O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo. Resultados de uma intervenção

Share Embed


Descrição do Produto

O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo resultados de uma intervenção

Bruno M. Magalhães*

Resumo – No âmbito da intervenção arqueológica e antropológica na igreja matriz de Torre de Moncorvo, construída no século XVI, foram recuperados 2 esqueletos articulados, 511 ossos humanos soltos e espólio arqueológico bastante fragmentado. Ambos os indivíduos foram inumados em decúbito dorsal, um com orientação canónica oeste-este e o outro com orientação este-oeste. Foi obtido um número mínimo de 4 indivíduos adultos e não foram identificadas lesões patológicas. Apesar da pequena área escavada, foi possível perceber que, muito provavelmente, o antigo cemitério local circundaria a igreja matriz, tal como aconteceu em inúmeros cemitérios um pouco por todo o país até ao século XIX. Palavras-chave – Cemitério; Adro da igreja; Enterramentos; Ossos humanos; Espólio arqueológico. Abstract – During the archaeological and anthropological excavation carried out at the church of Torre de Moncorvo, built in the 16th century, two articulated skeletons, 511 commingled bones, and fragmented archaeological artifacts were recovered. Both individuals were buried in the supine position, with west-east and east-west orientations. A minimum number of four adult individuals were recovered, and no pathological lesions were identified. Despite the small area excavated, it was possible to understand that the graveyard was probably located around the entire church, as it happened in numerous graveyards all over the country until the 19th century. Keywords – Graveyard; Burials; Human bones; Archaeological assets.

_______________ * CIAS (Centro de Investigação em Antropologia e Saúde), Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra. Email: [email protected] Revista CEPIHS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social), 6, 2016, 391-407

Bruno M. Magalhães

A igreja e o adro da matriz de Torre de Moncorvo

A 12 de abril de 1285 D. Dinis outorgou carta de foral a Torre de Moncorvo1. A atual igreja matriz daquele local, com orago a Nossa Senhora da Conceição, não terá sido, no entanto, a primeira a ser ali construída como local de culto para a sua população. Apesar de não gozar ainda de autonomia atribuída pelo rei, já em 1258 é referida a existência de uma pequena povoação com aquele nome provida de igreja dedicada a São Tiago Maior2,3. Esta igreja localizar-se-ia a alguma distância de onde se edificou a matriz, mais precisamente no local do atual cemitério público4. A atual igreja matriz terá sido erguida no local de um outro templo, a igreja de Santa Maria, construída já durante o século XIV. As obras de construção da igreja de Nossa Senhora da Conceição ter-se-ão iniciado durante os finais da primeira década do século XVI e terão terminado apenas no século seguinte5,6,7. O edifício foi construído em cantaria granítica com corpo retangular e capela-mor com idêntica forma, ladeada por dois absidíolos de planta semicircular. O seu corpo interior é organizado por quatro pares de colunas que o dividem em três naves com o da entrada principal a corresponder ao espaço onde se localiza o coro8. Não tão frequente é a orientação da igreja, com a capela-mor virada a poente, apresentando duas capelas colaterais com os José Marques, “Moncorvo e os seus antecedentes no contexto transmontano, na Idade Média”, in Fernando de Sousa (coord.), Moncorvo. Da tradição à modernidade, Porto, Edições Afrontamento/CEPESE, 2009, p. 31. 2 Carlos d’Abreu, “A criação do concelho de Torre de Moncorvo, construção da fortaleza na sua sede e respetiva forma urbana”, in Mário Jorge Barroca (coord.), Carlos Alberto Ferreira de Almeida: in Memoriam, vol. 1, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999, p. 24. 3 Carlos d’Abreu, “As igrejas da vila de Torre de Moncorvo com estatuto de matriz (séculos XIII-XVIII)”, in Revista Douro – Estudos & Documentos, IV(8), Porto, GEHVID/FLUP, 1999, p. 83. 4 Idem, ibidem. 5 Idem, p. 87. 6 Luís Alexandre Rodrigues, “O programa arquitectónico da matriz de Moncorvo e a demorada afirmação da arte barroca no distrito de Bragança”, in Luís Alexandre Rodrigues (coord.), O Património histórico-cultural da região Bragança/Zamora, Porto, CEPESE/Edições Afronta­mento, 2005, pp. 39-63. 7 Adília Fernandes, “O retábulo flamengo de Santa Ana”, in Ana Celeste Glória (coord.), O retábulo no espaço Ibero-Americano: forma, função e iconografia, vol. 2, Lisboa, Instituto de Histó­ria da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova, 2016, p. 10. 8 Luís Alexandre Rodrigues, “O programa arquitectónico da matriz de Moncorvo e a demorada afirmação da arte barroca no distrito de Bragança”, op. cit., p. 43. 1

