos dentro dos diversos Tribunais por onde os Autos estiveram. Isso se dá porque estou particularmente interessado em mapear como, no Processo, se sedimenta determinada idéia sobre o acontecido com os Yanomami de Haximu – e a Denúncia, documento que primeiramente elabora um modelo teórico para isso, foca-se prioritariamente nos Depoimentos Policiais e nos Laudos Periciais. Contudo, deixo claro aqui que essa é uma possibilidade de recorte (e, conseqüentemente, também de análise) específica: no presente estudo, dou pouca ou, por vezes, nenhuma atenção a documentos como os Ofícios e Despachos de Assessores ou Diretores de Secretaria, Pedidos de Vista, Atestados de Recebimento e outros papéis que poderiam ser situados mais próximos da parte técnica do que da científica do Processo14 – e estes compõem boa parte das cerca de duas mil e quinhentas páginas dos Autos. Cheguei a mapear a grande maioria deles(cf. a Tabela Tempo/Documento no 13 14

Trabalharei tal diferenciação entre pensadores e operadores do Direito nos próximos capítulos. Cf. Nota 11.

35

Anexo), porém o fiz mais no intuito de ter alguma noção de quando e por onde passou o Processo, e não propriamente para analisar como se deu esse trâmite. Esclareço que meu recorte não se baseia na pré-noção de que tais documentos seriam meras peças ‘burocráticas’ ou ‘administrativas’ e, portanto, pouco interessantes para a análise. Na verdade, como visto acima, foi a partir de um Pedido de Vista15 de um Diretor de Secretaria, levando o Processo para a Seção de Xerox do STF, que consegui ler toda a documentação que analisarei a seguir. Do mesmo artifício usou a Procuradora Déborah Dubrat para me disponibilizar, alguns dias depois, tais documentos na 6ª Câmara do MPF. Porém, o estudo mais detido desse tipo de documentação seria impossível sem uma empreitada comparativa com outros processos judiciais. Além disso, aquilo que inicialmente me chamou mais atenção no Processo (mesmo antes de consegui-lo na íntegra), não foi exatamente sua tramitação, mas sim a discussão, dentro do Judiciário Brasileiro, de como tipificar, julgar e punir o Crime de Genocídio. Assim, na análise que agora apresento, focalizo meu esforço interpretativo mais em documentos como Votos, Sentenças e Acórdãos do que nos Pedidos de Vistas, Ofícios Internos ou Atestados de Recebimento. Vendo tal recorte de outra forma, podese dizer que estou menos preocupado com os documentos produzidos por funcionários dos Tribunais para outros funcionários dos Tribunais (os Pedidos de Vista entre as várias repartições de um Tribunal, por exemplo), do que aqueles documentos que serão produzidos para que as Partes atuem no Processo – e, é claro, também os papéis produzidos pelas Partes para figurarem nos mesmo.

V. A divisão dos capítulos Dividi a análise do Processo Haximu em 5 partes: no capítulo imediatamente posterior ao presente é dedicado a uma contextualização mínima sobre o surgimento e o pano de fundo geral no qual o Processo se origina. No capítulo III início a análise dos documentos em si. Ignoro, de início, o primeiro documento dos Autos (a Denúncia do MPF) e detenho-me no estudo das cerca de quinhentas páginas que compõe o Inquérito Policial. Minha preocupação principal, nesse momento, será mostrar como o Inquérito é

15

Defino melhor essa categoria no capítulo III

36

uma peça a ser ‘domada’ a fim de ser tornar minimamente coerente (em termos judiciais) e, por outro lado, como o Relatório de Bruce Albert, antropólogo especialista nos Yanomami e membro da CCPY, é central na construção dessa espécie de ‘harmonia’ do Processo. Já no quarto capítulo, volto à Denúncia do MPF e debruço-me no mapeamento da construção judicial do Crime de Genocídio pelos Procuradores da República. Tal inversão dos documentos dos Autos faz-se necessária justamente para entender como os Procuradores conseguem descrever os ataques de garimpeiros que conformam o Caso Haximu de maneira minimamente coerente, sem contradições. É também nesse momento que começo a matizar melhor o que é típico da fase propriamente judicial do Processo (posterior ao Inquérito) e como se conformará os primeiros embates entre os Interessados no Caso. Nesse momento (capítulo V) atenho-me à discussão judicial do Crime de Genocídio - ou seja, como a tese dos Procuradores vai ser recebida pelos diversos julgadores que tomam parte no Processo e de que maneira ela será combatida pelos defensores legais dos garimpeiros. Analiso então a espécie de ‘reviravolta’ judicial que o Caso Haximu sofreu com a anulação da primeira decisão judicial e, por outro lado, como se dá, já na última instância do judiciário brasileiro (o Supremo Tribunal Federal, STF), a decisão que, ao que tudo indica, finaliza o Processo objeto da presente dissertação. Ressalvo que minha análise do Crime de Genocídio tem como ponto central (porém não exclusivo) o Processo Haximu. Contudo, uma investigação mais aprofundada de tal categoria teria, por exemplo, que mapear minimamente o contexto político europeu pós-2ª Guerra Mundial - período em que se criou todo um aparato legal, alicerçado em nascentes instituições supra-nacionais, visando dar as características gerais e prevenir atos genocidas por todo o mundo. A própria lei16 que tipifica tal Crime no Brasil, datada de 1956, tem como norte tratados e convenções surgidas nesse contexto. Todavia, tal empreitada superaria em muito o exíguo tempo disponível para a pesquisa e escritura da presente dissertação. Com isso, ignoro, nas páginas que se seguem, toda uma complexa discussão sobre as origens históricas do 16

Lei No. 5.010 de 30 de maio de 1966, retirada da página oficial da Presidência da República: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5010.htm, em 12/10/2006.

37

Genocídio - que, é claro, firmam raízes para além do Processo Haximu e do campo judicial brasileiro, o que demandaria um investimento de pesquisa que não me foi possível dar conta satisfatoriamente até o presente momento. Por outro lado, dou especial atenção aos Códigos Legais citados durante todo o Processo, analisando-os como peças relativamente independentes, porém sempre concatenadas ao caso específico narrado nos Autos. Pretendo, assim, focar minha atenção na maneira como o Crime de Genocídio é trabalhado numa peça judicial determinada, peça essa que tem como norte o julgamento de um conflito específico: a morte de cerca de duas dezenas de índios Yanomami por garimpeiros brasileiros na fronteira do Brasil com a Venezuela no fim do ano de 1993.

38

Capítulo II: o pano de fundo do Caso Haximu

É impossível analisar satisfatoriamente o Caso Haximu se não se fizer uma contextualização mínima de como o acontecido na aldeia Yanomami de Haximu no fim do ano de 1993 acabou sendo apropriado como um processo judicial. Esse esforço não é meramente acessório: ele é central para que se possa matizar a posição tomada pelas Partes17 no andamento da contenda nos Tribunais. Além disso, um olhar não diretamente voltado à dinâmica interna do Direito ajuda a entender melhor a própria divisão de documentos dos autos. Como exemplo, basta notar que todos os papéis classificados como não-propriamente judiciais do processo, como os recortes de jornal, figuram nos volumes denominados Anexos – apartados, portanto, dos documentos tidos como completamente judiciais. A própria organização dos documentos visa, portanto, ‘limpar’ da contenda aquilo que não pode ser diretamente apropriado na discussão judicial em si – o que obriga a uma busca fora do processo, visando aquilo que, em certo sentido, o próprio processo visa dar conta. Assim, dedico a primeira parte do presente capítulo para a discussão de como se originou o Caso Haximu. Nesse momento me distancio parcialmente das fontes documentais que perfazem os autos, tentando situá-las melhor num plano mais geral. A última seção do capítulo tentará mapear como esse aparentemente ‘de fora’ do processo na verdade lhe compõe.

I. O Massacre e os massacres Como se poderá notar na análise que se seguirá, a documentação produzida pelos Procuradores representantes dos Yanomami é mais complexa e, em termos legais, melhor elaborada que a dos advogados ou defensores públicos dos garimpeiros. É fácil notar que o Caso Haximu exigiu, por parte desses funcionários do Ministério Público Federal, dedicação e exposição maiores que em outros casos similares. Primeiramente, porque existiram várias reviravoltas na própria discussão judicial do processo, fazendo

17

Para a discussão da categoria nativa Partes, conferir a definição análoga de Interessados, no capítulo I

39

com que a contenda nos Tribunais se prolongasse por vários anos, como mostrarei nos próximos capítulos. Porém, um outro fator parece ter influenciado a ação desses especialistas: o Caso Haximu teve uma repercussão ímpar na mídia e na política tidas como nacionais. Para iniciar, o relatório de Bruce Albert, peça central no processo, como mostrarei a seguir, foi publicado, de maneira adaptada, no jornal Folha de São Paulo ainda no ano de 1993. Em outro exemplo, um delegado da polícia federal, ainda no inquérito policial, argumenta que a cena do crime pode ter sido alterada pois jornalistas de todo o Brasil haviam chegado à Aldeia Haximu antes mesmo dos peritos da PF. De todo modo, o pano de fundo no qual me apoio para caracterizar o Caso Haximu como especial não são somente as pistas colhidas nos próprios documentos dos autos. Pude fazer uma breve, porém esclarecedora pesquisa no arquivo do antigo Projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil (PETI), localizado no Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (LACED/MN/UFRJ)18 As informações que se seguem foram todas retiradas do arquivo citado e de conversas informais que tive com Antonio Carlos de Souza Lima. Primeiramente, é preciso notar que 1993 (ano que processo Haximu é instaurado) foi estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Ano Internacional dos Direitos Indígenas. Além disso, um ano antes ocorreu, na cidade do Rio de Janeiro, a Conferência da ONU para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO – 92) – e a relação que é feita, principalmente pelo pessoal envolvido em órgãos governamentais tutelares, entre as populações indígenas e a questão ecológica é explícita. Na capa do último número do periódico Aconteceu19 de 1991 (dois anos antes do Massacre, portanto) pode-se ler a seguinte notícia: “Collor toma decisão histórica e 18

Boa parte de tais arquivos estão também disponíveis na página eletrônica do LACED: http://www.laced.mn.ufrj.br/produtos/textos/textos_online/publicacoes_peti.htm, com acesso em 19/01/2007. Agradeço especialmente a Antonio Carlos de Souza Lima por ter me indicado tais documentos e, ao mesmo tempo, por ter me dado importantes conselhos de como tratá-los. Contudo, todas as considerações que se seguem são de minha exclusiva responsabilidade. 19

O Aconteceu era uma compilação quinzenal que reunia “notícias dos jornais de maior circulação do país – que não necessariamente estão reproduzidas na íntegra – e colaborações espontâneas de leitores e entidades diversas”, como o próprio editorial do no ano de 1991 esclarece. Nesse periódico pode-se encontrar notícias desde a macro-política nacional, passando pela organização do operariado brasileiro, até a situação de povos indígenas no país. Tal compilação era produzida pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), instituição ligada à Igreja Católica e algumas igrejas evangélicas. O CEDI deu origem, direta ou indiretamente, a algumas das mais importantes Organizações NãoGovernamentais de defesa dos índios no Brasil, como o Instituto Sócio-Ambiental (ISA), a Rede

40

Passarinho [Jarbas Passarinho, então Ministro da Justiça do governo Collor] delimita Terra Yanomami” (Aconteceu. n. 579, nov/dez. 1991). Na reportagem interna, diz-se que “o presidente da Venezuela, Carlos André Perez, aplaudiu a decisão [de Collor] dizendo que ela garantirá à América Latina maior autoridade para discutir com os países do 1º mundo da Eco-92” (idem). De todo modo, já no próximo número do mesmo periódico, pode-se ler a seguinte notícia: “Reações internas prometem bloquear recursos para a demarcação Yanomami” (Aconteceu. n. 580, jan. 1992), fazendo então referência a senadores e deputados federais da região norte, inclusive de Roraima, que estavam tentando barrar a verba específica para a demarcação da Terra Yanomami – o que acaba não acontecendo, sendo a área demarcada em sua completude. No Congresso Nacional brasileiro, segundo Adriana Ramos (RAMOS, 2002), então funcionária do Instituo Sócio Ambiental (ISA), há um grupo organizado de parlamentares contrários aos interesses dos povos indígenas no Congresso, a maioria visando alterar a Constituição para limitar o direito dos índios à terra. Tais propostas, em sua maioria, visam alterar o texto constitucional para que as terras indígenas fossem demarcadas pelo Legislativo – e não, como acontece atualmente, pelo Executivo. (Ramos, 2002:36). Tal movimento é organizado por parte da chamada bancada ruralista, que forma uma espécie de ‘pelotão de choque’ contra os direitos indígenas já assegurados pela Constituição de 1998. Por outro lado, não há um lobby organizado no Congresso para defender os interesses das populações auto-denominadas ou rotuladas como indígenas, já que poucos parlamentares têm opinião formada sobre esse tema – e os que a tem, não perfazem um grupo organizado. Ainda segundo a autora, quando há algum movimento a favor dos indígenas, ele se dá de maneira conjuntural e pouco organizada. (Ramos, 2002:35-39)20. Voltando ao Aconteceu, numa breve análise das edições dos anos de 1990 e 1991, pode-se notar que ao menos 1/3 de todas as notícias relativas a povos indígenas KOINONIA ou a Ação Educativa. Os anos de 1990, 1991 e 1992 estão disponíveis praticamente na íntegra nos arquivos do PETI/LACED. Alguns números do ano de 1993 também podem ser encontrados. Agradeço novamente a Antonio Carlos de Souza Lima por essas informações. 20

Há de se ter em mente, de qualquer maneira, que alguns parlamentares se auto-denominam “defensores” da causa indígena. Como exemplo, basta citar a recente Audiência Pública da Comissão de Direito Humanos e Legislação Participativa, ocorrida no Auditório Petrônio Portela do Senado Federal em 19 de abril de 2007 para discutir a problemática dos direitos diferenciados referentes aos índios. Pude acompanhar tal reunião, que contou com lideranças indígenas de todo o país, além da presença de inúmeros deputados federais e senadores. O senador Paulo Paim (PT-RS) organizou a mesa do encontro e é dele o termo que vai entre aspas acima. A Audiência contou, ainda, com a presença da Procuradora Deborah Duprat como especialista em direitos diferenciados.

41

desse periódico fazem referência aos Yanomami. O Aconteceu n. 479 de maio de 1990, por exemplo, traz a informação de que havia um projeto no Congresso Nacional pela demarcação da Terra Yanomami em 19 ilhas isoladas, todas dentro de duas grandes Florestas Nacionais21. Segundo a reportagem, isso se daria para que fosse possível às grandes indústrias da área de exploração mineral a retirada de recursos já mapeados em terras de tradicional ocupação pelos Yanomami. De todo modo, nesse rápido apanhado, o mais importante a ser aqui notado é que há, a partir do ano de 1991, incontáveis notícias sobre a incursão do Exército e de Policiais Federais à então já (continuamente) demarcada Terra Indígena Yanomami. Essas constantes intervenções do aparato de violência física estatal visavam, sem uma única exceção, retirar da área Yanomami inúmeros garimpeiros invasores. Fica claro pelas reportagens que houve diversos confrontos entre garimpeiros e Yanomami – situações em que os índios estavam sempre em desvantagem. Várias reportagens relatam mortes e assassinatos diversos resultantes desses confrontos, mas nenhuma dessas situações parece ter tido a repercussão que o Caso Haximu obteve. Por exemplo, na já citada edição 552 do Aconteceu, há a seguinte notícia da sessão dedicada aos indígenas: “Yanomami baleado por garimpeiro invasor: um índio Yanomami foi gravemente ferido [...] quando pedia alimentos a um grupo de garimpeiros que explorava a pista clandestina conhecida como Xiriawá”. As retiradas promovidas pelo Exército e pela PF, contudo, nunca foram definitivas. Numa recente publicação do Instituto Sócio Ambiental (ISA), Povos Indígenas do Brasil – 2001-200522, há um artigo escrito pelo antropólogo Rogério Duarte Pato cujo o título é “O retorno ao caos: centenas de garimpeiros se aproveitam da morosidade e da desarticulação do poder público e voltam a invadir a TI [Terra Indígena] Yanomami”, dando notícia de uma nova invasão de garimpeiros no ano de 2005. Nesse sentido, João Pacheco de Oliveira Filho (OLIVEIRA FILHO, 1999) chama atenção para o fato de que as demarcações das áreas indígenas nunca são definitivas e

21

Souza Lima (SOUZA LIMA, 1998), num estudo sobre a construção sócio-histórica da demarcação estatal de terras indígenas no Brasil, argumenta que as “terras habitadas” pelos índios têm como base a noção de “habitat natural” da biologia, sendo que os vestígios de tal habitação humana, agora já considerada temporalmente imemoriável, devem ser materialmente recuperáveis pela pesquisa histórica (idem, :197). 22

Tal publicação é um balanço geral sobre a condição dos povos indígenas no Brasil durante os anos 2000-2005. Pode-se aí encontrar artigos acadêmicos, mapas, fotos de satélite, pesquisas quantitativas e toda uma gama de informação atualizadas referentes aos povos indígenas brasileiros. Tal periódico não conta com numeração de páginas e é possível acessá-lo nos arquivos do PETI.

42

não garantem que os grupos aí assentados irão, a partir de então, viver sem maiores conflitos com os não-indígenas: Longe de serem imutáveis, as áreas indígenas estão sempre em permanente revisão, com acréscimos, diminuições, junções e separações. Isto não é algo circunstancial, que decorra apenas dos desacertos do Estado ou de iniciativas espúrias de interesses contrariados, mas é constitutivo, fazendo parte da própria natureza do processo de territorialização de uma sociedade indígena dentro do marco institucional estabelecido pelo Estado-nacional (idem, :291). Por outro lado, nesse mesmo artigo, o autor argumenta que o reconhecimento das terras ocupadas pelas populações indígenas por organizações tidas como estatais é uma importante vantagem política e presságio de possíveis melhorias nas condições gerais de vida dos índios. Há aí um ponto importante: por que, entre tantos acontecimentos violentos envolvendo garimpeiros e Yanomami, somente as mortes dos indígenas de Haximu acabaram tendo a já citada repercussão? Para responder satisfatoriamente à questão, caberia fazer uma pesquisa e análise mais aprofundadas de todo o material que ‘orbita’ em torno do processo – inclusive os Anexos. Essa não é a meta principal do estudo que agora desenvolvo. De todo modo, dentro das limitadas fontes que até agora tive contato, é possível apontar algumas direções a serem melhor exploradas mais à frente. Assim, como já indiquei acima, o governo do Presidente Fernando Collor de Mello parece ter sofrido pressões variadas no que tange ao trato com povos tutelados23. Realizara-se no Brasil, como já disse, a maior conferência internacional sobre meio ambiente já então vista. Se é certo que as populações indígenas são, de maneira geral, facilmente identificadas como mais próximas à natureza (cf. nota 5 acima), pode-se deduzir que as pessoas relacionadas à mídia e à política tidas como nacionais dificilmente ignorariam ou deixariam à margem uma denúncia como a que é feita no Caso Haximu, acontecida apenas um ano depois da ECO – 92. Isso sem contar que o próprio ano do Massacre é eleito pela ONU como Ano Internacional dos Direitos Indígenas, como também já deixei claro. Parece haver assim uma conversão de fatores

23

Para uma análise de como se forjou a tutela indígena dentro do aparato estatal brasileiro, cf. SOUZA LIMA, 1995.

43

para que os assassinatos de Haximu tivessem repercussão maior que as diversas outras mortes narradas em anos anteriores. Há de se esclarecer que não estou dizendo, com tudo isso, que o empenho dos Procuradores da República no processo Haximu foi oportunista, tentando ‘mostrar trabalho’ num caso judicial de grande repercussão. Especialistas como Deborah Duprat apresentam um engajamento frente à problemática indígena que vai muito além do Caso aqui analisado. Por exemplo, num seminário da Escola da Magistratura Federal realizado em Brasília no ano de 2005 sobre Direitos de Minorias, esses dois últimos eram vistos pelos próprios indígenas como claros exemplos de operadores do Direito francamente conscientes e favoráveis à resolução dos diversos problemas das populações indígenas. Não cabe aqui citar nomes, mas outras pessoas presentes no mesmo evento (e detentoras de cargos públicos do mesmo nível que o de Duprat, como juízes ou desembargadores) não compartiam do mesmo status positivo atribuído aos dois Procuradores. Voltando aos arquivos do PETI, nas edições do Aconteceu fica também explícito um conflito entre funcionários de órgãos com jurisdição nacional, como a Polícia Federal ou o Ministério Público, e aqueles que trabalham nas Polícias Civil e Militar ou no Governo Estadual de Roraima. Na compilação referente a março/abril de 1991 (n. 558), pode-se ler a seguinte notícia, adaptada do jornal A Folha de São Paulo: “O governador Ottomar de Souza Pinto [então Governador de Roraima] acionou os Policiais Civil e Militar para impedir as operações de fechamento de duas pistas de pouso na região [da Reserva Yanomami], que deveria ser feito por agentes da PF”. Nesse mesmo artigo, noticia-se ainda que o Governador Ottomar mandou que não fossem mais aceitos garimpeiros presos por Policiais Federais na Penitenciária Agrícola de Roraima. Há de se notar que essa é a mesma Prisão que irá abrigar, anos mais tarde, Pedro Emiliano e João Pereira, os dois condenados presos pelo Genocídio de Haximu (cf. capítulos III-V). Recordo também que o Delegado da PF Raimundo Soares Cutrim, autor do relatório Final do Inquérito Policial do Caso Haximu, diz ter participado, nesse documento, da segunda operação Selva Livre – que visava, mais uma vez, retirar garimpeiros da Terra Indígena Yanomami.

44

Na edição seguinte desse periódico (n. 559, abril/maio de 1991) há a notícia de que o Procurador do MPF Aristides Junqueira pediu Intervenção Federal em Roraima24. E que Governador havia chamado todo o aparato policial do estado para que os funcionários federais não conseguissem levar a cabo a desocupação da Terra Indígena Yanomami. Por tudo o que foi exposto até aqui, pode-se notar que os Yanomami, no fim da década de 80 e início da de 90, foram convertidos em espécies de ‘ícones’ da luta por melhores condições de vida para os povos tidos como indígenas no Brasil e no exterior. Isso pode ajudar a esclarecer, ao menos em parte, toda a repercussão que o Caso Haximu teve dentro e fora do país. É possível desenvolver aqui um pouco mais a discussão sobre a posição das populações tuteladas frente ao Judiciário Brasileiro. Tal questão advém de um embate político específico, que remete, como bem chama atenção Déborah Duprat numa análise das possibilidades de um Estado Pluriétnico (DUPRAT, 2002), à Constituição de 1988. Nessa ocasião, segundo Duprat, acertou-se que tais populações seriam autorepresentáveis (idem, :44) – porém, nunca se criou leis infra-constitucionais para assegurar, de fato, tal independência garantida, de direito, a partir da Carta Magna de 1988. A título de exemplo, transcrevo abaixo a fala atribuída ao Ministro da Justiça Jarbas Passarinho, numa reportagem do Aconteceu n. 553, de abril/maio de 1991 (três anos após a promulgação da Constituição, portanto): O Brasil não vai aceitar isso [pensar os indígenas como nações entre outras dentro do Brasil] porque não vamos nos transformar numa nação-interétnica (ênfase minha).

Por outro lado, é exatamente na Constituição que os Procuradores da República que escrevem a denúncia do Caso Haximu irão se basear para dizer que não se pode forçar os indígenas a entregarem as cabaças com as cinzas dos mortos para uma possível perícia da Polícia Federal em Brasília, como mostrarei a seguir. Isso, segundo eles, iria contra o princípio constitucional que garante liberdade de costumes para tais povos. 24

Encontrei o Pedido de Intervenção escrito pelo Procurador Aristides Junqueira ajuntado na mesma caixa que trazia alguns documentos do processo Haximu (cf. capítulo I) quando pesquisava os arquivos da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. O Procurador culpa exclusivamente o Governador Ottamar pelo não cumprimento da desocupação dos garimpeiros da Terra Yanomami, pedindo que ele seja substituído por um interventor federal.

45

Noto aqui que a primeira Lei que tipifica o Genocídio no Brasil é de 1956, período que, segundo Duprat, ainda vigorava, inclusive em termos constitucionais, todo um aparato legal assimilacionista – ou seja, tendo como norte a idéia que os indígenas gradualmente seriam subsumidos à sociedade genericamente tomada como brasileira. Duprat, 2002:42-44)25. Ressalto aqui que a fala citada acima de Jarbas Passarinho tem a ver com as tensões em torno da assinatura, pelo Congresso brasileiro, da Convenção 169, texto que substituiria outra antiga Convenção 132, base para a citada lei de 1956. A Convenção 169 da Organização das Nações Unidas traz a idéia de que as populações tidas como indígenas devem ser tratadas como povos relativamente independentes, ainda que sob a ingerência de um Estado Nacional – idéia que, ao que tudo indica, não agradou o então Ministro da Justiça do Governo Collor. Se o Caso Haximu for realmente a primeira condenação de Genocídio da Justiça Brasileira26, então é possível levantar a possibilidade de que estejamos passando, nos últimos anos, por uma mudança em como a tutela indígena é pensada e aplicada: os indígenas passariam a não serem mais vistos como um tipo de organização fugaz ou passageira, destinada, como já disse, ao desaparecimento frente aos pretensamente ‘brasileiros de fato’. Tais povos comporiam, ao contrário, parte da diversidade nacional – e tais povos não seriam tidos a partir da premissa legal de relativamente incapazes. Essa digressão encontra apoio, em linhas gerais, em todos os artigos que compõem a coletânea para a qual Adriana Ramos e Deborah Duprat contribuíram (op. cit.) – e, mais direta ou indiretamente, em artigos aqui citados de João Pacheco de Oliveira Filho e Antonio Carlos de Souza Lima. Existe, porém, como se pode notar, uma aparente contradição entre leis constitucionais e a situação vivida, de fato, pelas populações indígenas. Uma interpretação possível, porém extremamente simplista e reducionista, seria dizer que a Constituição não é nada mais que ‘letra-morta’ e que em nada influi na realidade dessas pessoas. Porém, a atuação dos Procuradores no processo Haximu parece apontar para uma situação mais complexa: como visto, eles se baseiam em princípios constitucionais 25

Relembro aqui o já citado trabalho de Antonio Carlos de Souza Lima (SOUZA LIMA, 1995) que chama atenção para o fato de que no nome do Serviço de Proteção aos Índios estava ajuntada também a sigla ‘LTN’ – ou seja, Localização de Trabalhadores Nacionais, algo que, pensava-se, os índios, cedo ou tarde, acabariam se tornado. 26

Em pesquisas na Internet sobre as decisões judiciais, ao menos as relativas aos Tribunais Superiores no Brasil, não achei nenhuma referência à condenações sob a referida Lei do Genocídio. Em conversas informais com bacharéis em Direito, técnicos e analistas judiciais, sempre me confirmaram que o Caso Haximu foi realmente a primeira condenação da Justiça Brasileira sobre o Crime de Genocídio.

46

para impedir que as cabaças com as cinzas dos mortos fosse confiscada pela PF. Se o caso não envolvesse indígenas, os possuidores das cinzas poderiam ser acusados de ocultação de cadáveres ou algo similar. Nesse sentido, a lei não foi apenas ‘letra morta’: ela realmente ‘cria’ uma realidade social diferente – ou, ao menos, abre possibilidades para que isso seja feito. Não estou dizendo, com isso, que a lei por si só modifica o mundo. Apenas argumento que códigos ou leis poucos usados, esquecidos ou mesmo tidos como ‘mortos’ podem ser ‘ressucitados’ em determinadas situações, visando um fim determinado27.

É possível dizer, com isso, que a Constituição de 1998 marca uma

possibilidade importante para que o tratamento dado pelas instituições pensadas como nacionais aos indígenas seja diferente – contudo, na maioria das situações envolvendo atritos entre essas populações e os não-indígenas ainda parece vigorar uma postura tutelar e mesmo assimilacionista, característica do atual Estatuto do Índio, criado em 1973 e ainda em vigor. Analisando as leis de ex-colônias recém-independentes, Sally Falk Moore argumenta que “the hope [nesses países] has been that it would be possible to use law, among other instruments, to put the negatives aspects of the colonial period behind (MOORE, 1978, :9)”. A autora chama atenção para a construção de um “fresh start” calcado principalmente nas novas constituições. Penso ser esse também o ‘espírito’ em que se forjou a Constituição de 1998, com a ressalva de que o que se queria combater não era uma potência colonial, mas sim a ditadura militar recentemente deposta do poder. Sally Falk Moore ressalta que, nessas situações, pretende-se “to codify everything once and for all” (ibid idem). É claro que essa pretensão não se realiza em sua totalidade, mas ela acaba criando possibilidades e inaugurando novos platôs de discussão que antes eram improváveis ou mesmo impossíveis. É nesse sentido que Sally Falk Moore argumenta que

27

Uma analogia livre pode ser feita aqui com a análise do historiador inglês E. P. Thompson na obra Senhores e Caçadores (THOMPSON, 1987). No estudo da criação e a aplicação da Lei Negra na Inglaterra do século XVIII, o autor argumenta que a instituição da pena de morte aos caçadores mascarados que matavam cervos do Rei se deu exatamente porque as leis anteriores à Lei Negra eram severas contra a caça, mas não se costumava aplicá-las (p.71-72). Na tentativa de proteger as florestas reais contra a crescente onda de ataques dos Negros, a administração real primeiramente recrudesce a fiscalização, tentando reativar as antigas leis e, por fim, acaba decretando a pena capital para o crime de abate ilegal de cervos. A re-aplicação, num novo contexto, das antigas leis anti-caça não mostra exatamente nem a independência da lei escrita, nem tão pouco o império das vontades dos atores em jogo. O que parece existir, assim como no Caso Haximu, é uma intricada relação entre um momento político determinado, leis que podem ou não estar em aplicação e, é claro, o interesse das mais diferentes pessoas envolvidas.

47

Formal regulamentation can control certain behavior, but not the aggregate of behavior in a society [...]. That does not mean that particular legislative or executive decisions cannot be made which affect everyone in a given society, nor that for limited times o limited matters, remarkable levels of control cannot be achieved. But over time, reglemantary control can be temporary, incomplete, and its consequences not fully predictable. The study of reglementation is therefore the study of the way partial orders and partial controls operate in social context (Moore, 1978: 30). Pode-se, assim, ver a Constituição, no que tange aos direitos indígenas, como uma espécie de “open area” (idem, :50) para diversas novas possibilidades: como não existe uma regulamentação de como devem ser legalmente aplicados os direitos genéricos garantidos pela Carta Magna de 1988, cada caso depende de uma interpretação do julgador frente aos argumentos das partes. O mesmo parece acontecer em outras áreas, como a do direito à greve: há um princípio constitucional que assegura esse direito, mas não existe uma lei que especifique de que maneira uma greve deve ocorrer. Cabe, assim, a cada juiz dizer se tal ou qual greve é ou não ilegal, é ou não abusiva. Os Procuradores que tomam parte no Caso Haximu parecem trabalhar justamente em cima dessa indeterminação parcial: mesmo que não exista uma lei infraconstitucional regulamentando a independência cultural indígena, é possível argumentar eficazmente que tal independência se faz, de fato, não deixando que os Policiais Federais apreendam as cabaças com cinzas dos mortos, por exemplo. Como chama atenção Sally Falk Moore, esses especialistas do Direito exploram “the indeterminacies in the situation, or by generating such indeterminacies, or by reinterpreting

or

redefining the rules of relationship” (ibid idem). É esse o poder do argumento étnico, trazido pelos Procuradores do MPF a partir da Constituição de 1988: reinterpreta-se princípios generalizantes (como o que todos são iguais perante a lei), situando o caso em questão como especial, incomum – ou, em outras palavras, étnico, tendo como base o texto constitucional de 1988, idéia que desenvolvo melhor na conclusão. No processo Haximu, os Procuradores parecem particularmente sensíveis em considerar a violência ocorrida contra os indígenas de Haximu como um Genocídio, colocando em prática uma possibilidade legal até então pouco ou quase nunca aplicada. Não me foi possível traçar satisfatoriamente a trajetória de cada um desses especialistas, contudo é possível notar que a posição por eles adotada tem a ver não somente com a formação em Direito ou o cargo público ocupado, mas também com a própria trajetória

48

e inserção política deles. Como visto, há especialistas da área do Direito que não estão, necessariamente, particularmente envolvidos com a temática indígena. Mesmo sem levar a cabo um levantamento dos casos em que os Procuradores atuaram antes de se dedicarem ao processo aqui em foco, não é difícil perceber que alguns deles, como Deborah Duprat, têm uma vasta experiência no trato com conflitos judiciais envolvendo as chamadas “minorias étnicas”28. Em vários eventos dos quais pude participar eles estavam presentes, como no Seminário sobre Direitos Diferenciados na Escola da Magistratura Federal ou a Audiência Pública no Senado Federal em 2007 visando discutir o Direito das Minorias – ou, ainda, na Reunião Brasileira de Antropologia do ano de 2006, realizada na cidade de Goiânia, onde pude encontrar a Procuradora Deborah Duprat, uma das palestrantes desse último encontro. Os próprios Yanomami, por sua vez, também acabam sendo incorporados à multiplicidade de fatores que se ajuntam para dar origem ao Caso Haximu. Tratarei desse tema mais pontualmente a seguir, mas adianto que os habitantes de Haximu possuem as características que vários especialistas que trabalham no aparato judicial, entre outras instituições pensadas como nacionais, consideram a base de uma espécie de indígena-tout-court. Os Yanomami não vivem em grandes centros urbanos, não possuem documentos de qualquer tipo e, talvez o mais importante, não falam, em sua maioria, uma pretensa língua nacional. São, para citar um termo em desuso na Antropologia Social, mas ainda vigorosamente operante em outras áreas (como a do Direito) típicos ‘não-civilizados’. De todo modo, todos os ‘não’ em itálico acima parecem estar ‘encapsulados’ na idéia geral de que os Yanomami foram, são, e provavelmente continuarão sendo um grupo étnico. As qualidades relatadas acima, é claro, não são nem de longe homogêneas entre todos os grupos auto-denominados ou rotulados como indígenas – e talvez não a sejam nem mesmo entre os Yanomami. Contudo, os últimos, pelas características acima, parecem ser mais facilmente classificáveis dentro do estereótipo, modelo ou resumo de povos não-civilizados. Esse é mais um fator que se agrega para o surgimento do Caso Haximu: as vítimas do massacre eram tidos como ‘bandeira’ ou ‘ícone’ de uma indianidade modelar, tout court.

28

Expressão constante na porta da sala de entrada da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, onde Deborah Duprat trabalhava à época do Processo, sendo que essa Procuradora presidia, até então, tal repartição pública.

49

Desconfio que, numa hipotética situação de violência contra outro grupo autodenominado ou batizado de indígena, mas que não possuísse as mesmas característica dos Yanomami, a etnicidade (e, com ela, a caracterização de um potencial Genocídio) torna-se-ia muito mais difícil (ou até mesmo impossível) de ser construída como foi no Caso Haximu. João Pacheco de Oliveira, num dos vários estudos que dedicou à análise da problemática étnica, coloca a seguinte questão: Se é a distintividade cultural que possibilita o distanciamento e a objetividade, instaurando a não contemporaneidade entre o nativo e o etnólogo, como é possível proceder com as culturas indígenas do Nordeste, que não se apresentam como entidades descontínuas e discretas? (OLIVEIRA FILHO, 1998b :14) O autor argumenta, nesse sentido, que “no Nordeste, contudo, os “índios” eram sertanejos pobres e sem acesso à terra, bem como desprovidos de forte contrastividade cultural” (idem, :17-18). A idéia central do autor é de que é possível traçar fronteiras étnicas efetivas sem, contudo, apresentar traços diacríticos explícitos que diferenciem, de maneira absoluta, os étnicos dos não-étnicos. A distinção construída por indígenas tidos como “misturados”, é, como mostra o autor, operante, efetivando uma fronteira real frente aos tidos como não-indígenas. Com isso, a identidade dessas populações não é mera ‘invenção’ (no sentido de uma simples fabulação para angariar determinada vantagem política), mas um acontecimento social de fato. Assim, grupos indígenas do Nordeste, por exemplo, como indica o trabalho citado, não possuem as características principais que serão reapropriadas sob o termo ‘étnico’ no Caso Haximu. Desse modo, penso não ter sido sem motivo, portanto, que a primeira condenação por Genocídio étnico envolveu os Yanomami: seria muito mais problemático construir esse mesmo crime caso as vítimas fossem outro grupo, como os Tapeba do Nordeste estudados pelo antropólogo Henyo Barreto Filho (BARRETO FILHO, 1999), por exemplo. Na construção desse artigo, o autor argumenta que “este [seu texto] não é um laudo em que se pretende assegurar que um determinado grupo é “indígena”, porém uma análise que procura desvelar etnograficamente os processos pelos quais essa definição é construída e colocada em jogo (Barreto Filho, 1999 :99)”. Essa ressalva toca num ponto importante: na construção de uma denúncia judicial, por exemplo, há pouco espaço para o argumento, propriamente sociológico, da identidade indígena como uma construção social. Há de se lembrar ainda que a própria pesquisa de

50

Henyo Barreto Filho dá notícia de uma disputa judicial por terras entre Tapebas e nãoTapebas, que, segundo o autor “não é uma batalha meramente judicial. É uma batalha entre idiomas culturais entremeados às relações de poder em nossa sociedade [...]” (Barreto Filho, 1999:129). Nesse contexto, os Tapeba, como não apresentam os traços de indianidade exteriormente eleitos como modelares, podem ser mais facilmente tratados como simples invasores ou posseiros. Há de se deixar claro que não estou dizendo que os Yanomami são ‘maisétnicos’ que os Tapeba ou qualquer outro grupo, mas somente que os primeiros, frente à complexa rede de funcionários que compõem órgãos tidos como pertencentes aos Estado brasileiro (como os tribunais do Judiciário ou a FUNAI), são mais facilmente reconhecidos como índios. Como pretendo deixar claro a seguir, os Procuradores não usam aspas ou qualquer outro tipo de ressalva quando trabalham com as categorias indígena, étnico ou qualquer termo similar. Isso porque eles estão inseridos num outro contexto político, tendo em vista outros leitores e objetivos distintos de quando se escreve um artigo acadêmico. Na denúncia do Caso Haximu, o que se pretende não é mostrar como os Yanomami constroem sua identidade, mas garantir, sem qualquer sombra de dúvida, que essa identidade é étnica – e mostrar que os garimpeiros que atentaram contra a vida dessas pessoas estavam, na verdade, tentando dar cabo de uma etnia específica. Um outro texto de João Pacheco de Oliveira Filho ajuda a discutir melhor essa questão. Numa análise dos laudos produzidos por antropólogos para demarcação de terras indígenas ou no assessoramento a processos judiciais, o autor lembra que “a necessidade de um laudo pericial não provém do universo acadêmico [da Antropologia], mas de questões práticas colocadas por um contexto jurídico ou administrativo (OLIVEIRA FILHO, 1998b: 285)”. É exatamente no contexto jurídico que os Procuradores que produzem a denúncia do Caso Haximu são especialistas. No mesmo sentido, o autor argumenta que Ao ler os quesitos elaborados por juízes, promotores ou advogados de defesa, a impressão que se tem é de que a identidade étnica é algo substancial, cristalino, permanente, que independe de conjunturas e divisões internas. A bibliografia sobre etnicidade contém muitos exemplos de que não é assim que as coisas efetivamente se passam (OLIVEIRA FILHO, 1998b :276).

51

É claro que, como chama atenção João Pacheco de Oliveira Filho, a identidade étnica, a partir do prisma de uma análise sociológica, não é algo imutável ou intrínseco aos grupos estudados. Todavia, num julgamento altamente formalizado sobre Genocídio étnico, desconfio que o argumento de que os Yanomami só são Yanomami porque conseguem atualizar constantemente suas fronteiras, incorporando inovações mas mantendo-se relativamente apartados frente aos que são tidos como não-Yanomami, não teria grande peso na tipificação desse crime – nem tão pouco ajudaria na identificação de seus perpetradores. João Pacheco de Oliveira Filho já notara algo similar no tocante aos laudos periciais, argumentando que Os laudos periciais (judiciais ou administrativos) constituem um gênero narrativo bem diverso das teses, monografias, ensaios e comunicações, por serem dirigidos para um público e finalidades distintas, por terem canais de financiamento próprios, regras particulares de execução do inquérito, meios de avaliação distintos e sobretudo visarem produzir efeitos práticos sobre os fenômenos que estudam. (OLIVEIRA FILHO, 1998b:294, ênfases do original). Assim, pode-se notar, com pretendo mostrar a seguir, que não é exatamente por falta de conhecimento sociológico que os procuradores envolvidos na Denúncia ignoram a identidade étnica como uma construção social constante. Na verdade, eles estarão preocupados com outros problemas e questões, típicas do campo do Direito.

II. O Massacre e o Caso Cabe ainda fazer uma importante distinção: venho tratando o Massacre de Haximu como sinônimo do processo ou Caso Haximu em si. Contudo, a apropriação judicial de um Massacre intensamente noticiado pelos mais diferentes meios de comunicação, no Brasil e no exterior, possui características que merecem ser melhor analisadas. É claro que, como visto, quando o Massacre se torna também um Caso ou processo, várias reportagens da mídia impressa são recortadas em forma de um longo paper, que ocupa cerca de 2/3 dos Anexos do processo. Recordo, contudo, que os

52

Anexos não tratam do mérito do julgamento em si – e, nos documentos que analisarei, não há praticamente nenhuma referência ao material aí contido. Nesse sentido, é possível ver nos autos uma espécie de ponto-alto ou ‘dramatização’ cuidadosamente construída do próprio Massacre. Uso o termo acima entre aspas pois não entendo que os atores aí em jogo estão apenas encenando papéis sociais descolados de uma pretensa sociabilidade real. Ressalto a expressão ponto-alto porque a instauração do processo tem como característica principal o ideal de que, a partir de então, não se usará mais a força física para resolver esse conflito específico mas apenas a mediação exercida pelo aparato judicial. Caracterizando melhor o ‘drama’ do Caso Haximu, não seria preciso dizer aqui que o resultado do processo influenciará diferentemente a vida de inúmeras pessoas, entre garimpeiros, Yanomami e os próprios especialistas envolvidos. Contudo, uso a metáfora da dramatização para fazer referência ao ambiente altamente regularizado existem inúmeras regras explícitas para a instauração, tramitação e finalização do processo - e complexo - levando em conta que há o mesmo número de exceções, condutas e artifícios diversos não propriamente explícitos, mas da mesma maneira constituintes do aparato judicial. O Caso Haximu é, em certo sentido, uma dramatização especial. Ela comporta, pela primeira vez, a tentativa de tipificar um Genocídio dentro do aparato judicial brasileiro. A condenação dos garimpeiros no fim do ano de 2006 é o ponto alto de uma encenação dramática (tanto no sentido dado acima como do ponto de vista emocional) da possibilidade de um Estado Pluriétnico, baseado principalmente nos princípios da Constituição de 1988. É claro que o processo aqui em foco não mostra, como visto acima, que a rede de violência potencial tida como nacional age sempre tendo como norte a idéia de que o Brasil é formado por múltiplas nações ou etnias. Pelo contrário: a agência do complexo entrelaçado de relações hierárquicas que compõe o aparato judicial tem como base ou princípio fundador a noção de que todos são iguais perante a lei. O que parece se dar, no Caso Haximu, é uma tentativa, levada a cabo principalmente pelo esforço dos Procuradores do Ministério Público Federal, em tentar aplicar um determinado artifício legal em desuso para que o Massacre dos Yanomami de Haximu não fosse tratado como um homicídio em série. Assim, eles partem do princípio geral da Constituição de 1988 de que o Estado brasileiro deve respeitar as diferenças étnicas – ainda que não exista uma legislação infra-constitucional para regularizar esse princípio geral. 53

Com isso, a partir do momento em que o Massacre deixa de ser uma das várias e constantes violências pelas quais estão submetidos os Yanomami, torna-se mais fácil caracterizá-lo como um crime contra uma etnia – ou, em outras palavras, um Genocídio de um grupo indígena, reelaborando-o num no Caso judicial. O uso que os Procuradores fazem da Constituição, tanto para caracterizar tal crime como para impedir que os Yanomami fossem interpelados como “vítimas comuns”, situação em que seriam obrigados a depor como testemunhas juramentadas, como esclarecerei a seguir, mostra que o ‘jogo’ ou ‘drama’ judicial não envolve apenas o simples conhecimento e aplicação de regras gerais a casos específicos. Isso dá margem a pensar que a especialização na área do Direito é um exercício muito mais rebuscado: ao que tudo indica, a representação das partes, num processo judicial, implica saber quando, de que maneira e quais as qualidades, defeitos e características diversas que podem ou não entrar na construção de determinada conduta criminosa. Implica, do mesmo modo, conseguir efetivamente fazer um texto legalmente apresentável, algo em que, como mostrarei, os Procuradores são bastante superiores aos representantes legais dos garimpeiros. É necessário também conhecer teoricamente a ciência do Direito, saber usá-la de maneira a alicerçar os códigos ou leis citado. Enfim, cabe, como chama atenção Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1986), não apenas entender as regras, mas saber jogar efetivamente - ter conhecimento e, ao mesmo tempo, experiência no jogo em que se está envolvido. É esse movimento que começo a mapear nas páginas que se seguem.