392

CEPIHS |6

O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo...

altares do Santíssimo Sacramento e das Chagas9. O conjunto edificado apresenta uma monumentalidade considerável que estará associada, por um lado, à necessidade da sede do concelho possuir um templo com grandeza relativa e, por outro, a sua construção ter tido em vista a possível promoção do seu estatuto eclesiástico através da transformação em sede episcopal10. Efetivamente, nos finais de setecentos Torre de Moncorvo é cabeça da mais extensa comarca do reino e a mais importante das existentes em Trás-os-Montes11,12. É também, por esta altura, sede de comarca eclesiástica ou vigararia, equivalente a diocese – uma das cinco que compunham o arcebispado de Braga13. No entanto, na sequência da instauração do liberalismo, em 1834, a comarca de Moncorvo é extinta, ficando a vila reduzida a sede de município. Para além disso, em 1881, Moncorvo é anexado à diocese de Bragança14.

Fig. 1 – Fotografia aérea da igreja matriz de Torre de Moncorvo onde é possível observar parte do adro da igreja a oeste e sul15

Idem, ibidem. Carlos d’Abreu, “As igrejas da vila de Torre de Moncorvo com estatuto de matriz (séculos XIII­-XVIII)”, op. cit., pp. 88-89. 11 Adília Fernandes, O recolhimento de Santo António do Sacramento de Torre de Moncorvo (1661-1814). Clausura e destinos femininos, Universidade do Minho, Tese de Doutoramento em História, 2013, p. 119. 12 Adília Fernandes, “O retábulo flamengo de Santa Ana”, op. cit., p. 10. 13 Adília Fernandes, O recolhimento de Santo António do Sacramento de Torre de Moncorvo (1661-1814). Clausura e destinos femininos, op. cit., p. 119. 14 Idem, ibidem. 15 Imagem consultada a 16/05/2016 no sítio http://www.monumentos.pt 9

10

CEPIHS | 6

393

Bruno M. Magalhães

No exterior da igreja todo o adro é circundado por um muro e o chão lajeado por grandes blocos retangulares em granito. O adro da igreja terá sido construído apenas em 1644 no contexto da expropriação de algumas casas de Luís de Madureira, com a posterior colocação de marcos com a inscrição “Adro” a delimitá-lo16. Esta data tardia surge na sequência do muito tempo que demorou a construção da própria igreja, terminada apenas durante o século XVII17. O nivelamento e manutenção do adro ao longo dos séculos não foi tarefa fácil, principalmente dada a necessidade de estabilização da parede de suporte localizada a norte e poente e de toda a pressão exercida pelas toneladas de entulho que ali foram depositadas para nivelamento18. Foram várias as obras realizadas na zona que circunda a igreja, a última das quais entre 1977 e 1979 pela DGEMN, com a reconstrução de parte do seu muro de vedação19. Mas se o adro (ou pelo menos parte) foi construído/delimitado apenas em 1644, é possível que já anteriormente ali fossem realizados enterramentos. Aliás, como a atual igreja de Moncorvo foi construída por cima de um antigo templo do século XIV, é possível que desde época medieval ali fossem realizados enterramentos, embora com algumas intermitências devido às constantes obras que foram sendo realizadas. Por outro lado, ter-se-á deixado de inumar no adro da igreja em meados do século XIX como, aliás, em grande parte dos cemitérios localizados nos adros e interiores de igrejas portuguesas. Com efeito, o início da legislação cemiterial portuguesa que visa a proibição dos enterramentos nas igrejas data de 183520,21 e é confirmada pelas Leis de Saúde de

Informação consultada a 16/05/2016 no sítio http://www.monumentos.pt Luís Alexandre Rodrigues, “O programa arquitectónico da matriz de Moncorvo e a demorada afirmação da arte barroca no distrito de Bragança”, op. cit., p. 43. 18 Carlos d’Abreu, “As igrejas da vila de Torre de Moncorvo com estatuto de matriz (séculos XIII­-XVIII)”, op. cit., p. 92. 19 Informação consultada a 16/05/2016 no sítio http://www.monumentos.pt 20 João de Pina Cabral e Rui G. Feijó, “Um conflito de atitudes perante a morte: a questão dos cemitérios no Portugal Contemporâneo”, in Rui G. Feijó, Hermínio Martins e João de Pina Cabral (eds.), A morte no Portugal Contemporâneo: aproximações socio­lógicas, literárias e históricas, Lisboa, Editorial Querco, 1985. 21 Fernando Catroga, O céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos mortos em Portugal (1756-1911), Coimbra, Livraria Minerva, 1999. 16 17

394

CEPIHS |6

O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo...

184422,23. No entanto, toda esta legislação provocou grandes tumultos em várias zonas do país, levando algumas localidades a conseguirem adiar por vários anos a construção de um cemitério público afastado do centro da povoação que substituísse o anterior. É assim possível que o cemitério do adro da igreja matriz tenha cessado a sua utilização por volta do ano de 1869, isto se atendermos à data que o portão do cemitério atual de Torre de Moncorvo ostenta. A igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição está classificada como Monumento Nacional desde 191024, sendo atualmente propriedade do Estado, afeta à Direção Regional de Cultura do Norte desde 20 de dezembro de 2007. O objetivo deste trabalho é o de descrevermos os trabalhos de antropologia biológica que decorreram na zona circundante da igreja matriz de Torre de Moncorvo durante a intervenção realizada entre 21 de outubro de 2014 e 2 de fevereiro de 2015, num total de cinco dias úteis. Intervenção arqueológica e metodologia

A intervenção arqueológica e antropológica na igreja matriz de Torre de Moncorvo realizou-se no âmbito do acompanhamento da Empreitada de “Reabilitação exterior da cabeceira da igreja matriz de Torre de Moncorvo e respetiva envolvente”25. Foram abertos três poços/sondagens de forma a conseguir-se a inspeção visual das fundações das paredes de alvenaria (figura 2). Foram também abertas três valas de drenagem a oeste. Como consequência, foram realizados trabalhos de acompanhamento arqueológico aquando da sua abertura e que tinham em conta a grande probabilidade de aparecimento de material osteológico humano. João Lourenço Roque, Atitudes perante a morte na região de Coimbra de meados do século XVIII a meados do século XIX: notas para uma investigação, Coimbra, J. L. Roque, 1982. 23 João de Pina Cabral e Rui G. Feijó, “Um conflito de atitudes perante a morte: a questão dos cemitérios no Portugal Contemporâneo”, op. cit. 24 Decreto de 23 de junho de 1910, DG, nº 136, p. 2164. 25 Promotor: Direção Regional de Cultura do Norte; Empreiteiro: STAP; Execução dos trabalhos arqueológicos: Archeo’Estudos, Lda. sob a responsabilidade do signatário e da arqueóloga Inês Patrícia dos Santos Batista. 22

CEPIHS | 6

395

Bruno M. Magalhães

Fig. 2 – Planta da igreja matriz de Torre de Moncorvo com os poços/ sondagens assinalados (escala 1:200)

O registo de campo seguiu as especificações da Matriz de Harris26 quanto à atribuição de unidades estratigráficas (UE’s) numeradas a todos os estratos, estruturas e interfaces escavados. Foi também realizado o registo fotográfico27 e gráfico à escala 1:20 e, quando necessário, à escala 1:10. O registo de campo visou especialmente a Antropologia Funerária do local, sendo caraterizados aspetos como a tipologia da inumação, a sua posição e orientação, a posição do crânio e dos membros ou o eventual espólio funerário associado. Para todos os esqueletos escavados foi aberta e preenchida uma ficha antropológica de campo. Quando o material osteológico se encontrava mais frágil era utilizada folha de alumínio para o seu acondicionamento, de forma a tentar-se minimizar a sua fragmentação até à análise em laboratório. Segundo as recomendações da Direção Regional de Cultura do Norte (DRCN), Edward Harris, Principles of archaeology stratigraphy, London, Academic Press, 1989. As unidades estratigráficas são escavadas por ordem contrária à sua deposição, sejam elas de origem natural ou antrópica (depósitos, estruturas negativas ou positivas, enterramentos, estruturas funerárias, etc.). 27 Registo fotográfico de campo: Bruno Magalhães e Inês Batista; fotografia de espólio: Ricardo Abranches. 26