54

Capítulo III: o Inquérito Policial

Nesse capítulo inicio a análise dos documentos do Processo em si. Analiso aqui a diversidade inicial de relatos sobre a Chacina ou Massacre de Haximu – termos até então utilizados para se referir ao conflito ocorrido entre garimpeiros e Yanomami. Tenho como ponto principal os depoimentos prestados durante o Inquérito Policial e, também, a posição que tais documentos ocupam no Processo como um todo. Na primeira subseção, justifico a inversão que faço frente à apresentação inicial dos documentos nos Autos, mapeando como o Inquérito é inserido no Processo. Na subseção seguinte, parto para a análise interna da documentação produzida pelos Policiais Federais, tendo como norte as provas levantadas antes do conhecimento, pelos Policiais Federais, do Relatório do Antropólogo Bruce Albert sobre a Chacina de Haximu. As duas últimas partes do capítulo estão reservadas justamente à análise de tal documento e qual seu impacto no Processo.

I. Alterando a disposição das peças O primeiro volume dos Autos inicia-se com cinco páginas não numeradas, correspondentes aos três Tribunais pelos quais passou o Processo. A primeira folha que se vê estampa o Brasão da República Federativa do Brasil, seguido do nome do último Tribunal por onde os documentos estiveram: o Superior Tribunal Federal (STF, com sede em Brasília). A disposição de tais capas demonstra a hierarquia desses Tribunais: a primeira, que engloba todas as outras, é a do STF; segue-se, então, a do Superior Tribunal de Justiça (STJ, também em Brasília); por fim, há três capas (referentes às diversas Instâncias desse primeiro Tribunal) do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF, que possuiu sede em várias cidades, mas que teve como palco de julgamento do Processo as Alçadas de Boa Vista e Brasília). As capas dão pistas, também, para entender como aconteceu a tramitação cronológica dos Autos: primeiramente, no TRF de Boa Vista e Brasília, ajuntou-se, produziu-se e encapou-se documentos, que posteriormente receberam a capa (e, é claro, mais documentos) do STJ e, por fim, funcionários do STF se ocuparam em também ajuntar documentos e reencapar todos os 55

volumes recebidos. No que tange à ordem cronológica das capas, os Autos crescem, portanto, de dentro pra fora. Pelas capas também é possível notar quando cada Tribunal deixa de ajuntar documentos aos Autos: o último volume do Processo, por exemplo, só tem capas do STJ e STF, já que o TRF de Boa Vista/Brasília já não mais participava do Caso. De todo modo, foi nesse último Tribunal que surgiu o Processo Criminal aqui em foco. Em termos estritamente jurídicos1, um Processo Criminal só tem origem quando definem-se Requeridos e Requerentes, ou seja, quando se configura um conflito em que uma parte acusa e a outra se defende, e em que ambas dialoguem num espaço construído (e, em certo sentido, também imposto, como chama atenção Bourdieu quando analisa a pretensão ao universalismo do campo judicial ocidental, (BOURDIEU, 1986) como legítimo para o desenvolvimento de tal contenda. De modo geral, não é essa a situação na qual o Inquérito Policial é construído. Foram os funcionários do Cartório do TRF de Boa Vista que receberam dos Policiais Federais de Roraima as 478 páginas do Inquérito, com o Relatório Final do Inquérito Policial, datado de 30-09-1993 e assinado pelo Delegado de Polícia Federal Raimundo Soares Cutrim2. Esses mesmos funcionários do judiciário ajuntaram o primeiro documento numerado constante nos Autos: a Denúncia do Ministério Público Federal, datada de 15-10-1993, assinada pelos Procuradores da República Carlos Frederico Santos, Franklim Rodrigues da Costa e Luciano Mariz Maia, e endereçada ao Juiz Federal competente do TRF/RR, pedindo, com isso, a abertura de Processo Criminal contra um grupo de garimpeiros, acusados de Crime de Genocídio3. A Denúncia é o único documento que subverte a ordem cronológica progressiva do Processo: ela é 15 dias posterior ao fim do Inquérito, mas vai ajuntada antes nos Autos. Isso porque é exatamente esse documento que define quem serão os Interessados do Processo. De todo modo, a fixação, objetiva e unilateral, de garimpeiros potencialmente genocidas por um lado, e, por outro, de indígenas Yanomami possivelmente vítimas da ação criminosa de tais garimpeiros não é pré-dada, mas cuidadosamente construída 1

Agradeço aqui aos sempre pacientes esclarecimentos que Rafael Rodrigues de Alcântara, bacharel em Direito e funcionário do judiciário brasileiro, me deu durante a feitura da presente dissertação, principalmente no que tange às questões práticas e acadêmicas do Direito. 2

Processo Haximu (PH), :479-518, Relatório Final do Inquérito Policial.

3

PH, :01-39, Denúncia do Ministério Público Federal.

56

em certos documentos no decorrer do Processo. Pode-se notar, no Inquérito, uma tentativa de isolar tudo que seria relevante para o julgamento do Caso em questão, compilando todas as provas numa peça relativamente independente da discussão judicial em si. Tal artifício parece ser pontualmente oposto àquele adotado, por exemplo, nos tribunais Lozi da África Zulu, analisada por Max Gluckman (GLUCKMAN, 1967). Nesse último caso, os julgadores estão interessados em fazer com que as relações futuras entre os litigantes sejam minimamente afetadas pelo litígio em questão – ao contrário do que ocorre num processo criminal moderno, onde o norte é tipificar, a partir de uma série de provas, uma conduta criminosa específica e dar-lhe o corretivo adequado, independentemente das possíveis relações futuras entre os querelantes. Nesse sentido, Gluckman argumenta que The disputes which are investigated by Lozi Kutas [espécies de conselhos administrativos, militares e tribunais judiciais Lozi] arise not in ephemeral relationships involving single interests, but in relationships which embrace many interests, which depend on similar related relationships, and which may endure to the future.(Idem, :63) Por outro lado, como deixarei claro no decorrer do presente capítulo, um estudo mais detido dos documentos do Processo Haximu mostra que, na construção do Crime de Genocídio, tal isolamento não está restrito apenas ao que teria acontecido diretamente nos assassinatos específicos promovidos pelos garimpeiros. Na verdade, a Denúncia tem como norte deixar claro que os garimpeiros envolvidos nesse evento são criminosos antes mesmo das incursões genocidas contra os Yanomami de Haximu. Para tanto, os Procuradores baseiam-se na análise sociológica da relação cotidiana entre índios e garimpeiros, análise essa que é levada a cabo pelo então membro da CCPY, o antropólogo Bruce Albert. O Relatório de Albert, como mostrarei nas próximas páginas, é a base em que irá sedimentar-se todo o argumento de porquê teria acontecido um Genocídio na aldeia Yanomami de Haximu. As relações sociais entre garimpeiros e índios são enfocadas no Processo não exatamente para garantir que tais relações continuem no futuro (como no exemplo trazido por Max Gluckman), mas exatamente para fazer com que elas deixem de existir da maneira que existem – e, como já dito, também para construir um ímpeto ou conduta genocida dos garimpeiros como algo

57

anterior ao próprio ato genocida, ou seja, como derivada de uma espécie de mentalidade criminosa dos acusados.29 Assim, voltando ao tema do presente capítulo, é preciso aqui notar que, em todo Processo, há apenas algumas capas que são numeradas: a do Inquérito Policial da Polícia Federal (PF), com o número de folha 40, ou ainda a capa do Laudo Pericial da ossada e cinzas encontradas no local do Massacre (:401). Com isso, não se numera as capas de outros Tribunais pois elas compartilham de uma mesma ‘essência’ judicial. A capa do Inquérito figuraria, assim, englobada (e, portanto, numerada) por tal essência, como os laudos e peças documentais. Um técnico judicial informou-me que, em alguns cartórios de tribunais, no momento em que vai se ajuntar o Inquérito ao Processo, é comum que se dispense a capa do primeiro e que ele figure sem qualquer pré-referência de que foi produzido por policiais30. Todavia, é importante notar que, mesmo que no Processo Haximu faltasse uma capa com as insígnias da PF, seria impossível confundir o material produzido por funcionários do judiciário ou pelos Interessados no processo com aqueles que foram escritos por delegados, escrivões e agentes da PF. Primeiramente porque as folhas do Inquérito contam com um carimbo e numeração diferentes - marcas que, no caso do Processo Haximu, foram riscadas com um ‘x’ à caneta no TRF/RR, tendo sido acrescentado, logo ao lado, a numeração e carimbo deste Tribunal. Há de se levar em conta que, por essa nova numeração, as folhas 1 a 39 compõem a Denúncia do MPF e que a folha 1 do Inquérito, na numeração dada pela PF, passa a ser agora a 41 do Processo, já na fase judicial. Por outro lado, quando o Processo muda de Tribunal, conserva-se sempre a numeração dada pela alçada judicial anterior. Um ponto importante a ser ressaltado é que tal subversão da numeração é exclusiva ao Inquérito porque ele é uma massa documental anterior não somente cronologicamente ao Processo: o Inquérito é, de certa maneira, um ‘não-processo’, tido como independente e, não raro, referenciado com ressalvas. Por exemplo, há, durante todo o Caso, reiteradas reclamações dos diversos advogados dos garimpeiros sobre a validade dos depoimentos colhidos pelos Policiais Federais – depoimentos esses que 29

Para uma outra leitura dos estudos de Gluckman a partir de uma situação judicial diferente, onde o norte é menos a correção e mais a conservação da relação, cf. VIANNA, 2002. 30 Explicito que o foco dessa digressão é a noção de hierarquia pensada por Louis Dumont (DUMONT, 2000 e 1995), onde as relações hierárquicas são pensadas não como um ranking de posições superpostas, mas por sucessivas (e, em determinadas situações, passíveis de inversão) ações de englobamento daquilo que, em certo sentido, é contrário ao agente englobador.

58

teriam sido tomados, nessa versão, por intermédio da violência física e/ou psicológica. Além disso, o Inquérito é produzido por funcionários públicos federais (PF) que parecem não fazer parte completamente do aparato judicial, mas que produzem documentos para e atuam paralelamente aos juízes, ministros de tribunais, promotores e advogados. Numa análise das punições infligidas aos desviantes pelo aparato carcerário moderno, Michel Foucault (FOUCAULT, 2006) argumenta que o cárcere não está completamente submetido ao tribunal que lhe manda condenados a serem ‘ressocializados’. O primeiro tem garantida uma certa independência frente ao último, o que torna possível pensar a prisão não exatamente como um aparelho de vingança ou acerto de contas, mas como uma técnica específica de reformar desviantes. Assim, como chama atenção Foucault, a prisão [no que tange à maneira como ela é vista frente a outros agentes disciplinadores] continua, sobre aqueles que lhe são confiados, um trabalho começado fora dela e exercido pela sociedade sobre cada um através de inúmeros mecanismos de disciplina. Graças ao continuum carcerário, a instância que condena se introduz entre todas as que controlam, transformam corrigem, melhoram. (FOUCAULT, 2006:250) Esse continuum relativo pode ser também notado na produção de documentos pelos policiais. Os artifícios para apartar o Inquérito do restante do Processo – a subversão da numeração, a mudança da ordem cronológica de ajuntamento de documentos e, por vezes, até a retirada da capa de tal documento - dão pistas para se pensar como isso se dá: aqueles que investigam e levantam provas (“instruem” o Processo, como argumentam advogados, promotores e julgadores durante todo o Caso) conformam uma seara determinada de funcionários especializados. Esse corpo de funcionários não está exatamente na mesma linhagem dos promotores, advogados e julgadores (apesar do delegado ter que ser, por força da lei, um bacharel em Direito), mas eles produzem, a partir de uma técnica específica, certos produtos determinados (documentos, suspeitos e laudos periciais, por exemplo) que serão, por fim, reapropriados por outros especialistas - agora responsáveis, ao menos idealmente, apenas por discutir judicialmente tais provas, julgar e proferir uma Sentença. Um outro dado que pode ser trazido como diferenciador entre os documentos propriamente feitos para/nos Tribunais daqueles produzidos por “procedimento préprocessual” (termo usado pelo Delegado de Polícia Federal Raimundo Soares Cutrim na

59

folha 512 do já citado Relatório Final do Inquérito Policial) é o seguinte: no PréProcesso, os policiais são responsáveis, idealmente, apenas por recolher provas. Também idealmente, não há nenhum espaço para a expressão legal de qualquer uma das Partes, tendo em vista que, quem as definiu, como já disse, foi a Denúncia do MPF, cronologicamente posterior ao Inquérito. Reitero aqui o termo idealmente porque, por exemplo, a primeira advogada dos garimpeiros, Dra. Adriana Souto Maior, fez um Pedido de Vistas4 dos Autos ainda com o Inquérito em andamento, em 17-09-93. A Advogada alegava que “esta solicitação deve-se ao fato da requerente [do Pedido de Vistas] carecer de informações para fazer a defesa dos detentos, assegurando assim seus direitos e garantias constitucionais” 5. Tal defesa só seria apresentada na fase propriamente judicial, e o que a Advogada visava era ter acesso às provas já então recolhidas antes que se iniciasse o Processo em si. Algo similar pode ser também notado entre os Procuradores que assinam a Denúncia: alguns deles acompanharam as incursões dos delegados da PF à aldeia onde estavam os indígenas sobreviventes de Haximu, tendo, inclusive, participado de alguns depoimentos na Fase Inquisitorial (cf., por exemplo, o depoimento citado na próxima subseção). Na verdade, a diferenciação entre a Polícia Federal e os Tribunais perpassa as próprias categorias usadas para se referir aos depoimentos: no Inquérito, usa-se Termos de Declaração, enquanto a categoria Testemunho e Depoimento são reservadas exclusivamente aos documentos produzidos perante os juízes que tomaram parte no Processo. De todo modo, o Pedido de Vistas da Dra. Adriana Souto é deferido na folha 385 por um despacho manuscrito do Juiz de 1ª Instância do TRF/RR, Dr. Renato Martins Prates. Isso acontece, porém, não sem a manifestação em contrário do Procurador da República Franklin Rodrigues da Costa, que na Petição da página 426 argumenta que: “o Código de Processo Penal [...] assegura ao inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato [...] Trata-se de fato com repercussão até internacional, o que impõe toda a cautela quanto ao acesso de peças do mesmo” (ênfase minha).

4

PH, :384, Pedido de Vistas do Inquérito. O Pedido de Vistas é o instrumento pelo qual um processo é lido, fotocopiado e tem documentos ajuntados fora da instituição em que ele normalmente tramita – no caso, a Sede da Polícia Federal de Roraima. Depois de tais Vistas, os documentos devem voltar à repartição do tribunal responsável. 5 Idem

60

Assim, finalizando essa subseção, esclareço que, ao menos por enquanto, deixarei de lado a análise da Peça da Denúncia do MPF e partirei, no resto do presente capítulo, para e estudo interno do Pré-Processo. Além do fato do Inquérito Policial ser cronologicamente anterior à Denúncia (sendo, porém, como visto, ela que inaugura o Processo), levo em conta que a última se faz num conjunto documental com maior grau de sedimentação que o Inquérito. Na verdade, tanto na Denúncia quanto nos outros documentos cronologicamente posteriores a ela, está praticamente pronto certo modelo narrativo do ocorrido na Aldeia Yanomami de Haximu, modelo esse que toma como base o que o antropólogo Bruce Albert batiza, ainda no Inquérito, de “Chacina de Haximu”6. Tendo em vista que explicitamente subverto a disposição das Peças que foi dada pelos funcionários do TRF/RR, passo, então, à análise mais detida do “procedimento pré-processual”.

II. O início do Inquérito Policial ou os Fragmentos Descartados Segue-se abaixo uma seleta do primeiro Termo de Declarações de um índio à Polícia Federal7. Tal documento é a primeira narrativa da ação dos garimpeiros contra os Yanomami de Haximu: TERMO DE DECLARAÇÕES que presta o Tuxaua ANTONIO YANOMAMI. Aos vinte e tres dias do mes de agosto do ano de mil novecentos e noventa e tres, no Posto da FUNAI em Xideia [Xidéia]/RR, onde presente se encontrava o Bel. [Bacharel em Direito] JOSÉ SIDNEY VERAS [Aqui se torna impossível ler o resto da linha pois em cima há a impressão digital do Tuxaua Antonio Yanomami31] [Dele]gado de Polícia Federal, comigo Escrivão de Polícia Fe[deral] [prese]sente ainda o Dr. FRANKLIN 6

PH, :119-127, Relatório da investigação realizada com os sobreviventes da chacina do Hwaixmëu, Bruce Albert (ORSTOM, UNB). 7

PH, : 63-65, Termo de Declarações que presta o Tuxua Antonio Yanomami. Em todas as citações, conservo a grafia original do documento, repetindo, inclusive, explícitos erros de português. As únicas correções que faço no texto vão entre colchetes, a fim de facilitar a compreensão do mesmo. 31

Para uma breve análise e outras referências sobre análises sociológicas da identificação papilar no Brasil, cf. SOUZA LIMA, 1998, :214-220.

61

RODRIGUES DA COSTA, Procurador da República, portador da Carteira de Identidade no. 61.8111-RR, compareceu: ANTONIO YANOMAMI Tuchaua do Grupo Bockla-Hundumu-thele, o qual na presença [do] Sr. FRANCISCO BEZERRA DE LIMA, Funcionário da FUNAI, e funcionando como INTERPRETE, RESPONDEU: QUE, o DECLARANTE [Antonio Yanomami] informa que costumava ir ate a maloca conhecida por hwexima-u-thele e que citada aldeia era muito habitada e ali residiam muitas familias, podendo citar [seguese, então, uma lista de 84 pessoas, feita no modelo ‘SANSÃO, esposa e duas filhas’]; QUE, esclarece que a aldeia já referida era constituída de duas Malocas as quais foram totalmente destruídas por incêndio; QUE, se dirigiu certa feita ate a Maloca HOXIMU [Haximu], não tendo condições de precisar a data, acrescentando ter sido antes do dia 15 de agosto, para estar com seus conhecidos e no caminho encontrou com o indigena filho do JOÃO e do MENENE, tendo estes afirmado que não adiantava ir até a Aldeia Hoximu, porque ali não estava mais ninguem e que [:64] [:65] retornou a Xideia e juntamente com seu povo, inclusive bastante assustado se dirigiu ao Funcionário da FUNAI, pedindo que expulsassem os garimpeiros e chamassem a Policia Federal, [e] um helicoptéro; [...] QUE, num primeiro contato com os garimpeiros estes ameaçaram dizendo que “YANOMAMIS não prestavam e que tinha que sair dali”, tendo pedido ao garimpeiro um pouco de farinha, o que foi atendido e seguiram aqueles indígenas com a Farinha que haviam dado e chegando no meio do caminho [as duas últimas palavras estão corrigidas à caneta] agrediram os indigenas, matando parte deles antes de chegarem na Maloca; [...] QUE, num segundo massacre ocorreu em torno de cinco dias [do primeiro], oportunidade em que foram incendiadas duas Malocas HOMIMO, e que neste massacre os indigenas residentes da Maloca HAXIMU foram mortos a tiros [d]e espingarda e revolveres e tiveram seus corpos separados mediante uso de faca e facão; QUE, ante a violência do espetaculo alguns indigenas podem ter escapado não sabendo-se entretanto onde possam estar; QUE, esse ataque repercutiu tambem na Maloca do SIMÃO que fica mais proxima a HAXIMU, e tendo os indigenas também fugido temendo por suas vidas fugindo não sabendo para onde; QUE, segundo ainda o filho de UIXUAMA , tempos após aquele ataque a Maloca, apareceram três mulheres indigenas em HOMOXI, bastante assustadas, atras de alimentos e após isto também desapareceram; [...] QUE, ao tomar conhecimento do massacre dos indigenas residentes na Aldeia HAXIMU, o DECLARANTE contou o corrido ao funcionario da FUNAI JADIR, ao funcionário da Fundação Nacional de Saúde ROQUE e a ALÉSSIA e posteriormente contou o ocorrido para as irmãs EUGÊNCIA e BLANDINA. Nada mais disse nem lhe foi perguntando pelo que mandou a autoridade encerrar o presente Termo que depois de lido e achado conforme assina com DECLARANTE (a rogo), com o Funcionário [da FUNAI] JADIR

62

FRANCO MOTA, CURADOR8, com a Dr. FRANKLING RODRIGUES DA COSTA, Procurador da República, com as TESTEMUNHAS irmães BENEDICTA DIAS PEREIRA e SPECHA, Evangélicas do Posto de Xideia e comigo FRANCISCO ROGERIO DE SOUSA, Escrivão de Policia Federal que a datilografei.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x [logo abaixo estão descritos os cargos dos funcionários públicos, seguidos da assinatura dos mesmos; no caso do Tuxaua, há a marca de sua impressão digital em cima da linha reservado ao Declarante]. (ênfase minha) A citação acima é intencionalmente longa, trazendo, praticamente na íntegra, o texto do Escrivão Francisco de Sousa. Antes de entrar no conteúdo do que é narrado por Antonio Yanomami, é preciso algumas considerações preliminares sobre em que contexto em que é tomada a fala do Tuxaua: tal documento é produzido no meio da selva amazônica (Posto da FUNAI de Xidéia), e não na Sede da PF/RR (em Boa Vista, onde acontecem todos os depoimentos de garimpeiros); é datilografado numa máquina de escrever (e não num computador, como a maioria dos outros depoimentos), o que acaba não permitindo maiores revisões, a não ser rasuras à caneta por cima do texto já escrito; contém, como se pôde notar, um grande número de erros de grafia – o Escrivão de Polícia deixa, por vezes, de acentuar a palavra “polícia”, por exemplo. Enfim, as características que elenquei acima compõem, de maneira geral, o modelo dos depoimentos de indígenas, antropólogos, funcionários da FUNAI e da Comissão PróYanomami (CCPY) dados à PF durante as incursões dos Policiais Federais ao Posto da FUNAI de Xidéia, sendo reflexos dos meios materiais disponíveis por tais policiais para produzir documentos nesse local. Contudo, há algo comum nos depoimentos do Processo como um todo, tanto no período do Inquérito quanto no judicial: conserva-se, sempre, a narrativa de forma indireta; usa-se ininterruptamente a terceira pessoa do singular (“o DECLARANTE contou o ocorrido...”) durante todo o texto, alterando-a apenas no final, para a identificação do funcionário público que digita ou datilografa o texto (“comigo FRANCISCO ROGERIO DE SOUSA, Escrivão de Policia Federal que a datilografei”).

8

“Aquele que está judicialmente incumbido de cuidar dos interesses e bens dos que sejam ou estejam impossibilitados de fazê-lo, como os órfãos menores, os doentes mentais, toxicômanos, inválidos.” Dicionário Eletrônico Houassis da Língua Portuguesa, versão 1.0, dezembro de 2001. Há de se acrescentar aí, os indígenas, que, apesar da Constituição Federal de 1988 lhes garantir plena liberdade de ação, ainda são, juridicamente, relativamente incapazes pelo atual Estatuto do Índio. Para uma discussão mais acurada do poder de tutela exercido sobre os ditos indígenas, cf. os trabalhos de SOUZA LIMA e PACHECO FILHO citados na bibliografia ao final.

63

É assim que todas as testemunhas entram no Processo: o que eles contam sempre passa pelo crivo de um escrivão de polícia ou técnico/analista judicial especializado em colher e produzir esses depoimentos. Tenho em mente que essa adaptação da narrativa visa, basicamente, distanciar os depoentes e a história que é contada por eles daqueles que colhem o depoimento e transcrevem tal história – visando manter o caráter neutro ou equânime característico dos que são responsáveis por escutar e colher dados num conflito institucionalmente mediado, como Max Gluckman chama atenção mesmo em contextos onde não há um arquivamento escrito dos casos (GLUCKMAN, 1963 e 1967). A análise de Pierre Bourdieu do que ele mesmo denomina de “campo jurídico” (BOURDIEU, 1986) ajuda a esclarecer melhor quais as conseqüências de tais artifícios de linguagem. Para esse autor, há dois efeitos gerais da linguagem padronizada do Direito: L’effet de neutralisation, est obtenu par um ensemble de traits syntatiques tels que la prédominance dês constructions passives et des tours impersonnels, propres à marquer l’impersonnalité de l’énonciacion em sujet universel, à la fois impartial et objectif. L’effet d’universalisation est obtenu par différentes procedes convergentes: le recours systématique à l’indicatif [...]; l’ emploi, propre à la rhétorique du constant officiel et du procés verbal, de verbes constatifs à la troisième personne du singulier du présent ou du passé composé exprimant l’aspect accompli (“accepte”, “avoue”, “s’engange”, “a déclaré", etc.) e du présent intemporiel (ou du futur juridique) propres à exprimer la generalité el l’omni temporalité de la régle de droit. (BOURDIEU, 1986:5) Bourdieu não faz referência, em seu texto, diretamente ao aparato policial que opera paralela e complementariamente ao judicial – na verdade, sua preocupação principal parecer ser o mapeamento de algumas características gerais do que ele chama de “jogo do direito” (BOURDIEU, 1986:10), ou seja, as relações de poder internas que conformam especificamente tal jogo. Contudo, pode-se notar que os traços enfocados pelo autor estão presentes tanto nos depoimentos do Inquérito quanto nos propriamente judiciais do Caso Haximu: há uma predominância quase absoluta das construções na terceira pessoa singular, conservando-se uma impessoalidade que só é ‘maculada’ na identificação do funcionário público específico que colhe o depoimento, no fim do mesmo. Nesse sentido, é correto afirmar, sobre os depoimentos inquisitoriais, que eles também visam “la transformacion des conflits inconciliables d’interêts en échanges 64

régles d’arguments rationnels entre sujets égaux est incrire dans l’existence même d’um personnel spécialisé, indépendant des groupes sociaux en conflit” (BOURDIEU, 1986: 9). Além disso, há de se notar que os depoentes figuram sempre como narradores pretensamente independentes: nunca há referência às perguntas feitas a eles, apesar de ser possível deduzir quais são elas depois de se ler um conjunto de dezenas de depoimentos seguidos. Arquiva-se, portanto, apenas as respostas dadas – e o documento, que mais tarde será reapropriado pelos representantes das Partes, apresentase relativamente coerente e neutro. Assim, há de se deixar claro que, num conflito entre dois, é um terceiro que ‘coleta’ as histórias contadas: ele, idealmente, não toma parte nelas, mas escreve o que outro alguém conta sobre o que aconteceu a esse último e a outras pessoas. Os policiais e funcionários dos tribunais mantêm-se, pretensamente, fora do conflito em si: eles ‘apenas’ intermediam um conflito anterior, o classificam e, por fim, dizem (aqui uma função exclusiva dos especialistas que atuam nos Tribunais durante a fase judicial) quem tem ou não razão na contenda. Nesse sentido, há de se ressaltar que, num processo criminal moderno, o conflito a ser mediado é pensado como anterior não apenas no sentido temporal à arbitragem judicial, já que uma das características básicas dessa arbitragem é a idéia de que existe uma “illusion de son autonomie absolue par rapport aux demandes externes” (ibid idem, :4)32. Com isso, uma situação qualquer só passa a ser considerada um caso judicial quando ela é, como bem chama atenção Bourdieu, simbolicamente ‘traduzida’, quando passa a ganhar sentido dentro de um sistema de valores tido como autônomo – e, além disso, tido como único meio legítimo de se resolver o conflito. Vários são os artifícios que fazem operar tal distanciamento: um deles parece ser, sem dúvida, o modo como são colhidos os depoimentos num processo criminal. Contudo, em relação ao tema específico desse capítulo, é preciso fazer uma ressalva: apesar do fato dos policiais que tomam parte no Inquérito indicarem qual Crime foi cometido a partir das provas que eles mesmo recolhem (cf. o já citado Relatório Final do Inquérito Policial), é possível ao juiz subverter completamente tal indicação e, inclusive, julgar sem levar em conta o Inquérito ou mandar que se faça novas diligências. 32

O termo “ilusão” não deve ser entendido como algo que deturpa ou mascara uma realidade anterior. O que o autor ressalta aí é uma pretensão ou ideal, típico do campo judicial e nem sempre seguida à risca, de que é possível dar conta de todo caso empírico a partir de um código legal independente e já préestabelecido.

65

No caso específico dos depoimentos indígenas, há ainda outra gradação importante entre depoentes e colhedores de depoimentos: em todos os depoimentos de índios Yanomami (tanto no Inquérito quanto nos Tribunais), há a intermediação de um tradutor – no caso acima, Francisco Bezerra de Lima, funcionário da FUNAI, e, em outras situações, ele em conjunto com o antropólogo Bruce Albert, então membro da CCPY. Essa imposição de um ‘invisível’ novo intermediador (o depoimento não é dele, mas é ele quem as traduz), a necessária presença de um outro elemento neutro na já neutralizada narrativa, tem que ser adaptada à condição de mediação que descrevi acima. Penso ser essa a função de documentos como uma Portaria, escrita pelo Delegado José Sidney Vera Lemos, nomeando Francisco Bezerra de Lima como intérprete dos Yanomami10. Nela, Francisco tem que se comprometer (o que, no caso, é sinônimo de assinar o documento33) em “funcionar como INTERPRETE, devendo na oportunidade verter para o idioma (dialeto) YANOMAMI, as perguntas que lhe são feitas, e ao mesmo tempo traduzir para a lingua portuguesa as respostas dadas pelo declarante [...] [Devendo estar, após a assinatura] Ciente do compromisso, prometendo desempenhá-lo com zelo e probidade [segue-se a assinatura de Francisco]” 11. Tal documento é análogo a vários outros presentes no Processo, como o Despacho, produzido pelo mesmo Delegado mas endereçado aos tradutores Bruce Albert e o religioso católico Carlos Acquini, ou ainda, o Termo de Compromisso do Intérprete da FUNAI Ivanildo Wawanawetery12, que, como Carlos e Albert, se faz intérprete dos Yanomami, agora no TRF de Boa Vista. Em resumo, tais Despachos, Portarias e Termos de Compromisso visam qualificar alguém não diretamente ligado à função mediadora num depoimento a exercer, circunscrita e temporariamente, um papel específico dentro no Processo: o de traduzir as perguntas aos depoentes e, no mesmo 10

PH, :62, Portaria nomeando Francisco Bezerra de Lima, funcionário da FUNAI, como intérprete dos Yanomami. 33

Uma discussão mais pontual dos poderes da assinatura foi feita no capítulo anterior.

11

Idem. Reforço aqui a ressalva feita anteriormente: nas citações do Processo, conservo sempre a grafia original constante nesses documentos, mantendo, inclusive, os possíveis desacertos de grafia ou de concordância. 12 PH, :316, Despacho do Del. Cutrim para lavrar-se portaria nomeando Bruce Albert e o religioso Carlos Acquini como tradutores de Japão Yanomami. PH, :667, Termo de Compromisso do intérprete Ivanildo Wawanawetery, funcionário da FUNAI.

66

sentido, de dar conta do que os depoentes falam aos policiais ou funcionários do judiciário. Esses documentos, enfim, visam garantir a referida ‘invisibilidade’ aos intérpretes, tornando possível, ao menos idealmente, que os Termos de Declaração ou Testemunhos Judiciais de indígenas que não falam português possam ser produzidos tendo como norte a mesma neutralidade de mediação mapeada acima. Jack Goody (GOODY, 1986), nesse mesmo sentido, argumenta que a escrita pode ganhar, no Ocidente e em outros lugares, um papel homogeinizador central: “the use of a common written language (as in medieval Western Europe) or a common logographic script (as in China) helps to overcome the diversity of spoken tongues and dialects, and some extent of cultural practice as well” (GOODY, 1986:112). A necessária presença de um tradutor (e, antes disso, o próprio modelo de colhimento de depoimentos descrito acima) está, assim, ligada à organização de uma certa burocracia estatal moderna, que tem como norte a adoção de uma língua oficial que abarca todos os outros ‘dialetos’ que são possivelmente usados dentro do âmbito do Estado brasileiro34. Voltando ao conflito em si, deixo claro que sua análise a partir de três elementos idealmente tomados se inspira diretamente no estudo do sociólogo alemão Georg Simmel (SIMMEL, 1964). Outra questão que pode ser melhor discutida a partir desse texto de Simmel são as definições de arbitragem e mediação, que venho usando até aqui como sinônimos. Assim, Simmel chama atenção para uma gradação importante no que tange às diversas maneiras que uma contenda qualquer pode ser resolvida. Em certas situações, para Simmel, As long as the third properly operates as a mediator, the final termination of the conflict lies exclusively in the hands of the parties themselves. But when they choose an arbitrator, they relinquish this final decision. [...]. Even in the state tribunal, it is only the action of the complainant that results from confidence in just decision, since the complainant considers the decision that is favorable to him the just decision. The defendant, on the other hand, must enter the suit wheter or not he believes in the impartiality of the judge. (Idem, :151, ênfase minha). Contudo, Simmel não pensa a arbitragem e a mediação como tipos isolados componentes dos conflitos. O que o autor parece apontar é para a existência de uma 34

Foge do escopo do presente trabalho discutir mais detidamente como se dá a formação da idéia de tal Estado abarcador. Interessantes pistas para tal discussão (e, conseqüentemente, outras referencias) podem ser encontradas no estudo de SOUZA LIMA, 1995.

67

espécie de linha de tensão entre relações conflituosas que têm maior possibilidade de um terceiro elemento impor suas decisões – e, é claro, contextos outros em que essa possibilidade é marcadamente reduzida. Como exemplo, pode-se tomar o já citado estudo de Max Gluckam entre os Zulu: nesse caso, o autor esclarece que, após a introdução da Indirect Rule britânica (cf. especialmente GLUCKMAN, 1941) todo o aparato político Zulu passou a figurar mais como mediador de conflitos que propriamente como árbitro – no sentido que empresta aos termos Simmel na passagem acima. O próprio Gluckman, quando descreve julgamentos tipicamente Zulu, o faz de maneira retrospectiva ou indireta (GLUCKMAN, 1967 e 1963). Assim, há de se notar que os tribunais nativos perderam gradativamente o poder que tinham, passando a figurar como instâncias de imposição de decisões cada vez menos importantes, por vezes até descartáveis (cf., por exemplo, GLUCKMAN, 1941: 47, onde narra-se a então posição política dos chefes de clã Zulu, que passaram a figurar como meros funcionários da Coroa, devendo obediência direta aos magistrados europeus). Por outro lado, não há dúvidas de que, no julgamento de um processo criminal no Direito moderno, o judiciário tende a ser mais árbitro que mediador: uma sentença, nesse caso, demanda uma pena a ser cumprida ou já em andamento – ou, por outro lado, cria um Foragido, que é uma figura jurídica que visa manter a pretensão ou ‘ilusão’ (cf. nota sobre o texto de Pierre Bourdieu, acima) de universalidade da coerção arbitral do Direito moderno. Tratarei mais detidamente desse tema nos capítulos que se seguem, mas ressalto aqui que, das quase duas dezenas dos direta ou indiretamente acusados pelo Genocídio de Haximu, à época da última decisão judicial, só um garimpeiro estava preso – existindo, portanto, cerca de dezessete Foragidos. Detenho-me agora na análise mais pontual do que efetivamente é narrado no Inquérito. Dou especial atenção aos Termos de Declarações, Laudos Periciais e aos já citados Relatórios, já que são esses documentos que irão compor o cerne das discussões nos Tribunais, como mostrarei no próximo capítulo. O Tuxaua Antonio Yanomami presta um segundo depoimento ao Delegado José 13

Lemos , onde, além de confirmar a lista anterior dos habitantes mortos em Haximu, diz que, na fuga do segundo Massacre, os índios “foram surpreendidos por garimpeiros, os quais chegaram atirando e matando os sobreviventes inclusive as mulheres, tendo

13

PH, :85-89, Termo de Declarações que presta o indígena Antonio Yanomami.

68

conseguido escapar o DECLARANTE, JAPÃO E LHULHU [outros dois índios]”14. No fim desse novo depoimento, o Tuxaua informa “QUE, acredita que ninguem mais escapou aquele ataque por que senão teriam chegado ao HOXIMI e ele não viu nem teve notícias de neyuma [nenhuma] daquelas pessoas que conhecia”15. Dos cerca de oitenta e quatro habitantes de Haximu no primeiro Termo de Declarações (como se pode inferir do Termo de Declarações de Antonio Yanomami, citado acima), teriam sido mortos, então, algo em torno de oitenta pessoas. Antonio diz ainda que acha que todos esses corpos foram jogados no rio16. O Delegado José Lemos remete, então, um Ofício ao Comandante do Corpo de Bombeiros de Boa Vista solicitando “soldados mergulhadores dessa corporação, a fim de localizarem possíveis corpos no Rio Homoxi”17. Há de se frisar que, pelo que é relatado nesse Termo de Declarações (como também em outros depoimentos, como o de Japão Yanomami, :110), houve, no mínimo, três ataques distintos dos garimpeiros contra os Yanomami. Na tentativa de sistematizar melhor quem havia sido morto ou não, um Agente da Polícia Federal não identificado (a fotocópia cortou seu nome) faz uma lista manuscrita18 das prováveis vítimas. Nela há um total de setenta e um mortos. Ao que parece, tal Agente tomou como base os primeiros depoimentos de indígenas à PF (como os de Maria e Louveira, citados abaixo), fazendo um esquema de traços para cada um dos então citados. Há outra lista mais à frente no Inquérito19, agora produzida por um enfermeiro da CCPY que teve contato com os sobreviventes. Nesse último arranjo, totaliza-se sessenta e dois índios mortos. Outros índios além do Tuxaua Antonio Yanomami tiveram seus depoimentos colhidos. Maria Yanomami, por exemplo, cita uma lista de habitantes tão longa quanto a de Antonio, esclarecendo, na última página de seu depoimento, que “escaparam [os índios] PAULO, PAULISTA, GUERREIRO e LINCAU e sua mulher”, tendo a esposa de

14

Idem, :86.

15

Ibid Idem, :89, ênfase minha.

16

Ibid Idem, :86.

17

PH, :91, Ofício do Delegado José Lemos ao Comandante do Corpo de Bombeiros.

18 19

PH, :82-83, Lista manuscrita de possíveis mortos, feita a partir dos Termos de Declarações passados. PH, :164. Lista Manuscrita do enfermeiro da CCPY Jorge André Gurjão com os possíveis mortos.

69

Lincau, ferida, falecido mais tarde20. Esse mesmo depoente afirma que o indígena Simão Yanomami está entre os mortos – e esse último presta depoimento algumas folhas depois dele. Louveira Yanomami, da mesma maneira, traça uma lista análoga de indígenas, acrescentando que “acha que os garimpeiros responsaveis pela Chacina esconderam os corpos no mato isso porque o indígena SIMÃO os viu e hoje não são [os corpos] encontrados”21. Ressalto que, nesse momento, contabiliza-se algo em torno de seis, sete ou oito dezenas de vítimas, mortas em três ataques distintos dos garimpeiros. O primeiro depoimento de um garimpeiro constante nos Autos é o de Wilson Alves dos Santos22, de apelido Neguinho. Wilson Alves será um dos réus citados na Denúncia inicial do MPF, porém figurando, nesse momento, como mero prestador de Termo de Declarações. É explícita a diferença entre o que gira em torno dos depoimentos de indígenas quando comparados aos não-indígenas. Primeiramente, os policiais viajam para escutar os índios, enquanto os garimpeiros é que se deslocam para falar na Sede da PF em Boa Vista. Na fase judicial, os índios são Intimados por Ofícios ao Administrador Regional da FUNAI de Roraima, enquanto os garimpeiros têm os documentos entregues (ou, ao menos, assim tenta-se) em suas residências, como deixarei claro no próximo capítulo. Durante todos os nove volumes do Processo, os indígenas são citados sempre por nomes com grafias diferentes. Só para ficar num exemplo, o Reia Yanomami do Laudo Pericial na :461 é o mesmo Rikima Yanomami do Termo de Declarações na :159-192. A grafia do nome da depoente Yanomami Waythereoma Hwanxima varia não só nos vários Termos de Declarações e Testemunhos Em Juízo que ela presta, mas também dentro do mesmo depoimento, conservando-se, acima, o modelo que me pareceu mais se repetir. No caso dos garimpeiros, cita-se sempre o nome constante em suas carteiras de identidade, seguido do apelido e, mais à frente, o endereço atual de residência – com indicações, na maioria das vezes, de como se chegar a tal local. Tais nomes conservam-se imutáveis durante todo o Processo. Para os índios, o preâmbulo nos depoimentos é bem mais curto: depois do nome, data, local e a citação da autoridade que então preside Inquérito/Audência, normalmente segue-se já o “RESPONDEU QUE” característico do início de tais documentos. Além de não se colher o local de moradia dos índios e ter que se deslocar 20

PH, :66-68, Termo de Declarações que presta o [Maria é o nome de um indígena do sexo masculino] indígena Maria Yanomami. 21

PH, :69-72, Termo de Declarações que presta o indígena Louveira Yanomami.

22

PH, : 93-97, Termo de Declarações do garimpeiro Wilson Alves dos Santos, ‘Neguinho’.

70

para ouvi-los, há de se notar que, como mostrarei mais detidamente no próximo capítulo, nos Testemunhos Judiciais os índios não figuram exatamente como depoentes, mas sim como Prestadores de Informações, não tendo que fazer os juramentos de praxe com a verdade pois são Legalmente Inimputáveis (cf. acima, sobre o poder tutelar e a indianidade). De todo modo, na Sede da PF em Boa Vista, Wilson Alves não faz qualquer referência aos ataques que possivelmente poderiam ter sofrido os indígenas. Diz apenas que ele e um companheiro, apelidado Fininho, foram atacados por índios, tendo Fininho falecido ali mesmo no garimpo e ele próprio, Neguinho, conseguido fugir “milagrosamente”, já que “com o tiro que atingiu FININHO levantou-se [Neguinho] de imediato senão na posição que estava seria atingido na cabeça [tendo sido, portanto, alvejado nas nádegas e nas costas]”23. Dejacy Oliveira de Sousa, o ‘Casa Grande’, disse estar também presente nesse ataque sofrido pelos garimpeiros, e se desesperou tanto que “saiu correndo [...] e sequer obervou [observou], digo obervou [o erro realmente repete-se] se NEGUINHO e FININHO ali estavam ou se haviam corrido; QUE, no momento dos disparos efetivamente chegou a acreditar que tratava-se de índios [...] mas na fuga não viu nenhum”24. É nesse mesmo Termo de Declarações que Casa Grande esclarece que, entre os garimpeiros, raramente sabe-se o nome completo dos companheiros de profissão, sendo todos chamados pelo apelido25. Apesar de nenhum garimpeiro, até o fim do Processo, confessar ter participado das mortes dos Yanomami de Haximu, a maioria deles acusa, em seus depoimentos, vários companheiros de profissão. Pode-se notar aqui que os policiais responsáveis pelo Inquérito sempre perguntam aos garimpeiros se eles conhecem alguém que tenha tomado parte nesse ato – ao que praticamente todos respondem que sim, mas só conseguem identificá-los, como ressalta Casa Grande, pelo apelido. Tratarei desse ponto mais detidamente no próximo capítulo, mas adianto que os Requeridos formalmente acusados no Processo são apenas aqueles a respeito dos quais conseguiu-se fazer uma 23

Idem, :93.

24

PH :95-97, Termo de Declarações de Dejacy Oliveira, ‘Casa Grande’.

25

Idem, :96.