396

CEPIHS |6

O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo...

os esqueletos encontrados em corte seriam definidos, registados gráfica e fotograficamente e novamente tapados com geotêxtil e terra, no caso de não se continuar a escavação. No caso da sua continuação em profundidade, as sondagens teriam que ser alargadas de forma a escavar-se o esqueleto completo. No entanto, esta última hipótese não chegou a verificar-se, pelo que os enterramentos escavados foram novamente selados. Finalmente foi tentada a análise paleodemográfica (número mínimo de indivíduo [NMI]28, diagnose sexual29 e estimativa da idade à morte30) e a observação macroscópica das patologias que poderiam afetar os ossos recuperados, assim a sua preservação o permitisse. A intervenção arqueológica e o material recuperado

O poço/sondagem 1, com largura e comprimento máximos de cerca de 2,59x2,51 metros, foi encostado às paredes norte e oeste da igreja matriz e permitiu o registo de oito unidades estratigráficas (UE’s) (figura 3). Não foi possível escavar até ao nível do alicerce da igreja, que parecia estar ainda a uma profundidade considerável em relação à cota da rua logo ali ao lado. Foram recuperados 95 ossos ou fragmentos de ossos humanos na UE [102] e 32 na [107], num total de 127 ossos ou fragmentos de ossos. Não foi registada a presença de ossos em articulação. Também na [102] foram recolhidos 4 fragmentos de cerâmica comum (1 fundo e 3 bojos), 6 de faiança (1 fundo e 5 bojos), 1 bojo de porcelana, 1 frag-

Foram utilizados dois métodos para o NMI: o aplicado em Ana Maria Silva, Os restos humanos da gruta artificial de São Pedro do Estoril II: estudo antropológico, vol. 1, 1993, Coimbra, Relatório de Investigação em Ciências Humanas e Douglas H. Ubelaker, Reconstruction of demographic profiles from ossuary skeletal samples: a case study from the tidewater potomac, Smithsonian contributions to anthropology, 18, Washington, Smithsonian Institution Press, 1974. 29 Para a diagnose sexual não foi possível aplicar qualquer método, quer devido ao tamanho e fragmentação da amostra recuperada, quer devido ao não levantamento dos esqueletos registados em campo. 30 Para a idade à morte foi analisado o tamanho dos ossos, fusão das epífises e erupção dentária, de acordo com os critérios propostos por Louise Scheuer e Sue Black, Developmental juvenile osteology, San Diego, Academic Press, 2000. 28

CEPIHS | 6

397

Bruno M. Magalhães

mento de azulejo e 1 de ferro (figura 4)31. Dois dos fragmentos de faiança parecem pertencer a pratos e um fundo de cerâmica comum a uma tijela, enquanto 4 dos fragmentos de cerâmica são pintados a azul e 1 a amarelo, azul castanho e verde, para além de que 1 não tem decoração32. Já na [106], onde não foram recuperados ossos humanos, foi recolhido um fundo de faiança sem decoração, enquanto na [107] foram recuperados 7 fragmentos de bojos de faiança (6 pintados a azul e 1 sem decoração), dois fragmentos de vidrado de chumbo e 1 fragmento de ferro.

Fig. 3 – Poço/sondagem 1 durante os trabalhos de escavação

Fig. 4 – Faiança e porcelena recolhidas na UE [102]

O poço/sondagem 2, com largura e comprimento máximos de 2,35x1,38 metros, foi encostado a um dos contrafortes da parede sul da igreja matriz, levando também ao registo de oito UE’s (figuras 5 e 19). Aqui já foi possível atingir o alicerce da igreja que se encontrava a pouca profundidade, tendo-se para isso aberto uma vala de cerca de 1,50x0,50 metros, de forma a que o enterramento encontrado na sondagem não fosse afetado. Foi então possível observar que a base da parede sul da igreja assenta num soco construído com pedras de xisto. Quanto a espólio, foram recolhidos 192 ossos ou fragmentos de ossos humanos, 65 na [203], 65 na [204] e 62 na [207]. Para além dos ossos soltos, foi registada a presença do enterramento do indivíduo 1 (figura 6), que não foi necessário levantar dado que, no local onde se encontrava, a escavação não foi aprofundada. Na [204] foi ainda recolhido 1 fragmento de bojo de cerâBruno Magalhães, Inês Baptista e Sandra Salazar Ralha, Acompanhamento arqueológico e de antropologia biológica da empreitada de “Reabilitação da cabeceira da Igreja Matriz de Torre de Moncorvo e respetiva envolvente”, Relatório final policopiado, 2015, p. 12. 32 Idem, ibidem. 31