71

correspondência entre apelidos e nomes – o que nem sempre é fácil, como o exemplo do garimpeiro Pedro Emiliano mostrará no capítulo que se segue. É preciso nesse momento fazer um breve apanhado do que há, até então, no Inquérito. De início, não se tem idéia exata do número de índios que foram mortos, variando, tal número, na casa das dezenas. É variável, do mesmo modo, a quantidade de ataques que os Yanomami dizem ter sofrido dos garimpeiros, e o próprio Tuxaua da região narra, em certas situações, que foram dois e, em outras, que foram três ataques. Como no já citado depoimento de Maria Yanomami, se diz que determinado indígena está morto e, logo em seguida, o mesmo aparece como depoente. Os garimpeiros, até então, dizem só ter ouvido falar pela televisão ou jornais do Massacre dos Índios e nenhum, até agora, cita nomes ou reconhece que teve contato direto com qualquer um dos possíveis participantes nesse ato. É muito importante frisar também que, até aqui, Massacre ou Chacina são as categorias mais recorrentes para fazer referência ao acontecido em Haximu, nunca se usando o termo Genocídio diretamente no texto - cf. por exemplo, o depoimento de Antonio Yanomami no início dessa seção. É importante ressalvar que penso tais imprecisões como constitutivas do grau de sedimentação específico desse momento do Processo. Elas fazem parte de um universo de depoimentos ainda não sedimentado numa narrativa coerente – e, portanto, com alto grau de ambigüidades. Deixo claro, assim, que as imprecisões não estão relacionadas a um embuste ou falseamento que poderia ser imputado à história contada pelos indígenas. Na verdade, penso essas ambigüidades como que da ‘natureza’ específica dos documentos até então produzidos pelos Policiais Federais – não tendo elas, mais uma vez, relação com qualquer artifício extra-legal que pretensamente poderia falsear o que teria acontecido aos Yanomami de Haximu. Assim, o Inquérito Policial, até a página 119 (onde tem início o citado Relatório de Bruce Albert), é um conjunto de fragmentos desordenados. Tendo em vista que um dos postulados do “trabalho jurídico atual”, segundo análise de Max Weber é “que, aquilo que do ponto de vista jurídico, não pode ser ‘construído’ de modo racional também não é relevante ao Direito” (WEBER, 1999, :13), o Inquérito, até aqui, só mostra o que, num processo judicial qualquer, seriam consideradas provas, no mínimo, pouco precisas. É impossível dizer exatamente quem foram as vítimas ou os agressores

72

e há várias versões em aberto, conflitantes e desencontradas; não existe (ainda) uma verdade limpa, unilateral, sem contradições explícitas. Falta a ‘domesticação’ dessas falas, um ordenador que as junte de modo configurar um “contexto probatório” que leve “à cabal constatação da materialidade do delito”, como argumenta o Juiz Itagiba Catta Preta do TRF de Boa Vista na Sentença de 1ª Instância, mil páginas à frente26 no Processo. Por fim, a ‘cola’ que irá juntar coerentemente tais peças soltas começa a ser produzida a partir do citado Relatório do antropólogo Bruce Albert, que passo a analisar mais detidamente na próxima subseção.

III. O “Relatório da investigação realizada com os sobreviventes da Chacina do Hwaixmëu”. Bruce Albert, como outros membros da CCPY, estava no Posto de Xidéia quando chegaram os primeiros sobreviventes da “Chacina do Hwaixmëu”, como ele próprio chama o acontecido com os Yanomami de Haximu. Seu Relatório, que vai da página 119 a 127 do primeiro volume dos Autos, é anexado ao Inquérito após o Termo de Declarações do médico da CCPY Cláudio Esteves de Oliveira, que diz que Bruce Albert anotou “do próprio punho toda a história narrada pelos sobreviventes [...]; QUE o depoente deseja esclarecer que tudo que sabe sobre esse fato está inserido no mencionado relatório, o qual foi elaborado por ALBERT”27. Na página imediatamente seguinte a tal depoimento (:118), há um ofício de Vicente Divino de Oliveira, Auxiliar de Administração da CCPY, encaminhando “a Vossa Senhoria [o delegado de Polícia Federal José Lemos, então responsável pelo Inquérito] o original manuscrito” do Relatório de Albert. Além de manuscrito, o Relatório do antropólogo Bruce Albert é escrito nas costas da fotocópia de um romance em inglês para estudantes dessa língua28. Todo o documento 26

PH, :1168, Sentença de Itagiba Catta Preta Neto, Juiz Federal Substituo, condenando os garimpeiros na 1ª Instância do TRF/RR (ênfase minha). 27

PH, :117. Termo de Declarações que presta Claudio Esteves de Oliveira (ênfase do original). Esse depoimento foi colhido na Sede da PF em Boa Vista, é digitado em computador e não possuiu qualquer erro de português. Claudio Esteves também estava no Posto de Xidéia e diz ter acompanhado a feitura do Relatório de Albert. Há de se notar, também, que Cláudio reconhece que falava muito mal a língua dos indígenas. 28

Apesar de minha insistência com o operador da fotocopiadora do STF, como deixo claro no capítulo anterior, ele acabou fotocopiando o verso do Relatório no serviço que fazia para mim. Assim, pode-se

73

está eivado de rasuras, escritos-por-cima e outras correções, onde são revisados erros de grafia, concordância, conjugação ou então simples escolhas de palavras. Isso dá margem a pensar que tal documento é uma espécie de versão preliminar de um outro Relatório de Albert, publicado no jornal a Folha de São Paulo de três de outubro de 1993. Esse último texto faz parte da citada coletânea produzida pela CCPY (citada no capítulo I) sobre o Massacre de Haximu. Retomando o argumento já expresso no capítulo I, determinados documentos necessitam de uma investidura especial para terem uma agência reconhecida nos Autos (uma assinatura, a entrega num prazo determinado ou ainda um carimbo específico, por exemplo). Assim, poder-se-ia dizer que o Relatório preliminar de Albert carece de qualquer cuidado dessa natureza. De todo modo, ainda assim ele é o que penso ser o ordenador de todo o Inquérito. Explicando melhor tal ponto, a investidura específica de certos documentos no Processo está ligada ao fato de seus produtores serem ou não reconhecidos como especialistas no Direito. Quando se lida com o documento de um operador do Direito, ou seja, alguém que está devidamente autorizado a produzir, manejar e ‘representar’ (uso as aspas pois tal representação é quase sempre compulsória para a resolução de conflitos judiciais – fora os Tribunais de Pequenas Causas) os Interessados em determinado processo, existe uma complexa série de ingerências para que as folhas produzidas por tais pessoas tenham a efetividade que seus autores pretendem. A falta de uma assinatura pode invalidar completamente uma Petição, por exemplo. Reitero que não tenho meios de mapear satisfatoriamente as condições que perfazem tal investidura, tendo em vista que me foco prioritariamente na análise dos documentos constantes no Processo. Tal empreitada dependeria da análise de um conjunto de dados que tive contato apenas indiretamente, como nas conversas com técnicos e analistas judiciais. Porém, não há dúvida de que esse caráter especial está relacionado com a posse de um diploma de Bacharel em Direito, devidamente reconhecido por uma prova da Ordem dos Advogados do Brasil, seguido por uma Procuração Registrada em Cartório, onde assume-se que tal Bacharel é o Procurador Legalmente Constituído de uma das Partes29 – ou, ainda, de parte das Partes, já que, no Processo, por vezes, os garimpeiros se perceber, nas costas de todas as folhas desse documento, as fotocópias de algumas páginas de um romance em inglês e, ainda, parte da capa desse livro, notando-se o nome “Yazigi” e a frase “o inglês mais perto de você”. 29 Tal Procuração é exigida para os advogados que atuam livremente, como aqueles contratados pelos garimpeiros; no caso dos Procuradores da República, também bacharéis em Direito e representantes da outra Parte do Processo, não se tem qualquer petição especial para que eles representem os Yanomami. Nesse caso, a Constituição Federal garante, de antemão, que é responsabilidade do MPF atuar em casos judiciais que envolvam índios.

74

separam em defensores diferentes, como deixarei claro mais à frente. Para citar um dentre vários exemplos que poderiam ser dados, o Sub-Procurador Geral da República Antônio Augusto César, numa Petição na folha 1819, argumenta que não se deve encaminhar fotocópias do Processo ao advogado Edir Ribeiro, já que “o mandado [tornando o último o defensor legalmente constituído de um dos garimpeiros] não foi ajuntado ao mesmo [pedido de cópias]”. O Sub-Procurador argumenta, ainda, que não vê “justificativa plausível para que o Estado assuma o custa da extração e encaminhamento das mesmas [fotocópias]” para Boa Vista, já que, nesse momento, o Processo estava em Brasília. De todo modo, o Relatório aqui em foco é também obra de um especialista, mas não da mesma natureza que os especialistas em Direito. O caráter marcadamente esquemático, o tom de rascunho ou esboço típico do texto de Albert revela que ele foi produzido com os mínimos meios técnicos disponíveis – e explicitamente não respeita qualquer regra vigente entre os especialistas do Direito para a produção de documentos. É possível que o autor não tivesse nem mesmo folhas em branco para tomar notas do que estava sendo relatado pelos Yanomami, já que escreveu seu Relatório nas costas da fotocópia de um romance. O importante a ser notado é que essas mesmas características só corroboram a expertise do autor do Relatório: o antropólogo Bruce Albert é um especialista nos Yanomami, “os habitantes mais antigos e isolados [da América]”, como argumenta do Delegado Cutrim no já citado Relatório Final do Inquérito Policial, folha 479. Bruce Albert é, sem dúvida, um especialista, mas não um operador do Direito. É interessante notar que, fora comentários como o já citado Ofício do membro da CCPY dizendo que encaminha um texto manuscrito ao Delegado Lemos, em nenhum momento nos Autos se faz alusão à maneira como o texto de Albert é produzido. Interessa-se, apenas, por seu conteúdo, pelo que é dito nele. O “Relatório da investigação realizada com os sobreviventes da Chacina do Hwaixmëu” entra nos Autos como “uma peça de suma importância, principalmente por ter sido elaborada por um profissional competente, que inclusive domina com invejável facilidade o dialeto daquele povo” (PH, :498 do mesmo Relatório do Delegado Cutrim). Assim, Bruce Albert não é um mero tradutor de depoimentos dos índios para o português: seu texto explica “a raiz e a causa fundamental que resultou na chacina de Haximu”, como argumentam os Procuradores da República responsáveis pela Denúncia (PH, :08, ênfase minha).

75

Pode-se entender melhor tal ponto tendo como base a já citada análise de Bourdieu do campo do Direito (BOURDIEU, op. cit.). Para esse autor, existem “détenteurs d’espécies différents de capital juridique”, o que não exclui (na verdade, contribui para) uma complementaridade de funções entre eles e os especialistas do Direito propriamente ditos (idem, :6).

Bourdieu argumenta, inclusive, que os

adversários, num embate judicial, são “objetivamente cúmplices” e se servem mutuamente do trabalho desses outros especialistas (ibid idem, tradução livre). É exatamente isso que acontecerá com Bruce Albert: como um especialista de fora do campo judicial, seu Relatório não está sujeito às mesmas regras daqueles que são expertos nessa área - o que explica o fato de seu texto ser visto como o de um especialista e, ainda assim, poder ser escrito nas costas da fotocópia de um romance e ser completamente manuscrito. Tal documento poderá ser usado, em termos ideais, tanto pelos Procuradores do MPF quanto pelos Advogados dos garimpeiros, ainda que esses últimos praticamente ignorem o Relatório do antropólogo da CCPY, como mostrarei a seguir. Partindo para a análise do que diz Bruce Albert no Relatório, ele argumenta o seguinte sobre os depoimentos de Antonio e Japão, citados na subseção anterior do presente capítulo: [Toda essa passagem vem destacada do resto do texto por um quadrado desenhado à mão pelo próprio autor] É de se notar aqui que os Hoomoxitheri (da região dita de “Homoxe”) estavam também [como os habitantes da aldeia Haximu] convidados para esta festa [que aconteceria na maloca dos Makayutheri] e os pseudosobreviventes entrevistados até agora pela imprensa, FUNAI etc... são em realidade [o resto da linha está rasurada] Hoomoxitheri que participaram dessa festa, portanto apenas testemunhas indiretas. Por exemplo o artigo da Veja do 25/08/93 menciona Antônio, Japão [nova rasura], Roberto Carlos, Menini que são todos Hoomoxitheri e não Hwaxmëtheri que foram atacados pelos garimpeiros28. Assim, tem-se a explicação para os desencontros dos primeiros depoimentos indígenas: estes são dados por “testemunhas indiretas” ou “pseudo-sobreviventes”. O Delegado Cutrim, no Relatório Final do Inquérito, argumenta que “optamos por não comentá-los 28 PH, :120, Relatório da Investigação Realizada com os Sobreviventes da Chacina do Hwaixmëu, Bruce Albert (ORSTOM, UNB), ênfase minha.

76

[os primeiros depoimentos indígenas], apesar de trazerem riquezas de detalhes, [pois] o que sabem são em conseqüência de “ouvi dizer” (:494). A partir desse relatório, os Policiais Federais colhem os depoimentos dos indígenas que são apontados por Albert como “as verdadeiras vítimas escapadas da Chacina” ( :123). É de Bruce Albert, em grande medida, a versão que virá, no decorrer do Inquérito, sedimentar-se como a base da narrativa verdadeira do que aconteceu com os Yanomami de Haximu. Tal organização do Massacre irá perpassar todos os documentos dos Autos, na fase inquisitorial e também propriamente judicial, inclusive nos Recursos que serão feitos aos Tribunais Superiores em Brasília. Portanto, no Relatório está o cerne da narrativa que, mais tarde, sedimentar-se-á na argumentação da existência de apenas dois ataques dos garimpeiros – e não três, como diziam Antonio e Japão Yanomami; esse últimos, na verdade, só ouviram dizer e não são realmente vítimas diretas da Chacina. No mesmo sentido, os Procuradores da República que escrevem o primeiro documento constante nos Autos, dividem seu texto em “1º e 2º Atos Genocidas”30. Assim, devido ao fato da narrativa do Relatório ir sedimentando-se nos outros documentos que compõe as quase duas mil folhas seguintes do Processo, faço, abaixo, uma breve seleta dela. Indico, entre os colchetes iniciais, a página de onde retiro a citação. Notar-se-á, pela numeração das páginas, que mudo explicitamente a ordem da narração do texto de Albert, sistematizando-a cronologicamente – ordem que será usada, mais tarde, por todos os que se apropriarão do Relatório. Assim, a seleta abaixo se baseia, em sua organização, na apropriação que os especialistas do Direito farão do texto produzido pelo experto nos Yanomami. As ênfases são todas do original e minhas intervenções vão entre colchetes: [ :124] Há aproximadamente 2 meses [a data do Relatório é 26/08/1993] um grupo de 6 Hwaximëutheri [indígenas da Aldeia de Haximu] foi até o acampamento de garimpeiros que tinham confiscado uma espingarda deles [índios] (provavelmente temendo que a usem contra eles [garimpeiros]). Não conseguiram recuperar a espingarda. Alguns garimpeiros mandaram eles [índios] embora dizendo que outros “garimpeiros bravos” e os Yanomami inimigos (os Tireitheri) iam os atacar. Em realidade os garimpeiros seguiram eles no mato e atacaram eles no caminho. 5 Hwaximëutheri morreram na ocasião e

30

PH, 01-39, Denúncia do MPF.

77

um escapou, ferido [Esse é o resumo do que se tornará, mais tarde, o “1º Ato Genocida” narrados pelos Procuradores na Denúncia]. [:125] [...] Um tempo depois os Yanomami da região organizaram uma expedição de retaliação para vingar estes 5 mortos. [...]. Essa primeira expedição de retaliação fez só uma vítima: um garimpeiro foi morto [essa palavra vem por cima da riscada ‘matado’] na ocasião. [ :123} [...] [Tempos depois] os habitantes das 2 malocas Hwaximëutheri se descolaram para sua roça antiga onde [rasura, podendo-se ler o nome ‘iam’] esperariam [escreve-se, de fato, ‘esperar’, mas completa-se com o ‘iam’] os mensageiros dos Makuyutheri que iam os convidar para a festa, 3 homens se deslocaram em direção a um acampamento de garimpeiros no mato. Estes 3 guerreiros queriam atacar os garimpeiros para vingar a morte de 5 homens do seu grupo mortos [risca-se a palavras ‘matados’ novamente] anteriormente pelos garimpeiros. [:124] Esta turma de três matou um garimpeiro e voltou rapidamente para se juntar ao resto do grupo que tinha acampado na sua roça velha. Dormiram uma noite no acampamento. No [escreve-se ‘o’ e ajuntase um ‘n’depois] dia seguinte eles ficaram no [rasura-se um ‘s’ do ‘no’] acampamento enquanto o resto dos homens foi para a festa e [as próximas três palavras são escritas em cima de uma rasura] uma boa parte das mulheres e crianças [foram] no mato para coletar frutas Inga [ingá]. Aconteceu o [segundo, em termos cronológicos] ataque dos garimpeiros.(ênfases do original) Na verdade, o próprio Albert já trata de sistematizar cronologicamente esses acontecimentos, apresentando o seguinte esquema na página 125:

Conflito sobre espingarda

1º Ataque dos Garimpeiros

5 Hawximëútheri Mortos 1 Ferido (homens)

1º Ataque dos Índios

1 Garimpeiro morto

2º Ataque dos Índios

1 Garimpeiro morto

2º Ataque dos Garimpeiros

13 Hawximëútheri Chacinados 3 Feridos

78

No Relatório como um todo, é dada maior importância ao “2º Ataque”. Esse é o motivo da inversão cronológica dos ataques feita por Albert. Assim, ao que tudo indica, o 2º ataque, ocasião em que se contabiliza a maioria das vítimas, foi narrado primeiramente ao Antropólogo, que parece tomar notas diretamente das falas do Yanomami. Logo em seguida, lhe é relatado o outro ataque – e, só na penúltima página do Relatório (:125) é que Albert organizou cronologicamente o que lhe diziam. Nessa ocasião os garimpeiros “cercaram o acampamento [...] e mataram todos os que tinham ficado. [...] Os adultos foram mortos a tiros e mutilados a terçadadas [golpes de facão]. As crianças foram chacinadas a golpe de terçado na cabeça, garganta, no peito ... (sem tiros). Uma velha mulher foi morta a pontapés” (: 120). Albert contabiliza que foram mortos, nas duas incursões, dezoito indígenas, sendo seis homens e doze mulheres (:125). Há de se notar aqui que tal número é substancialmente menor que aqueles apurados nas tentativas de sistematização anteriores ao Relatório, onde figurava algo em torno de sessenta a oitenta indígenas “chacinados” ou “massacrados” – para usar a terminologia de Albert, que ainda não fala em Genocídio. Contudo, é baseado no Relatório de Albert que os Procuradores do MPF irão Denunciar os garimpeiros, acusando-os formalmente de Genocídio. Em todos os documentos que se seguem à Denúncia ignora-se a ‘babel’ dos primeiros relatos no Inquérito, citando-se exclusivamente os Termos de Declarações posteriores ao Relatório de Albert. Além disso, é também do Relatório que se retira a data do segundo ataque (entre 22 e 23 de julho de 1993, :121), bem como a pormenorização dos mortos por sexo, idade e, quando possível, também por nomes (:121-122). Na Denúncia, tal informação é sistematizada em forma de uma tabela. Em outro documento31, é, novamente, o próprio Albert que esclarece aos Policiais Federais a dificuldade de se ter, com exatidão, o nome das vítimas: QUE, conforme se pode verificar quando a Autoridade que a este preside [então o Delegado Raimundo Soares Cutrim] faz perguntas, através do depoente [Bruce Albert] e do Sertanista BEZERRA, os índios declinam com dificuldade o nome Yanomami de seus parentes mortos, a não ser os seus nomes em português ou substituindo esses com a descrição da relação do parentesco com pessoas vivas (como, 31

PH, :151, Termo de Declarações do antropólogo Bruce Albert.

79

por exemplo, filho de, pai de, irmão mais novo de, etc.) só revelando o nome verdadeiro Yanomami, geralmente quando se trata de pessoas de outras aldeias. Tenta-se, como se pode notar na passagem acima, conseguir os nomes de cada uma das vítimas da Chacina, mas os Yanomami, como esclarece Albert, são pouco afeitos a esse tipo de sistematização. Há de se notar que a impossibilidade de individualização precisa dos índios mortos pelos garimpeiros irá compor, mais tarde, a própria construção do Crime de Genocídio, adiantando aqui um tema a ser tratado no próximo capítulo. Por fim, reitero que vejo o Relatório de Bruce Albert como uma narrativa que irá se sedimentar e contribuir para a formação de um ‘núcleo duro’ do Processo. Tal documento dá apenas o ‘chão’ do que aconteceu – há, no resto dos Autos, de se discutir como, em termos jurídicos, deve-se classificar esse acontecido. Ele não possuiu, assim, nenhuma espécie de substância especial que poderia, por si só, dar conta da verdade do acontecido em Haximu – isso será construído gradativamente, com o andar do Processo e seguindo uma ordenação específica, que começo a dar conta no capítulo IV. O Relatório, como argumento, figura mais como um ordenador (dizendo, por exemplo, os índios que devem ser escutados ou os locais onde se deve procurar provas materiais) do que propriamente como um monopolizador de uma verdade definitiva. Cada um dos pontos do Relatório será investigado e inquirido pelos Policiais Federais com os sobreviventes da Chacina, como se pode notar em todos os depoimentos tomados depois do arquivamento do Relatório de Albert. É claro que o texto de Bruce Albert, porque explicitamente preocupado em dar detalhes, em pormenorizar, é mais afeito a ser apropriado como uma descrição mais próxima à verdade num processo criminal. Contudo, isso não quer dizer que o Relatório resolva todas as questões em aberto no Processo. Essa ordenação é construída, de certa maneira, de forma independente do Relatório de Bruce Albert, apesar de também se apropriar dele. Em resumo, tal documento não resolve, de maneira acabada, o Processo Criminal. De fato, como mostrei na primeira subseção desse capítulo, esse último nem ainda teve início, via de regra. Nesse sentido, o que é dito no Relatório será concatenado com os outros depoimentos do restante do Inquérito (e também com aqueles que serão prestados no TRF de Boa Vista), além dos diversos Laudos Periciais de outros especialistas que

80

também comporão os Autos. Passo, na última subseção do presente capítulo, a analisar esses últimos documentos do Inquérito.

IV. O Inquérito após o Relatório do Antropólogo Bruce Albert O primeiro depoimento que se segue, então, é o da indígena Waythereoma Hwanxima32. Na página 125 do Relatório de Albert (que é o interprete nesse e nos outros Termos de Declarações dos Yanomami até o fim do Inquérito) ela é citada como mãe de um dos índios mortos durante o primeiro ataque de garimpeiros. Os Policiais Federais, agora sob a chefia do Delegado Raimundo Soares Cutrim, fazem, então, uma nova incursão ao Posto de Xidéia para escutar os Yanomami. Tenho por certo que uma das motivações dessa nova empreitada é o Relatório analisado acima, que afirma, como já disse, que “as verdadeiras vítimas escapadas da Chacina” (:120) ainda não haviam sido ouvidas. Toda essa leva de Termo de Declarações volta a ser datilografada. Como outros depoentes Yanomami, Waythereoma é instada a dizer o nome de seu filho, respondendo que “de acordo com sua cultura, não permite dizer o nome de seu filho morto” (:133). Ela afirma ainda que as vítimas foram quase todas cremadas, fora “o corpo não cremado da índia dos Homoxithere, que não tinha parentes entre os que ali se encontravam, razão pela qual não foi cremada, recordando-se que haviam ferros de bala na cabeça e cortes nos braços, barriga, peito, cabeça e pernas.” (:137). Um dos primeiros documentos do Inquérito é um Auto de Apresentação e Apreensão (:59-60) dando conta que os Policiais Federais encontraram, na mata, uma ossada, cinzas e diversos projéteis e cartuchos deflagrados. Mais adiante (:179) há um Ofício do Administrador Regional da FUNAI de Roraima “solicitando a devolução [aos Yanomami] de ossos e cinzas que foram recolhidos após a realização da perícia”. Na folha 156 há um Auto de Constatação, documento que afirma a existência de “14 cabaças indígenas” contendo as cinzas de parte daqueles que morreram nos ataques. É preciso frisar que tais cinzas recolhidas pelos Yanomami não serão levadas à perícia, figurando apenas um Auto de Constatação como prova de que existem. Mais tarde (: 448-453) serão ajuntadas aos Autos uma série de fotografias tiradas pelo médico da CCPY Cláudio Esteves, mostrando as referidas cabaças e os verdadeiros

32

PH, :132-138, Termo de Declarações da indígena Waythereoma Hwanxima.

81

sobreviventes da Chacina – todos apontados, como já visto, por Bruce Albert. As cinzas e a ossadas serão mandadas à Brasília, a fim de serem analisadas no Instituto de Medicina Legal e Antropologia Forense, que concluiu que a osssada é sim de uma jovem indígena do sexo feminino, provavelmente morta a tiros de espingarda cartucheira e golpes de facão (:387-424). O próximo depoente é Paulo Yanomami33, citado por Waythereoma como um dos índios que conseguiu fugir ao primeiro ataque dos garimpeiros. Paulo esclarece que “a razão das mulheres terem ficado no mato [durante o segundo ataque] e os homens terem ido embora [para uma festa em outra Aldeia, como narra Albert] e [é] que as mulheres nunca são mortas em guerras tradicionais” (:142). Assim, os Yanomami, como já explicava Bruce Albert no Relatório, não se preocuparam em deixar mulheres, crianças e homens idosos sozinhos, pois tais pessoas nunca são vítimas de seus tradicionais inimigos. Outros garimpeiros são também chamados a depor. Todos, como antes, o fazem na Sede da Polícia Federal, em Boa Vista. Nenhum deles diz ter participado da Chacina, mas todos reconhecem que ouviram falar dela no garimpo (e não mais apenas pela Imprensa), citando os apelidos de prováveis envolvidos. Basílio Ferreira, por exemplo, apesar de dizer no início de seu depoimento que “não sabe informar o nome destes garimpeiros em vista que só sabe o apelido”, acrescenta “os nomes [apelidos] dos garimpeiros envolvidos no massacre e que tomou conhecimento do nome dos mesmos através de outros garimpeiros oriundos daquela região, [...] que são: ”PEDRO PRANCHETA, e que [este último] teria mandando o bilhete para outro garimpeiro com a frase já citada [‘Faça bom proveito desses – índios- otários], PEDÃO, PARÁ, PARAZINHO e quanto a JOÃO NETO tomou conhecimento que foi ele quem organizou os garimpeiros para matar os índios”34 Vários garimpeiros confirmam que ouviram falar que João Neto, Pedro Prancheta, Pará e Parazinho haviam participado do Massacre35. Eunice da Silva Paiva, cozinheira da região de Garimpo onde a Chacina ocorreu, diz, como narrado por Albert, 33 34

PH, : 139-147, Termo de Declarações do indígena Paulo Yanomami. PH, :186, Termo de Declarações do garimpeiro Basílio Ferreira.

35

Cf, por exemplo, os Termos de Declarações de Antonio Alves da Cruz (:187-188), de Antonio Oliveira, ‘Cigarrão’(:193-194), ou de Sebastião Rodrigues Coelho Júnior (:195-196).

82

que aconteceram dois Ataques dos Yanomami aos garimpeiros. Ressalva, contudo, que apenas no primeiro um garimpeiro (de apelido Fininho) foi morto. No outro, Louro foi apenas ferido na mão, ocasião em que Eunice, que trabalhava com Louro, resolveu ir embora do garimpo (: 204). Ela, como outros, “tomou conhecimento [que] alguns garimpeiros mataram quatro ou cinco índios e [os] enterraram na beira de um rio que não sabe informar o nome [correspondente ao 1º ataque dos Garimpeiros narrado por Albert]”, somando-se à lista dos assassinos os garimpeiros conhecidos como Cururupu e Chico Ceará (:204-205). Paulo Yanomami, no depoimento citado acima, narra a empreitada dos índios em recuperar esses corpos enterrados para a posterior cremação ritual. Após essa leva de depoimentos, o Delegado Raimundo Cutrim faz, em 05-091993, o primeiro Pedido de Prisão Temporária ao TRF de Boa Vista. Há de se notar que, nesse momento, engendra-se uma nova intervenção judicial na fase idealmente inquisitorial do Processo. Tal documento36 é endereçado ao Juiz Federal da 1ª Instância do TRF, o Dr. Renato Martins Prates (:207). O Inquérito visa, como já argumentei, angariar provas sobre a ocorrência ou não do que foi narrado, inicialmente, pelos índios. Com todos os depoimentos que citei até aqui em mãos, junto com o Relatório escrito pelo antropólogo Bruce Albert (havia-se encaminhado a ossada e as cinzas para Brasília, mas o Laudo Pericial ainda não estava pronto), para o Delegado Cutrim “está provada a materialidade do delito”, citando, pela primeira vez em todo o Processo, os garimpeiros como “autores do Genocídio” (:212, ênfase minha). Na “Representação de Prisão Temporária de João Neto, Pedro Emiliano Garcia (vulgo ‘Pedro Prancheta’), ‘Parazinho’ e ‘Pedão’” argumenta-se que tais “autores do Genocídio acham-se homiziados nesta Cidade [Boa Vista], em outros estados e no interior da Reserva Indígena Yanomami e as medidas extremas ora requeridas [a prisão dos garimpeiros] são imprescindíveis à elucidação dos fatos e até para a individualização de todos os envolvidos” (idem, ênfase minha). Porém, mesmo com a Materialidade do Delito averiguada, o Inquérito só será encaminhado ao TRF em 3009-1993, permanecendo na Polícia Federal por mais 25 dias. Isso se dá porque ainda não se conseguiu individualizar os outros garimpeiros partícipes dos ataques aos Yanomami, o que leva o Delegado Cutrim a tomar a “medida extrema” de pedir a prisão

36

PH, :207-212, Representação do Del. Cutrim para os primeiros pedidos de Prisão Temporária.

83

dos suspeitos já parcialmente identificados, no intuito explícito de inquiri-los e achar os outros responsáveis pelo Crime. É preciso, nesse momento, frisar dois pontos: primeiramente, para o Delegado Cutrim, aconteceu realmente uma Chacina, Massacre ou Genocídio em Haximu, e isso tendo como base, exclusivamente, os Termos de Declarações até então colhidos, em conjunto com o Relatório de Bruce Albert – o ordenador de todas essa falas, como visto. Essa é a maneira como os Procuradores do MPF irão trabalhar as Provas recolhidas pelos Policiais Federais: os Corpos de Delito foram, em sua maioria, cremados, tendo que se reconstituir o Crime mais pelas falas dos envolvidos do pela presença física de tais Corpos. Isso é característico de todo o Processo: usa-se os Laudos das ossadas e cinzas apenas marginalmente, para confirmar passagens específicas de depoimentos de índios e garimpeiros, sendo o foco principal dos depoimentos produzidos em juízo e pela polícia. O outro ponto é que o Delegado Cutrim classifica o ocorrido, pela primeira vez, não exatamente como uma série de assassinatos violentos (uma Chacina ou Massacre), mas sim como Crime de Genocídio, citando, inclusive, a Lei 288937

que tipifica tal Delito – mas sem, ainda, esmiuçar, como fazem os

Procuradores da República na citada Denúncia, os pormenores de tal Lei a partir das Provas recolhidas no Inquérito. Finalizando o presente capítulo, detenho-me no modo como foi inquirido e preso o primeiro garimpeiro partícipe do Genocídio de Haximu: Pedro Emiliano Garcia, ou, para alguns (e isso não incluiu o próprio Pedro Garcia) o ‘Pedro Prancheta’, acusado em todos os depoimentos de garimpeiros que citei acima. No mesmo dia de sua prisão (0609-1993), prestam depoimento na Sede da PF de Boa Vista o garimpeiro Juvenal Silva (‘Cururupu’), Eva Alves e Silvânia Santos (‘Silvinha’), ambas cozinheiras de garimpo nas proximidades da aldeia Yanomami de Haximu. Tais Termos de Declarações não trazem nada de substancialmente novo ao que já foi dito até agora no Processo. Contudo, Silvânia Santos, que diz ter conhecido (e trabalhado) pessoalmente com os envolvidos no Genocídio, conta detalhes que serão, nos outros documentos (principalmente aqueles produzidos pelos Requerentes), sempre citados como exemplos 37

A íntegra de tal Lei pode ser encontrada na página eletrônica http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L2889.htm, com acesso feito em 18/7/2006. As penas são dadas a partir do Código Penal Brasileiro, que pode ser encontrado na página eletrônica http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm - com acesso na mesma data. A comparação pontual desse dois códigos é tema do próximo capítulo.

84

da violência da ação dos garimpeiros. Assim, é de ‘Silvinha’ a passagem, citada, por exemplo, na Denúncia e na Sentença de 1ª Instância (op. cit.), onde ela diz que “presenciou GOIANO BOIADEIRO [garimpeiro envolvido no 2º ataque aos índios] dizer que QUE HAVIA UMA CRIANÇA DEITADA NUMA REDE E ELE ENROLOU A CRIANÇA EM UM PANO E METEU A FACA DE UM LADO PARA OUTRO” (:216,ênfase do original). Silvânia dá também as armas que cada garimpeiro usou (:215216) e o que cada dono das balsas de garimpo do local deu de munição (:217), o que será sistematizado numa tabela pelos Procuradores da República na Denúncia. Outra passagem de seu depoimento que será, mais tarde, colhida e reiteradamente repetida nos documentos produzidos pelos Procuradores é a seguinte: “presenciou “CARECA” dizer que quando estavam matando esses quatro índios [no 1º ataque aos índios], um deles abaixou, colocou a mão no rosto e disse: “GARIMPEIRO AMIGO” e “CARECA” deu um tiro bem no rosto dele” (:215). Por fim, ela diz que “PEDRO PRANCHETA tanto deu munição como foi junto [ao 2º ataque aos índios]” (:217) e que ele estava armado “com uma espingarda 20 e um revólver calibre 38” (:215). Enfoco mais detidamente tais depoimentos no próximo capítulo, mas adianto que eles podem ser melhor entendidos a partir dos estudos de Luc Boltanksi sobre a construção social do sofrimento (BOLTANSKI, 1993 e 1984). Ressalto também que Silvinha é a primeira a dizer que conhece diretamente possíveis garimpeiros envolvidos no ataque aos Yanomami. Pedro Garcia só é inquirido pelos Policiais depois do conjunto de depoimentos de garimpeiros que analisei até agora, praticamente todos citando um garimpeiro de apelido ‘Pedro Prancheta’ como um dos perpetradores do 2º ataque aos Yanomami. Na folha 226 de seu primeiro Termo de Declarações, Pedro diz “QUE não possui revólver de nenhum calibre [e] tem apenas uma espingarda calibre 20’’ e que a mesma fica em seu barraco quando vem para Boa Vista”. Pedro diz, como Silvânia já havia adiantando, que possui uma espingarda – e o Delegado Cutrim possivelmente pergunta, já alicerçado pelo Termo de Declarações de Silvânia, se ele não teria também um revólver 38. Pode-se deduzir que tal inquirição não é gratuita: o Delegado sabe, pelo depoimento de Silvânia Santos e outros anteriores (cf., por exemplo, o Termo de Declarações de Eva Alves, :219-220/verso), que Pedro tinha uma balsa nas proximidades da Aldeia de Haximu e que seus empregados são recorrentemente citados como envolvidos no Genocídio. Assim, na folha 225 de seu Termo de Declarações há a seguinte passagem “perguntado [a]o declarante se os garimpeiros conhecidos por 85

NEGUINHO, PARANÁ, BARBACENA, ADRIANO já trabalhou [trabalharam] com o mesmo respondeu que estes quatro garimpeiros já trabalharam com o declarante” (:225). Não há dúvida de que o Delegado voltou nos depoimentos anteriores de outros garimpeiros e, no momento da inquirição de Pedro, já tinha um vasto material para inquirir o garimpeiro. Nesse sentido é possível fazer um paralelo entre a maneira como o Delegado Cutrim age para inquirir Pedro Emiliano e como os juízes Barotse interrogam os querelantes que a eles se apresentam – retomando aqui os já citados trabalhos de Max Gluckman (GLUCKMAN, 1967 e 1963). Gluckman narra que esses últimos julgadores inquirem seus depoentes de maneira a cruzar os fatos que cada um narra, podendo, a partir de uma série de testemunhos, achar pontos falhos e contradições nas falas desses querelantes - o autor batiza tal expediente de cross-examination. Adianto que tal expediente não é comparável apenas aos depoimentos colhidos pelos policiais, estando também presente na fase judicial do Processo, como pretendo mostrar no próximo capítulo. Voltando à prisão de Pedro, ressalvo que não há como, a partir somente dos documentos do Processo, saber de que maneira Pedro Garcia foi achado e levado à Sede da Polícia Federal em Boa Vista. Contudo, penso ser possível deduzir, a partir do que foi arquivado nos Autos, que os policiais esperaram colher tais informação para, somente depois, inquirir Pedro Garcia da maneira acima. De todo modo, apesar de dizer que “não teve nenhuma participação no massacre dos índios Yanomami e só tomou conhecimento desse fato através da imprensa” e que “gostaria de esclarecer que na intimação consta seu nome mas que na realidade não é chamado PEDRO PRANCHETA” (:226, ênfase minha), Pedro Garcia sai do depoimento citado como o primeiro garimpeiro preso por suspeita de participação no Genocídio de Haximu – lembrando que o Delegado Cutrim é o primeiro a usar essa categoria, sem contudo, discuti-la judicialmente. Tudo isso acontece no dia 06-09-1993: Pedro Garcia é chamado a prestar Declarações, ainda como mero Depoente (: 225-226); o Juiz Renato Martins Prates, do TRF/RR, defere o Pedido de Prisão de ‘Pedro Prancheta’, entre outros (:235); Pedro Garcia é Qualificado como Suspeito e Interrogado como tal (: 227-229); tem sua Vida Pregressa Criminal arquivada num Boletim (:230-230/verso, não tendo antecedentes criminais); é levado ao Instituto Médico Legal em Boa Vista a fim de afiançar que não 86

sofreu qualquer agressão física por parte dos Policiais (:243); por fim, dá entrada na Penitenciária Agrícola de Roraima (:244), onde passará a viver os próximos meses. Pedro irá, ainda na cadeia, pedir para ser Reinquerido (: 252-262), dizendo, em resumo, que não participou do Massacre, mas que conheceu, como Silvinha, quem dele participou, dando, como ela, detalhes do acontecido. Ele faz, então, uma descrição física pormenorizada de cada um dos futuros acusados (: 257-256), indicando as armas que cada um deles levava (:260). Sobre a acusação de praticamente todos os outros garimpeiros que depuseram terem ouvido falar de sua participação no 2º ataque aos índios, Pedro argumenta que “talvez seja porque o reinquirido tenha se recusado a acompanhar os demais garimpeiros ou porque proceda ali naquele garimpo somente trabalhar para assim ganhar o pão de cada dia” (: 260). Não há qualquer comentário, nesse momento, sobre o fato de que, tacitamente, Pedro Garcia já reconhece aqui como o ‘Pedro Prancheta’, respondendo as acusações que lhe são feitas. Contudo, o Delegado Cutrim o chama, pela 3ª vez, para depor, e pergunta “porque razão negou que seu apelido é PEDRO PRANCHETA, dizendo que era PAULO IZIDÓRIO”, ao que Pedro diz que foi “para evitar que a Federal [PF] lhe chamasse para depor e não queria delatar o nome dos envolvidos, receando represálias” (:277). O reconhecimento ‘oficial’ virá com a prisão do segundo suspeito, o garimpeiro Eliezio Néri (Neri não tem nenhum apelido especial, sendo conhecido, no máximo, como ‘Eliezer’), que na folha 369, através de uma Acareação promovida pelo Delegado Cutrim, reconhece o preso Pedro Garcia como sendo o mesmo ‘Pedro Prancheta’ que conheceu no garimpo. Em resumo, nesse meio tempo são ajuntados ao Processo: o Laudo do Instituto de Medicina Legal de Boa Vista feito nos sobreviventes da Chacina (:431-447/versos), onde é relatado que os indígenas têm, sim, marcas de ferimentos recentes de arma de fogo; as fotos das cabaças indígenas com as cinzas dos mortos (:448-453); e uma cópia do Laudo Pericial do Instituto de Medicina Legal e Antropologia Forense de Brasília (:387-424), analisando a ossada e as cinzas enviadas pelos Policiais Federais de Boa Vista, concluindo que a primeira é realmente de uma jovem indígena e que cinzas não são resultado da cremação de corpos humanos. Além de todo esse material, é então anexado ao Processo o Laudo Pericial produzido pelo médico da CCPY Claudio Esteves (:461), que analisou os ferimentos dos sobreviventes enquanto o antropólogo Bruce Albert ordenava em seu Relatório o que eles diziam.

87

Finalizando, já há, nessa fase, como se pode notar, uma narrativa ordenada do Massacre ou Chacina de Haximu. Há, também, dois garimpeiros presos, suspeitos de terem participado de tal Ato Criminoso. Já se esboça, por outro lado, que o Massacre visou atingir os habitantes de Haximu como “grupo. Se fosse o indivíduo isolado o crime seria de homicídio”. É esse o único comentário do Delegado Raimundo Soares Cutrim (:517) sobre a maneira de interpretar, em termos judiciais, a Conduta Delituosa imputada aos garimpeiros. Há, nessa passagem o ‘germe’ de toda a discussão que os operadores do Direito terão nas próximas 1600 páginas de Processo, que passo a analisar mais detidamente nos dois capítulos que se seguem.

88

Capítulo IV: o Crime de Genocídio O tema geral desse capítulo é a construção, em termos judiciais, das qualidades de garimpeiros e Yanomami a partir da construção judicial do Crime de Genocídio. Foco minha análise na polarização, não explícita nos documentos (mas presente no argumento dos Procuradores autores da Denúncia, por exemplo) entre o caráter especial da etnicidade atribuída aos Yanomami e, por outro lado, a não-etnicidade ou a brasilianidade-comum genericamente atribuída aos garimpeiros. Na primeira subseção, defino melhor algumas categorias essenciais para o entendimento da Denúncia. No próximo tópico, tento delinear como os Yanomami e garimpeiros são qualificados nesse mesmo documento – e, ao mesmo tempo, viso mapear algumas características gerais de um processo criminal, como a maneira de punir um desviante. Na terceira subseção, faço um breve parênteses a fim de entender como o Judiciário Brasileiro tenta interpelar índios e garimpeiros para que os mesmos compareçam às primeiras Audiências judiciais. Por fim, a última subseção é um apanhado geral das qualidades atribuídas a garimpeiros e Yanomami até então no Processo.

I. Operadores e pensadores do Direito Inicio esse capítulo voltando às primeiras quarenta folhas do Processo: a Denúncia do MPF, assinada pelos Procuradores Carlos Frederico Santos, Franklim Rodrigues da Costa e Luciano Mariz Maia, datada de 15-10-1993. A primeira página numerada de todo o Processo traz o rol de Denunciados pelo MPF: Pedro Emiliano Garcia, Eliezio Monteiro Neri, Waldineia Silva Almeida, Juvenal Silva, João Pereira de Morais, Francisco Alves Rodrigues e Wilson Alves dos Santos. Não há, nessa parte, qualquer referência aos seus apelidos. Assim, aqueles que, durante o Pré-Processo, foram conhecidos apenas por apelidos, não aparecem formalmente na Denúncia. Contudo, ainda existem, nesse momento, dezoito Mandados de Prisão não-cumpridos1, baseados apenas em apelidos colhidos a partir dos Termos de Declarações até então 1

PH, 290-308, Mandados de Prisão expedidos pelo Juiz Renato Martins contra 19 garimpeiros. Pedro Emiliano já havia sido preso antes e Eliezio Néri é detido alguns dias depois, como deixo claro no. capítulo passado.

89

prestados – excluídos aí os formalmente Denunciados, cujos Mandados trazem o nome completo e que foram, da mesma maneira, identificados a partir dos depoimentos analisados no capítulo anterior. O Delegado de Polícia Federal Raimundo Soares Cutrim finaliza o Inquérito Policial em 18-08-1993. Desse modo, o Processo Criminal, que é iniciado, idealmente, pela Denúncia, só começa quase dois meses depois do fim do Inquérito. Há algo aqui que deve ser melhor matizado: um Processo Judicial não tem, a priori, um prazo definido para acabar e pode passar anos num único tribunal. No caso aqui em foco, o Processo tramitou nos referidos Tribunais por quase uma década e meia. Em contraposição, o Inquérito Policial deve durar, idealmente, no máximo 30 dias. É o Código de Processo Penal Brasileiro2 (CPP) que trata do “ritual” (o termo é de um técnico judicial e está presente no próprio texto do CPP) que se deve seguir para a abertura e tramitação de processos criminais – enquanto o Código Penal Brasileiro (CP) define os Crimes e dá as penas do Direito Criminal do Brasil. “A lei processual penal” (a expressão está no CPP, Artigo 2º) estipula da seguinte maneira o prazo do Inquérito Policial: O inquérito deverá terminar no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 (trinta) dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela. Existe, ainda, uma lei conhecida entre os operadores do direito como “Lei da Justiça Federal”, que é um código especial que dá as normas de criação e tramitação (o já referido “ritual”) de processos nos Tribunais Federais do Brasil. Tal Lei, em seu artigo 663, estipula o mesmo prazo de 30 dias para o encerramento dos processos judiciais federais. No caso de prisão durante o Inquérito, deve-se finalizá-lo, na Justiça Federal Brasileira, em 15 dias, contados a partir da referida prisão. No Processo aqui em foco, os Policiais Federais iniciam o Inquérito em 19-081993 e o finalizam em 30-09 do mesmo ano, estourando, explicitamente, os 30 dias 2

o CPP pode der encontrado na página eletrônica Lei/Del3689.htm; acesso em 11/09/2006.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-

3

A íntegra de tal Lei pode ser encontrada também na página eletrônica da Presidência da República do Brasil, no endereço: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5010.htm, com acesso em 12/10/2006.

90

estipulados pelo CPP ou pela Lei da Justiça Federal. De todo modo, em conversas com técnicos e analistas judiciais, fui informado que é possível, em alguns casos, estender o prazo de finalização do Inquérito por mais alguns dias além dos 30 legalmente determinados. Tal pedido foi feito pelo Delegado Cutrim num Despacho4 datado de 1709-1993 (dois antes da expiração do prazo final) e deferido, três folhas à frente, pelo ao Juiz Renato Martins Prates. Há, nesse exemplo, algo a ser notado: primeiramente, a referida dilação de prazo teve que ser requerida pelo Delegado responsável pelo Inquérito ao Juiz que, meses mais tarde, seria o primeiro julgador responsável pelo Processo – o que mostra, mais uma vez, que o Pré-Processo não está completamente apartado do Processo em si. Por outro lado, há de se notar que existe uma certa independência de agência frente aos códigos positivamente prescritos, como as duas leis citadas acima. Em outro contexto, Max Weber já havia notado tal característica, argumentando que o Direito Ocidental pode se basear numa lógica que “não seja a ‘aplicação’ de normais gerais a uma situação de fato concreta [...], mas ao contrário, que a ‘disposição jurídica’ [a lei positiva] seja algo secundário, obtido mediante abstração das decisões concretas” (WEBER, 1999, :147). Tal constatação encontra ressonância em conversas que tive com estudantes de direito, que argumentam que é possível, em determinados casos, que o julgador decida explicitamente contra a lei, mas conservando, contudo, um certo “senso de justiça”. O mesmo vale para a Jurisprudência dada pelos Tribunais Superiores: nenhum juiz de instâncias inferiores ao STJ e STF é obrigado a seguir tais decisões. Contudo, fui informado que é comum que eles as sigam, pois têm consciência de que, seguramente, suas decisões serão reformadas pelos julgadores superiores mais tarde. Assim, com já disse na introdução, a decisão do STF sobre o Processo Haximu cria uma Jurisprudência para o julgamento do Crime de Genocídio, mas ela não é, no caso do Judiciário Brasileiro, uma determinação imperativa, podendo existir, portanto, decisões inferiores contrárias àquela tomada pelo Plenário do STF. Partindo para a análise da Denúncia do Ministério Público Federal, ela difere de todos os documentos do Processo analisados até agora. Em suas 40 páginas impressas seguramente a partir de um editor de texto do tipo Microsoft Word, há reiteradas referências a teóricos do Direito, tanto brasileiros como de outros países. Assim, a partir 4

PH, :371, Despacho do Del. Cutrim solicitando a dilação do prazo de fechamento do Inquérito.

91

da citação de tais pensadores, além dos testemunhos e outras provas recolhidas no Inquérito, é que os Procuradores constroem, pela primeira vez, as características gerais do Crime de Genocídio. Nenhum outro documento cronologicamente anterior, nem mesmo o Relatório Final do Inquérito Policial (também impresso a partir de um editor de texto digital, mas, sem dúvida, mais rudimentar que aquele usado pelos Procuradores), é paralelo a tal peça – o Delegado Cutrim chega a usar o nome, por exemplo, da antropóloga Alcida Rita Ramos como uma especialista nos Yanomami (:480-481), mas não há qualquer cuidado mais apurado nessa alusão, como a citação de partes de obras ou a utilização de uma bibliografia de referência, artifícios que compõe pelos menos um quarto de toda a Denúncia. Para entender melhor as qualidades específicas da Denúncia, é necessário matizar uma divisão que venho usando sem maiores discussões até aqui: a de operadores e pensadores do Direito. De início, adianto que tal nomenclatura é, em parte, nativa. Ela é usada nas próprias discussões internas do Direito a fim de caracterizar as discussões judiciais em um caso empírico específico (trabalho, portanto, de um operador) e, por outro lado, para fazer referência aos estudos de acadêmicos do Direito (que, na maioria dos casos, são apresentados como completamente descolados de um caso determinado, mesmo que por vezes tomem um deles como base). O uso que faço de tais termos é, como tento deixar claro abaixo, diferente do utilizado no próprio campo do Direito. Max Weber, na análise já citada que faz do Direito Ocidental, fala em “práticos” (WEBER, 1999: 75 e ss.) e “teóricos” (WEBER, 1999 :85 e ss.) desse Direito. O autor em momento algum dá definições fechadas para tais termos e, além disso, nunca os usa como categorias antagônicas ou particularmente apartadas. De todo modo, Weber esclarece que, no desenvolvimento específico do Direito de sua época (tal ensaio é publicado, pela primeira vez e postumamente, em 1922), formou-se, de maneira gradual, uma disciplina com “um caráter ‘alheio à vida’ do direito puramente lógico. O que fomentou esse desenvolvimento

foram necessidades intelectuais internas dos

teóricos jurídicos e dos doutores por eles formados: uma típica aristocracia da ‘cultura’ literária na área do direito” (WEBER, 1999 :130). Assim, há uma espécie de tensão-complementar entre uma área do Direito que é voltada mais para a técnica ou para uma especialização profissional e pouco interessada na auto-reflexão, e outra que se mostra mais filosófica, com foco principal na reflexão 92

científica, que se desenvolve tendo como norte mais a academia que os tribunais. Weber aponta ainda que há um claro movimento para a sistematização técnica desse campo, ao que os acadêmicos ou teóricos do Direito “sentem-se sensivelmente ameaçados em sua importância e também nas possibilidades de liberdade de movimento do pensamento científico” (WEBER, 1999:149). É importante ressalvar que o autor não vê tal ‘tecnificação’ como um processo unilinear ou homogêneo. Por exemplo, Weber chega a dizer que “quase não existia, até o passado mais recente [...] uma jurisprudência inglesa que merecesse o nome de ‘ciência’, de acordo com o conceito [da Europa] continental.” (WEBER, 1999 :150). Outra análise que ajuda a entende melhor tal distinção (mais analítica que empírica, ressalvo novamente) é o já citado estudo de Pierre Bourdieu sobre a força do Direito (BOURDIEU, 1986). Nessa análise, o autor esclarece que os operadores, tratando de casos que só idealmente podem ser subsumidos num código universal, acabam por introduzir “lês changements et lês innovations indispensables à la survie du systeme”, enquanto os juristas ou pensadores do direito representam “la fonction d’assmilation, prope à assurer la cohérence et la constance à travers le temps d’un en ensemble systématique de príncipes et de régles irréductible à la série parfois contradictoire, complexe et, à l alongue, impossible à maîtiser, des actes de jurisprudence successifs”. (BOURDIEU, 1986 :7). Weber e Bourdieu estão mapeando e dando as principais conseqüências de uma divisão indígena do Direito. O uso que faço de tais categorias têm uma relação direta com essa divisão, mas não é exatamente coincidente com ela. Primeiramente porque não estou interessado em discutir a tensão entre uma ‘casta’ de funcionários quase que exclusivamente ‘técnica’ (no sentido que Weber dá ao termo) e outra, apartada dessa primeira, que tem como função trabalhar o Direito como uma ciência acadêmica. Meu norte é entender, dentro da lógica interna do Processo, quais documentos pendem mais para uma argumentação acadêmica (citando autores e criando modelos de análise para as provas) e, por outro lado, quais documentos pendem mais para uma interpretação direta ou positiva de premissas normativas do Direito. Retomo, como exemplo, o caso do técnico (no sentido do cargo público ocupado) judicial que escrevia os Votos e Relatórios do Juiz que chefiava a Vara em que trabalhava, narrado no capítulo I. Na linha de tensão que tento aqui esclarecer, o trabalho específico de tal técnico judicial

93

pende mais para o lado acadêmico do Direito (para escrever o voto ele terá que consultar outros casos parecidos, além de ter que embasar seus argumentos no que outros operadores e juristas já disseram) do que para o lado técnico. Por outro lado, quando esse mesmo funcionário numera e carimba documentos trazidos por advogados, penso ser esse um trabalho que pende mais para o pólo técnico que para o acadêmico do Direito. Por outro lado, continuando no mesmo exemplo acima, é claro que a agência ou os efeitos específicos do Voto escrito por tal funcionário depende completamente da assinatura do Juiz responsável. Não seria de grande ajuda na compreensão da lógica aí envolvida discutir quem seria ‘realmente’ o autor de tal documento. O que deve ser notado é que, primeiramente, é o magistrado quem irá defender as idéias contidas nesse texto frente a um coletivo de outros julgadores, numa Audiência normalmente aberta. Por outro lado, é certo que o Voto, como já chamei atenção acima, é um documento com forte teor acadêmico: para escrevê-lo, é necessário ter tanto o conhecimento do processo que está em julgamento e, por outro lado, das possíveis leis, outros casos e tipificações de teóricos do Direito que podem ser usados numa situação específica. Deixo claro, por fim, que me baseio numa linha de tensão (e não numa distinção categórica) entre o ato de cumprir disposições tidas como meramente técnicas ou mecânicas, numa ponta, e, por outro lado, o ofício de se poder interpretar, com relativa liberdade, a legislação positiva (como visto, por vezes é possível até ignorá-la) a partir da qual um conflito é criado e julgado. Trabalho, com isso, a partir de uma distinção mais adjetiva – existem documentos produzidos ou ações realizadas por funcionários do Judiciário Brasileiro que podem ser mais ou menos técnicas, mais ou menos acadêmicas – do que propriamente substantiva. Assim a Denúncia dos Procuradores do MPF é o documento mais próximo do caráter acadêmico ou científico do Direito que analisei até o momento – isso, é claro, em termos relativos, ou seja, quando comparada, por exemplo, com o Relatório Final do Inquérito Policial. O que o Delegado Cutrim faz nesse último documento, no que tange ao Crime de Genocídio, é simplesmente citar o número da Lei que os garimpeiros infringiram (Lei n. 2.889/56, analisada a seguir), traçando, antes disso, um resumo geral das provas levantadas durante o Inquérito. A argumentação do que caracteriza tal Crime e de como tais características serão aplicadas ao caso específico do que aconteceu em Haximu será trabalho dos Procuradores do MPF. A já citada análise de 94

Max Weber ajuda a matizar tal ponto: apesar deste autor estar interessado num campo do Direito diferente daquele em que o Processo Haximu se desenvolve (Weber diz se importar “especialmente com o grau e natureza da racionalidade do direito, sobretudo, como é claro, do direito economicamente relevante – o atual “direito privado”, WEBER, 1999: 11), ele argumenta que A legislação moderna não se contenta com a constatação de que, com a reserva de certas restrições, em princípio, se pode acordar, com validade jurídica, o que se quiser, mas regulamenta, mediante várias disposições autorizadoras especiais, os diversos tipos de acordo. (WEBER, 1999 : 28). Tal idéia de que os acordos financeiros judicialmente firmados não são apenas autorizados, mas principalmente tipificados e organizados pelo Direito, pode ser aplicada ao que os Procuradores do MPF farão com o Crime de Genocídio: não se está simplesmente tentando provar que os garimpeiros mataram, realmente, os índios. Querse, mais que isso, elucidar de que maneira eles o fizeram, classificar tal maneira a partir de um código pré-existente, e, principalmente, dar conta de qual o intuito desses criminosos por detrás das mortes, pois tudo isso será central na definição do Crime e a dosagem das Penas aplicadas, mais tarde, aos condenados. Na verdade, para tipificar o Genocídio, as mortes em série ocorridas são, em termos estritamente jurídicos, pouco relevantes: na Denúncia argumenta-se, pela primeira vez, que “embora a definição do delito [de Genocídio] se refira a “membros de um grupo”, pode configurar-se o crime ainda que um só seja vítima, desde que atingido em caráter impessoal, como membro de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” (PH, Denúncia :22 apud FRAGOSO, Heleno Claudio. “Genocídio”, in: Revista de Direito Penal, n. 9/10, jan/jun 1973, RT,:31, ênfase minha). No mesmo sentido, Bourdieu (op. cit.) chama atenção para o fato de que la “règle” tirée d’um cas précedent ne peut jamais être purement et simplement appliqué à un nouveaus cas, parce qu’il n’y a jamais deux cas parfaitement identiques et que le juge doit déterminer se la règle applique au premier cas peut ou non être etendue de manière à inclure de nouveau cas. (idem, :8, ênfase minha) Assim, no Direito moderno, não se pode apenas classificar, a partir de um código geral e anterior, o que está sendo julgado numa contenda específica. Deve-se, além de dizer (como faz o Delegado Cutrim, por exemplo) que tal conduta conforma-se num Crime 95

determinado, argumentar, baseado nas provas, porque ela o conforma. Como já disse, é isso o que será feito na Denúncia.

II A etnicidade Yanomami a partir da Denúncia A Denúncia inicia-se com a Ementa (:02-03), que traz os Crimes pelos quais os garimpeiros estão sendo Denunciados. Transcrevo aqui o primeiro ponto dela, que tipifica brevemente o Genocídio (as ênfases são do original): 1. Genocídio: tipifica o delito de genocídio a ação de garimpeiros que, com a intenção de destruir a comunidade indígena Yanomami dos Hwaximëthéri [tal grafia é idêntica àquela usada no Relatório de Bruce Albert], provoca a morte violenta de mulheres, crianças e homens; causa lesão grave à integridade física de crianças e adultos; e que submete intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física. Lei n. 2.889/56, art. 1º., letras ‘a’, ‘b’ e ‘c’. (Idem, :02) O mesmo modelo é adotado para os delitos de Associação para o Genocídio, Crime de Lavra Garimpeira, Contrabando, Ocultação de Cadáver, Crime de Dano, Crime de Quadrilha ou Bando e para delimitar a “Competência da Justiça Federal Brasileira” no Processo, já que “os agentes passivos são índios” (:03). Desse modo, apresenta-se um resumo de cada umas das acusações, juntamente com as leis (nesse momento, apenas citadas pelo número) que as tipificam. Logo após a Ementa, qualifica-se (:03-04) todos os Denunciados pelo nome completo, apelido, filiação, data e local de nascimento, situação civil, profissão, endereço e, por fim, o número da carteira de identidade (Título I). No segundo Título, cita-se dados populacionais colhidos no Diário Oficial da União sobre o Processo Judicial de Identificação da Terra Indígena Yanomami e Mayongong (:04), concluindose que “[os Yanomami] são, em suma, um grupo étnico, no sentido que ao termo empresta Fredrik Barth” (:05, ênfase do original). Nesse momento inseri-se uma nota de pé-de-página onde é citada uma tradução livre do início do ensaio de Barth “Los Grupos Étnicos e sus Fronteras”. Na edição em Português, a citação dos Procuradores ocupa o fim da página 189 e início da 190 (BARTH, 1999). A nota traz, assim, o conceito de grupo étnico que o autor irá criticar durante todo o resto de seu ensaio.

96

Barth, nesse artigo, visa mostrar que

esses grupos não são constituídos por uma

substância imutável, mas que eles mantêm-se como tais a partir de uma complexa trama de negociação de fronteiras. De todo modo, não é o foco principal dos autores da Denúncia (ao contrário de Fredrik Barth) discutir qual o problema de uma definição fechada e substancializadora de grupo étnico. O que lhes interessa é tornar claro que os Yanomami são, sem qualquer sombra de dúvida, um Grupo Étnico específico. Para esclarecer melhor tal ponto, é preciso analisar a Lei que tipifica o Crime de Genocídio no Brasil: Lei 2.889/56 Define e pune o crime de genocídio. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA: Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; Será punido: Com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a; Com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra b; Com as penas do art. 270, no caso da letra c; Com as penas do art. 125, no caso da letra d; Com as penas do art. 148, no caso da letra e; Art. 2º Associarem-se mais de 3 (três) pessoas para prática dos crimes mencionados no artigo anterior: Pena: Metade da cominada aos crimes ali previstos. Art. 3º Incitar, direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes de que trata o art. 1º: Pena: Metade das penas ali cominadas. § 1º A pena pelo crime de incitação será a mesma de crime incitado, se este se consumar. § 2º A pena será aumentada de 1/3 (um terço), quando a incitação for cometida pela imprensa.

97

Art. 4º A pena será agravada de 1/3 (um terço), no caso dos arts. 1º, 2º e 3º, quando cometido o crime por governante ou funcionário público. Art. 5º Será punida com 2/3 (dois terços) das respectivas penas a tentativa dos crimes definidos nesta lei. Art. 6º Os crimes de que trata esta lei não serão considerados crimes políticos para efeitos de extradição. Art. 7º Revogam-se as disposições em contrário5. O artigo 121 do Código Penal dá pena de 6 a 20 anos para o Crime de “matar alguém”; o parágrafo segundo do artigo 129 define pena de 2 a 8 anos por se “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”; o artigo 270 dá pena de 10 a 15 anos por se “envenenar água potável, de uso comum ou particular, ou substância alimentícia ou medicinal destinada a consumo”; o 125 define pena de 3 a 10 anos por se “provocar aborto, sem o consentimento da gestante”; por fim, o artigo 148 do CP define pena de reclusão de 1 a 3 anos caso se prive “alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”6. Como se pode notar, todas as penas são dadas a partir de Crimes já existentes (a Lei 2889 é de 1956 e o Código Penal é de 1940) e, além disso, o Genocídio tem suas penas dosadas a partir de delitos que ofendem indivíduos pontualmente tomados – aborto, assassinato e seqüestro, por exemplo. Os garimpeiros foram Denunciados, dentre outros Crimes, por infringirem as letras ‘a’, ‘b’ e ‘c’ do 1º artigo da Lei 2.889 – ou, na linguagem utilizada no CP, por terem, matado, ferido e contaminado, com o desenvolvimento da atividade garimpeira, a área onde viviam os Yanomami de Haximu. Contudo, o ponto principal a ser aqui matizado, motivo da citação pelos Procuradores da definição imputada a Fredrik Barth, é que os Yanomami precisam ser caracterizados como um Grupo Étnico determinado, a fim de que se possa incluí-los no primeiro artigo da referida Lei. Se numa hipotética refrega ocorrida exclusivamente entre garimpeiros houvesse morrido duas dezenas deles, um possível processo criminal não teria qualquer referência à Lei acima transcrita – e nem, tão pouco, seria competente a Justiça Federal para julgá-lo. Os garimpeiros, dentro do desenvolvimento do Processo Haximu, serão o contra-ponto ou o pano-de-fundo onde se assentará a etnicidade Yanomami. Na já citada qualificação dos Denunciados, por exemplo, o termo 5

http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L2889.htm, em 18/7/2006. Ênfase minha.

6

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm, em 18/07/2006.

98

“garimpeiro” entra no espaço reservado à profissão desses últimos - e não há qualquer referência a uma “língua própria” ou “habitat natural” (Denúncia, :04) quando se trata dos últimos. Nesse sentido, os Yanomami são uma “comunidade indígena” (idem:02, ênfase minha) que teve contato com um “grupo social que, iludido pela promessa de enriquecimento rápido e tangido pela pobreza em seus Estados de origem, vem em busca do ouro, ou de outros minérios que signifiquem atingir os mesmos objetivos” (:05, ênfase minha, as referências seguintes apenas numeradas são todas referentes à Denúncia). Assim, durante todo o Processo, os garimpeiros, primeiramente, serão tomados com um “grupo social” entre os brasileiros comuns: possuem, portanto, um “Estado de origem”, ainda que “tangidos” daí pela “pobreza”, além de exercerem uma “profissão”, mesmo que esta seja, de saída, ilegal (:32). Contudo, quando esses brasileiros-garimpeiros entram no “habitat” (:04) dos Yanomami, passam a engrossar uma “sociedade não indígena local” (:05), que em nada se confunde com os “habitantes naturais” daquela região. Algumas páginas à frente, argumenta-se que “as vítimas do genocídio são índios Yanomami, quase sem contato com a sociedade envolvente e que não têm registro civil de nascimento (:27, ênfase minha)”. Enfim, como já disse, os Denunciados são parte de um “grupo social” (espécie de excerto da sociedade nacional, mas ainda assim genericamente tomados como brasileiros) que se confronta com uma “comunidade indígena” específica. Tal comunidade, apesar de ter terras legalmente demarcadas no Brasil, não se compõe propriamente de simples brasileiros, originários de um Estado e com uma profissão específica – não são, enfim, um “grupo social” entre os brasileiros comuns. Para mapear as conseqüências de tal qualificação de índios e garimpeiros, é necessário continuar a análise da Denúncia. O encontro entre esses dois ‘entes’ é tido, pelos Procuradores, como particularmente danoso para um dos lados: “o produto da convivência de índios com não-índios pode ser analisada por Carlos Rodrigues Brandão, que chegou à seguinte conclusão: ‘o contacto entre índios e brancos provoca alterações sucessivas em todas as dimensões da vida do índios: [..] vê perder-se, portanto, o todo ou parte do modo de vida da experiência tribal’” (:08, apud BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e Etnia. São Paulo: Brasiliense, 1986, :52, ênfase minha). Nessa mesma página, já no Título III (“Início dos Atritos”, :08) tem início uma longa citação do Relatório do antropólogo Bruce Albert, que explica “a raiz e a causa fundamental” (expressão dos Procuradores) da ação dos garimpeiros, 99

concluindo-se que os índios “na melhor das hipóteses, são inconvenientes, na pior, são uma ameaça à sua segurança [dos garimpeiros]. Se com brindes e promessas não conseguem [os garimpeiros] afastá-los, então a solução é intimidá-los ou exterminálos” (:09 apud Relatório de Bruce Albert :126). A partir daí começa a narrativa do Genocídio em si, dividindo-o, como já havia feito Bruce Albert anteriormente, em “1º” (:10) e “2º atos” (:14). A organização cronológica de tal narrativa segue exatamente o esquema feito por Albert, que transcrevi no fim da terceira subseção do capítulo anterior. Contudo, o ponto central a ser notado aqui é que os Procuradores têm a disposição, agora, todos os Termos de Declarações e Laudos Periciais recolhidos pelos Policiais Federais durante o Pré-Processo. É esse material, cuidadosamente recolhido na Denúncia, que servirá de ‘estofo’ para a tipificação do Crime de Genocídio – dados com que, é claro, que o antropólogo Bruce Albert não teve o menor contato. A partir desse ponto, todas as várias notas de pé-depágina da Denúncia servem para indicar o número ou intervalo de páginas do Processo onde está aquilo que se narra, de forma direta ou indireta, a partir dos depoimentos. Cita-se, assim, somente os Termos de Declaração dos indígenas apontados por Albert como os reais sobreviventes da Chacina, como esclareci anteriormente. O primeiro Termo de Declarações usado pelos Procuradores é o de Paulo Yanomami “que sobreviveu para contar a seguinte narrativa” (:11), citando-se, em seguida, a passagem do depoimento de Paulo onde é narrada a primeira incursão dos garimpeiros contra os índios. Na página seguinte há um excerto do depoimento de Silvânia Santos Menezes, onde ela diz ter presenciado, pessoalmente, “Careca dizer que, quando estavam matando esses quatro índios, um deles se abaixou e colocou as mãos no rosto e disse: Garimpeiro amigo! E Careca deu um tiro bem no rosto dele” (:12 apud :215, ênfase do original). Fala-se nas páginas :13-14 da primeira incursão de retaliação dos Yanomami, onde o garimpeiro Fininho é morto e Neguinho sai ferido – fatos aludidos também a partir dos depoimentos de índios e garimpeiros. Como no Relatório de Albert, é dada maior importância ao que se batiza, aqui, de “Genocídio: 2º Ato” (:14) e que no Relatório aparece como “2º Ataque dos Garimpeiros” (cf. capítulo III). Na página 15, baseado nos depoimentos de Silvânia Santos e no segundo depoimento de Pedro Emiliano, faz-se uma tabela do tipo Garimpeiro/Arma, onde se pormenoriza os calibres e os tipos de armas usadas por cada um dos 15 garimpeiros citados nesses dois depoimentos – inclusive a faca de ‘Goiano Boiadeiro’, destacada em negrito. Nas páginas :15-16 cita-se parte do depoimento de 100

Simão Yanomami, narrando a chegada dos garimpeiros na roça velha onde se encontravam os habitantes de Haximu; na página 16, colhe-se um novo excerto do depoimento de Paulo, narrando a mesma situação. Os Procuradores concluem, com isso, que a primeira narrativa “guarda absoluta concordância” (:16) com a última. Nessa mesma página compara-se descrições dos ferimentos encontrados nos mortos, feitas por Waythereoma Hwanxima e por Paulo Yanomami, onde ressalta-se, novamente, as coincidências. Os Procuradores asseguram, assim, que “a narração dos fatos, pelo lado dos índios, que foram vítimas, é absolutamente fidedigna, tendo sido confirmada a partir dos depoimentos dos garimpeiros” (:16). Na página 17, o depoimento de Silvânia vem antecedido do prelúdio: “Silvânia Santos Menezes, conhecida por Silvinha, cozinheira do garimpeiro João Neto, confirma as palavras de Pedro Prancheta:” (ênfase do original). Cita-se, logo depois e em negrito, a passagem em que Silvânia “presenciou ‘Goiano Boiadeiro’ dizer: “que havia uma criança deitada numa rede e ele enrolou a criança em um pano e meteu a faca de um lado para outro” (:17 apud :216, ênfase do original), também narrada por Pedro Emiliano em seu segundo depoimento. Depois de narrar o 2º Ato de Genocídio a partir dos próprios Termos de Declarações dos garimpeiros, os Procuradores voltam aos depoimentos indígenas. Citase Waythereoma Hwanxima narrando a cremação dos corpos das vítimas (:17-18), esclarecendo-se que uma índia deixou de ser cremada – e, mais tarde, os Procuradores irão comparar esse mesmo excerto de depoimento com o Laudo Pericial da ossada achada na mata (:29). Na 18-19 há uma tabela, baseada no Relatório de Albert, com os mortos e feridos desse segundo ataque – cuja descrição se baseia, além dos dados de parentesco, apenas no sexo e idade aproximada, todos dados recolhidos por Bruce Albert. Em alguns poucos casos há o nome da vítima, mas somente o não-indígena, como no exemplo: “homem adulto de idade avançada – Elísia [nome da vítima], irmão mais novo de Uxuama [que só tem o nome indígena citado porque continua vivo, sendo sobrevivente do Genocídio]” (:18). Nas páginas 19 e 20, baseados nos depoimentos de Silvânia Santos e Basílio Ferreira (não há qualquer citação explícita, apenas a indicação, por notas de pé-de-página, de onde foi retirada a informação) os Procuradores narram a fuga dos Denunciados depois que a notícia do Genocídio tornou-se pública nas rádios da região, ocasião em que os garimpeiros “forçaram a preferência para embarque nos aviões com vôos ilegais e clandestinos, chegando mesmo a ameaçar [outros] garimpeiros presentes” (:20).

101

A “tipificação da conduta de genocídio” a partir de teóricos do Direito – que comecei a analisar acima e retomo agora – inicia-se na página 20 e termina na 27 da Denúncia. Em resumo, as características gerais de tal Crime são: o Genocídio é coletivo no sentido de que não atenta, primeiramente, “contra a vida do indivíduo, mas sim contra grupos de pessoas” (:21 apud FRAGOSO, op. cit.); é impessoal no sentido que “a vítima é atingida pela só condição de fazer parte do grupo étnico” (:21, ênfase minha); e, por fim, tem como base a idéia, por parte de seus “sujeitos ativos [os genocidas]”, do uso da violência “como válvula de segurança social, uma consciência pseudo-justiceira” (:22). Há de se notar, aqui, que essas características distanciam tal Crime do simples homicídio ou lesão corporal, como frisam os próprios Procuradores na mesma página. No homicídio, quando se mata alguém, isso se dá por uma desavença entre indivíduos similares: quer-se que aquela pessoa específica seja morta porque ela é, de alguma maneira, um desafeto pessoal. No Genocídio, segundo os Procuradores, não há, por parte do criminoso, tal motivação contra uma pessoa determinada: quer-se acabar com todo um grupo de pessoas exatamente porque essas pessoas compõem tal grupo – ainda que não se conheça elas pessoalmente. Constrói-se, com isso, um “modelo teórico [que] se enluva com rigor e precisão aos fatos acontecidos em Haximëu.” (:23, ênfase minha). No que tange ao último ponto desse “modelo teórico”, há um “ressentimento” dos garimpeiros frente à atuação da Polícia e outros órgãos, que sempre impedem o exercício da (de antemão ilegal) atividade garimpeira (:23). Sobre a impessoalidade característica do Genocídio, nota-se na Denúncia que “nenhum dos garimpeiros ouvidos, ou suas cozinheiras, ou os informantes, sabia identificar qualquer índios pelo nome. Nenhum.”(:24). A respeito da intenção coletiva de tais assassinatos, argumenta-se que os garimpeiros atiraram indistintamente contra mulheres e crianças, desarmadas e indefesas. A brutalidade atinge até mesmo uma criança de colo, de apenas um ano de idade, que é trespassada por uma faca, em golpe desferido por Goiano Doido. Tudo isso pela só condição das vítimas serem Hwaximëutheri. (:25, ênfase do original). Um último ponto nessa rápida descrição da Denúncia merece atenção especial: a discussão da “materialidade dos fatos” (:27-35). Fora o esqueleto e cinzas achados na mata, além dos Laudos Periciais feitos nos sobreviventes, não há Corpo de Delito de nenhuma das vítimas. Fotografou-se as cabaças onde as cinzas foram guardadas, mas

102

não se levou nenhuma delas para a feitura de qualquer Laudo Pericial. Os Procuradores citam o artigo 167 do CPP, argumentando “que não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta” (:27). Assim, há uma gama imensa de “provas testemunhais”, mas fica claro que, no Processo Haximu, que não foi possível periciar os corpos da grande maioria das vítimas. Isso se dá porque há uma “prática tribal” entre os Yanomami, “testificada pelo antropólogo Bruce Albert” que diz que “de acordo com a cultura dos Yanomami o tratamento ritual dos ossos dos mortos é um ponto central e imprescindível da cerimônia funerária [...] (:27, apud Termo de Declarações de Bruce Albert, :151)”. A cremação e pilação dos ossos é caracterizada pelo antropólogo como um costume tradicional dos Yanomami e, por outro lado, garantida no artigo 231 da Constituição Federal, que “reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Denúncia, :28). Na página seguinte, compara-se a descrição do Laudo Pericial das ossadas com o Termo de Declarações de Waythereoma Hwanxima, concluindo-se que “o testemunho ocular de Waythereoma Hwanxima guarda consonância com a descrição dos senhores peritos” (:29). Da página 29 à 32, citam-se várias passagens desse Laudo, mostrando que os peritos constataram que a ossada é sim de uma jovem índia, morta a tiros de arma de fogo do tipo cartucheira – o que já havia sido dito antes por Waythereoma Hwanxima. Nas páginas 32-33 dá-se conta dos Laudos feitos nos sobreviventes, ao que se argumenta que “a descrição das lesões e dos instrumentos que as causaram é compatível com as declarações das vítimas sobreviventes dos ataques, e com o testemunho dos garimpeiros e cozinheiras de garimpeiros, especialmente quanto às armas que portavam” (:33). Pode-se notar, com isso, que a falta dos corpos de todos os indígenas mortos assenta-se na própria etnicidade Yanomami. Nesse sentido, não é possível recuperar as cinzas pois, como esclarece Bruce Albert, elas são sagradas para os sobreviventes de Haximu. Também não é possível saber o nome indígena das vítimas pelo mesmo motivo. Analisa-se, então, apenas um corpo que os Yanomami deixaram para trás – e, sobre as vítimas, tenta-se individualizá-las a partir das relações do sexo, idade e relações de parentesco colhidas por Bruce Albert. Por fim, este é o produto do trabalho dos Procuradores sobre os documentos produzidos pelos Policiais Federais: um “modelo teórico” tipificando o Crime de Genocídio, concatenado aos Termos de Declarações e Laudos Periciais do Inquérito, 103

pretendendo comprovar, assim, que os garimpeiros Denunciados não simplesmente ‘massacraram’ ou ‘chacinaram’ os Yanomami. Eles queriam, segundo a Denúncia, dar cabo de todos os habitantes de Haximu, o que, entre outras característica, é típico não de um homicídio em série ou de seguidas lesões corporais, mas de um Genocídio – isso apesar de, como visto, a contabilidade das penas na Lei 288/56 se basear, indiretamente (por alusão ao CPP), em crimes individuais. É possível esclarecer melhor tal ponto tendo como base as reflexões de Michel Foucault sobre a construção da punição que é dada aos desviantes do sistema jurídico atual. Os Procuradores argumentam que “o genocídio costuma ser chamado de delito de intenção [...] [já que] a vítima é atingida pela só condição de fazer parte do grupo étnico, religioso etc.” (Denúncia, 21, ênfase minha). Foucault argumenta que as punições, no Direito ocidental, não visam mais marcar o corpo físico – como os suplícios medievais faziam num período anterior. Na verdade, quer-se reformar a “alma” do desviante, seu “coração, o intelecto, a vontade, as disposições” (FOUCAULT, 2006, :18). É exatamente por isso que, na construção do modelo teórico do Genocídio pelos Procuradores, pouca importa a quantidade de mortos na tipificação do Crime de Genocídio: para caracterizá-lo, há de se mapear as intenções dos infratores. Assim, para Foucault, “a alma do criminoso não é invocada no tribunal somente para explicar o crime [...] mas também para julgá-la, ao mesmo tempo que o crime, e fazê-la participar da punição” (FOUCAULT, 2006:20). Por outro lado, a ‘alma’, a intenção do criminoso não é trazida somente no julgamento: ela está inscrita nas próprias leis positivas que qualificam os delitos. Só para citar um exemplo, basta transcrever, novamente, o Artigo 1º da Lei de Genocídio Brasileira, que diz que aqueles que “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal” (ênfase minha) estão sujeitos a serem punidos por tal Lei. Foucault acertadamente assegura que, no sistema punitivo cuja as raízes ele tenta mapear, aqueles que não têm consciência do que fizeram não podem cometer, via de regra, um Crime (FOUCAULT, 2006, :21). Com isso, se no caso de um homicídio procura-se saber as condições não só materiais em que ele ocorreu, mas também as relações entre o homicida e sua vítima, no caso aqui em foco “a chave do entendimento da conduta genocida está em analisar e examinar o ambiente em que os grupos em conflito estão situados, e qual a visão têm um do outro [...]” (Denúncia, :22, ênfase do original), dando-se, voz, assim, à análise feita por Bruce Albert da relação entre índios e garimpeiros. Isso se dá justamente porque a conduta dos garimpeiros, suas vontades e 104

intenções, já apontavam, antes da ação genocida propriamente dita, para o Genocídio em si. Como o Crime de Genocídio está inscrito nas disposições psicológicas dos desviantes, ele é anterior e posterior (motivo pelo qual deve ser corrigido) ao próprio Ato Genocida. Como se pode notar, o papel dos antropólogos como Albert e Barth é menos de juízo ou decisão, do que propriamente de ordenação ou explicação. É claro que esses últimos (principalmente Bruce Albert) são, como quer Foucault (op. cit.) ou Bourdieu (BOURDIEU, 1986), especialistas chamados a atuar numa seara determinada - e, portanto, detentores de certo poder específico, dotado de força e limitações muito singulares. Porém, tal poder figura, ao menos no caso do Relatório de Bruce Albert, menos tipificando condutas em Crimes ou esmiuçando as intenções dos genocidas, do que, por outro lado, indicando uma linha geral ou explicação principal do conflito entre garimpeiros e índios. Tudo isso será, é claro, reinterpretado pelos especialistas do Direito – como fazem os Procuradores na presente Denúncia, esses sim responsáveis por qualificar o Crime de Genocídio. Voltando a um ponto citado acima, mas ainda não devidamente analisado, há de se notar que a classificação do ataque dos garimpeiros como indomável ou bestial, parece não comportar, ao menos em termos estritamente legais, qualquer relação com a tipificação do Genocídio em si. A citação (que se sedimentará em todo o resto do Processo) de partes de depoimentos como o de Silvânia (narrados acima e no capítulo III), trazendo violentos detalhes da maneira como os índios foram mortos, também parece não contribuir, legalmente falando, com qualquer novidade para o modelo teórico que tipifica o Genocídio. Contudo, passagens como essas estão presentes em praticamente todos os documentos dos Autos, particularmente aqueles produzidos contra os garimpeiros. Tal fato dá margem a dizer que a lógica judicial, como chama atenção Max Gluckman, não pode “transfomar fatos crus em categoriais legais” tendo como base “apenas a lógica formal” (GLUCKMAN, 1963, :204, tradução livre). Assim, não basta caracterizar, em termos técnico-judiciais, a pretensão genocida dos garimpeiros. Nesse sentido, Gluckman diz que In litigation, these general rules have to cover a great variety of actual situations in life. They can only do so if the general moral ideas

105

involved can be brought to bear on the particularities of a perhaps unique situation. (GLUCKMAN, 1963:191) O autor conclui, então, que “courts of law are in fact courts of morality” (GLUCKMAN, 1963:194). Essa mesma idéia de que há um razoável moral, uma conduta socialmente tida como positiva (mas que não está explícita nos códigos legais) que conforma a construção judicial de uma Conduta Criminosa qualquer pode ser também trabalhada a partir da análise que Luc Boltanski faz da indignação frente a sofrimentos de pessoas distantes (BOLTANSKI, 1993). Na Denúncia, fica patente que não se quer apenas achar, a partir dos depoimentos e laudos, as características gerais do Genocídio. Quer-se, mais que isso, fazer com que um potencial julgador se indigne com o que está sendo então narrado. Na construção do Genocídio de Haximu, não se chama atenção apenas para as características técnico-judiciais do tal delito: os Procuradores ressaltam sempre a crueldade da ação dos acusados - o que, como visto, não entra na tipificação do Crime em si. Nesse sentido, Boltanski argumenta que La transformation de la pitié en indignation suppose précisément une reorientation de l’attetion, qui se détourne de lá consideration déprimante du malheureox et de ses souffrances pour aller chercher un persécuteur e se centrer sur leu. (op.cit., :91). Essa mudança de foco, tentando-se construir um perseguidor que não é apenas o transgressor de uma lei, mas uma pessoa moralmente reprovável, parece contribuir, na Denúncia, para a escolha de excertos de depoimentos pontualmente violentos (como os de Silvânia citados acima), ou da argumentação da bestialidade incontrolável dos garimpeiros. O mesmo artifício será usado, como mostrarei no próximo capítulo, na construção da Sentença e de outros documentos dos Autos. Voltando à temática da punição, o já citado texto de Foucault ajuda a mapear uma importante característica de um sistema judiciário com poder relativamente autônomo e alicerçado por um possível aparelho de coerção. Não se quer simplesmente dizer quem é certo ou errado, mas sim marcar um desvio a partir de um universo préestabelecido de Crimes. Tal demarcação, como visto na Denúncia, é um exercício mais de interpretação construtiva do que propriamente de adequação literal, já que o Direito ocidental tem uma clara pretensão ao universalismo que não está diretamente ligada à tipificação literal de todos os tipos de conduta. Visa-se, assim, principalmente, corrigir 106

o desviante - havendo, para esse último ponto, diversas instituições não propriamente judiciais, mas que operam em conjunto com ela. Em outros contextos, como o do Direito Germânico medieval, “existe simplesmente a vitória ou o fracasso” (FOUCAULT, 1996, :61) e o cumprimento da sentença depende única e exclusivamente do poder de uma das partes em fazer valer o que foi acordado pelo mediador do conflito. Exemplo análogo é dado por Weber, ao narrar que, no processo judicial medieval “o acusador arrasta o acusado perante o tribunal e somente o solta depois de ter certeza de que este, se o juiz o declarar culpado, não se esquivara da expiação” (WEBER, 1999: 24). No presente caso, a polícia atua, como já visto, paralela e complementariamente ao judiciário, idealmente assegurando que os culpados serão reformados. Enfatizo o idealmente pois, no Processo Haximu, há reiterados pedidos do MPF para que a PF faça outras diligências a fim de tentar achar novos acusados ou testemunhas que não foram ouvidas Em Juízo até então. No Pedido da página 1090, por exemplo, os Procuradores explicitamente desistem de tentar fazer com que os Policiais Federais achem essas outras testemunhas e suspeitos, resignando-se em trabalhar com os que já foram presos e/ou ouvidos. Num outro momento, os Procuradores chegam a pedir a Prisão Provisória de uma testemunha, o garimpeiro Basílio Ferreira, por “desobediência à justiça” (PH, :932, Representação contra Basílio Ferreira), já que ele havia faltado a várias Audiências feitas pelo Juiz Renato Martins. Basílio é realmente preso pelos Policiais Federais, passa alguns dias na Penitenciária Agrícola de Roraima, é ouvido Em Juízo e, logo após, posto em liberdade (PH, :948, Alvará de Soltura de Brasílio Ferreira).

III. A capilaridade do Judiciário Brasileiro Refazendo brevemente o caminho que segui até aqui, deixei de lado as primeiras 40 páginas do Processo no capítulo anterior, partindo, então, para a análise do Inquérito Policial – que vai da página 42 até a página 518 do 3º volume dos Autos, como se pode conferir no Anexo I. Na última subseção, voltei a tais páginas a fim de dar conta do documento que inicia a fase judicial do Processo: a Denúncia dos Procuradores do MPF responsáveis, nesse momento, por atuar no Caso Haximu. A Denúncia é aceita pelo Juiz de 1ª Instância do Tribunal Regional Federal de Boa Vista, Doutor Renato Martins 107

Prates. O Processo tramitará nesse Tribunal até o dia 22-05-1997, quando será remetido ao TRF de Brasília. Assim, volto, nessa subseção, a trabalhar a partir da ordenação das fontes documentais apresentada no próprio Processo. O primeiro ato do Juiz Renato Martins nos Autos é um Decreto (PH, :528-530) que transforma as Prisões Temporárias de Pedro Garcia e Eliézio Néri (exclusivas para que os Policiais Federais pudessem instruir o Inquérito) em Prisões Preventivas (caso em que se decreta as prisões também para a instrução judicial de um processo9). O último tipo de prisão é aplicada, entre outras possibilidades, quando “o indiciado é vadio” (Artigo 313, parágrafo 2 do CPP, ênfase minha). O primeiro tipo, de uso exclusivo no Inquérito Policial, se aplica, entre outros casos, “quando o indiciado não tiver residência fixa” (Lei n. 7.960/89, Artigo 1, parágrafo 2, ênfase minha). Apesar de não citar explicitamente o conteúdo de tais Leis, Renato Martins Prates argumenta que “é de se considerar, ainda, que a prisão preventiva é garantia de aplicação da lei penal. Os indiciados são garimpeiros, nômades pela própria profissão, dedicando-se à exploração de ouro em regiões remotas, de difícil acesso e para quem as fronteiras, mesmo internacionais10, pouco significado têm” (PH, :530, ênfase minha). Além disso, Pedro Garcia, na Guia de Identificação à época de sua prisão (PH, :230) apresenta a seguinte informação datilografada no campo “Residência Atual”: “RUA GETÚLIO VARGAS -- "HOTEL BAHIA” APTO 03” (Idem, ênfase minha). O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa10 define como sinônimo de vadio o termo vagabundo. Todas as definições no Houaiss para o primeiro termo fazem referência à falta de trabalho e/ou empenho para se conseguir uma ocupação remunerada. Porém, dentro da rubrica Direito Civil desse mesmo Dicionário, pode-se encontrar a seguinte definição para a categoria vagabundo: “indivíduo que não tem residência habitual, ou que emprega a vida em viagens, sem ter um ponto central de negócios”. Tal termo deriva, assim, do verbo vagar, possuindo a mesma raiz latina vag-. 9

A Prisão Preventiva tem sua aplicação normatizada pelos Artigos 311 ao 316 do CPP; a Prisão Temporária é normatizada por uma Lei Especial, de número 7.960/89, cujo conteúdo pode ser acessado na página eletrônica http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L7960.htm (em 22-11-2006). Agradeço a Maiuí Borba de Oliveira, bacharel em Direito pela UFMG, a ajuda na localização dessa última Lei. 10

A Aldeia de Haximu, ainda na fase inquisitorial, é identificada como pertencente ao território venezuelano, como o constata o Relatório de Inspeção do funcionário do Ministério das Relações Exteriores, coronel Ivonilo Dias Rocha (PH, :343-359). 10

Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 1.0, dezembro de 2001.