398

CEPIHS |6

O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo...

mica comum com decoração geométrica, 1 fragmento de bojo de faiança sem decoração, 2 alfinetes de cabeça (figura 15) e um fragmento de uma peça indeterminada em bronze que poderão ter pertencido ao indivíduo 1; na [207] foi recolhido 1 fragmento de bojo de cerâmica comum e dois fragmentos de bojo de faiança sem decoração33.

Fig. 5 – Poço/sondagem 2 durante os trabalhos de escavação

Fig. 6 – Plano final do poço/sondagem 2

Finalmente, o poço/sondagem 3, com a largura e comprimento máximos de cerca de 4,70x2,20 metros, foi encostado a um contraforte e à parede sul da igreja matriz e revelou a presença de nove UE’s (figuras 7, 8 e 20). Foram recuperados 66 ossos ou fragmentos de ossos humanos na [303], 55 na [304] e 48 na [305], num total de 169. Para além dos ossos soltos, foi ainda registada a presença do indivíduo 2 que, tal como no poço/sondagem anterior, não foi necessário levantar uma vez que também não iria ser afetado. Neste poço/sondagem apenas foi recuperado material arqueológico na [303], com 27 fragmentos de cerâmica comum (24 bojos e 3 bordos) (figuras 9 e 10), 1 de faiança e um fragmento de alfinete que poderá ter pertencido ao indivíduo 2, dada a proximidade a que foi encontrado34. Para além destes três poços/sondagens foram mais tarde abertas três valas de drenagem na área exterior a sul da igreja, relativamente próximas entre si (figuras 11 e 12). A respetiva análise estratigráfica permitiu perceber que estávamos perante estratos sobrepostos que resultaram de 33 34

Idem, pp. 17 e 18. Idem, p. 24.

CEPIHS | 6

399

Bruno M. Magalhães

Fig. 7 – Poço/sondagem 3 durante os trabalhos de escavação

Fig. 8 – Plano final do poço/ sondagem 2, onde é observável parte do alicerce da igreja

Figs. 9 e 10 – Cerâmica comum recolhida na UE [303]

sucessivas fases de nivelamento do adro35. Das três valas foram recuperados 5 fragmentos de ossos humanos na UE [002] e 9 na [003], para além de três fragmentos cerâmicos e um fragmento de objeto indeterminado em vidro temperado(?) e também recuperado na [002]36. Quanto aos primeiros referem-se a pequenos fragmentos de faianças e cerâmica comum de uso doméstico, que podem inserir-se cronologicamente dentro da época moderna/contemporânea; quanto ao último fragmento data do século XX37. Foi também recuperado na [002] um fragmento do braço de um cruzeiro (figura 13), semelhante aos que ainda se preservam junto dos alçados laterais do edifício38. Os dados recolhidos neste local mostram que os vestígios recolhidos são relativamente recentes, com uma cronologia muito posterior à edificação da igreja matriz39. Para além da Idem, 34. Idem, ibidem. 37 Idem, ibidem. 38 Idem, p. 35. 39 Idem, p. 36. 35

36

400

CEPIHS |6

O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo...

vala 1, apenas na vala 2 foram foi recolhido material arqueológico, nomeadamente 9 fragmentos na [003].

Fig. 11 – Aspeto geral da área de abertura das valas de drenagem

Fig. 12 – Pormenor da vala 2 após os trabalhos de escavação

Fig. 13 – Fragmento de cruz em granito

No total dos três poços/sondagens e duas valas foram recolhidos 511 ossos ou fragmentos de ossos humanos soltos e dois esqueletos em articulação (tabela 1). De assinalar que foram também recolhidos e separados em sacos próprios 35 ossos ou fragmentos de ossos de fauna, 3 na sondagem 1 e 32 na sondagem 3. Já na vala 1 foram recolhidos 8 fragmentos de fauna, enquanto na vala 2 foram recolhidos 3 fragmentos.