108

É a partir dessa última acepção que serão tratados todos os garimpeiros (testemunhas e acusados) no Processo – pode-se dar como exemplo aqui a já citada prisão do garimpeiro Basílio Ferreira, que nunca figurou como suspeito de ter participado do Genocídio em Haximu, mas mesmo assim é preso a fim de que se pudesse colher seu depoimento Em Juízo. Nesse sentido, tais indivíduos são tidos como “nômades pela própria profissão”, não possuindo uma “residência fixa” – e o fato de um dos suspeitos já preso dar como local de moradia o endereço de um hotel de Boa Vista só corrobora tal pressuposto. Para a primeira Audiência Judicial, Renato Martins “intima”11, além dos réus, sete testemunhas não-indígenas relacionadas ao garimpo (cozinheiras e garimpeiros, entre os últimos Basílio Ferreira, que não comparece), três indígenas (Paulo, Japão e Waythereoma), além do antropólogo Bruce Albert (que também não comparece, pois, nesse momento, já estava de volta à França). O Oficial de Justiça (na fotocópia é impossível ler o carimbo com seu nome) diz12 que todos os endereços do Mandado de Intimação (informações retiradas do Inquérito Policial) não existem ou não se conhece a pessoa indicada naquele local. Por fim, “a única testemunha encontrada foi Manoel José Santos Soares [garimpeiro] que assinou o mandado e recebeu a contra-fé”13; na Ata de tal Audiência o Juiz pede que a Polícia Federal seja “oficiada”14 no sentido de localizar as testemunhas que até então não foram ouvidas. Por outro lado, algumas páginas à frente (:665), o então Administrador Regional da FUNAI/RR, Sr. Suami Percílio, informa que esta Administração está impossibilitada de apresentar os indígenas referidos [no Mandado de Intimação], tendo em vista que Japão Yanomami deslocou-se para a região do Xidéia, não sendo possível sua localização até a presente data. Já Paulo Yanomami e

11

PH, :654, Mandado de Intimação, assinado pelo Juiz Renato Martins, de réus e testemunhas para a 1ª Audiência de Instrução, marcada para 10-12-1993. Sobre o caso da prisão de Basílio, Maiuí Borba de Oliveira (cf. Nota 9) me disse que o Juiz não “convida” ou simplesmente “chama” alguém a depor; ele, segundo Maiuí, “intima” uma testemunha, que, em último caso pode ser fisicamente obrigada a comparecer Em Juízo. 12

PH, :655, Certidão do Oficial de Justiça sobre as diligências para intimação de réus e testemunhas para a 1ª. Audiência. 13

Idem.

14

PH, :656-657, Ata da 1ª Audiência no TRF/RR.

109

Waythereoma Hwaxima encontra[m]-se na maloca do Novo Demini [...] onde não existe condição de operação de aeronave. (Idem) A Ata da 2ª Audiência (:667) se resume ao seguinte: nenhuma nova testemunha compareceu na data marcada. Renato Martins, então, determina uma outra Audiência, marcada um dia após essa última. Na ocasião é ouvido Em Juízo somente Japão Yanomami15 – e ninguém mais, apesar de intimadas várias outras pessoas, entre índios e garimpeiros. A Ata da Audiência seguinte terá apenas 12 linhas: Renato Martins determinou somente que “se oficiasse a FUNAI a fim de informar a possibilidade de apresentar a esse juízo os indígenas Waythereoma Hwanxima e Paulo Yanomami” (:724). Como já adiantei acima, os próprios Procuradores do MPF desistiram de ouvir todas as testemunhas elencadas ao final da Denúncia – e a maioria delas não aparecerá novamente em momento algum, fora os já citados Termos de Declaração do capítulo III, produzidos pelos Policiais Federais na feitura do Inquérito. Por outro lado, as diversas incursões da PF durante a fase judicial não conseguem encontrar praticamente nenhuma nova testemunha não-indígena – com exceção do já citado Depoimento Judicial do garimpeiro Basílio Ferreira, preso em Boa Vista e forçado a depor. Diante disso tudo, é possível matizar melhor a pretensa capilaridade nacional que o Judiciário Brasileiro, por definição, precisa assegurar possuir: como visto, é impossível achar a maioria dos réus e testemunhas – e não se pode fazer muita coisa sobre isso, além de continuar oficiando aos Policiais Federais para que continuem procurando. De todo modo, como chama atenção Antonio Carlos de Souza Lima em Um grande cerco de Paz (SOUZA LIMA, 1995), deve-se ter em vista não só a efetiva limitação física de certas instituições pensadas como estatais (e aqui o autor faz um paralelo com o estudo de Benedict Anderson e as comunidades imaginárias, Idem, :88), mas também o modelo de ação que elas mesmas dizem possuir. Assim, no caso do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), apesar de um apertadíssimo orçamento, a verba destinada a tal órgão foi usada para criar um efeito de ação tido como “nacional” – não sem protestos daqueles que queriam usar o dinheiro para efetivar um projeto mais localizado. O SPILTN tinha, portanto, a responsabilidade de salvaguardar as fronteiras do país transformando parte de uma população tida como apartada (índios) em trabalhadores brasileiros. Apesar de apenas 15

PH, :673-677, Prestação de Informação do indígena Japão Yanomami.

110

pretensamente nacionais, instituições como o SPILTN ou o aparato judicial brasileiro, ainda que agindo de maneira explicitamente circunscrita ou delimitada, conseguem, nesse agência, renovar a própria idéia de que têm uma capilaridade ou capacidade de agir ‘nacionais’. É possível mapear melhor tal ponto nas Intimações produzidas para as Audiências, ocasião em que o Oficial de Justiça (um funcionário do Judiciário, que é responsável por dar “fé” à Intimação – entregando uma “contra-fé”, em nome do Juiz, aos Intimados) noticia a determinada pessoa que ela está Intimada a comparecer numa Audiência específica. No documento das folhas 781-78617 o Procurador Franklin Rodrigues da Costa pede que o Juiz expeça “mandados de intimação para estas testemunhas [4 garimpeiros não encontrados, entre eles Basílio Ferreira] entregando-os ao Oficial de Justiça com cópias para a Polícia Federal, determinando que o Meirinho [Oficial de Justiça] efetue, com o auxílio da Polícia, buscas constantes nos endereços, pelos menos uma vez a cada dez dias, para localizar as testemunhas, certificando o ocorrido a cada diligência.” (:783, ênfase minha). Nessa mesma página o argumenta-se que “até mesmo [seja requisitado] equipamentos do exército e aeronáutica em auxílio à missão”. Franklin Rodrigues reúne ainda as características físicas de todos os acusados (:784-785 - a base para isso foi, sem dúvida, o segundo Termo de Declarações do Pedro Garcia, onde esse depoente dá vários detalhes físicos dos garimpeiros envolvidos no Genocídio). Por fim, o funcionário do MPF nota que Juvenal da Silva e Francisco Alves, dois garimpeiros com Mandados de Prisão expedidos, mas até então foragidos, “outorgaram procuração ao advogado, demonstrando que os mesmos estão em Boa Vista sem serem molestados” (:785). É interessante ressaltar que Juvenal e Francisco são acusados formalmente com base nos próprios dados apresentados por Elidoro Mendes, Defensor Legal de boa parte dos Requeridos, dando condição aos Procuradores de qualificar esses dois garimpeiros para além de seus apelidos ou simples nomes. Porém, Renato Martins Prates, num Despacho digitado em folha separada (o que é uma exceção, pois a maioria deles são manuscritos, nesse momento, nas próprias 17

PH, Manifestação de Ação Criminal do MPF pedindo: novos mandados de prisão para os foragidos; que se oficie à PF para fazer diligências a fim de efetivar tais prisões; não há condições de substituir testemunhas.

111

folhas dos Pedidos) sumariamente declara que “não incumbe ao Oficial de Justiça exercer o papel de Polícia, investigando o paradeiro das testemunhas. Portanto, deverá o Oficial de Justiça diligenciar mais uma única vez no endereço das testemunhas de acusação [..], intimando-as, caso localizadas, a comparecer à audiência designada [...]” (PH, :787, ênfase inicial minha, secundária do original). Tal ponto revela a consciência de que, ao Judiciário, cabe ouvir as Partes, tipificar o Crime e dosar as penas – contudo, não é atribuição de seus funcionários investigar, levantar provas ou trazer, pela força física, testemunhas “nômades”, fazendo campana para localizá-las – papel, como já esclareci, reservado aos Policiais Federais. Michel Foucault, em trabalho já citado, esclarece que há um “mecanismo administrativo” que separa atualmente o ato de condenar alguém e execução da pena imposta ao condenado (op. cit. :13), argumentando que a Justiça não pode se confundir com o criminoso, infligindo punições (ainda que justas) aos que ela aponta como desviantes18. Tenho como certo que o mesmo “mecanismo administrativo” é acionado quando o Judiciário precisa trazer aos tribunais réus ou testemunhas que não estão prontamente dispostas a contribuir com a Justiça. Nesse sentido, assim como o Direito não se confunde com a instituição carcerária, ele também se distancia do aparato policial que lhe auxilia – e isso se reflete em outras situações, como na divisão do Processo, já tratada no capítulo I, entre Pré-processo e Processo - ou ainda na já citada relutância dos representantes dos Requeridos em considerar como válidas os depoimentos inquisitoriais – e, num último exemplo, da mudança da numeração das páginas produzidas pelos Policiais Federais.

IV. Índios/garimpeiros no Genocídio de Haximu Nessa última subseção, discuto mais detidamente as características gerais do Crime de Genocídio, tendo como norte como nele é montado o papel de garimpeiros e Yanomami. Analiso aqui uma série de dados que, até então, estiveram dispersos nos 18

Guardadas as peculiaridades históricas, esse mesmo argumento foi usado pelos inquisidores católicos de Portugal no início do século XVI para entregar ao “braço secular” aqueles que eram por eles apontados como graves desviantes da fé cristã. A Igreja Católica se mantinha, assim, distante da execução da punição, apesar de qualificá-la e dosá-la. Contudo, os Autos de Fé eram rituais públicos (FOUCAULT, 2006) onde, pela marcação do corpo, ajustava-se as contas com o supliciado – ao contrário de tentar, como idealmente se pensa hoje, suspender os direitos universais de um condenando a fim de reformá-lo de maneira apartada do “restante” da sociedade.

112

dois últimos capítulos, visando dar uma idéia geral de porque o acontecido em Haximu foi judicialmente classificado como um Genocídio – e não como qualquer outro Crime, como um Assassinato Múltiplo, por exemplo. O primeiro depoente na fase judicial do Processo é Manoel José Santos Soares19, que reconhece, agora Em Juízo, Pedro Garcia como sendo o Pedro Prancheta que conheceu no garimpo (:659). O excerto abaixo é modelar no que tange à relação entre Testemunhos Judiciais e os Termos de Declarações do Inquérito. Manoel Soares diz, inicialmente, não saber e nem ouvi dizer quem teria participado do ataque que deu origem a morte dos índios; Que confirma inteiramente seu depoimento prestado na Polícia Federal de fls 199 e 200, que lhe foi lido neste ato. Novamente advertido para as penas de falso testemunho, disse o depoente: Que de fato ouviu comentários da participação de Pará ou Parazinho, Pedro Prancheta e Raimundão no massacre dos índios Yanomami. (:658, ênfase minha) O texto produzido por um Técnico Judicial e conferido pela Diretora de Secretaria do TRF da 1ª Região (novamente a fotocópia torna impossível identificar os nomes, presentes aqui somente nas apagadas assinaturas) carrega, como se pode notar, o mesmo estilo de narrativa daqueles produzidos durante o Inquérito Policial - baseia-se, portanto, numa narrativa indireta, distanciando o produtor do texto do que é contado (cf. capítulo III). Contudo, agora na presença do Juiz e de dois acusados já presos, Manoel Soares matiza de outra forma seu testemunho: anteriormente ele diz “QUE no mês de junho para julho um grupo de Garimpeiros, que não sabe o número exato, mataram vários índios Yanomami” e “QUE, antes o massacre, viu JOÃO NETO na pista Velha do Raimundo Nenê, quando este saltou, digo, do avião, carregando uns vinte quilos de munição [...]” (PH, Termo de Declarações de Manoel José Soares, :199 e :200, ênfase minha). Porém o garimpeiro inicialmente diz não saber, nem de “ouvi dizer”, de qualquer um que tenha participado do ocorrido em Haximu. Porém, quando inquirido se confirma o depoimento que prestou aos Policiais Federais, responde que o faz “inteiramente”. Neste momento alguém provavelmente lê para Manoel o que ele está confirmando e o depoente “é novamente advertido para as penas de falso testemunho [não há uma referência escrita à primeira advertência sofrida por Manoel]”; e possivelmente se dando conta de que acabou de se contradizer, o garimpeiro diz então 19

PH, :658:660, Testemunho judicial do garimpeiro Manoel José Santos Soares.

113

que “de fato ouvi falar da participação” de alguns outros garimpeiros. Ressalto que os termos usados por Manoel Soares durante o Inquérito são sempre diretos, como o “viu” e o “mataram” no excerto acima. Além disso, ele diz conhecer pessoalmente vários autores desse Crime (PH, :200). Agora, contudo, Manoel Soares timidamente relata que “não ficou sabendo o nome das pessoas que lhe deram as informações sobre os fatos ocorridos porque tais pessoas passavam rapidamente pelo local onde se encontrava o depoente” (PH, :660). Assim, essa é a tônica dos depoimentos judiciais dos garimpeiros (quando comparados aos Termos de Declarações do Inquérito, é claro): o ‘ouvi dizer de desconhecidos’ é a fórmula geral usada para não acusar, agora face-a-face, excompanheiros de profissão Em Juízo. Mesmo Antonio Alves da Cruz, conhecido no garimpo como ‘Rabo Grosso’, que é ouvido por Carta Precatória20 no Estado do Amazonas (sem ser, com isso, acareado com os acusados presos) diz que “não pode individualizar o rapaz que fez o comentário [do massacre]”, mas “que este rapaz contou que dentre estes garimpeiros assassinos estariam Pedro Prancheta e João Neto” (PH, : 745). Acredito que é por tal característica geral dos testemunhos judiciais dos garimpeiros que estes serão usados muito menos nos documentos que se seguem no Processo: a base das argumentações continuará sendo, ao menos para os Procuradores, os Termos de Declaração prestados no Inquérito. Os depoimentos indígenas, por outro lado, passam longe da falta de detalhes e do ‘ouvi dizer’ peculiar dos testemunhos dos garimpeiros. Serão utilizados da mesma maneira que os depoimentos do Inquérito nas peças produzidas posteriormente – notadamente aquelas escritas pelos Procuradores do MPF21. Contudo, ao contrário do Inquérito, o nome dado aos depoimentos indígenas na fase judicial é diferente daquele que batiza os testemunhos dos não-indígenas: os Yanomami, desde o início, figuram não exatamente como “testemunhas”, mas sim como “informantes”. Há de se atentar aqui para a Ata da 3ª Audiência judicial, época do primeiro depoimento de um Yanomami à Justiça:

20

Documento que é mandado por um juiz de determinado Estado para outro juiz de um Estado diferente, a fim de que o último possa assessorar o primeiro a tomar o depoimento de uma testemunha ou solicitar ao corpo policial de outra região novas diligências policiais, por exemplo. 21

Cf., por exemplo, as Contra-razões do MPF frente ao pedido de liberdade de Eliezio e Pedro (PH, : 640-641).

114

A testemunha arrolada pelo Ministério Público [o indígena Japão Yanomami], considerando a grande diferença cultural entre a sua etnia e a nossa, fato esse o qual decorreria sua irresponsabilidade penal e ouvidas as partes, o Juiz resolveu dispensar do compromisso [em dizer a verdade] a testemunha, ouvindo-a como informante (PH, :672, ênfase minha). Isso acontece em todos os depoimentos indígenas posteriores: no que presta Paulo Yanomami22, por exemplo, é possível notar que se datilografa, no modelo pré-pronto para se colher testemunhos do TRF de Boa Vista, vários ‘x’s em cima do título “TESTEMUNHA”, escrevendo-se, logo abaixo, a palavra “INFORMANTE”. O mesmo é feito com a frase, presente no mesmo modelo, qualificando o depoente como uma “testemunha compromissada, não contraditada e advertida das penas ao falso testemunho”: ela é completamente coberta pelos mesmos ‘x’s, e para lê-la sem dificuldades é preciso procurar o Testemunho Judicial de um garimpeiro, baseado nesse mesmo modelo. Assim, os depoimentos judiciais dos índios têm um status diferente daqueles prestados por garimpeiros: em resumo, os últimos são testemunhas (e/ou réus) que estão obrigadas a não faltar com a verdade. Os primeiros, por sua vez, se fazem em informantes, figurando como uma “outra etnia”, “culturalmente distante” daquela que os garimpeiros e o próprio corpo de funcionários do judiciário fazem parte – e, justamente por isso, não tendo que fazer o compromisso literal com a verdade que os acusados ou depoentes não-indígenas têm que prestar. Voltando ao capítulo anterior, os Policiais Federais foram obrigados a organizar uma série de incursões à Floresta Amazônica para colher os depoimentos inquisitoriais dos indígenas, enquanto os garimpeiros são intimados a depor na sede da PF em Boa Vista. Como se pôde notar acima, as intimações judiciais aos indígenas são entregues ao diretor da FUNAI de Roraima, que tem que se esforçar para achar e trazer os Yanomami nas datas exatas de cada Audiência – o que nem sempre é possível. Já no caso dos garimpeiros, um Oficial de Justiça é responsável por entregar a intimação na residência em Boa Vista em que os mesmos dizem residir – e, quando esse funcionário não consegue fazer isso, aciona-se a Polícia Federal para que o faça. Como deixei claro acima, em ambas situações há uma explícita dificuldade em trazer as Partes para os encontros judiciais que decidirão o Caso.

22

PH, :754, Informação prestada em juízo por Paulo Yanomami.

115

Já disse que os garimpeiros são identificados de maneira constante durante todo o Processo. Isso se dá porque a base para as citações é sempre o documento de identidade desses últimos. Já os indígenas (tanto informantes como vítimas) são referenciados, a cada documento, com uma grafia diferente. Relembro aqui o exemplo dado no capítulo anterior de que, em certas situações, a designação de um indígena pode variar até mesmo dentro de um mesmo documento. Nesse sentido, tais indivíduos, para se tornaram Parte do Processo, não precisam apresentar quaisquer documentação produzida por instituições estatais. Na verdade, o próprio fato deles não possuírem tais insígnias só intensifica o caráter etnicamente diferenciado a eles imputado: os Yanomami são tão isolados, socialmente distantes do aparato judicial, que nem mesmo carteira de identidade ou certidão de nascimento podem apresentar numa refrega judicial – e é exatamente essa ‘não-apresentação’ um dos signos a servir nesse contexto como atestado da etnicidade Yanomami. A falta de documentos, nesse sentido, é qualificada de maneira positiva, como típico do reificado isolamento em que tais indivíduos viveriam. Por outro lado, há de se lembrar aqui que o Juiz Renato Martins Prates, pede que todos os garimpeiros identificados inicialmente por apelidos sejam individualizados a partir de Acareações com outros acusados ou testemunhas. Isso se dá justamente porque é preciso pormenorizar os acusados – ao contrário do que acontece com as vítimas, mortas, como visto acima, por Criminosos que mal as conheciam e que visavam, segundo os Procuradores na Denúncia, dar cabo de todos os habitantes de Haximu, tanto adultos, velhos e crianças, homens e mulheres. A não-individualização das vítimas perfaz o próprio caráter do Crime de Genocídio, como visto acima. De todo modo, ainda que não se consiga dizer precisamente quem foram as vítimas do Genocídio, temse a certeza de que ele aconteceu. Portanto, a maior responsabilidade da Justiça é individualizar os perpetradores desse Crime e dar-lhes a correção adequada. Tudo o que foi elencado até aqui se junta para compor o Crime de Genocídio, mais particularmente o Genocídio que, em termos judiciais, atenta contra uma etnia específica, como tentei matizar na análise da Denúncia que se seguiu. Assim, a imprecisão de nomes que pode ser notada nos relatos colhidos entre os Yanomami é explicada pelo diferencial étnico entre eles e um ‘nós’ genérico, que abarca garimpeiros, funcionários do judiciário e, em certo sentido, todos aqueles a quem se possa inferir um emprego determinado, que não precisem de tradutores para prestar depoimentos a 116

autoridades judiciais ou à Polícia, que possuam uma residência fixa, um local e data de nascimento específicos, asseverados em documentos com uma numeração única tornando impossível que haja, por exemplo, dois ‘Pedros Emilianos’ com o mesmo número de identidade. Friso, nesse ponto, uma característica que perpassa os vários documentos do Processo Haximu, principalmente aqueles produzidos pelos defensores legais dos Yanomami: a imprecisão de nomes ou qualquer outro dado, é tida, no que tange aos garimpeiros, como marca de uma criminalidade anterior, como sinal de quem conhece as regras do Direito e, conscientemente, tenta ir contra elas – ou no mínimo subvertê-las, de maneira criminosa, ao seu favor35. Assim, quando Pedro Emiliano diz não ser o Pedro Prancheta do garimpo36, tal imprecisão não é étnica ou cultural: ela é, como argumentam os representantes dos Requeridos, uma tentativa criminosa de esconder a verdade. Assim, os garimpeiros, primeiramente, só ouviram falar do acontecido em Haximu, negando participação direta no Genocídio. Quando Acareados com companheiros de garimpo que os identificam e acusam-nos diretamente, assumem que conheceram pessoalmente alguns dos perpetradores de tal Crime – mas negam, até o fim do Processo, que eles mesmos tenham tomado parte no Genocídio. Tal afirmativa de conhecer criminosos genocidas seguida da negativa a posteriori de se relacionar com eles parece não ter grande peso quando atestá-se, explicitamente, que o acusado mentiu em momentos anteriores, dizendo não conhecer nenhum dos suspeitos do Crime. É possível retomar aqui a análise do antropólogo Max Gluckman sobre como os juízes barotse buscam a verdade inquirindo pessoalmente suas testemunhas: the judges, working with these same norms [que são comuns a acusados e acusadores], can cross-examine the parties and can give judgments for and against them in comprehensible and acceptable terms, even if the parties continue to deny that they have done wrong. (GLUCKMAN, 1967, :78) Por outro lado, quando a imprecisão é imputada aos Yanomami – lembro que, no capítulo III, uma depoente indígena diz que um companheiro Yanomami seu havia sido morto na Chacina, e ele mesmo depõe algumas páginas à frente dela – a imprecisão 35

Há de se matizar, nesse momento, que a subversão a que faço referência aqui é aquela explicitamente tida, pelos operadores do Direito, como fora das regras do jogo – e, portanto, passível de criminalização. Pierre Bourdieu chama atenção para o fato de que, entre os bons operadores, as regras e fórmulas judiciais mais rígidas são, na verdade, construídas como armas da disputa judicial (BOURDIEU, 1986, :17-18). Essa espécie de ‘liberalidade interpretativa’ exercida pelos bons advogados não se confunde com a acusação, imputada aos garimpeiros, de saberem as regras e, ainda assim, tentarem subvertê-las. 36

Narro esse episódio na última subseção do capítulo I.

117

ganha outra qualidade: ela é étnica ou cultural, advinda da posição específica daqueles que não conhecem nem o ínfimo do Direito moderno, que não têm a consciência mínima de como se devem portar, num Processo Criminal, acusados e acusadores. O mesmo vale para a questão da residência fixa, definidora, como tentei mostrar acima, de quem é negativamente tido como vadio ou vagabundo. Os Yanomami, por exemplo, não possuem residência fixa nem qualquer endereço específico para correspondência – nem por isso são tidos, ao contrário dos garimpeiros, a partir de tais categorias de acusação. Isso se dá justamente porque residir ou não-residir fixamente não é um atributo absoluto: isso depende da relação que é construída entre o residente e o local de residência. Os indígenas de Haximu são qualificados como etnicamente nômades, e não como vagabundos ou vadios. Por outro lado, a relação de não-residência dos garimpeiros pende para o outro lado: como, de antemão, tais indivíduos são genericamente tomados como fazendo parte da sociedade englobante (que é pensada como não-caracterizada pelo nomadismo) a falta de uma residência-fixa aparece, nesse contexto, sob o estigma da vadiagem ou vagabundagem. O Relatório do antropólogo Bruce Albert é usado, então, não apenas como um ordenador das falas dos verdadeiros Yanomami vítimas em Haximu, mas também como normalizador de tais falas, com o poder, inclusive, de transmutar, sob a marca da diferença cultural, traços que poderiam ser vistos como incoerências estruturais da fala das vítimas como qualidades intrínsecas dessas falas – expediente que é reapropriado, como tentei mostrar acima, pelos Procuradores do Ministério Público Federal na Denúncia. Nesse sentido, vale trazer aqui a idéia de normalização discutida por Luc Boltanski a partir da análise de uma série de cartas de denúncia mandadas ao jornal francês Le Monde (BOLTANSKI, 1984). Para esse autor, o caráter normal de determinada denúncia não é dada por uma substância imutável ou uma regra de coerência única (BOLTANSKI, 1984: 20). Ela depende, sim, de uma complexa configuração de fatores, como a relação específica entre perseguidos e perseguidores, por exemplo (ibid idem, principalmente as 3 últimas subseções). No caso aqui em foco, pode-se dizer que os Procuradores conseguem, a partir do Relatório de Bruce Albert, configurar uma denúncia normal tendo como norte dados que, para o Direito moderno, seriam potencialmente anormais: a falta de um nome constante, de endereço fixo, de uma profissão, entre outras característica são o próprio sinal do étnico, do caráter especial que reverte os Yanomami no Processo. Em resumo, como chama atenção Boltanski em outro texto (BOLTANSKI, 1993), é preciso que exista um “princípio de 118

equivalência” (idem, :104-105) que aproxime perseguidos de perseguidores – princípio esse que, como visto, é dado a partir do Relatório de Albert. Por fim, agora que já foram definidas as qualidades básicas de garimpeiros e Yanomami no Crime de Genocídio, passo a analisar como se dá propriamente a discussão judicial de tal Crime.

119

Capítulo V: a discussão judicial do Genocídio Em termos judiciais, como visto no capítulo anterior, já está criado, nesse momento, um “modelo teórico” que dá conta do acontecido entre Yanomami e garimpeiros na aldeia de Haximu. No presente capítulo, foco minha análise em como esse modelo será recebido nos Tribunais responsáveis por julgar o Caso. Adianto que tal discussão judicial não é meramente acessória, mas que efetivamente compõe o Crime de Genocídio, como tentarei mostrar a seguir. A primeira subseção trata de como os defensores legais dos garimpeiros recebem a acusação de que seus clientes são potenciais genocidas. Nessa mesma parte, inicio uma comparação entre os documentos produzidos pelos Procuradores do MPF e aqueles produzidos pelos representantes legais dos Requeridos. Na segunda subseção pretendo mapear como o Processo se desenvolve e, ao mesmo tempo, quais os artifícios para a construção do que é judicialmente verossímil nos Autos. As duas últimas sessões são dedicadas à descrição e análise dos Recursos impetrados por ambas as Partes – e, é claro, como tais documentos se engendram na composição do Crime de Genocídio.

I. A defesa dos Requeridos Há de se ressaltar que, até aqui, não me detive sistematicamente em nenhum documento escrito pelos defensores legais dos Requeridos – focando-me, quase que exclusivamente, em textos que direta ou indiretamente acusam os garimpeiros. Porém, essa característica, na verdade, não é decorrente exclusivamente do recorte específico da presente dissertação: numa leitura geral do Processo Haximu, os textos dos Procuradores e Julgadores são mais numerosos e longos, teoricamente mais embasados e concatenados entre si. Por outro lado, é possível notar que, por vezes, os garimpeiros são representados judicialmente por Defensores Públicos, por vezes por Advogados contratados – e, em algumas situações, por ninguém, o que obriga o Juiz Itagiba Catta Preta a nomear, por Ofício, um Defensor Público para representar parte dos acusados no julgamento de primeira instância37. Os Procuradores também se revezam na atuação no 37

PH, :1142, Nomeação, pelo Juiz Catta Pretta, de novo Defensor Público, Marcos Antonio Carvalho de Souza.

120

Caso Haximu, porém isso parece se dar de maneira mais eficaz do que quando um garimpeiro deixa de ser Defendido por um Advogado contratado e passa a usar os serviços da Defensoria Pública. Por exemplo, na Defesa Prévia38 de Waldinéia Silva Almeida e Wilson Alves dos Santos, não se pode dizer exatamente que tal peça foi produzida pelo Defensor Público Euflávio Dionízio Lima, que a assina – ao menos no mesmos sentido que, por exemplo, os Procuradores do MPF produzem a Denúncia. O documento, de apenas uma página, é simplesmente uma espécie de formulário completado com alguns dados do Processo. Assim, Euflávio Lima somente preenche os espaços, à máquina de escrever, dos campos - já pré-impressos – nome dos “RÉUS”, “PROCESSO No. [Número do Processo dado no TRF de Boa Vista]” e “ARTIGO [A Lei de que os Réus estão sendo acusados de infringir]”, além da data no final do formulário. Há ainda um curto texto (também pré-impresso) que pode ser resumido na frase “os fatos narrados não ocorreram como ali figuram, mas de modo diverso, conforme provará [o Defensor] no decorrer da instrução criminal”, ao que o Defensor Público acrescenta, logo em seguida, que “arrola as mesmas testemunhas da denúncia”, carimbando e assinado o formulário. Essa defesa genérica, sem citar qualquer parte do Processo, mas, de antemão, criticando a Denúncia dos Procuradores, é exclusividade da Defensoria Pública. Idealmente, mais tarde o Defensor teria que apresentar uma Defesa Prévia calcada nas provas dos Autos – o que, nesse caso, acaba não acontecendo. Para os garimpeiros representados por Advogados contratados, a situação difere um pouco do exemplo dado acima – porém, nenhum documento produzido por qualquer um dos defensores dos Requeridos chega a alcançar as 40 páginas da Denúncia Inicial do MPF, por exemplo. Nesse sentido, a Defesa Prévia escrita pelos Advogados Elidoro Mendes da Silva e Maria Eliana Marques de Oliveira39 compõe-se de 11 páginas datilografadas, com a última e eventualmente também a penúltima linha de cada folha cortadas na feitura da fotocópia que tive acesso no STF. Há, na primeira e parte da segunda página, a qualificação, como na Denúncia (condição civil, profissão, número de identidade, entre outros dados), de dois Réus: Pedro Emiliano Garcia e Eliezio Monteiro Neri, ambos então presos.

38

PH, :647, Defesa Prévia, assinada pelo Defensor Euflávio Dionízio Lima, de Waldinéia Silva Almeida e Wilson Alves dos Santos. 39

PH, 624:634, Defesa prévia e pedido de liberdade, assinada por Eliodoro Mendes da Silva e Maria Eliane Marques de Oliveira.

121

A construção do texto dos defensores de Pedro e Eliézio destoa completamente daqueles produzidos pelos Procuradores: não há qualquer citação direta de outros documentos do Processo; não existe também uma tentativa de teorização, baseada em pensadores do Direito ou de outras áreas, do que teria acontecido em Haximu – assim, não se entra, em nenhum momento, na discussão judicial do Crime de Genocídio. De todo modo, para os Advogados, a Denúncia não trata “da realidade dos fatos”40. Adotase, nesse documento, um rebuscamento de escrita que beira o pedantismo, ao menos quando se toma como norte a relativa sobriedade do estilo de escrita de Juízes e Procuradores. Para dar um exemplo, num preâmbulo batizado de “PRELIMINAR DE FUNDO MORAL (Interesses excusos)”41 argumenta-se que existem funcionários públicos que seriam Pobres diabos ... mostrando ser farinha do mesmo saco dos mais vestudos dono[s] do poder, neste nosso mundo em branco e preto, primitivo e maniqueísta, pretendem-se incriminações infundadas, como se vivêssemos delirando eternamente, numa grande dose de irracionalidade [...] Torpedeada, a verdade soçobra; o tempo fechase sobre ela como o mar sobre um barco sem rumo”42 Há aí referência indireta aos Policiais Federais responsáveis pelo Inquérito, e uma página antes o “poderoso” (o termo é usado em todo texto) Delegado Raimundo Soares Cutrim - primeiro a acusar os garimpeiros de Genocídio, como discuti no capítulo III é chamado de “assaltante da verdade”. O Inquérito Policial é tido como “uma verdadeira aberração jurídica”43, sem, porém, se citar qualquer uma de suas partes. Por outro lado, diz-se, durante todo o texto, que não foram reunidas provas suficientes para atestar a culpabilidade dos acusados - mas não se compara ou fazem-se excertos de tais provas. Assim não há, durante todas as 11 páginas da Defesa Prévia, uma única citação direta de outros documentos dos Autos. Elidoro Mendes e Maria Eliana argumentam apenas que as provas recolhidas “jamais davam condições para que o douto julgador,

40

Idem, :625.

41

Idem, :626, ênfase do original.

42

Ibid Idem. Não há definição no Dicionário Houaiss (ao menos na versão eletrônica) para o termo “vestudo”; “soçobro” é definido como “ato ou efeito de submergir, de ir ao fundo”. (Dicionário Eletrônico Houaiss, versão 1.00, dezembro de 2001). 43

Ibid Idem, 629.

122

acatasse a DENÚNCIA da maneira como a mesma foi enquadrada”44, mas não propõem um novo enquadramento para tais provas – mesmo porque, como visto, eles não se importam em trabalhar com as últimas. Relembro aqui a já citada análise de Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1986) e a idéia de que, numa refrega judicial dentro do Direito moderno, um ponto a ser levado em consideração é a diferença na capacidade que cada operador do Direito tem em reinterpretar determinado caso empírico a partir de um arcabouço legal pré-estabelecido – e, é claro, fazer com que tal artifício opere a favor de seu cliente. Bourdieu argumenta que os bons operadores do Direito são capables de mobiliser les resources juridiques disponibles par l’exploration et l’explotation des “regles possibles” et de les utiliser efficacement, c’est-à-dire comme des armes symboliques, pour faire triompher leur cause” (BOURDIEU, 1986:8). Nesse sentido, pode-se notar que os textos produzidos pelos representantes legais dos garimpeiros, fossem quem fossem, não possuem a mesma capacidade de transmutar provas dispersas num “modelo teórico” judicialmente embasado, como fazem os documentos escritos pelos Procuradores Públicos, a exemplo da Denúncia analisado no capítulo IV. É impossível mapear, somente a partir da leitura do Processo, qual a causa desse gap entre os documentos produzidos pelos representantes das Partes. Uma primeira possibilidade é que tal diferença de competência advém, pura e simplesmente, de um conhecimento maior, por parte dos Procuradores, do Processo em si e dos códigos legais que potencialmente podem ser usadas para trabalhá-lo. Contudo, lembro novamente que a defesa judicial dos garimpeiros é inconstante e que, ao que tudo indica, os Advogados contratados que se prestam a defendê-los parecem não se empenhar completamente em tal defesa – ao contrário dos Procuradores, que acompanham, como visto no capítulo III até mesmo os Pedidos de Vista do Caso. Tanto Pedro quanto Eliézio, em seus depoimentos judiciais45, acusam os Policiais Federais e funcionários da FUNAI de os terem coagido a prestar as declarações que prestaram durante o Inquérito – e os advogados lembraram reiteradamente essas acusações na Defesa Prévia, mas nunca fazem extratos dos depoimentos em si. Retomo aqui a idéia da cross-examination (GLUCKMAN, 1967 E 1963) discutida no capítulo anterior: a defesa dos Requeridos em momento algum tenta 44

Ibid Idem, 630

45

PH, :615-617, Interrogatório Judicial do garimpeiro Pedro Emiliano Garcia / :618-619, Interrogatório Judicial do garimpeiro Eliezio Monteiro Neri.

123

cruzar falas e, a partir de então, construir um modelo interpretativo concorrente àquele produzido pelos Procuradores. De todo modo, me parece que o esforço maior da já citada Defesa Prévia - e único momento em que se usa citações de pensadores do Direito - é a tentativa de revogar as Prisões Preventivas de Pedro e Eliezio. Para os Advogados “a prisão preventiva é sempre uma medida judiciária cruel e de exceção”46. Sem dar a referência completa da citação, faz-se um excerto da obra O Processo Criminal Brasileiro, de João Mendes, onde argumenta-se que “A PRISÃO PREVENTIVA não é pena, porque a pena não pode ser imposta sem certeza do delito e de quem seja o delinqüente, isto é, sem uma decisão final, que produza firmeza do juízo!47” Cita-se, nessa mesma página, alguns outros estudiosos sobre a Prisão Preventiva, mas apenas de maneira indireta, sem especificar exatamente o que cada um deles argumenta e sem dar as referências das obras. Além do extrato acima, a única outra citação direta desse documento é a do “CRIMINALISTA TALES CASTELO BRANCO”, que, em resumo e como João Mendes, diz que Prisão Preventiva “repugna porque todo castigo

antecipado é

48

revoltante e atenta contra a dignidade de pessoa humana [...]” . Apesar do Juiz Renato Martin Prates indeferir inicialmente tal Pedido49, Eliodoro Mendes irá, dias depois, solicitar novamente a revogação das prisões de Pedro e Eliézio50. Argumenta-se então que o próprio Juiz estipulou um prazo de 105 dias para a finalização da Instrução Criminal (período no qual as Audiências são reservadas para ouvir-se testemunhas e reunir-se novas provas, agora Em Juízo), quando então negou, pela primeira vez, a liberdade dos acusados. Nesse novo Pedido, o Advogado argumenta que

46

PH, :631, Defesa prévia e pedido de liberdade, assinada por Eliodoro Mendes da Silva e Maria Eliane Marques de Oliveira.Ibid Idem, 631 47

Idem, ênfase do original.

48

Ibid Idem, :632, apud CASTELO BRANCO, Tales. Da prisão em flagrante. nesse caso, também não há a referência completa da obra. 49

PH, :718, Despacho de Renato Martins indeferindo o Pedido de Revogação da Prisão de Juvenal e ordenando Carta Precatória para que o garimpeiro Antonio Alves da Cruz, ‘Rabo Grosso’, seja ouvido no estado do Amazonas. 50

PH, :686-688, Petição de Revogação das Prisões Preventivas de Pedro Emiliano Garcia e Eliézio Monteiro Neri, assinado por Eliodoro Mendes, sem data legível.

124

hoje fazem exatamente 106 (Cento e seis) dias que os requerentes estão PRESOS, foram ouvidas 02 (duas) testemunhas [...] faltando ainda serem ouvidas nada menos que 08 (oito) testemunha[s] arrolada[s] [...] portanto a instrução criminal apenas foi iniciada e seu desfecho datíssima vênia não tem previsão final51.

Elidoro alega ainda que “precisamente hoje estão faltando 04 (quatro) dias para comemoração do NATAL, data que tradicionalmente todas as famílias do universo se reúnem para agradecer a DEUS mais uma passagem natalina”, acrescentando, logo à frente, que não se pode “deixar que PEDRO EMILIANO GARCIA E ELIÉZIO MONTEIRO NERI permaneção [permaneçam] injustamente longe de s[e]us familiares nesta data tão consagrada por todos”52. Pode-se apontar aqui novamente para a idéia, exposta no capítulo anterior, de que a prática judicial não tem como norte apenas um conjunto de códigos legais ou uma disciplina acadêmica específica. Quando se escreve para um julgador determinado, é claro que o conhecimento específico da lei a ser aplicada é essencial (no caso, a que tange às possibilidades de requerimento da Liberdade Provisória), mas os autores de tais documentos apelam para uma moral explicitamente extra-legal – como na passagem acima, citando o Natal e Deus para ajudar a alicerçar o Pedido de Liberdade Provisória. De todo modo, é preciso notar também que tais citações, nos textos dos defensores dos garimpeiros, aparecem com que ‘descoladas’ dos argumentos propriamente judiciais, como espécies de ‘enxertos fora-do-lugar’, com uma de natureza diferente do argumento geral do documento. Relembro que um dos tópicos da Defesa apresentada por Elidoro Mendes chamava-se “preliminar de fundo moral”. Por outro lado, nos documentos produzidos pelos Procuradores, essa divisão é quase que imperceptível – porém, como analisei no capítulo anterior, ainda assim presente. Nesse sentido, Luc Boltanski (BOLTANSKI, 1993) argumenta que há uma “dupla exigência” (idem, :102-103) vigente em toda a denúncia pública: primeiramente, o denunciador tem que se mostrar indignado – mas não tão indignado a ponto de parecer anormalmente envolvido num caso. Assim, além de indignação, é preciso que ele construa a denúncia de maneira minimamente objetiva e coerente. Tal análise pode ser aplicada diretamente para se entender as diferenças entre os textos dos representantes de 51

Idem, :686-687.

52

Ibid Idem, :688, ênfase do original.

125

Requeridos e Requerentes no Processo Haximu. Assim, os Procuradores parecem saber dosar melhor indignação e objetividade dos os Defensores Públicos e Advogados que assessoram judicialmente os garimpeiros, construindo um texto mais coerente e menos pedante ou panfletário. Voltando ao Processo, Renato Martins acata o Pedido de Elidoro, argumentando, contudo, que “desta decisão é possível que resulte, ao final da ação penal, prejudicada a aplicação da lei penal” mas que “é de se reconhecer que, havendo, como de fato há, excesso de prazo na formação da culpa, devem os requerentes ser postos em liberdade”53. Pode-se notar que, em tal Decisão, Renato Martins solta Pedro e Eliézio um tanto a ‘contragosto’, fazendo questão de deixar claro que ele “não se restringiu a se reportar às palavras do texto legal, mas deteve-se na análise dos fatos apurados no inquérito policial, que embasaram o decreto de prisão”54, que agora ele revogava. Mostrou-se, assim, cumpridor de uma ação estritamente legal: não se pode deixar alguém tanto tempo preso sem a certeza absoluta (dada somente pelo Julgamento) de que essa pessoa é culpada ou que está, de alguma maneira, dificultando o andamento do Processo – coisa que os já presos, idealmente, estão impedidos de fazer, motivo da existência, inclusive, da Prisão Preventiva55. Há, na situação descrita no último parágrafo, uma problemática que, no presente momento, tenho condições apenas de apontar a complexidade, sem poder desenvolvê-la de maneira satisfatória. Como chama atenção Michel Foucault (2006), a prisão tornouse, gradativamente, a punição modelar no Ocidente. Contudo, lembro aqui a máxima romana que o Direito moderno diz ter como base: “todos são inocentes até que se prove o contrário”. Portanto, como argumenta o Advogado Elidoro Mendes e assim também compreende o Juiz Renato Martins Prates, a punição só existe, em termos estritamente legais, depois de que Judiciário toma alguma decisão sobre determinado caso, ainda que não seja a última decisão possível. Assim, um Preso Preventivo mandado à cadeia por policiais não tem, idealmente, qualquer mácula de punição. Porém, na verdade, tal 53

PH, :699-700, Decisão do Juiz Renato Martins deferindo o Pedido de Revogação das Prisões de Pedro e Emiliano. 54

Idem, :699.

55

Lembro, contudo, que a prisão só garante, como argumento um isolamento ideal. Basta citar, como exemplo os últimos atentados “terroristas” ou “criminosos” nas cidades brasileiras do Rio de Janeiro e São Paulo, ao que tudo indica organizadas de dentro do aparelho carcerário. Desenvolvo tal idealidade típica das instituições tidas como estatais ainda nesse capítulo.

126

indivíduo já apresenta, de antemão, algum estigma da Criminalidade a ele potencialmente imputada – Criminalidade essa que, contrariando a máxima romana, só será provada a posteriori. A leitura da já citada obra de Foucault dá margem a pensar que artifícios como a Prisão Temporária, Preventiva ou mesmo Em Flagrante Delito é uma espécie de ‘pequeno julgamento’, por vezes explicitamente não-judicial. Nesse sentido, a idéia tipicamente atribuída ao Direito medieval de que uma prova circunstancial (ou seja, que não define com certeza um culpado) dá margem a uma punição também circunstancial, parece não estar completamente superada no Direito atual. Por fim, ressalto novamente que os defensores legais dos garimpeiros nunca estiveram interessados em combater a idéia da Denúncia de que o ocorrido em Haximu foi um Crime de Genocídio – apesar de tal possibilidade poder ter sido levantada a qualquer momento. Na verdade, a discussão judicial interna ao Processo Haximu não se baseia na ponderação se teria ou não acontecido um Genocídio, mas sim na responsabilidade legal para o julgamento de tal Crime. É claro que, no que tange à construção judicial desse Crime, é central saber quem deve julgá-lo. Contudo, argumento apenas que os defensores nos Requeridos nunca combateram a idéia de que o ocorrido em Haximu foi um Genocídio – e não múltiplos Homicídios, por exemplo. Por outro lado, mesmo na discussão da Competência do Genocídio os representantes legais dos Requeridos ocupam apenas uma posição marginal, como mostrarei a seguir.

II. A sedimentação e a verdade nos Autos A fim de definir melhor certas categorias analíticas que venho usando sem maiores discussões, analiso aqui um outro documento dos Procuradores, o Aditamento à Denúncia inicial do MPF, agora trazendo os nomes completos (e não mais só os apelidos) dos garimpeiros Francisco Alves Rodrigues, o ‘Chico Ceará’ e João Pereira de Morais, o ‘João Neto’56. Já havia chamado atenção, no capítulo anterior, que o próprio Advogado Elidoro Mendes deu vários dados sobre esses garimpeiros, que, antes disso, 56

PH, :811-817, Aditamento à Denúncia feita pelo MPF, com os nomes dos garimpeiros Francisco Alves Rodrigues, ‘Chico Ceará’, e João Pereira de Morais, ‘João Neto’.

127

só eram conhecidos por apelidos57. É preciso notar que Franklin Rodrigues e Carlos Frederico são explícitos em dizer que os garimpeiros só aparecem dessa maneira (nome completo, estado civil, número da identidade, entre outros dados) em tal documento porque “constituíram advogado para se verem defender nos presentes autos, o que concedeu a oportunidade de, em relação a estes, obter-se a qualificação completa”58 Os Procuradores usam, assim, tais dados para qualificar mais dois acusados, além de reeditar a narrativa da Denúncia inicial. O foco é tipificar a participação, a partir principalmente dos depoimentos (judiciais e inquisitoriais) dos novos Requeridos – mas sem se esquecer de colocá-los dentro do Ato Genocida praticado pelos garimpeiros, citando-se, não raro, trechos inteiros da Denúncia inicial. Por exemplo, o depoimento inquisitorial de Silvânia dos Santos Menezes, onde ela narra de maneira detalhada (cf. capítulo III) como um garimpeiro conhecido como ‘Goiano Doido’ matou uma criança Yanomami, é citado exatamente da mesma maneira que aparece na Denúncia59. Contudo, não vejo essa repetição como mera verborragia sem sentido ou ainda simplesmente uma tentativa de dar ênfase a determinadas facetas do Genocídio – apesar de, em certo sentido, esse último ponto fazer parte do que chamo de sedimentação do Processo. Há uma certa liminaridade entre o encerramento do Inquérito e o primeiro julgamento do Caso (e o Aditamento à Denúncia aqui é um mero exemplo, podendo-se perceber tal sedimentação mais facilmente à medida que se aproxima da Decisão do TRF de Boa Vista) onde é possível notar que os autores, cada vez mais, repetem quase que literalmente passagens inteiras de documentos anteriores. Isso vale tanto para Requerentes, como para Julgadores – e, em determinadas ocasiões, também para os Requeridos, ao menos quando os defensores desses conseguem manter uma razoável constância de participação no Processo, como é o caso de Elidoro Mendes, por exemplo. O que se tenta é instituir uma espécie de ‘platô’ de onde se possa, a partir de então, partir para novos temas ou discutir algo que depende exatamente desse ‘chão’ para fazer sentido. De todo modo, há de se notar que tal sedimentação não ‘engessa’ ou

57

PH, 781-186 Manifestação de Ação Criminal do MPF pedindo: novos mandados de prisão para os foragidos; que se oficie à PF para fazer diligências a fim de efetivar tais prisões; não há condições de substituir testemunhas. 58

PH, Aditamento à Denúncia (op. cit.), :812, ênfase do original.

59

Idem, :815.

128

‘congela’ a discussão judicial do Genocídio no Caso Haximu. Pelo contrário, ela é a base dos desdobramentos das argumentações que irão se seguir. Contudo, não existe apenas uma simples seleta de excertos de depoimentos e de laudos técnicos que passam sempre a se repetir. Tal sedimentação pode ser notada talvez até com mais clareza - no crescente silêncio de vários documentos do Processo Haximu: tomo como norte aqui os Relatórios que iniciam inúmeros60 documentos nos Autos. Essas sinopses ou resumos do que ocorreu no Processo variam com o passar do tempo: na Sentença61 em primeira instância do Juiz Itagiba Catta Preta, por exemplo, ele retoma toda a Instrução (colhimento de Provas) constante nos Autos, tanto no período judicial quanto no inquisitorial. Catta Preta cita assim todos os nomes dos depoentes (indígenas e não-indígenas) e os laudos periciais produzidos no Processo como um todo, além de elencar certas decisões mais anteriores à Sentença, como a soltura de Pedro e Eliézio, por exemplo. Reforço o termo em todo o Processo porque, depois de tal decisão, há somente discussões relativas às Provas já recolhidas: não há novos depoimentos ou pedidos de laudos periciais, finalizando-se, aí, a instrução dos Autos62. Por outro lado, já na 2ª instância do TRF em Brasília, o Juiz Tourinho Neto apresenta o Relatório63 do Caso Haximu à 3ª Turma desse Tribunal da seguinte maneira: nas 22 primeiras páginas faz-se um resumo do caso citando-se longas passagens da Denúncia e do Aditamento dela (op. cit.). Nas duas páginas seguintes, dá-se a posição dos defensores legais dos garimpeiros, e, por fim, resume-se as decisões, citando-se a Sentença de 1ª Instância e os Recursos posteriores. Há de se notar que Tourinho Neto, ao contrário de Catta Preta, não faz qualquer referência ao recolhimento de provas ou a atos judiciais anteriores à Decisão do TRF de Boa Vista – como a soltura de Pedro e Eliézio, presente na Ementa de Catta Preta. Dentre o vasto leque de exemplos, é possível ainda comparar o Relatório de Tourinho Neto ao do Ministro Jorge Scartezinni

60

Isso é válido, é claro, para os documentos que tomo como parte do meu recorte de pesquisa (cf. Capítulo II e início do presente Capítulo). 61

PH, :1163-1208, Sentença, em primeira instância, de Itagiba Catta Pretta Neto, Juiz Federal Substituo do TRF/RR. 62

É judicialmente possível, em processos em que a instância superior interprete o julgamento anterior como particularmente confuso ou errôneo, que se inicie novamente o colhimento de provas. De todo modo, nesse caso, os Autos voltam à instância anterior para que se faça uma nova instrução. 63

PH, : 1609-1641, Relatório dos Recursos impetrados ao TRF/BSB, assinado pelo Juiz Tourinho Neto.

129

do STJ. Nesse documento64, o resumo do caso abarca apenas a última decisão do TRF e, além disso, um pedido de liberdade provisória contra um dos acusados – não se cita, nesse momento, nem mesmo a primeira Sentença do Processo, que condenou os garimpeiros pelo Crime de Genocídio. Esse silêncio sempre crescente e cada vez mais fácil de ser notado do que anteriormente acontecera nos Autos – além, é claro, da repetição de um ‘núcleo duro’ cuja base é, em grande medida, a Denúncia dos Procuradores - é parte do venho chamando de sedimentação do Processo. Assim, nesse momento, não está em discussão nem a materialidade das mortes (já apontadas no Inquérito, principalmente a partir do Relatório de Bruce Albert e não questionadas depois), nem tão pouco a qualificação de tais mortes como um Genocídio (teoria levantada pelos Procuradores na Denúncia e que, como tentei deixar claro na análise dos documentos produzidos pelos defensores dos Requeridos na subseção anterior, não propriamente criticada por esses últimos). O foco das discussões do Processo passa a ser, principalmente depois da Sentença de Catta Preta, quem é responsável pelo julgamento dos acusados de terem cometido tal Crime - e essa mudança de norte é possível, em grande medida, porque se sedimenta uma discussão anterior e, a partir dela, passa-se a se preocupar com temas correlatos, mas que até então não tinham sido discutidos65. É interessante notar que a sedimentação do Processo Haximu tem conseqüências importantes na maneira como tal documentação é lida por seus próprios construtores: não se precisa voltar à íntegra dos Autos (e efetivamente não se volta, como me esclareceu um técnico judicial de Brasília e como a própria evolução dos documentos dá margem a deduzir) para se tomar uma decisão judicial a partir dele – ou para atuar em favor de alguma das Partes nele representada. As Ementas, Relatórios ou os resumos feitos no início de cada peça documental são a base do que aconteceu até então – e o 64

PH, : :1850-1852, Relatório, à 5ª Quinta Turma do STJ, do Ministro Jorge Scartezzini sobre os Autos.

65

Depois do julgamento de tal competência pelo STF (última instância do Judiciário Brasileiro), ainda seria possível que os Requeridos apelassem sobre a tipificação do Crime, já que tal tema não fora tratado pelas instâncias superiores ao TRF de Boa Vista. Contudo, para tanto, o Processo haveria de voltar a Roraima, o Recurso haveria de ser aceito, passar por todos os trâmites que passou na discussão da competência – até se chegar a uma nova decisão do STF, agora sobra a tipificação do delito. É altamente improvável que os Defensores Legais dos garimpeiros usem esse tipo de Recurso: se todos esses recursos fossem Conhecidos e aceitos e o tempo de tramitação fosse o mesmo que o levado para o julgamento da competência do Genocídio (cerca de 13 anos), seus clientes já teriam então cumprido toda a íntegra da pena a eles imputada, excedendo-a em 6 anos. É, assim, bastante provável que, após a decisão do STF o Processo Haximu volte ao Tribunal de origem (o TRF de Boa Vista) e que não sejam impetrados novos Recursos.

130

texto que se segue é exatamente o que se quer falar a partir disso. Nesse sentido, a leitura da primeira à última página do Processo Haximu por um não especialista no Direito torna-se, principalmente nos últimos volumes, gradativamente mais difícil: não se apresenta nenhuma prova nova e a discussão passa a ser cada vez mais focada numa rebuscada (e também constantemente repetida) discussão judicial altamente específica. O mesmo técnico judicial que me dissera que nenhum julgador lê, do início ao fim, os Autos que recebe (principalmente se ele trabalha num Tribunal Superior, onde os processos chegam com vários anos de ‘platôs’ superpostos) disse também, quando esclareci que iria lê o Processo Haximu da primeira à última página, que isso não era uma coisa muita sensata – se oferecendo, inclusive, para fazer uma seleta dos documentos “mais importantes” para mim. Relembro também que, como há havia dito no capítulo I, há uma seleta de documentos no MPF que não corresponde ao Processo inteiro, estando lá arquivados somente alguns Recursos dos Procuradores e as Sentenças do Caso. Portanto – e tomando como ego os próprios autores (no sentido das Partes que produzem documentos, para que não se confunda com o termo jurídico Autores, ou seja, os Interessados que iniciam uma ação processual qualquer) do Processo - nem tudo que está ajuntado nos Autos tem a mesma importância: não se lê todos os documentos e o embate específico entre Requeridos, Requerentes e Julgadores acaba por delimitar qual será a base de discussão da disputa em questão. Ressalvo, mais uma vez, que tal ‘chão’ não é imutável, mas reflexo de determinado momento de um embate dinâmico e em andamento. Lembro aqui que o ‘platô’ específico no qual se assentará o Processo, a partir de agora, é que verdadeiramente aconteceu um Genocídio na Aldeia Yanomami de Haximu e que alguns garimpeiros brasileiros (ainda não completamente identificados) foram seus autores. Sobre como tal verdade é construída nos Autos, vale analisar mais pontualmente a primeira Sentença do Processo Haximu: a Decisão do Juiz Itagiba Catta Preta do TRF de Boa Vista66, proferida cerca de três anos depois do início das investigações do Caso Haximu, em dezenove de dezembro do ano de 1996. Nas quase 50 páginas digitadas da Sentença, Catta Preta, como já disse, enumera todas as provas recolhidas até então no Processo. Contudo, na construção de seu texto, ele não faz uso de todas elas: a base 66

PH, op. cit., :1163-1200.

131

desse documento (como da Denúncia e do Aditamento dessa última) são os garimpeiros inquiridos pelos Policiais Federais (e só marginalmente os depoimentos desses aos Juízes, como deixo claro no capítulo anterior) e os indígenas apontados no Relatório de Bruce Albert. Na Sentença, assim como na Denúncia, é possível argumentar que os laudos periciais não provam a “materialidade por si só do crime, mas quando ajuntados ao resto do contexto probatório levam à cabal contastação da materialidade do delito”67. Com isso, o Juiz trata de, primeiramente, justificar a já citada distância (tema dos último capítulo) entre os depoimentos judiciais e os referentes ao Inquérito, no que tange aos garimpeiros: no caso, por exemplo, de Silvânia Menezes (que, como já dito, tem sempre o mesmo excerto do depoimento inquisitorial citado), Catta Preta argumenta que tal testemunha dá menos detalhes do Genocídio no testemunho Em Juízo porque, como ela própria reconhece em tal ocasião, estava sendo ameaçada por Pedro Emiliano. Além disso (e me parece ser esse o argumento central do Juiz para considerar o testemunho de Silvânia e de outros garimpeiros aos Policiais Federais mais próximo à verdade que aquele prestado no TRF de Boa Vista), argumenta-se que “aquilo que disse [a depoente então citada] perante a polícia, guarda coerência com o contexto dos autos e é de tal forma rico em detalhes que merece grande credibilidade”68. Nesse sentido, se há contradição, se alguém diz algo que vai contra o que ele havia dito anteriormente – e vale lembrar que tudo que é dito é arquivado em mídia escrita como prova e pode servir para ‘reavivar’ a memória de depoentes mais esquecidos – é possível saber qual versão é mais verdadeira cruzando-se o que foi então dito com o “contexto dos autos”, ou seja, com o narrado em outros depoimentos e com os documentos produzidos por especialistas diversos, como médicos e antropólogos. Assim, quando se coloca lado-alado depoimentos de pessoas diferentes, que nunca se viram ou que pouco se conhecem, mas que narram histórias ‘similares’ – no sentido de que tal similaridade não pré-existe, mas é baseada num cuidadoso trabalho de análise e escolha dentro de um enorme universo de provas arquivadas –, então se tem em conta que o que está sendo dito está mais próximo à verdade. Uma conseqüência desse tipo de artifício é que as testemunhas se tornam parcialmente independentes dos testemunhos que prestam: mesmo que se queira 67

Idem, :1174, ênfase minha.

68

Ibid Idem, :1180, ênfase minha.

132

reconhecer que se estava anteriormente mentindo e agora se está dizendo a verdade, não há como ir contra um “contexto probatório” que aponta para outro lado. Marco aqui um importante ponto, central para a análise de documentos desse tipo: primeiramente, o que Max Gluckman (op. cit.) chama de cross-examination nos tribunais Zulu, no Direito ocidental figura como um forte instrumento para acabar com os ‘ouvi-dizer’, com as falas indiretas e desencontradas, enfim, com as imprecisões dos testemunhos. Faz-se, portanto, numa espécie de técnica de coerção, onde um depoente, mesmo que queira negar o que havia dito anteriormente, não tem condições de fazê-lo, já que se encontra, como visto, ‘preso’ na rede de argumentos formada pela examinação cruzada de seu depoimento com o testemunho de outros indivíduos. É interessante notar, nesse sentido, que o objetivo de tal análise cruzada dos depoimentos é a construção de uma verdade a-política. Tal termo é cunhado por Michael Foucault numa reinterpretação não-psicanalista da famosa narrativa de Édipo, onde o autor argumenta que tal história “é uma maneira de deslocar a enunciação da verdade de um discurso do tipo profético e prescritivo a um outro discurso, de ordem retrospectiva, mas não mais da ordem da profecia, mas do testemunho”69 e que, gradativamente, o ocidente vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade nunca pertence ao poder político, de que o poder político é cego [...] de que há antinomia entre poder e saber [...]. Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura, não pode mais haver pode político (Foucault, 1996: 50). Assim, a estratégia para se conseguir ‘descobrir’ se alguém fala ou não a verdade num tribunal fixa-se no pressuposto de que aqueles que testemunham têm preocupações políticas (como tentar esconder seu verdadeiro nome para não ser acusado, se ver ameaçado por um dos acusados ou tentar proteger amigos, para citar algumas situações presentes no Processo Haximu) que devem ser anuladas no modelo de colhimento de provas típico do Direito contemporâneo, visando então chegar-se a uma verdade mais pura. Penso ser por tal razão que um dos depoimentos que Catta Preta considera como particularmente importante é o do chefe de garimpo José Altino Machado, “que é pessoa conhecida em todo Estado de Roraima e na Amazônia por sua persistente atividade em defesa do garimpo e dos garimpeiros”, mas que, ainda assim, confirma 69

FOUCAULT, 1996, :40, ênfase minha.

133

“que os garimpeiros no ataque dos índios são efetivamente aqueles que constam na denúncia”70. Assim, se um depoente que teria, segundo o Juiz, todos os motivos propriamente políticos para falar a favor dos garimpeiros, acaba fazendo exatamente o contrário, essa pessoa só pode estar dizendo a verdade. Pode-se, nesse ponto, retomar o paralelo com o estudo de Luc Boltanski (BOLTANSKI, 1993) sobre a indignação e o sofrimento à distância: o testemunho de José Altino é importante porque ele é um potencial protetor dos garimpeiros perseguidores. Altino compartilha com esses últimos uma mesma profissão ou ofício e, além disso, uma mesma postura política na defesa da garimpagem. Ainda assim, contrariamente a qualquer previsão baseada em sua inserção política, ele afirma que os garimpeiros listados pelos Procuradores na Denúncia são realmente aqueles que genocidaram os indígenas de Haximu. Ele se apresenta, portanto, como uma testemunha completamente descompromissada, em termos políticos. Por outro lado, quando um acusado se repete sozinho em diferentes depoimentos (como no exemplo de Pedro Emiliano, sempre negando sua participação no Crime em todos os depoimentos), isso é interpretado como uma insistente tendência a mentir, já que o “contexto probatório” aponta para uma história diferente – ainda que algumas testemunhas não acusassem diretamente Pedro Emiliano, ou que ainda o acusassem num momento e negassem em outro, como mostro no capítulo anterior. Ressalto ainda que tal artifício é o mesmo daquele adotado pelos Procuradores que construíram a tese de que o acontecido em Haximu foi um Crime de Genocídio e não simplesmente uma Chacina ou Massacre – e aqui vale retomar a já citada idéia, também de Foucault, de que o Direito não visa simplesmente saber o que aconteceu, mas também porque tais coisas aconteceram, a fim de poder dosar a punição a ser aplicada na correção da ‘alma’ dos desviantes (Foucault, 2006). Por fim, a Sentença do TRF de Boa Vista acaba por adotar tal tese principal da Denúncia, explicando que “os garimpeiros acreditaram que a única alternativa [depois da primeira agressão dos Yanomami] era o extermínio dos índios”71. Para Catta Preta, “sua fúria [dos garimpeiros] não se dirigia contra nenhum silvícola especificamente, mas para todos os membros do grupo étnico”72. Contudo, todos os réus são absolvidos 70

PH, op. cit., : 1179.

71

PH, op. cit, :1173.

72

Idem, :1174.

134

do Crime de Contrabando, já que “no mínimo é de exigir-se a apreensão da mercadoria contrabandeada” e do Crime de Ocultação de Cadáver, pois só há indícios de tal delito nos Autos, e não provas cabais73. Para Catta Preta, os Crimes de Associação para o Genocídio e Formação de Quadrilha ocorreram, mas “são absolvidos pelo de genocídio, não cabendo, assim, condenação nas penas desses crimes”74. Da página 1177 até a 1194 o Juiz, a partir exclusivamente dos testemunhos (já que os laudos periciais não dão margem para tanto), tipifica qual foi a participação de cada um dos acusados no Genocídio. Noto, novamente, que os laudos periciais, apesar de também entrarem no exame cruzado das provas, são tidos como evidências menos importantes. É interessante notar aqui que Gluckman argumenta, sobre as testemunhas Lozi e a examinação cruzada, que its importance is heightened for Lozi judges because, to establish guilt or innocence, they have not the support of detectives or of a technology of expertise on fingerprinting, handwriting, blood test, etc.(GLUCKMAN, 1967, :85). Contudo, mesmo em contextos onde há o suporte tecnológico de especialistas para produzir provas, o exame cruzado pode continuar sendo central – já que é ele que dá coerência às próprias provas técnicas. Um exemplo bastará para deixar tal ponto mais claro: no Laudo Pericial que identifica a ossada de uma jovem índia, os peritos dizem que ela faleceu devido a uma série de disparos de espingarda tipo cartucheira, além de um golpe de instrumento cortante na cabeça. Porém, tais dados não seriam de grande validade se não houvesse a possibilidade de cruzá-los com o testemunho de vários indígenas de Haximu, dando conta que deixaram o corpo de uma jovem na mata, ferido à bala e com profundo corte na cabeça, pois ela não tinha parentes entre os que empreendiam a fuga. Assim, Catta Preta adota o seguinte modelo geral de análise dos testemunhos: ‘disseca-se’ o que foi dito em todos os depoimentos (judiciais e inquisitoriais) sobre determinado acusado, qualificando-se a testemunha por ouvi falar por um desconhecido,

73

Ibid Idem, :1169-1170 e :1194.

74

Ibid Idem, :1200.

135

ouvi falar por alguém que pode ser qualificado ou por realmente ter presenciado aquilo que está sendo dito – e, além disso, opera-se a já citada comparação cruzada entre testemunhos, marcando-se, assim, as similaridades entre testemunhos. A ordem que acabei de descrever comporta, como se pode deduzir, uma hierarquia: quanto mais direta e reiteradamente alguém é citado como partícipe, mais séria é tida a acusação. O balanço final, sobre os acusados, é que “muito pouco, quase nada mesmo, há contra esta acusada [Waldinéia Silva Almeida], não sendo possível identificar, como segurança, qual sua possível participação no crime75”, já que Waldinéia é citada poucas vezes – mas, por outro lado, ela é usada como uma testemunha direta do Genocídio, já que era cozinheira dos garimpeiros acusados e ouviu eles próprios organizarem a empreitada criminosa. Sobre Wilson Alves dos Santos, Catta Preta diz que “ao que tudo indica [depois de citar três depoentes], esse acusado foi baleado no segundo ataque dos índios, tendo sido removido para Boa Vista. Seus companheiros de garimpo, acreditando que o mesmo [h]ouvera morrido em decorrência dos ferimentos recebidos, organizaram a expedição em que ocorreu o segundo ataque [dos garimpeiros]”76, absolvendo-o também de todas as acusações – mas, como no caso de Waldinéia, também usando seu testemunho para incriminar os outros acusados. Sob a dosagem das penas, fora Pedro Emiliano Garcia, as dos outros sentenciados já identificados (João Pereira de Morais, Francisco Alves Rodrigues, Eliézio Monteiro Neri e Juvenal da Silva) seguem a seguinte fórmula: 15 anos de reclusão pelo Crime de Genocídio, agravada em 1/6 por não se ter dado chance de defesa às vítimas – o que soma mais 2 anos e 6 à pena básica. Soma-se, por fim, mais 6 meses de detenção pelo Crime de Dano Qualificado (os garimpeiros tocaram fogo nos nas construções e pertences nos Yanomami), o que totaliza uma pena de exatos 20 anos de reclusão. Porém, Pedro Emiliano tem mais 6 meses a cumprir de prisão pois pôde-se assegurar, pela análise cruzada dos depoimentos, que ele participou pessoalmente da organização e execução de todo o Genocídio, devendo então ficar preso em Regime Fechado, de início, por 20 anos e 6 meses. Finalizando a Sentença, Catta Preta manda que se expeçam os Mandados de Prisão e que sua Decisão seja publicada no Diário da Justiça77. 75

Ibid Idem, :1194.

76

Ibid Idem, :1193.

77

Ibid Idem, : 1201-1207.

136

III. A reviravolta Antes de partir para o Julgamento na 2ª instância do TRF, já agora em Brasília, é preciso notar que a Polícia Federal consegue prender João Pereira de Morais em 19-121996 - na mesma data, portanto, que é realizada a Audiência que condena esse garimpeiro78. Pelos documentos que estão nos Autos, é impossível saber se existe algum tipo de comunicação especial entre funcionários do TRF e da PF, porém, é certo que João Pereira já tinha, junto a outros garimpeiros, sua prisão decretada há muito tempo e ainda não cumprida pelos Policiais. Elidoro Mendes tenta revogar tal prisão79, alegando que João Pereira, mesmo condenado, deveria aguardar o julgamento final no mínimo em prisão domiciliar, já que é réu primário, com residência fixa e sem antecedentes criminais. Dessa vez o Pedido de Elidoro não surte efeito80. Há de se notar ainda que, nesse mesmo documento, o Advogado recorre da Sentença de Cata Preta, sem contudo citar diretamente qualquer parte dos Autos, como é comum nos documentos dos representantes dos garimpeiros. Elidoro só argumenta que “a odiosa sentença [...] firmou-se unicamente nos depoimentos do[s] Réu[s] ELIÉZIO MONTEIRO NERI, SILVANIA SANTOS MENEZES E MANOEL SOARES”81 – o que, mesmo numa leitura à primeira vista da Sentença, não se confirma. De todo modo, João Pereira será o único dos condenados que chegará ainda preso ao último recurso possível no Processo, cerca de 10 anos depois da primeira Decisão, proferida pelo juiz Catta Preta. Os Procuradores do MPF também recorrem da Sentença do TRF de Boa Vista, tentando, então, que os absolvidos (Waldinéia da Silva e Wilson Alves) fossem condenados e que os já condenados fossem também sentenciados pelos delitos que Catta

78

PH, : 1217, Ofício do Delegado da PF, William Victor de Almeida Ramos, comunicando a prisão de João Pereira de Morais. 79

PH, :1220-1227, Recurso à próxima instância do TRF e Pedido de Liberdade Provisória a favor de João Pereira, assinado por Elidoro Mendes. 80

PH, :1474-1475, Despacho e Decisão do Juiz Carlos Alberto, pedindo o desentramento de folhas dos autos e não recebendo o recurso dos condenados foragidos, além de negar o pedido de Liberdade de Elidoro. 81

Op. cit., :1224.

137

Preta os absolveu82. Há aqui de se fazer um breve parêntese: os Recursos, no Direito brasileiro, são primeiramente Conhecidos pela instância inferior, que analisa genericamente se eles têm a ver com o tema até então discutido no processo. Assim, nesse momento, não se julga quem tem ou não razão, mas apenas se o Recurso é minimamente coerente com o resto dos autos. Depois de Conhecidos, julga-se, já em outro tribunal, se deve-se ou não Dar Provimento ao Recurso. Com isso, tanto a Apelação do MPF quando a do Defensor de João Pereira (os outros condenados não recorrem e estão, nesse momento, foragidos) serão enviadas83 ao TRF de Brasília, sede da 2ª instância desse Tribunal, sendo julgadas em conjunto – ambas são, portanto, Conhecidas. É possível notar que a mesma leva de Mandados e Despachos para que a Polícia Federal fizesse novas diligências (cf. Capítulo IV) se repete aqui, agora pela última vez - sem contudo se conseguir achar ninguém além de João Pereira e Pedro Emiliano84. O Processo então será distribuído à 3ª Turma do TRF de Brasília, tendo como Relator o Juiz Tourinho Neto85. Nesse novo Tribunal, muda-se o carimbo onde é inscrita a numeração das folhas dos Autos, mas inicia-se exatamente no número posterior ao dado pelo TRF de Boa Vista. Os Interessados precisam, nessa nova instância, embasar outra vez seus Recursos – e os que foram apresentados em Roraima são ajuntados ao Processo, mas serviram somente para o Conhecimento dos textos na instância anterior. A Apelação Criminal do MPF é, fora as últimas páginas que trazem a citação da Sentença de Catta Preta e a argumentação de que se deve condenar os absolvidos e sentenciar os condenados pelos Crimes não considerados no julgamento em Boa Vista, exatamente o mesmo texto da Denúncia86. Nesse momento, a única novidade, fora os Pedidos de Vista e ações mais burocráticas que propriamente

82

PH, :1461, Recurso do MPF à segunda instância.

83

PH, :1521, Despacho do Juiz Carlos Alberto Simões para que os autos sejam remetidos à outra instância do TRF (Brasília), admitindo os Recursos. 84

Não citarei todos os documentos que compõe tal leva de Mandados e Despachos. A referência completa deles pode ser encontrada na página 20 do Anexo da presente dissertação. 85

PH, :1522, Termo de Distribuição do Processo na nova instância (TRF/BSB); o Juiz Tourinho Neto, da 3ª Turma, é o Relator. 86

PH. : :1528-1568, Recurso do MPF à nova instância do TRF (BSB), assinado por Carlos Frederico Santos, Franklin Rodrigues da Costa e Luciano Mariz Maria.

138

judiciais, é um Ofício de Carlos Alberto, Juiz do TRF de Boa Vista, comunicando a nova prisão pela PF de Pedro Emiliano Garcia87. Antes de passar à análise dos últimos Recursos possíveis no Caso Haximu – aqueles apresentados aos Tribunais Superiores, o STJ e STF, também em Brasília – cabe dar conta de uma reviravolta nos Autos: a anulação da Sentença de Catta Preta e a Decisão, da 3ª Turma do TRF de Brasília, em mandar o Processo de volta a Roraima para que ele fosse julgado não por um Juiz Singular, mas pelo Tribunal do Júri. Há de se notar que, até aqui, os defensores legais dos garimpeiros não discutem a competência para o julgamento do Crime de Genocídio – nem tão pouco a qualificação feita desse Crime. Quem põe em jogo a Sentença do TRF de Boa Vista são os próprios julgadores do TRF de Brasília – e, depois disso, tal idéia é ‘adotada’ nos argumentos dos Requeridos até o último Recurso possível. Essa reviravolta não se faz apenas contra os argumentos dos Procuradores do MPF, mas também contra o Voto do Relator do Recurso, o Juiz Tourinho Neto. Nesse documento88 Tourinho Neto apresenta a mesma idéia de Catta Preta de um Contexto dos Autos, argumentando que “não há dúvidas de que [os índios] foram mortos [...] A prova testemunhal é uniforme, precisa, categórica, não deixando margens para dúvida”89. Sobre o argumento de Pedro Emiliano, que diz ter assinado seus testemunhos à PF porque foi agredido pelo Delegado Cutrim, Tourinho Neto alega que O depoimento do referido acusado, além de concatenado, claro, está perfeitamente ajustável aos fatos apurados e está corroborado com as

87

PH, : 1570, Ofício do Juiz Carlos Alberto (TRF/RR) para o Juiz Tourinho Neto (TRF/BSB) comunicando a prisão de Pedro Garcia. Pedro, Garcia, como não recorre, consegue usufruir das vantagens dadas aos condenados primários. À época do julgamento do último Recurso do Defensor Legal de João Pereira, Pedro Garcia, já condenado, está então livre. João, como não foi condenado e possuiu seu caso ainda em julgamento, não tem as mesmas vantagens, continuando preso. 88

PH, :1646-1696, Voto do Relator dos Recursos ao TRF/BSB, o Juiz Tourinho Neto, em desfavor dos acusados. Há de se notar que o documento anterior, o Relatório do Caso apresentado à 3ª Turma do TRF/BSB (:1609-1641) toma como base a Denúncia do MPF para resumir o Processo. Lembrando que tal documento é a única interpretação dada às provas por uma das Partes (já que, como visto no início do presente capítulo os Defensores dos Garimpeiros não se preocupam, ao menos nos documentos, em esmiuçar depoimentos e laudos), o Relatório como um todo é uma espécie de resumo ou ementa da Denúncia. 89

PH, :1649, Voto do Relator dos Recursos ao TRF/BSB, o Juiz Tourinho Neto, em desfavor dos acusados .

139

declarações dos demais acusados e testemunhas. Não há contradição. Não é uma prova isolada90. Depois de citar excertos de praticamente todos os indígenas apontados no Relatório de Bruce Albert91 como sobreviventes e testemunhas diretas do Genocídio, o Juiz diz que tem “como comprovado que os acusados [todos os Denunciados pelo MPF, menos Waldinéia e Wilson] cometeram a infração prevista [Genocídio]”. Sobre os dois absolvidos em Boa Vista, Tourinho Neto argumenta que “não há provas de os mesmos tivessem participado das chacinas”, citando, logo depois, um excerto da Sentença de Catta Preta92. Por fim, alega-se, como já havia feito Catta Preta anteriormente (e, nesse momento, em desfavor parcial ao Recurso do MPF), que o Crime de Associação para o Genocídio é independente do de Genocídio em si. Por outro lado, analisando pela primeira vez em todo o Caso o depoimento do Delegado Miguel Ângelo Peliccel, responsável pelo Inquérito antes de Cutrim e que coordenou a incursão dos Policiais ao que restou da Aldeia de Haximu, Tourinho Neto conclui que se deve aumentar a pena do Crime de Dano em mais alguns meses para todos os condenados na 1ª Instância93. Contudo, ninguém da 3ª Turma do TRF/BSB acompanha o Voto do Juiz Relator. Assim, sem nenhum tipo de intervenção anterior por parte dos defensores dos Requeridos (ao menos que pudesse ser notada nos documentos ajuntados nos Autos), o Juiz Osmar Tognolo argumenta, em uma única página (o voto de Tourinho Neto tinha 52), que “padece de nulidade absoluta a sentença proferida pelo ilustre magistrado de primeiro grau [Itagiba Catta Preta], por não possuir ele a competência para julgamento de crimes dolosos contra a vida, competência do júri”. Como todos os outros Juízes votaram com Osmar Tognolo, decreta-se então “a nulidade da sentença, determinando o retorno dos autos à vara de origem [...] ficando prejudicado o exame das apelações interpostas”94. Assim, pode-se deduzir que Osmar Tognolo, na leitura do Processo, identificou um erro na tramitação do Caso que é primário e autônomo à discussão propriamente teórica sobre o Genocídio: há um erro 90

Ibid Idem, :1663.

91

Ibid Idem, 1668-1685.

92

Ibid Idem, 1685.

93

Ibid Idem, :1689-1695.

94

PH, :1701, Voto do Juiz Revisor dos Recursos ao TRF/BSB, Juiz Osmar Tognolo, dando competência ao Tribunal do Júri para julgamento do caso.

140

básico de tramitação no Processo, já que o Crime, como atenta contra a vida das pessoas, não poderia ser julgado por um Juiz Singular, mas sim pelo Tribunal do Júri. Por fim, é preciso notar aqui que o Código de Processo Penal (CPP)95, no artigo 74, diz que o Tribunal do Júri é responsável por julgar os seguintes artigos do Código Penal (CP)96: o 121, parágrafos 1 e 2 (matar alguém com intenção de cometer tal Crime, ou seja, dolosamente); o 122 (“induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”); o 123 (“matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após [o parto]”); o 124 (“provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”); o 125 (“provocar aborto, sem o consentimento da gestante”); o 126 (“provocar aborto com o consentimento da gestante”); e o 127 (artigo que agrava as penas do 126 e 125 em caso da gestante morrer ou sofrer alguma lesão grave durante o aborto). Como se pode notar, não há qualquer referência à Lei de Genocídio97. Porém, como já argumentei anteriormente no capítulo IV, as penas dessa última Lei são dadas pelo CP, onde se usa o artigo 121 (matar dolosamente alguém) e o 125 (provocar aborto) para se punir o Genocídio em si e o impedimento de nascimento no seio do grupo genocidado. Todos são artigos do CP julgados não por um Juiz Singular, mas sim pelo Tribunal do Júri, como define o CPP.

IV. O STJ e o “bem jurídico tutelado” Os últimos dois Tribunais pelos quais passa o Processo Haximu têm sede também em Brasília: o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e a instância máxima do Direito brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF). Cabe esclarecer, em termos legais, o que leva um processo a ser julgado nesses Tribunais. Os ministros do STJ devem tratar dos casos em que há conflito de sobre a legislação infra-constitucional, ou seja, situações em que exista desavença interpretativa no que tange a leis específicas, como a Lei do Genocídio, o CP, o CPP ou ainda o Estatuto do Índio – que são todos 95

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm em 11/09/2006

96

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm em 18/7/2006.

97

Lei Especial n. 2889/56, http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L2889.htm, em 18/7/2006.

141

códigos legais infra-constitucionais anteriores à atual Constituição Federal (CF), já que o Estatuto pós-88 ainda hoje tramita no Congresso Nacional. Contudo, em termos hierárquicos, é a Constituição que lhes é anterior toda a legislação do Brasil é, ao menos idealmente, por ela organizada. É possível, inclusive, que se decida contra um lei específica (infra-constitucional) para se manter um principio de julgamento que é dado por idéias gerais contindas na Constituição. Assim, o Supremo Tribunal Federal é responsável por dirimir dúvidas que tenham como base a interpretação da Constituição Federal brasileira. Adianto que a atual CF, no artigo 5º, inciso 33, alínea ‘d’, resume que “a competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida” é do Tribunal do Júri98. O Embargo de Declarações99 interpostos pelos Procuradores Franklin Rodrigues da Costa, Luciano Mariz Maia e Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira resume toda a discussão judicial que se seguirá no STJ e STF. Nesse documento os Procuradores perguntam se a 3ª Turma do TRF/BSB haveria, pela primeira vez em todo o Processo, criticado a tese, nem mesmo colocada em xeque pelos Defensores Legais dos garimpeiros, de que o ocorrido em Haximu não foi propriamente um Genocídio, mas uma série de “crimes dolosos contra a vida”100, ou seja, de homicídios múltiplos. Na interpretação dos Procuradores, “não há como concluir [que] se trate de crime diverso daquele capitulado na denúncia”101. Então, não se admite “que se qualifique o genocídio como crime contra a vida [...] No genocídio, o bem jurídico tutelado não é a vida, mas a etnia”102. A fim definir melhor o que seria o tal “bem jurídico tutelado”, os Procuradores comparam o Crime de Genocídio com o de Latrocínio. Vale aqui outro breve parêntese: O CPP (op. cit.) define o Latrocínio em um dos parágrafos do artigo 157, ou seja, dentro do mesmo artigo em que se tipifica o crime de assalto. Nesse 98

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm em 06/11/2006.

99

PH, :1706-1711, Embargo de Declarações do MPF, assinada pelos Procuradores Franklin da Costa, Luciano Maia e Deborah Duprat (VIII, :1706-1711). O Embargo de Declaração é o último Recurso possível em determinado tribunal, no caso o TRF 2ª Região (que abarca Brasília e Roraima, entre outros Estados). Tal Recurso visa elucidar algum ponto obscuro levantado por uma das partes, mas explicitamente ignorado pelos julgadores em uma decisão judicial. Fui informado por um analista judicial que quase nunca tal Recurso prospera. 100

Idem, :1708.

101

Ibid Idem, :1709.

102

Ibid Idem; em negrito e sublinhado, ênfase minha; em negrito, ênfase do original.

142

sentido, o Latrocínio não é exatamente um assassinato, mas um assalto qualificado. Nesse caso, o “bem jurídico tutelado” não é a vida, mas um tipo especial de assalto – o que não impede que esse crime seja punido com 20 a 30 anos de reclusão, pena mais severa que a do simples Homicídio, punido com 12 a 30 anos. Há de se notar que esse último Crime não está entre aqueles que são julgados pelo Tribunal do Júri (cf. acima), já que não é tido exatamente como um delito contra a vida – e sim uma tentativa de roubo que acaba na morte da vítima. Será exatamente esse o argumento dos Procuradores nesses dois últimos novos Recursos: o simples fato de determinado crime envolver assassinatos ou perdas dolosas de vidas humanas não quer dizer que ele tenha, obrigatoriamente, que ser julgado pelo Tribunal do Júri. O que precisa ser notado é qual o Bem Jurídico Tutelado na construção de tal crime: caso seja a Vida, então o responsável pelo julgamento é o Tribunal do Júri. De todo modo, mesmo havendo mortes, se a intenção, se o ímpeto do desviante nessas mortes é diferente de simplesmente assassinar determinado indivíduo (ou indivíduos) que é, por algum motivo, seu desafeto pessoal, então a competência não é mais do Júri, mas sim de um Juiz Singular. Nesse sentido, o argumento de se corrigir a vontade do criminoso mostra-se presente já na construção do crime, na dosagem da pena e nas discussões judiciais que têm lugar ainda nos tribunais103. Assim, o MPF irá oferecer o Recurso Especial ao STJ e o Recurso Extraordinário104 ao STF tendo como base os argumentos que mapiei acima. Há de se ter em mente que esses dois textos são praticamente idênticos: muda-se apenas o título inicial de cada Recurso, mas o bojo do documento é exatamente o mesmo. Isso porque nesse momento os Procuradores alegam que a decisão do TRF de Brasília vai contra o CPP (uma lei infra-constitucional, sendo sua interpretação de responsabilidade do STJ) e também a CF (que, como visto, tem sua aplicação elucidada pelos Ministros do STF). O que há aí de novo no que tange à argumentação judicial do Crime de Genocídio é que os Procuradores alegam que “é evidente que os Yanomami não virão a integrar eventual 103

Como já havia argumentando anteriormente, o sistema carcerário, depois da adoção gradual da prisão como a punição por excelência, mudou também o ideal da pena: não se quer mais marcar os corpos dos desviantes, mas principalmente endireitá-los, reeducá-los, fazer com que se deixe de lado uma vontade destrutiva ou anti-social e que se retome um estado de consciência que não seja danoso nem para o desviante nem para aqueles que o cercam (FOUCAULT, 2006). Só a título de exemplo, João Pereira manda ao STF uma carta assinada por ele próprio, pedindo mais celeridade no julgamento do seu caso nesse Tribunal (PH , :2010); abaixo de sua assinatura, pode-se ler o termo “reeducando”. 104

PH, :1722-1742, Recurso Especial ao STJ, apresentado pelo MPF; Recurso Extraordinário ao STF, :1744-1763.

143

corpo de jurados”, pedindo-se, então, que se casse “o acórdão105 recorrido [da 3ª Turma do TRF/BSB] , de forma a considerar competente o juízo singular, e determinar ao Tribunal Regional Federal que prossiga no julgamento do mérito das apelações”106. Há de se notar que os índios Yanomami não figuram judicialmente nem como testemunhas, nem tão pouco podem ser sorteados para compor um corpo de jurados, já não que não possuem certidão de nascimento, carteira de identidade ou profissão registrada. O Recurso Especial dos Procuradores é Conhecido no STJ, não sem as contrarazões de Pedro Luiz de Assis, Advogado com escritório em Brasília e que foi subdesignado por Eliodoro Mendes, nessa nova instância, como Defensor Legal dos Requeridos. Pedro de Assis argumenta que a Decisão do TRF/BSB é “bem lançada [...] de acurado e percuciente exame preliminar”107. Além disso, é tal Defensor que chama atenção para o dado que, no CPP, “em caso de conexão de conduta punível outra com crime doloso contra a vida, prevalece a competência do júri para julgar tais crimes a ele conexos”. Por fim, Pedro de Assis pede “a manutenção do referido acórdão, por seus próprios fundamentos jurídicos”108. O Relator do Processo Haximu no STJ é o Ministro Jorge Tadeo Flaquer Scartezzini. É ele quem recebe a Certidão de Óbito de Francisco Alves Rodrigues, o ‘Chico Ceará’109, até então foragido. Francisco Alves morreu de “parada respiratória, asfixia mecânica, afogamento”. Segundo o depoimento de Luzilene Morais da Silva110, sua companheira, Francisco Alves afogou-se num garimpo de nome Entre Rios, estado de Roraima. Nesse meio tempo, Pedro de Assis pede a Liberdade Provisória de João Pereira de Morais, alegando que, agora que é nula a Sentença de Catta Preta, “o seu recolhimento [de João Pereira] à prisão deve-se à custódia preventiva decretada por 105

Como já havia esclarecido no capítulo I, Acórdão é a decisão de um colegiado de julgadores sobre determinado caso – ele faz par com a Sentença, que é a decisão de um único juiz – baseada ou não num corpo de jurados. 106

Op. cit, Recurso Especial ao STJ, :1741-1742.

107

PH, :1765-1768, Contra-Razões de Pedro de Assis ao Recurso Especial do MPF.

108

Idem, :1766-1767. Tal argumento está no artigo 78, inciso I do CPP. Há de se notar aqui que não existem mais documentos datilografados nos Autos: Eliodoro Mendes ainda entregava alguns Pedidos nesse formato, mas Pedro de Assis passa a produzir todos os textos impressos em computador, como juízes e procuradores. 109

Certidão de Óbito de Francisco Alves Rodrigues, o ‘Chico Ceará’, falecido em 18/07/1999, :1807

110

Termo de Declarações à PF de Luzilene Morais da Silva, companheira de Francisco Alves, :1811.

144

juiz incompetente”111. No seu Voto, o Ministro Jorge Scartezzini argumenta que deve apenas julgar o Recurso interposto pelo MPF, mandando que se consulte o TRF de Boa Vista sobre a Liberdade Provisória de João Pereira112. Nesse mesmo documento, Scartezzini resume o Processo Haximu da seguinte maneira: cita-se o Voto contrário de Osmar Tognolo, acompanhando as Decisões nos Autos (Pedidos de Liberdade e Recursos) até o julgamento presente, do qual ele é Relator113. Ressalto que o Ministro não volta aqui nem mesmo na Decisão de Catta Preta que condena os garimpeiros, apesar de, como mostrarei, estar de pleno acordo com ela. Jorge Scartezzini trabalha, em seu Voto, basicamente com os mesmo autores dos Procuradores do MPF na Denúncia. Ele faz o mesmo uso que estes últimos fazem de Fredrik Barth (cf. Capítulo IV), cita as mesmas passagens do Relatório de Albert, acrescentando, logo depois, o “pronunciamento do falecido Senador SEVERO GOMES”, onde conta-se a visita do Senador a uma maloca Yanomami de Paapiú (não há referências bibliográficas), narrando-se que tal local Parece um cenário de Guerra do Vietnã. De cinco em cinco minutos um avião pousa e decola. [...] Junto à ponta da pista está a maloca dos Yanomami, antes cercada pelo vôo de pássaros e borboletas. O barulho é infernal. É impossível conversar dentro da maloca”114 Em resumo, Jorge Scartezzini entende, como os Procuradores, que o Crime de Genocídio atenta contra um grupo humano específico, como chama atenção o “professor polonês LEMKIN”115, autor também trabalhado na Denúncia do MPF. Por fim, Scartezzini vota pelo provimento ao Recurso dos Procuradores, “reformando o ácordão a quo [que decidiu pela anulação da Sentença de Catta Preta], [declara, então] a competência do Juiz Singular Federal para apreciar os delitos arrolados na Denúncia116”. Ao contrário do que ocorreu na 3ª Turma do TRF, no STJ “a [5ª] turma,

111

Pedido de Liberdade Provisória, assinado por Pedro Luis de Assis, de João Pereira, :1826.

112

Relatório e Voto do Ministro Jorge Scartezzini à 5ª Quinta Turma do STJ, :1853.

113

Idem, :1850-1851.

114

Ibid Idem, :1856-1857.

115

Ibid Idem, :1860, ênfase do original.

116

Ibid Idem, :1864, ênfase do original.

145

por unanimidade, conheceu o recurso e lhe deu provimento”117, ou seja, todos os outros Ministros votaram com Jorge Scartezzini, anulando a anulação da Decisão do TRF de Boa Vista proferida anteriormente e restituindo, assim, a Sentença de Catta Preta. O último Recurso possível nesse momento caberia ser escrito então pelo Defensor dos Requeridos, o Advogado Pedro de Assis, visando a última instância julgadora do Direito brasileiro: o Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse Tribunal, o Pleno do STF decide, “por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do relator”118. A tramitação do Processo Haximu no STF parece ter sido particularmente vagarosa, já que o primeiro ministro que recebe os Autos aposenta-se meses depois. O Processo é então repassado ao Ministro Cezar Peluso, que, depois de analisa-lo, decide remete-lo ao Pleno, ou seja, a junção das duas turmas de ministros do STF. Nesse interregno passam-se mais de 4 anos, até a definição, por unanimidade do Pleno, da competência do Juiz Singular para o julgamento do Crime de Genocídio – o que, como já argumentei anteriormente, não é uma decisão que deva ser obrigatoriamente seguida por todos os julgadores de instâncias inferiores ao Supremo Tribunal Federal. Há de se notar que, na fotocópia que me fizeram no STF, não obtive o Voto de Cezar Peluso, tendo contato apenas com seu Relatório – que, em resumo, cita apenas o Acórdão do STJ reformando a já reformadora decisão do TRF/BSB, e dando ciência de algumas outras manobras jurídicas, como os Pedidos de Liberdade ou a própria Apelação feita por Pedro de Assis ao STF. Só notei que o Voto de Peluso estava faltando quando já havia voltado de Brasília ao Rio de Janeiro. Ligando no STF, fui informado que tal documento estava, à época, no Gabinete do Ministro para que fosse revisado e, por fim, definitivamente ajuntado ao Processo. Os Autos, depois de terem as fotocópias arquivadas no STF, foram mandados de volta ao TRF de Roraima – onde, como me informou um técnico judicial, muito provavelmente serão arquivados, sem nenhum novo Recurso.

117

Certidão do Julgamento do Recurso Especial do MPF; a 5ª Turma deferiu o Recurso e cancelou a decisão da 3ª Turma do TRF, :1868. 118

Certidão de Julgamento do Plenário, negando provimento ao Recurso Extraordinário dos Requeridos, :2054.

146

Conclusão

I. O tempo do Processo

Volto a um tema que tenho tratado apenas marginalmente até o momento: o tempo do Processo Haximu. Lembrando que o Inquérito Policial inicia-se em 19-081993 e que o Acórdão final do STF é proferido em 03-08-2006, passam-se então praticamente 13 anos para uma Decisão razoavelmente definitiva sobre o Caso Haximu. Nessa quase uma década e meia, acumularam-se nove volumes de documentos, totalizando 2054 páginas de Processo – fora os Apensos, que somam mais três volumes de recortes de jornais e outros textos, além de uma fita de vídeo da incursão da Polícia Federal à Aldeia de Haximu, nenhuma parte desse último material figurando como foco da presente dissertação. A partir da numeração das páginas constante nos Autos e das datas em que foram ajuntados cada um dos documentos (cf. Anexo) é possível saber qual a média de páginas/dia do Processo em cada uma de suas fases. Há de se lembrar que, nesse caso, me baseio na numeração geral dada aos Autos, onde são contadas todas as folhas do Processo – porém, como já esclareci, não analiso (nem tão pouco os referencio no Anexo final) todos esses documentos, o que faz com que tal dado dê apenas uma idéia geral da dinâmica de produção dos textos, e não propriamente o peso ou a complexidade de cada um deles. Para o Inquérito Policial, dividindo-se suas 518 páginas pelos 40 dias que ele durou, obtém-se uma média de páginas/dia de 12,95. Essa é, sem margens à comparação, a maior média do Processo: nenhuma das outras parciais que elegi conseguiu ao menos alcançar a média de uma página por dia. Há de se lembrar que, nesse momento, são ajuntados todos os laudos dos diversos especialistas (médicos, antropólogos e policiais) que não são propriamente operadores ou pensadores do Direito. É nesse momento também que se concentra a maior parte dos depoimentos, inclusive aqueles que serão usados na Denúncia para se construir o Crime de Genocídio. Tomando como norte outra baliza dos Autos, a fase de instrução judicial do Processo – período em que elejo aqui como indo do primeiro depoimento judicial de Pedro Emiliano até a Sentença de Catta Preta – apresenta a segunda maior média de ajuntamento de documentos nos Autos: 0,51 páginas/dia. Cheguei a tal número 147

dividindo os três anos e 45 dias que compõe o período de instrução judicial pelas 590 páginas então ajuntadas. Comparando as duas últimas médias, há de se recordar aqui que os Policiais, no colhimento dos depoimentos (principalmente aqueles referentes aos indígenas), se deslocam para a Área Indígena Yanomami – e que, por outro lado, os Juizes que trataram da instrução judicial do Processo só escutam testemunhas (ou “Prestadores de Informações”, no caso dos índios) em Boa Vista, o que faz com que várias Audiências (como chamo atenção no capítulo IV) tenham que ser canceladas porque a FUNAI, por exemplo, não conseguiu trazer os índios à capital de Roraima a tempo. Nesse mesmo sentido, pode-se lembrar também a prisão do depoente Basílio Ferreira pela Polícia Federal, único meio encontrado para que tal garimpeiro depusesse Em Juízo. A média mais baixa no tocante aos intervalos que venho trabalhando até aqui é referente à tramitação dos Autos no STF e STJ: no período de discussão judicial da Competência do Crime de Genocídio, a média de páginas produzidas por dia cai dos 0,51 do período anterior para 0,24. Cheguei a tal valor tomando como baliza temporal a data do primeiro Recurso que contestou a Sentença de Itagiba Catta Preta e, na outra ponta, o Acórdão final do Suprem Tribunal Federal, o que totalizou 834 páginas dividas por 3 467 dias. É possível notar que há uma diminuição de mais de 50% no ritmo de produção de textos nesse último período. Isso se dá principalmente pela lenta tramitação do Processo Haximu no STF - e uma média das páginas ajuntadas desde que os Autos chegaram ao Supremo Tribunal Federal até o dia em que o Caso foi aí julgado (o que totaliza cerca de 4 anos) seria de 0,061 páginas/dia. Contudo, relembro que a tramitação do Processo Haximu no STF não se deu, ao que parece, de maneira típica ou regular: o primeiro Relator do Recurso Extraordinário do Caso Haximu se aposenta antes de apresentar seu Voto ou Relatório à 2ª Turma desse Tribunal119 - e nesse meio tempo, até ganhar um novo Relator, o Processo completa quase três anos no STF. Além disso, o segundo Relator, o Ministro Cezar Peluso, depois de analisar o Caso, resolve que o ele não deve ser julgado por qualquer uma das duas Turmas do STF em separado, e sim pelo Pleno desse Tribunal – ou seja, o ajuntamento das duas Turmas, reunindo-se todos os Ministros do STF120. De todo modo, pode-se notar uma 119

Decisão do STF, assinada pelo então Presidente Min. Marco Aurélio, mandando que se redistribua os Autos a outro Relator, pois o Min. Sydney Sanches se aposentara, :1987-1988. 120

Certidão de Julgamento, enviando os Autos para apreciamento do Tribunal Pleno do STF, :2054.

148

franca diminuição no ritmo de ajuntamento dos documentos com o passar do tempo. Penso ser essa outra característica da sedimentação do Processo: quando já existe um “contexto probatório” já discutido, quando há suspeitos já presos e uma Sentença já foi proferida – enfim, quando os Autos passam a tramitar em Tribunais que recebem Recursos do país inteiro – então o ritmo de produção de documentos passa a diminuir gradualmente, ao menos no caso específico aqui analisado. O Recurso de Pedro de Assis, então Defensor Legal dos garimpeiros, ao STF como já visto, é Conhecido - porém não recebe Provimento. Antes do julgamento, contudo, o indígena Davi Kopenawa Yanomami é admitido como “assistente do Ministério Público, após manifestação favorável desse órgão autor”121. Um dos últimos documentos referente a tentativas de se intervir a favor dos garimpeiros é o Pedido de Saída Temporária a favor de João Pereira. O advogado argumenta que João teria “um ÓTIMO comportamento carcerário”, participando da feitura da horta da Penitenciária Agrícola de Roraima, entre outras atividades, “o que prova [que João] não é um vagabundo, incapaz de conviver em sociedade”122. *II. A etnicidade no Processo Há de se relembrar, inicialmente, que o ajuntamento de documentos (que não é, como visto, um simples arquivamento de papéis) é levado a cabo por funcionários públicos com diferentes capitais simbólicos, para usar uma consagrada categoria de Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1986). Assim, tomam efetivamente parte na produção dos Autos (e na mediação e construção do conflito, portanto) advogados, procuradores, técnicos e analistas judiciais, policiais e julgadores de diferentes Tribunais, todos eles hierarquicamente organizados num sistema de relações que, não raro, é conflituoso em diferentes níveis123. O já citado texto de Bourdieu faz uma interessante análise da competição específica entre esses especialistas. Porém, acabei tratando apenas marginalmente de tal ponto porque tentei me focar na compreensão da lógica interna de organização do Processo. Com isso, meu norte foi tentar empreender uma análise de 121

Petição da Advogada Luciana Moura Alvarenga requerindo que Davi Kopenawa Yanomami seja admitido como assistente do MPF, :1891. 122

Petição de Antonio Claudio Theotônio, Advogado de João Pereira, requerendo a Saída Temporária desse último, :1895. Cf. a análise do termo vagabundo no capítulo IV. 123

Só para citar um exemplo, basta relembrar o questionamento que os Advogados dos garimpeiros fazem sobre os depoimentos colhidos pelos Policiais Federais, cf. capítulo I.

149

outra análise – ou, melhor definindo, dar conta, a partir da tradição analítica da Antropologia Social e de áreas afins, do processo de apropriação de um conflito levado a cabo pelos especialistas do campo do Direito. Num segundo movimento, ainda necessariamente tímido e preliminar, tento dar as linhas gerais de uma análise própria, menos compreensiva ou descritiva e mais calcada no estudo interpretativo de determinadas características presentes nos documentos desses expertos - que não foram, contudo, propriamente trabalhadas por eles. Tento, assim, mostrar que o Processo se baseia na idéia de que a etnicidade Yanomami é uma espécie de ‘pano de fundo’ da genérica condição de indivíduo nacional, da qual os garimpeiros são, sem dúvida ou ressalvas, representantes – desviantes ou criminosos, mas, ainda assim, representantes. Cabe esclarecer melhor esse último ponto. A tipificação do Crime de Genocídio no Processo Haximu torna aquilo que seria, em termos judiciais, potencialmente negativo como algo que conforma a própria peculiaridade desse Crime. Apesar de, como visto, o Genocídio ter como base as penas do homicídio, ele é, em certo sentido, construído de maneira diametralmente oposta a esse primeiro delito. A tabela abaixo ajudará a analisar mais detidamente essa questão:

Impossibilidade de individualização de todos os mortos Impossibilidade de individualização de todos os sobreviventes Impossibilidade de traçar com exatidão a conduta de cada criminoso Impossibilidade de dar conta da própria identidade de todos os criminosos

Homicídio -

Genocídio +

-

+

-

+

-

+

Como visto, enquanto a construção judicial de uma conduta homicida precisa, via de regra, que se individualize vítimas e agressores, uma das características básicas do Genocídio é que se age indistintamente contra um conjunto de pessoas – e justamente porque tais pessoas perfazem esse conjunto apartado do grupo genocida em si. Nesse caso, não se faz necessário identificar cada um dos mortos ou criminosos. Basta conseguir atestar que os agentes do Genocídio, na tentativa de dar cabo de todo o grupo, tiraram a vida ou feriram parte ou todo do conjunto de indivíduos que compõe a 150

comunidade foco da ação genocida – ou, ao menos, tentaram fazer isso. Por outro lado, não é preciso especificar exatamente o que cada criminoso fez: cumpre somente mostrar que determinada pessoa esteve envolvida, direta ou indiretamente, no delito em questão. Assim, características comumente tidas como negativas na sedimentação de um crime qualquer (não é possível dizer, por exemplo, quem exatamente foi morto ou quem matou, quem o que cada um dos genocidas fez exatamente) passam,, no Genocídio, a compor o que há de mais específico dessa transgressão legal. Há de se notar também que o “ímpeto” ou “conduta” criminosa, como argumentam os Procuradores, não deve ser procurado exatamente nas mentes dos criminosos pontualmente tomados. A explicação central do crime está na consciência coletiva de um conjunto de pessoas – motivo pelo qual a análise do antropólogo Bruce Albert das relações entre garimpeiros e Yanomami tem tanto peso na construção do Crime pelos Procuradores, como deixo claro a partir do capítulo III. A responsabilidade primeira pelo Genocídio é, assim, de um grupo de pessoas que se acha superior frente a um outro grupo, tomando para si o direito de dar cabo desses últimos indivíduos. Nesse sentido, pode-se dizer que as mesmas condutas imputadas à consciência criminosa do indivíduo pontualmente tomado são adaptadas ou transferidas a um tipo de ‘consciência coletiva’, constituinte central do Crime de Genocídio124. Tudo isso está contido, de modo mais ou menos explícito, no argumento dos Procuradores da República nos documentos dos Autos. Contudo, o Genocídio, como montado no Processo aqui em foco traz uma característica especial: ele não é cometido contra uma minoria religiosa ou racial, mas sim contra uma espécie de ‘outra sociedade’, pensada como quase que completamente apartada dos brasileiros comuns, tanto em termos lingüísticos, como culturais, religiosos e até mesmo raciais. Penso ser esse exatamente o motivo que faz com que seja tão eficaz o argumento dos Procuradores no Caso Haximu: tudo o que é apresentado como prova contra os garimpeiros figura, a partir da etnicidade das vítimas, como característica intrínseca aos Yanomami. Assim, a inversão feita frente ao homicídio comum é, num outro nível, também operante na caracterização das vítimas e dos genocidas na situação particular do Genocídio de Haximu. Dei ênfase ao termo ‘quase’ pois é necessário lembrar que os Yanomami não são pensados como completamente apartados da qualidade de brasileiros. A já citada 124

Porém, há de se ter em mente que as punições são individuais e que cabe a cada um dos potenciais genocidas fazer sua defesa e cumprir, caso condenados, suas penas.

151

condição de ‘outra sociedade’ é relativa e, como chama atenção Souza Lima (SOUZA LIMA, 1997) existe um poder de tutela que opera sobre populações rotuladas e/ou autoreconhecidas como ‘indígenas’ – e esse tutela opera porque esses indivíduos estão pensados como ao menos parcialmente inseridos numa certa brasilianidade. Segundo o mesmo autor, Esta forma estatizada de ação sobre as ações dos nativos pode ser vista como modo de interligar e construir espaços em territórios e redes sociais independentes em unidades subordinadas a um centro político, operado desde um aparelho de poder integrante de uma administração governamentalizada. [...] O poder tutelar é uma forma reelaborada de uma guerra, ou de maneira muito mais específica, do que se pode construir como um modelo formal de relacionamento entre um eu e um outro. Isto é, a conquista, cujos princípios básicos se repetem – como toda a repetição, de forma diferenciada – a cada pacificação de povos nativos (estratégia que celebrizou Cândido Rondon), desde o início do século aos dias de hoje (Idem: 348, ênfases do original). Sem sombra de dúvidas os Yanomami são tidos e tratados pelos diferentes órgãos estatais como povos tutelados – e, portanto, de alguma maneira também brasileiros. Eles possuem, já há mais de uma década e meia, uma Área Indígena oficialmente homologada e delimitada, estando, com isso, “administrativamente definidos no espaço geográfico”, o que lhes dá/impõe um lugar na “idéia de um mapa político do Brasil” (Ibid Idem: 351). Essa condição garante-lhes (ou, dependo da situação, lhes obriga125) a ‘assessoria’ de uma série de instituições pensadas como nacionalmente abrangentes, a exemplo do Ministério Público Federal e da FUNAI. São, portanto, tratados como ‘brasileiro especiais’, “étnicos”, “indígenas” – ou, em outras palavras, como “atores políticos relativamente incapazes [...], assim fazendo-se necessária a presença de um aparelho que os represente política e juridicamente. A um tempo produzem-se as condições de uma interação triádica e as de emergência de um certo clientelismo de Estado (Ibid Idem: 353, ênfase do original).

125

Para um contexto em que a intermediação judicial de agências governamentais, mais pontualmente da FUNAI, é vista como particularmente desastrosa para os povos tutelados, cf. o artigo de AZEVEDO, 1988.

152

Há aí uma ambigüidade de fundo, sobre a qual diversos autores já trataram direta ou indiretamente126: a condição étnica de tais povos (e, conseqüentemente, a tutela que pesa sobre eles), é, ao mesmo tempo, um instrumento de controle e uma ‘arma’ subalterna de luta política. Nesse sentido, Oliveira Filho, numa análise dos chamados “índios misturados” (o que, num primeiro momento, não é a pecha que pesa sobre os Yanomami) argumenta que Enquanto o percurso dos antropólogos foi o de desmistificar a noção de “raça” e desconstruir a de “etnia”, os membros de um grupo étnico encaminham-se, freqüentemente, na direção oposta, reafirmando a sua unidade e situando as conexões com a origem em planos que não podem ser atravessados ou arbitrados pelos de fora. Sabem que estão muito distantes das origens em termos de organização política, bem como na dimensão cultural e cognitiva. A “viagem da volta” não é um exercício nostálgico de retorno ao passado e desconectado do presente (por isso não é uma viagem de volta). (OLIVEIRA FILHO, 1999:31). Como já argumentei no capítulo II, penso que essa reificação da categoria de “raça” ou “etnia” é também conduzida pelos Delegados, Procuradores e outros especialistas que tomam parte no Processo Haximu. Isso se dá justamente porque ela pode ser apropriada como um instrumento eficaz no Processo judicial em questão. Nesse sentido, chama atenção Michael Herzfeld no estudo da construção da identidade dos artesãos gregos modernos (HERZFELD, 1997 e 2004), dizer que os “outros” estudados não criam estereótipos ou operam preconceitos é, na verdade, uma condescendente reversão da idéia do Bom Selvagem (1997: 164). Para o autor, categorias essencializadas (como a de artesão tradicional ou, no caso aqui em foco, a de etnia) são maneiras de fazer com que um determinado argumento político opere efetivamente (Idem: : 160) – e, é claro, podem servir como base tanto para criar, manter ou contestar relações sociais assimétricas (HERZFELD 2004). Vale a pena aqui citar um exemplo: se no nível local um candidato cretense pode levar vantagem sobre um outro evocando as pretensas raízes dóricas de sua masculinidade (e, conseqüentemente, a falta de tal atributo no candidato opositor), tal operação, necessariamente, também o classifica, dentro da hierarquia de uma

126

Para exemplos, cf. os textos já citados estudos de Souza Lima e Oliveira Filho, além dos outros artigos contidos na coletânea em Duprat, 2002.

153

comunidade de pensamento127 tida como nacionalmente grega. Isso lhe valerá o estigma de ‘não-europeu’, ‘não-civilizado’ e, portanto, necessariamente inferior nesse sistema de valores (1997: 160). Com isso, ao mesmo tempo que o referido candidato angaria alguma vantagem incorporando a pecha de grego tradicional, ele também é, num outro nível, automaticamente situado como alguém não propriamente moderno – e, assim, não completamente grego. Mutatis muntandis, penso que, se os Yanomami são tratados no Processo Haximu como espécies de ‘brasileiros originários’, eles não são, justamente por isso, ‘tão brasileiros’. Desse modo, aquilo que lhes garante a peculiaridade de “vítimas especiais” em um dado contexto, como o do processo, é também o que paradoxalmente pode reiterar tanto a reinvenção contínua de sua subalternidade, como a desvalorização da “verdade” étnica de outros grupos não tão facilmente identificados como indígenas. É possível, diante de tudo o que foi exposto, montar uma nova tabela, agora tendo como foco a maneira como garimpeiros e Yanomami são classificados em diversas situações que compõe os Autos do Caso Haximu. Situações gerais Falta do documento de identidade nacional Falta de uma moradia fixa Estar incomunicável ou distante das sedes das instituições policiais/judiciais Dificuldade ou impossibilidade de se colher depoimentos Dificuldade de pormenorizar companheiros Desencontros ou contradições nas declarações prestadas Ter o nome citado apenas por apelido Ter cometido violência contra

Garimpeiros -

Yanomami + +

-

+

-

+

-

+ + + +

Como se pode notar, principalmente nos textos dos Procuradores da República que defendem os Yanomami, se consegue ‘transmutar’, a partir das informações do Processo (como o Relatório de Bruce Albert, por exemplo), todos os elementos potencialmente negativos numa contenda judicial. Como já disse, tal transmutação se dá, de modo mais geral, porque o Crime em questão é o de Genocídio – mas, como 127

A categoria “comunidade de pensamento” para tratar dos que acreditam e operam dentro da idéia de um Estado Nacional englobante não é de Herzfeld, mas sim desenvolvida por Antonio Carlos Souza Lima (SOUZA LIMA 1995).

154

tento mostrar agora, também porque o Genocídio aqui em foco é do tipo étnico. Sendo assim, o fato dos sobreviventes não dizerem os nomes dos que foram mortos, é esclarecido com o argumento, trazido pelo antropólogo Bruce Albert, de que entre os Yanomami o nome ‘oficial’ ou ‘real’ de alguém morto não pode ser pronunciado. Já entre os garimpeiros, quando Pedro Garcia nega, inicialmente, ser o ‘Prancheta’ citado pelos seus companheiros de garimpo (e mais tarde acaba confirmando tal informação) esse fato é usado pelos Procuradores para reafirmar as intenções genocidas desse acusado. Da mesma maneira, as contradições nos depoimentos indígenas são explicadas por um desencontro cultural: os Yanomami que prestaram os primeiros depoimentos aos Policiais Federais são apenas conhecidos ou parentes das reais vítimas do Genocídio. Os primeiros se comportam como os últimos porque existiu um gap de entendimento entre depoentes, tradutores e colhedores de depoimentos. Já no caso dos garimpeiros, quando um depoente se contradiz, os Procuradores conseguem eficazmente mostrar que isso se dá porque eles estão tentando esconder algo – ou, como no caso da cozinheira ‘Silvinha’ tratado anteriormente, porque fora ameaçada por outros garimpeiros. O mesmo pode ser dito sobre a dificuldade em se achar os índios e garimpeiros arrolados como testemunhas judiciais: no caso dos primeiros, esse contratempo é visto como intrínseco à condição de indígena Yanomami. Contudo, no caso dos últimos, consegue-se provar que eles estão, na verdade, Foragidos. Por fim, esclareço novamente que não estou questionando se houve ou não um Genocídio em Haximu, nem tampouco a profunda e extensa história de violências sofridas pelos povos indígenas no Brasil. O que tentei mapear acima foi como o aparato judicial brasileiro dá conta, dentro do seu próprio vocabulário, de um acontecimento determinado – de cuja existência, reitero, não restam dúvidas. Assim, quando digo, por exemplo, que as inconsistências dos depoimentos dos garimpeiros são incorporadas no Processo com um estigma negativo, não estou argumento que os Procuradores ou outros especialistas deturparam os depoimentos dos acusados. O que tento mostrar, por fim, é como determinados expertos (como o Delegado Cutrim no fim do Inquérito ou os Procuradores na Denúncia) conseguem sedimentar uma massa inicialmente dispersa e evidentemente pouco homogênea numa acusação formal de Genocídio – ou, por outro lado, como os Defensores Legais dos garimpeiros, ignorando as provas colhidas por Policiais, estão praticamente à margem de tal processo de construção. Voltando às

155

considerações de Bourdieu (op. cit., 1986), tudo isso é constituinte da própria disputa judicial.

III. Desdobramentos possíveis Finalizando, penso que um possível e provável desdobramento da dissertação que se seguiu caminharia em duas linhas relativamente distintas. Primeiramente, cabe um afinamento maior no estudo dessa área extremamente intricada e rebuscada que é a Ciência do Direito. Só para ficar num exemplo, não tive condições de ler os artigos dos diversos juristas citados nos documentos do Processo – o que, por si só, já seria bibliografia razoável para uma outra dissertação. Por outro lado, como deixo claro no capítulo II, caberia também uma análise mais apurada do que gira em torno do processo. Tal trabalho poderia começar pela análise dos Anexos dos Autos, que foram ignorados no estudo que se seguiu. Tive também acesso, através da antropóloga Elaine Amorim, funcionária da 6ª Câmara de Coordenação, a cerca de uma dezena de laudos antropológicos escritos por ela e por outros antropólogos desse órgão. Apesar de ter lido toda essa documentação e ela apresentar paralelos explícitos com certos documentos do Caso Haximu (como o Relatório de Bruce Albert, por exemplo), preferi deixar tal massa documental temporariamente em suspenso. Contudo, ressalto que um trabalho mais refinado deverá incorporar esses outros laudos. A comparação se faz necessária não somente no caso do Relatório do Antropólogo Bruce Albert, mas também com o próprio Processo como um todo. A leitura de outras peças judiciais cuja temática poderia ser comparável à aqui estudada ajudaria a tratar certos temos que faço referência apenas inferências indiretas. Por fim, cabe esclarecer que todos esses projetos já possuem algum investimento, mas não aparecem aqui devido a já citada peculiaridade do Caso Haximu, que demandou uma análise especialmente a ele voltada – e, por outro lado, também devido ao exíguo tempo para a leitura e sistematização de todo esse material.

156

Anexo

TABELA TEMPO/DOCUMENTO DO PROCESSO HAXIMU Não estão citados todos dos documentos dos Autos, mas, inicialmente, faço referência a grande maioria deles. Assim, dou preferência aos documentos mais longos, como depoimentos, relatórios e cartas e que penso terem maior peso (cf. Capítulo II). Deixo de lado determinados ofícios, despachos, entre outros, que me pareceram não apresentarem grande importância por serem cópias já citadas, papéis em branco ou folhas ilegíveis. Os números entre parênteses fazem referência aos volumes (romanos) e às páginas (arábicos) do Processo. No caso de documentos sem data, optei por situálos seguindo a ordem em que estão dispostos no processo. A primeira página numerada faz referência ao rol de denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) - Pedro Emiliano Garcia, Eliezio Monteiro Neri, Waldineia Silva Almeida, Juvenal Silva e Wilson Alves dos Santos. A segunda página numerada compõe o início da Denúncia do MPF, que vai até a página 39 do primeiro volume. A página 40 é a capa do Inquérito Policial. A Denúncia é assinada pelos procuradores Carlos Frederico Santos, Franklim Rodrigues da Costa e Luciano Mariz Maia, seguida da data 15/10/1993. Até a página 531 do volume III todos os documentos são cronologicamente anteriores a tal Denúncia. 17/08/93 Carta manuscrita de Luzia Pereira Leite (enfermeira da CCPY) a um funcionário da FUNAI, dando notícia de uma possível matança de índios na Área Indígena Yanomami (I, :42).

19/08/1993 Início do Inquérito Policial (:40-518), aberto pela Portaria do Del. José Sydney Vera Lemos, então responsável pelo Inquérito (I, :41) .

22/09/1993 Auto de Apresentação e Apreensão: cartuchos deflagrados, projéteis, panelas furadas, peças de roupa, uma ossada, 4 volumes de cinzas (I, :59-60).

23//08/1993

23/08/1993 Portaria nomeando Francisco Bezerra de Lima, funcionário da FUNAI, como intérprete dos Yanomami (I, :62).

23/08/1993

Termo de Declarações de José Flávio Sampaio Lopes, enfermeiro da CCPY (I, :50-51). 23/08/1993 Termo de Declarações do indígena Louveira Yanomami (I, :69-72). 23/08/1993

23/08/1993 Termos de Declarações de Luzia Pereira leite, enfermeira da CCPY (I, :73-75). Sem Data

Termo de Declarações do Tuxaua Antonio Yanomami (I, :63-68). 23/08/1993 Termo de Declarações de Benedicta Dias Pereira, religiosa católica (I, 76-77). 24/08/1993

157

Termo de Declarações da suíça Marie Blandina Spescha, religiosa católica(I, :78-79). 25/08/1993 Termo de Declarações do garimpeiro Wilson Alves dos Santos, ‘Neguinho’ (I, :93-97).

Lista manuscrita de possíveis mortos, feita a partir dos Termos de Declarações passados. Conta-se 71 mortos (I, :82-83). 25/08/1993

25/08/1993

Termo de Declarações do garimpeiro Sebastião Barros Nogueira (I, :98-101).

Solicitação, pelo Del. José Sidney de Laudo Pericial, de Laudo Pericial do material encontrado (I, :102).

26/08/1993 Relatório da investigação realizada com os sobreviventes da chacina do Hwaixmëu, Bruce Albert (ORSTOM, UNB), (I, :119-127). 27/08/1993 Despacho do Del. Soares Cutrim, pedindo à CCPY o Relatório produzido pelo antropólogo Bruce Albert (I, :113). 29/08/1993 Termo de Declarações da indígena Waythereoma Hwanxima (I, :132-138). 29/08/1993 Termo de Depoimento do enfermeiro da CCPY Jorge André Gurjão (I, :152-154). Sem Data Mapa desenhado pelo indígena Davi Kopenawa Yanomami, marcando as fogueiras onde foram queimados os corpos dos índios mortos (I, :163). 30/08/1993

(Novamente) Termo de Declarações do Tuxaua Antonio Yanomami (I, :85-89).

26/08/1996 Termo de Declarações do indígena Japão Yanomami (I, :107-111).

27/08/1993 Ofício do Diretor da Divisão de Polícia Federal de Roraima designando um novo delegado para o caso: Raimundo Soares Cutrim. (I, : 112).

28/08/1993 Termo de Declarações do médico da CCPY Claudio Esteves de Oliveira (I, :116-117). 29/08/1993 Termo de Declarações do indígena Paulo Yanomami (I, :139-147). 30/08/1993 Termo de Informação do indígena Simão Yanomami (I, :156-158).

28/08/1993 Auto de Apresentação e Apreensão: dentes e ossos colhidos em fogueiras rituais (I, : 128). 29/08/1993 Termo de Declarações do antropólogo Bruce Albert (I, :148-151). 30/08/1993 Termo de Informação do indígena Rikima Yanomami (I, :159-162) .

Sem data Lista Manuscrita do enfermeiro da CCPY Jorge André Gurjão com os possíveis mortos (62 nomes) (I, : 164). 01/09/1993

30/08/1993 Auto de Constatação: 14 cabaças dos indígenas com cinzas humanas (I, :156). 01/09/1993

158

Solicitação, pelo Del. Cutrim, da Comissão Demarcadora de Limites Brasil/Venezuela ao Chefe de Departamento das Américas do Min. Das Rel. Exteriores (I, :169-170).

Termo de Reinquirição do Wilson Alves dos Santo, ‘Neguinho’ (I, :167).

02/09/1993 Solicitação, pelo Adm. Reg. da FUNAI de Roraima, Sr. Suami Percílio dos Santos, da devolução dos ossos e cinzas após a perícia (I, :1993).

Fac-símile do Ministério das Rel. Exteriores, comunicando a ida do Coronel Ivonilo Dias Rocha (I, :139).

02/09/1993 Termo de Declarações da garimpeira Antonieta Mota dos Santos (I, :180182).

02/09/1993 Termo de Declarações do garimpeiro Raimundo Moreira Silva (I, :183/verso).

03/09/1993

03/09/1993

03/09/1993

Termo de Declarações do garimpeiro Basílio Ferreira (I, :185-186).

Termo de Declarações do garimpeiro Antonio Alves da Cruz(I, :187-188).

Termo de Declarações do garimpeiro Aldo José Morais Barros (I, :189-190).

03/09/1993

03/09/1993

03/09/1993

Termo de Declarações do garimpeiro José Almeida, ‘Soçinho ou Neguinho’, (I, : 191-192).

Termo de Declarações do garimpeiro Antonio Oliveira, ‘Cigarrão’(I, : 193-194).

Termo de Declarações do Garimpeiro Sebastião Rodrigues Coelho Júnior (I, :195-196).

03/09/1993 Termo de Declarações do garimpeiro José Carlos Costa (I, :197-198).

03/09/1993 Termo de Declarações do garimpeiro Manoel José Santos Soares (I, 199-200).

03/09/1993 Termo de Declarações da garimpeira Francisca Buckley Pereira, ‘Chica’ (II, :201-202).

04/08/1993 Termo de Declarações da garimpeira Eunice da Silva Paiva (II, :204-205).

05/09/1993 Despacho do Del. Cutrim pedindo a prisão temporária de 4 garimpeiros (II, :206).

06/09/1993 Termos de Declarações da garimpeira Silvânia Santos Menezes, ‘Silvinha’ (II, :214-217).

05/09/1993 Representação do Del. Cutrim pedindo a prisão temporária de 4 garimpeiros (II, :207-212).

06/09/1993 Termo de Declarações da garimpeira Eva Alves de Sousa (II, :219-220/verso).

06/09/1993 Termo de Declarações do garimpeiro Juvenal Silva, ‘Cururupu’ (II, :222-223).

159

06/09/1993 Termo de Declarações de Pedro Emiliano Garcia, ‘Pedro Prancheta’ (II, :225-226).

06/09/1993 Despacho do Del. Cutrim para a qualificação e interrogatório de Pedro Emiliano(II, :227)

06/09/1993 Boletim de Vida Pregressa de Pedro Emiliano (II, :230/verso).

06/09/1993 Guia de identificação de Pedro Emiliano Garcia (II, :231/verso).

Sem data Cópia, frente e verso, da identidade de Pedro Emiliano Garcia (II, :232).

06/09/1993 Mandados de Prisão do Juiz Federal Renato Martins Prates contra Pedro Emiliano Garcia e mais 4 garimpeiros (II, 235-239).

06/09/1993 Nota de Ciência das Garantias Constitucionais, redigida pelo Del. Cutrim, a Pedro Emiliano Garcia (II, :240).

06/09/1993 Despacho do Del. Cutrim comunicando a prisão de Pedro Emiliano ao Juiz e ao Diretor da Penitenciária Agrícola. (II, :233-234). 06/09/1993 Apresentação, feita pelo Del. Cutrim, do preso Pedro Emiliano ao Instituto Médico Legal (II, :243). 07/09/1993 Termo de Reinquirição de Pedro Emiliano (II, :252-262).

07/09/1993 Comunicado de dois agentes da Polícia Federal de que Pedro Emiliano quer prestar esclarecimentos sobre o caso (II, :246).

07/09/1993 Informativo de um agente da Polícia Federal, comunicando, a pedido de Pedro Emiliano, sua prisão à ‘Agié’, dono da casa de comércio OUROCARO (II, :263).

09/09/1993 Termo de Reinquirição de Silvânia Santos Menezes (II, :270-272).

09/09/1993

06/09/1993 Encaminhamento, feito pelo Del. Cutrim, do preso Pedro Emiliano à Penintenciária Agrícola (II, :244).

06/09/1993 Auto de Qualificação e Interrogatória de Pedro Emiliano (II, :228-229).

09/09/1993 Termo de Declarações da garimpeira Maria Dalva Elias Pinto (II, :273-276)

09/09/1993

09/09/1993 Termo de Reinquirição deJuvenal Silva (II, :267-269)

09/09/1993 Termo de Reinquirição de Pedro Emiliano Garcia (II, :277/verso)

10/09/2003

160

Despacho do Del. Cutrim pedindo a prisão temporária de 19 garimpeiro(a)s (II, :278).

Representação, feita pelo Del. Cutrim, da Prisão Temporária de 19 garimpeiro(a)s (II, :279-282).

11/09/1993 Comunicado de um agente da Polícia Federal de que o Juiz Renato Martins já havia prorrogado a prisão de Pedro Emiliano (II, : 285). 11/09/1993 É ajuntado aos autos o Laudo de Exame de Corpo de Delito (02/09/1993) feito em Wilson Alves dos Santos (II, :312/verso-314). 14/09/1993 Termo de Reinquirição de Japão Yanomami (II, :318-321).

11/09/1993 Termo de Reinquirição de Eunice da Silva Paiva (II, : 286-288).

14/09/1993 Despacho do Del. Cutrim pedindo que ajuda da FUNAI para a reinquirição do indígena Japão Yanomami (II, :315).

11/09/1993 Mandados de Prisão expedidos pelo Juiz Renato Martins contra 19 garimpeiros (II, :290308).

14/09/1993 Despacho do Del. Cutrim para lavrar-se portaria nomeando Bruce Albert e o religioso Carlos Acquini como tradutores de Japão Yanomami (II, :316).

15/09/1993 Despacho do Del. Cutrim para o interrogatório e qualificação de Eliezio Monteiro Néri. (II, :326-327).

15/09/1993 Boletim de Vida Pregressa de Eliezio Neri (II, :333).

15/09/1993 Nota de Ciência das Garantias Constitucionais, redigida pelo Del. Cutrim, a Eliezio Neri(II, :337).

15/09/1993

Pedido do Del. Cutrim ao Juiz Renato Martins para que se amplie a prisão temporária de Pedro Emiliano (II, :283).

Sem Data Guia de identificação de Eliezio Neri (II, :334).

Sem Data Cópia, frente e verso, da identidade de Eliezio Neri (II, :335)

15/09/1993 Ofício do Del. Cutrim à Agié ‘De tal’ comunicando a prisão de Eliezio Neri, por pedido desse último (II, :339). Sem Data

15/09/1993 Auto de Qualificação e Interrogatório de Eliezio Neri (II, :328-332).

15/09/1993 Apresentação, feita pelo Del. Cutrim, do preso Eliezio Neri ao Instituto Médico Legal (II, :340). 15/09/1993

161

Ofício Del. Cutrim comunicando a prisão de Eliezio Neri ao Juiz (:338) e ao Diretor da Penitenciária Agrícola. (II, :341). 16/09/1993 Auto de Reconhecimento de Eliezeio Neri por Pedro Emiliano (II, : 369).

Ajuntado aos autos o Relatório de Inspeção (10/09/1993) do Coronel Ivonilo Dias Rocha (II, :343-359).

17/09/1993 Despacho do Del. Cutrim solicitando a dilação do prazo de fechamento do Inquérito (II, :371).

19/9/1993 Ofício do Del. Cutrim ao Instituo Nacional de Criminalística pedindo o material da perícia de volta (II, 376-377) 22/09/1993 Fac-símile do Min. das Rel. Exteriores comunicando contato com o embaixador em Caracas (III, :425).

Ofício do Del. Cutrim pedindo providências ao Min. das Rel. Exteriores para que seja autorizada a entrada da Polícia Federal em solo venezuelano (II, :361-362). 17/09/1993 Despacho do Del. Cutrim determinando o retorno do material colhido para perícia aos Yanomami (II, :375).

18/08/1993 Termo de Declarações da cabeleireira Luzilene Morais da Silva, esposa de garimpeiro (II, :379-381)

20/09/1993 Ofício do Tribunal Regional Federal à Polícia Federal comunicando que foi garantida à advogada de Pedro Emiliano, Dr. Eliane Maria de Oliveira, vista do Inquérito (II, :383).

23/09/1993 Ajuntamento de cópia do Laudo Pericial do Instituto de Medicina Legal e Antropologia Forense, analisando a ossada e as cinzas (II, :387-400 / III, : 401-424)

23/09/1993 Requerimento do Procurador da República do MPF em Roraima, Franklin Rodrigues da Costa, pedindo que se reveja a vista dada aos autos à advogada dos Garimpeiros (III, :426)

24/09/1993 Ajuntado Laudos de Exame de Corpo de Delito (feitos em 03/09/1993) de uma criança indígena (:431/verso-435), do indígena Leiknã Yanomami (:436/verso-440) e do indígena Simão Yanomami (:441/verso-447), (III, :431-447).

24/09/1993 Ajuntada uma série de fotos, tiradas pelo médico da CCPY Claudio Oliveira, de indígenas segurando cabaças com cinzas. Há indicações, à caneta, das marcas de tiro neles, bem como uma descrição dos ferimentos (28/08/1993) (III, :448-453).

Sem Data Laudo Pericial (28/08/1993) do médico Claudio Oliveira, CCPY, sobre os ferimentos em duas crianças indígenas e em Reia e Simão Yanomami (III, :461).

25/09/1993 Ajuntado papéis em que depoentes e acusados escrevem, do próprio punho, o nome e/ou apelido daqueles que pensam terem participado do Massacre. As datas variam entre 06 e 09/09 de 1993. (III, :454-460/frente e verso)

29/09/1993 Ajuntada 10 fotografias, tiradas por Policiais Federais, de sobreviventes de Haximu e de malocas queimadas (III,:466-474).

29/09/1993 A cozinheira de garimpo Waldinéia Silva Almeida, ‘Ouriçada’, é qualificada indiretamente (III, :475).

162

30/09/1993 Encaminhamento, pelo Del. Cutrim, dos mandados de prisão ao Diretor da Divisão de Polícia Federal de Roraima (III, : 477).

30/09/1993 Relatório Final, feito pelo Del. Cutrim, do Inquérito Policial. A data de início é 19/08/1993 e a final é 30/09/1993. Ressalva-se que outros documentos ainda serão ajuntados aos autos e pede-se o indiciamento, por crime de genocídio, de todos os envolvidos (III, : 478-518).

04/10/1993 Pedido do MPF de conversão das prisões provisória em preventiva (III, :521-526).

18/10/1993 Certidão de Registro do Processo no Tribunal Regional Federal de Roraima (III, :563). Sem Data Ajuntamento do Laudo de Exame de Locais, datado de 08/09/1993 (III :546556).

06/10/1993 Decreto, escrito pelo Juiz Renato Martins, da prisão preventiva dos acusados Pedro e Emiliano (III, :528-530).

18/10/1993 Pedido de vista do Processo pelo advogado de Pedro e Emiliano, Elidoro Mendes da Silva (III, :539).

19/10/1993 Mandado de citação, feito pelo Juiz Renato Martins, de Pedro e Eliezio para Interrogatório Judicial no dia 26/10/1996 (IV, :619).

26/10/1996 Interrogatório Judicial do garimpeiro Pedro Emiliano Garcia (IV, :615-617).

27/10/1993 Concedida vista dos autos por 3 dias ao advogado Eliodoro Mendes da Silva (IV, :623).

04/10/1993 Pedido, pelo MPF, de vista dos autos para oferecimento da Denúncia (III, :519).

13/10/1993 Volta dos autos ao Juiz Renato Martins (III, :531).

Sem Data Ajuntamento dos Laudos de Exame nos Cartuchos e Projéteis, datado de 28/08/1993. (III, :543-545).

20/10/1993 Ajuntado o original do Laudo Pericial do Instituto de Medicina Legal e Antropologia Forense, analisando a ossada e as cinzas, datado de 20/08/1993(III, :560-600 – IV :601-611).

26/10/1996 Interrogatório Judicial do garimpeiro Eliezio Monteiro Neri (IV, :618-619).

26/10/1993 Citação, manuscrita pelo Juiz Renato Martins, dos réus para a 1ª Audiência (IV, :620)

30/10/1993 Defesa prévia e pedido de liberdade, assinada por Eliodoro Mendes da Silva e Maria Eliane Marques de Oliveira, de Pedro e Emiliano (IV, 624:634).

Sem data Ajuntado o Ofício do Adm. da Penitenciária Agrícola informando que Eliezio Neri tem problemas de saúde, datado de 01/10/1993 (IV, :635).

163

Sem data Ajuntado o Laudo Médico atestando os problemas de saúde de Eliezio Neri, datado de 29/09/1997 (IV, :636).

17/11/1993 Certidão informando a não realização do interrogatório judicial do garimpeiro Wilson Alves dos Santos e da cozinheira Waldinéia Silva Almeida, por não comparecimento dos dois últimos. (IV, :637).

19/11/1993 Despacho manuscrito do Juiz Renato Martins pedindo a citação de Juvenal Silva por edital e indeferindo o pedido de liberdade de Pedro e Eliezio (IV,:642). 24/11/1993 Defesa Prévia, assinada pelo Defensor Euflávio Dionízio Lima, de Waldinéia Silva Almeida e Wilson Alves dos Santos (IV: 647).

13/12/1993 Ata da 2ª Audiência (IV, :667).

23/11/1993 Concedida vista dos autos por 2 dias ao Assistente Jurídico da Defensoria Pública de Roraima, Eufrânio Lima Dionísio (IV, :623).

01/12/1993 Mandado de Intimação, assinado pelo Juiz Renato Martins, de réus e testemunhas para a 1ª Audiência de Instrução, marcada para 10/12/1993 (IV, :654)

09/12/1993 Certidão do Oficial de Justiça informando quem ele conseguiu intimar (IV, :655)

10/12/1993 Ofício ao Adm. da Penitenciária Agrícola solicitando a apresentação de Pedro e Emiliano para futura Audiência em 13/10/1993 (IV, :662).

22/11/1993 Edital de citação de Juvenal Dias (IV, :644).

19/11/1993 Contra-razões do MPF frente ao pedido de liberdade de Eliezio e Pedro; requerimento de citação por edital do garimpeiro Juvenal Silva, assinados pelo Procurador Franklin Rodrigues da Costa (IV: 640-641).

10/12/1993 Ata da 1ª Audiência de Instrução (IV, :656-657)

10/12/1993 Ofício ao Superintendente da Polícia Federal em Roraima, José Sidney Veras Lemos, pedindo colaboração da PF para a localização de réus e testemunhas (IV, : 663).

13/12/1993 Ofício ao Adm. da Penitenciária Agrícola solicitando a apresentação de Pedro e Emiliano para futura Audiência em 14/10/1993 (IV, :662).

03/12/1993 Vista dos autos, durante o mesmo dia, ao MPF (IV, :242).

10/12/1993 Testemunho judicial do garimpeiro Manoel José Santos Soares (IV, :658-660)

13/10/1993 Ajuntado aos autos o Ofício do Adm. Reg. da FUNAI de Roraima dizendo que é impossível localizar e levar as testemunhas indígenas na data da Audiência. (IV, :665). 13/12/1993 Relatório de Missão dos agentes da PF que tentaram localizar réus e testemunhas (IV, :671/verso).

164

14/12/1993 Ata da 3ª Audiência (IV, :672/verso).

14/12/1993 Prestação de Informação do indígena Japão Yanomami (IV, :673-677).

20/12/1993 Ofício da Defensoria Publicado de Roraima informando que foi designado a Defensora Walkiria Tertulino para atuar no caso (IV, :683). 22/12/1993 Vista dos autos ao MPF (IV, :692).

14/12/1993 Termo de Compromisso do intérprete Ivanildo Wawanawetery, funcionário da FUNAI (IV, :677).

22/12/1993 Ajuntado o Pedido de Revogação das Prisões Preventivas de Pedro Emiliano Garcia e Eliézio Monteiro Neri, assinado por Eliodoro Mendes, sem data legível (IV, : 686-688).

23/12/1993 Contra-razões do MPF frente ao Pedido de Revogação das Prisões de Pedro e Emiliano, assinado pelo Procurador Franklim Rodrigues da Costa (IV, :693687).

29/12/1993 Alvará de Soltura de Pedro Emiliano (IV, :702). 29/12/1993 Termo de Liberdade Provisória e Eliezio Neri (IV, :705).

Sem data

29/12/1993 Decisão do Juiz Renato Martins deferindo o Pedido de Revogação das Prisões de Pedro e Emiliano. (IV, :699700).

29/12/1993 Termo de Liberdade Provisória de Pedro Emiliano (IV, :703).

06/01/1994 Decretação, manuscrita pelo Juiz Renato Martins, de acusação à revelia de Juvenal Silva. (IV, :706).

21/01/1994

22/12/1993 Despacho do Juiz Renato Martins pedindo as contra-razões do MPF sobre o Pedido de Revogação das Prisões de Pedro e Emiliano, datado de 22/12/1993. (IV, :691).

29/12/1993 Alvará de Soltura de Emiliano Neri (IV, :704).

21/01/1994 Defesa Prévia e Pedido de Revogação da Prisão, apresentada por Elidoro Mendes, de Juvenal da Silva (IV, :708-710). 21/01/1994

165

Ajuntada a Procuração do foragido Juvenal da Silva, nomeando Eliodoro Mendes seu advogado (IV, :711).

27/12/1993 Vista dos autos ao MPF (IV, :715).

02/02/1194 Contra-razões do MPF sobre o Pedido de Revogação da Prisão de Juvenal da Silva (IV, :716-717).

03/02/1994 Carta Precatória de Renato Martins para a Comarca de Manaus, Amazonas, visando a inquirição da testemunha Antonio Alves. (IV, :719). 04/02/1994 Ata da 3ª Audiência (IV, :724).

Certidão de antecedentes criminais de Juvenal da Silva (IV, :712).

03/02/1994 Despacho de Renato Martins indeferindo o Pedido de Revogação da Prisão de Juvenal e ordenando Carta Precatória** para que o garimpeiro Antonio Alves da Cruz, ‘Rabo Grosso’, seja ouvido no Amazonas (IV, :718). 03/02/1994 Mandado de Intimação de réus e testemunhas (garimpeiros somente) para a 3ª Audiência, marcada para o dia 04/02/1994. (IV, :723).

04/02/1994 Ofício ao Adm. da FUNAI de Roraima pedindo informações de quando os indígenas Waythereoma Hwanxima e Paulo Yanomami poderão ser ouvidos em juízo (IV, :726)

Sem data Ajuntada a Procuração do foragido Francisco Alves, nomeando Eliodoro Mendes seu advogado (IV, :711).

Cópia, frente e verso, da identidade de Juvenal da Silva*. (IV, :713).

07/03/1994 Defesa Prévia, apresentada pelo advogado Elidoro Mendes da Silva, do garimpeiro Franciso Alves Rodrigues, ‘Chico Ceará’ (IV, :732)

21/03/1994 Ofício ao Adm. Regional da FUNAI solicitando o comparecimento dos indígenas Waythereoma Hwanxima e Paulo Yanomami na Audiência de 23/03/1994 (IV, :738).

21/03/1994 Mandado de Intimação de réus e testemunhas (indígenas) para a 4ª Audiência, datada para 23/03/1994 (IV, :750).

04/02/1994 Certidão do Oficial de Justiça informando quem ele conseguiu intimar (IV, :723 verso).

23/03/1994 Ata da 4ª Audiência (IV, :752)

Sem data Ajuntada a Carta Precatória de data 11/02/1994 com o testemunho em juízo do Garimpeiro Antonio Alves (IV, :740-749) 23/03/1994 Informação prestada em juízo por Waythereoma Hwanxima (IV, :753).

*

Nesse momento Juvenal ainda está foragido. Tal cópia foi apresentada por seu Advogado. Carta Precatória é o documento mandado por um juiz de determinada comarca para outro juiz de comarca diferente, a fim de que o último possa assessorar o primeiro a tomar o depoimento de uma testemunha que não resida no local onde o processo está em andamento.

**

166

23/03/1994 Informação prestada em juízo por Paulo Yanomami (IV: 754-755).

24/03/1998 Ofício ao Adm. da FUNAI para que Paulo Yanomami faça o reconhecimento de Pedro Emiliano (IV, :758)

29/03/1994 Despacho manuscrito do Juiz Renato Martins pedindo que o MPF indique outras testemunhas, já que as até então indicadas não foram encontradas (IV, :761). 20/04/1994 Como anexo do Ofício Anterior: Parecer Técnico do Antropólogo da Fundação Nacional Edgard Dias Magalhães de Saúde sobre a importância da devolução da ossada e cinzas. (IV: 765) 25/04/1994 Mandado de Intimação de réus e testemunhas (funcionários da PF) para a 5ª Audiência, marcada para 06/07/1994 (IV. :777).

29/03/1994 Pedido de vista do MPF (IV, :762)

20/04/1994 Ofício do MPF, escrito pelo Procurador Franklin Rodrigues da Costa, pedindo a devolução aos índios da ossada e cinzas periciada (IV, :763-764)

22/04/1994 Carta Precatória para a oitiva da testemunha Raimundo Soares Cutrim, Del. da PF em Rondônia (IV, :771).

09/05/1994 Certidão do Oficial de Justiça informando quem ele conseguiu intimar (IV, :777/verso).

20/05/1994 Expedição dos mandados de prisão para todos os então foragidos (IV, :789-800 - V, :801-803).

28/03/1994 Ofício do Adm. da FUNAI relatando que Paulo Yanomami está em local incomunicável (IV, :760).

25/04/1994 Despacho do Juiz Renato Martins pedindo que se oficie à PF para a devolução dos ossos e cinzas (IV, :770).

13/05/1994 Manifestação de Ação Criminal do MPF pedindo: novos mandados de prisão para os foragidos; que se oficie à PF para fazer diligências a fim de efetivar tais prisões; não há condições de substituir testemunhas (IV, :781-786).

20/05/1994 Mandado de Intimação para a 5ª Audiência, marcada para 06/07/1994. (V, :807).

07/06/1994 Aditamento da Denúncia feita pelo MPF, agora trazendo os nomes dos garimpeiros Francisco Alves Rodrigues, ‘Chico Ceará’, e João Pereira de Morais, ‘João Neto’ (V, :811-817).

03/06/1994 Certidão em que a testemunha Eva Alves dos Santos, garimpeira, retifica seu endereço (V, :810).

30/06/1994 Despacho do Juiz Renato Martins pedindo a citação de Francisco Alves e João Pereira (V, :818).

06/07/1994 Ata da 5ª Audiência (V, :819)

167

06/07/1994 Testemunho em juízo do 1º Del. do Inquérito, José Sidney Vera Lemos (V, :820-821). 26/07/1994 Novo ofício do TRF à PF pedindo a devolução da ossada da índia (V, :832).

06/07/1994 Testemunho em juízo da garimpeira Eva Alves de Souza (V, :822).

09/08/1994 Despacho do Juiz Renato Martins intimando o advogado Eliodoro a dar os endereços atuais dos réus (V, :835)

01/09/1994 Despacho pedindo o retorno da Carta Precatória enviada para oitiva do Del. Raimundo Cutrim (V, :840).

01/09/1994 Ajuntada a Carta Precatória com um resumo do caso (Denúncia e Defesas prévias), além do testemunho em juízo do Del. Cutrim (V, :841-926)

12/09/1994 Certidão do TRF/RR dizendo que a Audiência desse dia não se realizou porque as testemunhas não apareceram (V, :931). 21/09/1993 Despacho manuscrito do juiz Renato Martins marcando Audiência para o dia 23/09/1994 (V, :936). 06/10/1994 Edital de Citação de Francisco Alves como réu do processo (V, :942).

06/07/1994 Ajuntada a Prestação de Informações de um agente da PF (datada de 05/07/1994) dando notícias de que não se conseguiu achar quaisquer testemunhas (V, :826).

16/09/1994 Certidão em que Basílio Ferreira atualiza seu endereço (V, :936).

02/09/1994 Mandado de Condução para a oitiva das testemunhas Basílio Ferreira e Eunice Silva no dia 12/09/1994 (garimpeiros) (V, :929).

19/09/1994 Representação do MPF (assinada por Franklin Rodrigues da Costa) pedindo a prisão provisória de Basílio Ferreira por desobediência à Justiça (V, :932-933).

23/09/1994 Certidão do TRF/RR informando a não realização da Audiência porque a testemunha (Basílio) não compareceu (V, :938).

06/10/1994 Mandado de Notificação para o interrogatório em juízo de Francisco Alves e João Pereira em 11/11/1994 (V, :944).

31/10/1994

29/08/1994 Informação, pelo advogado Elidoro Mendes, do novo endereço dos réus – uma fazenda sua. (V, :837-838)

02/11/1994

06/10/1994 Encaminhamento do Mandado de Prisão contra Basílio Ferreira à PF/RR (V, :940).

31/10/1994 Ofício de José Sydney Vera Lemos, Superintendente da PF/RR, comunicando a prisão de Basílio Ferreira. (V, :940). 02/11/1994

168

Despacho manuscrito do juiz Renato Martins determinando a oitiva de Basílio nos próximos 5 dias ou sua soltura (V, :940).

Alvará de Soltura de Basílio Ferreira (V, :948).

03/11/1994 Mandado de Intimação para a 6ª Audiência, marcada para 08/11/1994; só é intimado Basílio Ferreira (V, :951). 08/11/1994 Testemunho em Juízo do garimpeiro Basílio Ferreira (V, :955-958).

07/11/1994 Vista dos autos ao MPF por um dia (V, :953).

10/11/1994 Ajuntado o Ofício de José Nascimento, Diretor Regional da Fundação Nacional de Saúde, agradecendo a devolução da ossada da índia, fato ocorrido em 07/09/1994 (V, :959).

11/11/1994 Despacho manuscrito do Juiz Renato Martins mandando a intimação à revelia de Francisco e João (V, :960).

02/12/1994 Defesa prévia, escrita por Elidoro Mendes, de Francisco e João (V, :963).

13/12/1994 Certidão do Diretor de Secretaria Paulo Cezar dando informações sobre o paradeiro de testemunhas (V, :965).

15/12/1994 Enviada Carta Precatória para a oitiva do Del. da PF Miguel Ângelo Pellicel (V, :969).

08/11/1994 Ata da 6ª Audiência (V, :954).

11/11/1994 Certidão do TRF/RR dizendo que a Audiência desse dia não se realizou porque Francisco Alves e João Pereira não compareceram (V, :960). 07/12/1994 Despacho manuscrito do Juiz Renato Martins pedindo que se marque data para ouvir o restante das testemunhas (V, :964).

14/12/1994 Ofício da CCPY dando o endereço de Bruce Albert na França (V, :966).

15/12/1994 Mandando de Intimação para o adv. Elidoro Mendes, pedindo justificativas para ouvir Albert (V, :971)

09/01/1995 Ofício do Adm. da FUNAI/RR dizendo não ter sido possível localizar Sansão e Simão Yanomami (V, :974).

Termo de Compromisso de Basílio para o comparecimento em todos os atos processuais (V, :949).

14/12/1994 Vista dos autos, por um dia, ao MPF (V, :970).

15/12/1994 Ofício ao Adm. Regional da FUNAI/RR pedindo cooperação para a oitiva dos índios Sansão e Simão Yanomami no dia 10/01/1995 (V, :972).

09/01/1995 Mandado de Intimação para a 7ª Audiência – intimadas testemunhas de defesa (V, :977-978).

10/01/1995 Ata da 7ª Audiência (V, :981).

169

10/01/1995 Depoimento em juízo do dono de avião José Altino Machado (V, :982/verso-983).

10/01/1994 Depoimento em juízo do funcionário da CCPY Jorge André Gurjão Vieira (V, : 984-984/verso)

10/01/1995 Depoimento em juízo da garimpeira Eunice da Silva Paiva (V, :985).

10/01/1995 Despacho manuscrito de do Juiz Renato Martins mandando que se comunique à defesa para substituir as testemunhas não localizadas (V, :986)

19/01/1995 Ajuntado o Ofício da Justiça Federal do Rio Grande do Sul comunicando andamentos para o cumprimento da Carta Precatória para a oitiva do Del. Pellicel (V, :987)

06/02/1995 Ofício da Justiça Federal do RS comunicando a data (14/03/1995) para a oitiva do Del. Pellicel (V, :991)

07/02/1995 Vista dos autos para o MPF (V, :992)

13/02/1995 Recebimento dos autos pela Justiça Federal do RS para o cumprimento da Carta Precatória visando a oitiva do Del. Pellicel (V, : 999).

14/03/1995 Testemunho em juízo do Del. Pellicel (VI, 1004-1006).

22/03/1995 Ofício remetendo a Carta Precatória do Del. Pellicel de volta à Roraima (VI, :1007)

03/05/1995 Pedido do TRF/RR dos antecedentes criminais de Pedro Garcia, Eliezio Monteiro, Francisco Alves, João Pereira, Waldinéia Silva e Wilson Alves (VI, : 1011).

16/05/1995 Manifestação do MPF, assinada pelo Procurador Franklin Rodrigues da Costa, pedindo, entre outras coisas, relatório à PF sobre diligência para localizar acusados e testemunhas (VI, :1016-1018)

14/03/1995 Termo de Audiência da oitiva do Del. Pellicel (VI, 1003).

28/04/1995 Vista dos autos ao MPF e ao advogado Elidoro Mendes (VI, :1010).

03/05/1995 Nada consta criminal dos formalmente acusados (VI, : 1012).

09/05/1995 Vista dos autos ao MPF por 10 dias (VI, : 1015).

22/05/1995 Despacho do Juiz Renato Martins dando visto dos autos por um dia ao advogado Elidoro Martins (VI, : 1019).

19/07/1995 Vista dos autos à Defensoria Pública (VI, :1023).

170

08/09/1995 Pedido de Promoção, feito pelo MPF na figura do Procurador Osório Barbosa, do Defensor que assinou as vistas de 19/07/1995 para defensor legítimo dos réus (VI, :1026). 06/12/1995 Ofício da PF ao TRF/RR comunicando o encaminhamento dos cartuchos e cápsulas periciados anteriormente. (VI, : 1030). 30/01/1996 Vista dos autos ao MPF por um dia (VI, :1038).

18/12/1995 Pedido do MPF, pelo Procurador Osório Barbosa, do ajuntamento de um artigo escrito pelo antropólogo Bruce Albert na Folha de São Paulo e de uma fita de vídeo produzida pela PF (VI, :1032).

05/02/1996 Autos Complementares da PF, onde diz-se que não se achou nenhuma nova testemunha ou acusado (VI, :1039-1054).

14/03/1996 Pedido de vista da advogada Adriana Souto Maior do CIR (Conselho Indigenista de Roraima). (VI, :1058). 13/05/1996 Ofício do Adm. Regional da FUNAI, Manoel Tavares, dizendo que encaminha 4 indígenas para a Audiência (VI, :1067).

22/03/1996 Ofício do TRF/RR para o Adm. Regional da FUNAI, Suamir Percílio pedindo cooperação na localização de indígenas (VI, :1056).

22/03/1996 Mandado de Intimação para testemunhas indígenas e garimpeiras para a audiência de 13/05/1995 (VI, :10621063).

13/05/1996 Informação em juízo de da indígena Camila Yanomami, ‘Raiane’ (VI, :1073-1074).

13/05/1996

28/09/1995 Vista dos autos ao MPF (VI, :1027).

09/01/1996 Certidão do TRF/RR de que a fita de vídeo encontra-se na Secretaria responsável pelos autos (VI, :1038)

13/05/1996 Ata da 8ª Audiência, agora presidida por Itagiba Catta Preta (VI, :10641065)

13/05/1996 Relatório de Missão da Polícia Federal, onde se diz que se localizou Antonieta Mota e Silvana Santo, garimpeiras; não se localizou Maria Dalva (IV, :13/05/116).

13/05/1996 Testemunho em juízo de Claudio Esteves de Oliveira, médico da CCPY (VI, :1071-1072).

13/05/1996

28/09/1995 Despacho manuscrito do Juiz Vallisney de Souza Oliveira, deferindo o pedido do MPF de 08/09/1995 (VI, :1026)

13/05/1996 Termo de Compromisso do intérprete Ivanildo Wawanwetery (VI, :1070). 13/05/1996 Informação em juízo do indígena “Leikima ou Reia” (VI, :10751077). 13/05/1996

171

Informação em juízo do indígena Simão Yanomami (VI, :1078-1079).

Testemunho em juízo de Silvania Santos Menezes, ‘Silvinha’ (VI, :1080-1083).

13/05/1996 Depoimento em juízo de Jorge André Gurjão Vieira, enfermeiro da CCPY (VI, :1087-1088).

24/05/1996 Concessão de vista às partes para que elas escrevam suas alegações (VI, :1091).

24/05/1996 Pedido do MPF para que se dispense as testemunhas não ouvidas e as diligências da PF não cumpridas até então (VI, :1090)

23/06/1996 Alegações Finais do MPF, assinada pelos procuradores Carlos Federico Santos, Franklin Rodrigues da Costa, Luciano Mariz Maia e Osório Silva Barbosa Sobrinho (VI, :1093-1140)

21/08/1996 Vista dos autos ao Defensor Público Marcos Carvalho (VI, :1144).

13/08/1996 Nomeação, pelo Juiz Catta Pretta, de novo Defensor Público, Marcos Antonio Carvalho de Souza (VI, :1142).

16/09/1996 Alegações Finais do Defensor Público Marcos Antonio Carvalho em favor de Waldinéia Silva e Wilson Alves (VI, : 1145-1150).

29/09/1996 Alegações Finais do Advogado de Pedro, Eliezio, João, Francisco e Juvenal, Elidoro Mendes (VI, :1154-1157). 24/10/1996 Pedido do Advogado Elidoro Mendes para que se estenda suas Alegações Finais a João, Francisco e Juvenal (VI, :1161).

*

14/05/1996 Vista dos autos ao MPF (VI, :1089).

Testemunho em juízo de Antonieta Mota Santos (VI, :1084-1086).

24/09/1996 Visto dos autos ao advogado Elidoro Mendes (VI, :1153)

30/09/1996 Certidão de Diretor de Secretaria do TRF/RR atestando que Eliodoro esqueceu, nas Alegações Finais, os nomes de João, Francisco e Juvenal (VI, :1158). 19/12/1996 Sentença, em primeira instância, de Itagiba Catta Pretta Neto, Juiz Federal Substituo do TRF/RR (VI, :1163-1200 / VII: 12001-1207)*.

23/10/1996 Vista dos Autos, por um dia, ao advogado Elidoro Mendes (VI, :1160).

19/12/1996 Mandado de Prisão contra Juvenal da Silva, expedido por Catta Preta (VII, :1211).

Pedro, Eliezio, Juvenal, Francisco e João pegam, cada um, aproximadamente 20 anos de prisão. Waldinéia e Wilson são absolvidos.

172

19/12/1996 Mandado de Prisão contra Francisco Alves Rodrigues, expedido por Catta Preta (VII, :1212).

19/12/1996 Mandado de Prisão contra João Pereira, expedido por Catta Preta (VII, :1215).

07/01/1997 Vista dos Autos ao MPF (VII, :1219).

19/12/1996 Mandado de Prisão contra Eliezio Neri, expedido por Catta Preta (VII, :1213).

19/12/1996 Ofício do Delegado da PF, William Victor de Almeida Ramos, comunicando a prisão de João Pereira de Morais (VII, :1217).

07/01/1997 Recurso à próxima instância do TRF e Pedido de Liberdade Provisória a favor de João Pereira, assinado por Elidoro Mendes, (VII, :1220-1227).

10/01/1997 Vista dos Autos ao MPF (VII, :1460).

19/12/1996 Mandado de Prisão contra Pedro Garcia, expedido por Catta Preta (VII, :1214).

(Anexo ao anterior) Cópia da Identidade de João Pereira, frente e verso (VI, :1218).

28/04/1997 Desentranhamento das folhas 1228-1459, feita pela Supervisora da 1ª Vara do TRF/RR a pedido do Juiz responsável, Carlos Alberto – folhas ajuntadas como anexos no Recurso de Elidoro (VII, : 1228)

15/01/1997 Recurso do MPF à próxima instância, pedindo a condenação de Waldinéia e Wilson e a consideração de crimes não considerados pelo Juiz Catta Preta na Sentença, assinado por Marcos Vinicius Aguiar Macedo (VI, :1461).

21/02/1997 Ofício do TRF/RR pedindo informações à Superintende da PF Sueli Goereschi sobre os mandados de prisão de Pedro, Francisco e Eliézio (VII,:1466). (Anexo ao Anterior) Relatório de Missão de dois Agentes da PF, dando informações sobre a paradeiro dos foragidos (VII, : 1470-1471). 28/04/1994

11/04/1997 Despacho do Juiz Carlos Alberto pedindo que se reitere o Ofício anterior à PF (VII, :1468).

18/04/1997 Pedido do Diretor da Penitenciária Agrícola, Arnóbio Venício Lima Bessa, pedindo ao TRF/RR cópias da Sentença e Carta Guia de João Pereira (VII, : 1472). 28/04/1997

??/01/1997 Vista dos Autos ao MPF (VI, :1464).

18/04/1997 Ofício da Superintende da PF, Sueli Goereschi1, informando ao TRF/RR que nenhum mandado foi até então cumprido (VII, :1464) 23/04/1997 Certidão do TRF/RR informando que, devido aos Recursos, a Carta Guia de João não pode ser mandada (VII, :1473). 30/04/1997

173

Despacho e Decisão do Juiz Carlos Alberto, pedindo o desentramento de folhas dos autos e não recebendo o recurso dos condenados foragidos (VII, : 1474-1475)

18/05/1997 Contra-razões do MPF ao, assinada pelo Procurador Ageu Florêncio da Cunha, ao Recurso anterior de Elidoro Mendes (VII, :1482-1520).

Requerimento do advogado Roberto Garcia Lopes Pagliuso, subprocurado por Elidoro Mendes, pedindo cópias dos autos (VII, : 1476).

??/05/1997 Despacho do Juiz Carlos Alberto Simões para que os autos sejam remetidos à outra instância do TRF (Brasília), admitindo os Recursos (VII, :1521).

05/06/1997 Pedido do MPF, assinado pelos Procuradores Franklin da Costa e Carlos Frederico Santos, para que se ajunte, no TRF/BSB, a fita de vídeo que mostra as malocas destruídas (VII, :1524)*. 01/09/1997 Recurso do MPF à nova instância do TRF (BSB), assinado por Carlos Frederico Santos, Franklin Rodrigues da Costa e Luciano Mariz Maria (VII, :1528-1568). 21/10/1997 Despacho manuscrito do Juiz do TRF/BSB, Tourinho Neto, mandando os acusados apresentarem contra-razões ao Recurso anterior do MPF (VII, :1574).

22/05/1997 Termo de Distribuição do Processo na nova instância (TRF/BSB); o Juiz Tourinho Neto, da 3ª Turma, é o Relator (VII, :1522).

18/07/1997 Tourinho Neto defere, em despacho manuscrito, o pedido do MPF de anexar a fita de vídeo (VI, :1525).

20/08/1997 Despacho manuscrito de Tourinho Neto dando vista dos autos ao MPF (VII, :1527).

02/09/1997 Ofício do Juiz Carlos Alberto (TRF/RR) para o Juiz Tourinho Neto (TRF/BSB) comunicando a prisão de Pedro Garcia (:1570).

10/11/1997 Requerimento do MPF, assinado pelo procurador Franklin da Costa, pedindo que as contra-razões dos acusados sejam ajuntadas por Carta Precatória à Boa Vista (VII, :1576).

19/12/1997

*

Ofício do TRF/RR à Arnóbio Venício, Diretor da Penitenciária Agrícola, encaminhando a Sentença de João Pereira (VII, :1479).

14/01/1998

08/09/1997 Vista dos autos ao MPF (VII, :1521).

20/11/1997 Despacho de Tourinho Neto deferindo o Requerimento anterior do MPF (VII, :1577) 15/01/1998

Esse documento é o primeiro do MPF que é assinado em Brasília.

174

Autos conclusos ao Juiz Carlos Alberto, TRF/RR (VII, :1978).

Contra-razões dos acusados ao Recurso anterior do MPF, assinada pelo Advogado Elidoro Mendes (VII, :1579-1581).

28/01/1998 Ofício do TRF/RR ao TRF/BSB atestando o encaminhamento da fita de vídeo( VII, :1583). 30/06/1998 Relatório dos Recursos impetrados ao TRF/BSB, assinado pelo Juiz Tourinho Neto (VIII, 16091641).

17/02/1998 Vista dos autos ao MPF (VII, :1585).

Termo de Remessa dos autos ao TRF/BSB (VII, :1582)

18/02/1998 Parecer da Procuradora Regional da República da 1ª Região, Elizeta Maria Paiva Ramos, sobre o Recurso do MPF (VII, :1586-1607).

30/06/1998 Voto do Relator dos Recursos ao TRF/BSB, o Juiz Tourinho Neto, em desfavor dos acusados (VIII, :16461696).

30/06/1998 Voto Complementar do Relator dos Recursos ao TRF/BSB, Juiz Tourinho Neto, em favor dos acusados (VIII, :16971698).

30/06/1998 Voto do Juiz Revisor dos Recursos ao TRF/BSB, Juiz Osmar Tognolo, dando competência ao Tribunal do Júri para julgamento do caso (VIII, :1701).

30/06/1998 Ementa do Julgamento no TRF/BSB, mostrando que todo o resto da 3ª Turma votara com Osmar Tognolo; cancela-se a Sentença de Catta Preta (VII, :1702).

18/11/1998 Embargo de Declarações do MPF, assinada pelos Procuradores Franklin da Costa, Luciano Maia e Deborah Duprat (VIII, :1706-1711)*.

15/12/1998 Voto do Juiz Osmar Tognolo sobre o Embargo de Declarações do MPF, indeferindo-o (VIII, :1715).

05/04/1999

05/04/1999

16/11/1998 Vista dos Autos ao MPF (VIII, :1705).

15/12/1998 Certidão de Julgamento, pela 3ª Turma do TRF/BSB, do Embargo de Declarações do MPF, indeferindo-o (VIII, :1716). 12/04/1999

*

Embargo de Declaração é o último Recurso possível em determinado tribunal, no caso o TRF 2ª Região (que abarca Brasília e Roraima, entre outros Estados). Tal Recurso visa elucidar algum ponto obscuro levantado por uma das partes, mas ignorado pelos julgadores em uma decisão judicial. Fui informado, por um analista judicial, que quase nunca tal Recurso prospera.

175

Juntado aos Autos o Recurso Especial ao STJ, apresentado pelo MPF (VIII, :17221742).

Juntado aos Autos o Recurso Extraordinário ao STF, apresentado pelo MPF (VIII, :1744-1763).

19/04/1999 Ajuntada as Contra-Razões de Pedro de Assis ao Recurso Especial do MPF (VIII, :1765-1768).

07/06/1999 Remessa dos Autos do TRF/BSB para o STJ (VIII, :1784).

19/04/1999 Juntada as Contra-Razões de Pedro de Assis ao Recurso Extraordinário do MPF (VIII, :17701773).

04/07/1999 Termo de Recebimento dos Autos no STJ (VIII, :1785).

01/12/1999 Parecer do MPF, assinado pelo Subprocurador Geral da República, Antonio Augusto César, opininando pelo deferimento do Recurso (VIII, :1790-1803) (Anexo ao Anterior) Termo de Declarações à PF de Luzilene Morais da Silva, companheira de Francisco (VIII, :1811).

Vistas dos Autos Pedro Luiz de Assis para as Contra-Razões dos Recursos no TRF/BSB (VIII, :1764). 10/05/1999 Despachos do Juiz Planto Ribeiro do TRF/BSB admitindo os Recursos do MPF e mandando os Autos ao STJ (VIII, :1775-1778)

28/07/1999 Distribuição dos autos ao Ministro do STJ Jorge Scartezzini, integrante da 5ª Turma, Relator do Recurso Especial do MPF (VIII, :1789).

02/12/1999 Vista dos Autos ao MPF (VIII, :1804).

02/12/1999 Ajuntada a Certidão de Óbito de Francisco Alves Rodrigues, o ‘Chico Ceará’, falecido em 18/07/1999 (VIII, :1807)

02/12/1999 Ajuntado a Petição de cópias do Advogado de Pedro Garcia, Edir Ribeiro da Costa (VIII, :1814-1815).

09/12/1999 Pedido do MPF, assinado pelo Subprocurador Geral da República Antonio Augusto, para que não se envie cópias dos Autos à Edir, pois o últimos não é defensor legal de Pedro (VIII, : 1819)

17/02/2000 Pedido de Liberdade Provisória, assinado por Pedro Luis de Assis, de João Pereira (VIII, :1825-1830).

03/12/1999 Vista dos Autos ao MPF (VIII, :1817).

17/04/2000 Contra-Razões do MPF ao Pedido de Liberdade anterior (IX, :1839-1840).

176

29/07/2000 Petição da FUNAI, assinada pela Procuradora Geral desse órgão, Tânia Barreto, para que a FUNAI seja habilitada Assistente de Acusação (IX, :1847). 19/09/2000 Certidão do Julgamento do Recurso Especial do MPF; a 5ª Turma deferiu o Recurso e cancelou a decisão da 3ª Turma do TRF (IX, :1868). 02//12/2000 Ajuntada a Petição de Saída Temporária de João Pereira para o Natal, assinada pelo Advogado Antonio Claudio Theotônio (IX, :1894-1895).

04/12/2000 Contra Razões do MPF para o indeferimento da Saída Temporária de João Pereira (IX, :19051906).

31//10/2000 Embargo de Declarações de Pedro de Assis ao STJ (IX, :1873-1876).

19/09/2000 Voto do Ministro Jorge Scartezzini (IX, :18531865).

07//11/2000 Recurso Extraordinário ao STF escrito pelo Advogado dos acusados, Pedro de Assis (IX, :1878-1888).

(Anexo ao Anterior) Certidão de Nascimento dos 3 Filhos de João Pereira (IX, :1899-1901).

06/12/2000 Certidão do TRF/RR de que o caso de João ainda não transitou em julgado (IX, :1907).

22/05/2001 Relatório e Voto do Ministro do STJ Jorge Scartezzini sobre o Embargo de Declaração de Pedro de Assis, indeferindo-o (IX, : 1921-1928).

29/03/2002

19/09/2000 Relatório, à 5ª Quinta Turma do STJ, do Ministro Jorge Scartezzini sobre os Autos (IX, :1850-1852).

Sem Data Legível Vista dos Autos ao MPF (IX, : 1903).

06/12/2000 Certidão do STJ fazendo constar Davi Kopenawa Yanomami como Assistnte do MPF no Processo em foco (IX, :1919)

22/05/2001 Certidão de Julgamento da 5ª Turma sobre o Embargo de Declarações de Pedro de Assis, votando todos como o relator (IX, :1929).

21/06/2002

28/08/2001 Nova Cópia do Recurso Extraordinário de Pedro de Assis ao STF (IX, :1934-1944).

07/08/2002

177

Decisão do então presidente do STJ, Ministro Edson Vidigal, admitindo o Recurso Extraordinário dos acusados e mandando os Autos ao STF (IX, :1966-1968).

12/08/2002 Recebimento dos Autos no Gabinete do Ministro do STF Sydney Sanches, então Relator (IX, :1972).

Termo de Remessa dos Autos ao STF (IX, :1970)

12/08/2002 Parecer do MPF pelo não conhecimento do Recurso Extraordinário, assinado pelo Subprocurador Geral da República, Wagner Natal Batista (IX, :1974-1985).

28/07/2003 Termo de Recebimento dos Autos no Gabinete do Min. Cezar Peluso, agora Relator (IX, 2002).

Termo de Recebimento dos Autos no STF (IX, :1971)

06/05/2003 Decisão do STF, assinada pelo então Presidente Min. Marco Aurélio, mandando que se redistribua os Autos a outro Relator, pois o Min. Sydney Sanches se aposentara (IX, :1987-1988).

27/05/2004 Despacho do Min. Cezar Peluso mandando desentranhar os volumes 1 e 2 dos apensos, pois são Carta Rogatória não cumprida (IX, 2004).

24/04/2004 Petição de João Pereira, em primeira pessoa, pedindo adiantamento no Julgamento (IX, 2010).

08/04/2005 Nova Petição, assinada em primeira pessoa, de João Pereira pedindo rapidez no Julgamento (IX, :2025).

02/08/2005 Mandando de Intimação do STF para as partes, informando que o julgamento foi incluído em pauta (IX, 2035-2036).

20/09/2005 Certidão de Julgamento, enviando os Autos para apreciamento do Tribunal Pleno do STF* (IX, :2054).

03/08/2006 Certidão de Julgamento :”O Tribunal, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello. Plenário, 03.08.2006.” (IX, :2054).

*

20/09/2005 Relatório do Ministro Cezar Peluso, da 1ª Turma, sobre o Recurso Extraordinário dos Acusados (IX, :2037-2041).

O Pleno é a reunião das duas turmas do STF.

178

Bibliografia

I. Bibliografia de referência

AZEVEDO, Ana Lúcia Lobato de. 1998 “A participação do poder judiciário na definição da terra indígena”. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco (org.). Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Contra Capa: Rio de Janeiro.

BARTH, Fredrik. 1998 “Os grupos étnicos e suas fronteiras”. In: POUTIGNAT, Philipe & STREIFFFENART, Jocelyne (org.). Teorias da etnicidade. São Paulo: Fundação Editora da UNESP.

BOLTANSKI, Luc. 1993 La souffrance a distance: morale humanitaire, médias et politique. Paris: Éditions Métailié. 1984 “La denonciation”. Actes de la recherche em sciences sociales, n. 51, 03-40.

BOURDIEU, Pierre. 1986 “La force du droit: elements pour une sociologie du champ juridique”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 64, :2-19.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto.

2001 Direito legal e insulto moral:dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relumé Dumará.

DUMONT, Louis. 2000 O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco. 1997 Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Edusp.

DUPRAT, Deborah. 2002 “O Estado Pluriétnico”. In: SOUZA LIMA, Antonio & BARROSO-HOFFMAN, Maria. Além da tutela: bases para uma nova política indigenista III.

FOUCAULT, Michel. 2006. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. 1996. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU.

GLUCKMAN, Max. 1967. “The judicial process among the Barotse” In: BOHANNAN, Paul (ed.). Law and Warfare: studies in the anthropology of conflict. New York: The Natural History Press. 1963 “The reasonable man in Barotse Law”. In: ___. Order and Rebellion in Tribal Africa. New York: The Free Press of Glencoe. 1941

180

“The kingdom of the Zulu of South Africa”. In: FORTES. Mayer & EVANSPRITCHARD, E.E. (eds.). African Political Systems. London/New York/Toronto: International African Institute & Oxford University Press.

GOODY, Jack. 1986 The logic of writing and the organization of society. Cambridge: Cambridge University Press.

HERZFELD, Michael. 1997 Cultural Intimacy: social poetics in the national-state. London: Routledge, 1997. 2004 The body impolitic: artisans and artifice in the global hierarchy of value. Chicago: The Chicago University Press.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. 1999 “Uma etnologia dos índios misturados: situação colonial, territorialização e fluxos culturais.”. In: ___. (org.). A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa.

SIMMEL, Georg. 1964 “The triad”. In: WOLFF, Kurt H. (ed.). The sociology of Georg Simmel. New York/London: The Free Press. 1955 “The sociological nature of conflict”. Conflict/ The Web of Group-Affiliations. London/New York: The Free Press.

MOORE, Sally Falk.

181

1978 Law as process: an anthropological approach. London: Routledge & Kegan Paul.

SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. 1995 Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes. 1988 “A identificação como categoria histórica”. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. (org.). Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Contra Capa: Rio de Janeiro. 1997 “Da guerra de conquista ao poder tutelar- elementos sobre a relação entre Estado Nacional e Povos Indígenas no Brasil republicano”. In: MONTEIRO, John Manuel & NOGUEIRA, Francisca L. (coord.). Confronto de culturas: conquista, resistência, transformação. São Paulo: EDUSP, 1997.

THOMPSON, Edward P. 1987 Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

VIANNA, Adriana. 2002 Limites da menoridade. Tese de doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ.

WEBER, Max. 1999. “Sociologia do direito”. In: ___. Economia e sociedade. Brasília: EDUNB, v. II.

II.Fontes documentais:

182

* Processo Haximu Processo Criminal fotocopiado no Supremo Tribunal Federal e na 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal durante o último bimestre de 2006.

* Constituição da República Federativa do Brasil Retirada da página oficial da Presidência da República: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm, em 01/06/2006.

* Código Penal Brasileiro Retirado da página oficial da Presidência da República: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm, em 18/07/2006.

* Código de Processo Penal Brasileiro Retirado da página oficial da Presidência da República: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm, em 11/09/2006

* Lei n. 2889/56 (que define o Crime de Genocídio no Brasil). Retirada da página oficial da Presidência da http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L2889.htm, em 18/7/2006

República:

* Lei n.7960/89 (que define a Prisão Temporária no Brasil) Retirada da página oficial da Presidência da República: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L7960.htm em 22/11/2006

* Estatuto do Índio

183

Retirado da página oficial da Fundação Nacional do Índio: http://www.funai.gov.br/quem/legislacao/estatuto_indio.html, em 01/06/06

* Arquivo do Projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil Retirados, em parte, do arquivo localizado no Laboratório de Pesquisa em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, e, em parte, das digitalições disponíveis na página eletrônica do mesmo Laboratório: http://www.laced.mn.ufrj.br/produtos/textos/textos_online/publicacoes_peti.htm, em 19/01/2007. Periódicos diretamente citados: CEDI. Aconteceu. anos de 1990, 1991, 1992 e parte de 1993. ISA. Povos indígenas no Brasil - 2001-2005. 2006.

184

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.