CEPIHS | 6

401

Bruno M. Magalhães Tabela 1 Total do material osteológico humano e faunístico não articulado, recuperado nos poços/sondagens e valas abertos durante o acompanhamento arqueológico na matriz de Moncorvo Sondagem 1

2

3

UE

Humano

Fauna

102

95

3

107

32

-

203

65

-

204

65

-

207

62

-

303

66

29

304

55

-

305 Total - sondagens

Vala

UE

1 2

Material osteológico

48

3

488

35

Material osteológico Humano

Fauna

002

5

6

003

9

2

9

3

Total - valas

003

23

11

Total – sondagens+valas

511

46

Os enterramentos Enterramento 1

No caso do enterramento 1 (figuras 14 e 19) não foi identificada a sepultura onde foi inumado, uma vez que, seguindo as indicações da tutela, foi apenas definido o esqueleto de forma a que fosse afetado o mínimo possível. Ao nível da metade distal das tíbias o esqueleto encontrava-se para lá do corte oeste da sondagem 2, pelo que foi realizado apenas o registo gráfico e fotográfico do indivíduo, tendo sido depois coberto com geotêxtil e novamente tapado com terra. Foi, no entanto, ainda escavado parte daquele que nos pareceu o enchimento da sepultura e ao qual foi atribuída a UE [204]. 402

CEPIHS |6

O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo...

Fig. 14 – Enterramento do indivíduo 1 em decúbito dorsal

Fig. 15 – Alfinetes de cabeça e peça em bronze que poderão ter pertencido ao indivíduo 1

Figs. 16 e 17 – Pormenores dos membros superiores e inferiores no enterramento do indivíduo 1, ambos cruzados entre si

O indivíduo foi inumado com orientação este-oeste, isto é, contrária à norma canónica oeste-este40, para além de ter sido depositado em decúbito dorsal, posição que se encontra já dentro daquela norma41. O crânio encontra-se com ligeira inclinação para a esquerda (sudoeste), não tendo sido possível perceber se seria propositado ou teria origem tafonómica. Os membros superiores foram cruzados ao nível dos pulsos (a mão direita por cima da esquerda) (figura 16). Também os membros inferiores foram cruzados, neste caso ao nível da metade distal das tíbias, com a perna direita por cima da esquerda (figura 17). Se a posição dos membros superiores deve ser considerada relativamente normal, já o cruzamento de pernas não é normalmente verificado em enterramentos de época Medieval, Moderna ou Contemporânea.

40 41

C. A. Machado, 1999, Cuidar dos mortos, Sintra, Instituto de Sintra. Idem, ibidem.

CEPIHS | 6

403

Bruno M. Magalhães

Uma vez que todas as epífises observáveis (incluindo as das clavículas) já se encontravam fundidas, o indivíduo foi considerado adulto (e com mais de 29 anos, idade a partir da qual todos os ossos humanos já se encontram normalmente com as epífises fundidas). Não foi possível determinar o sexo biológico e não era observável qualquer tipo de lesão que parecesse ter origem patológica. Enterramento 2 O indivíduo 2 foi registado com a UE [304] e inumado em sepultura aberta diretamente no solo. Parte do tronco e todo o crânio encontravam-se para lá do corte oeste da sondagem 3 (figura 18 e 20). Apesar de se encontrar muito mal preservado, foi possível observar que foi depositado com a orientação oeste-este e em posição de decúbito dorsal, ambas de acordo com a norma canónica42. Dos membros superiores foi apenas possível observar que o braço direito foi depositado de forma fletida, com o rádio, cúbito e mão sobre o tronco. Os ossos do braço esquerdo já não se encontravam presentes. Já os membros inferiores foram colocados de forma distendida e paralela entre si. Apesar da sua muito má preservação, o indivíduo foi também considerado adulto, uma vez que as epífises presentes encontravam-se já fundidas. Infelizmente, não foi possível a recolha de mais dados que possam caraterizar o perfil biológico do indivíduo e não foi recolhido espólio funerário a ele associado. Depois de realizados todos os registos gráficos e fotográficos nos Fig. 18 – Esqueleto 2, encontrado no poço/sondagem 3, bastante afetado por tafonomia. Número mínimo de indivíduos (NMI) 42

Idem, ibidem.

404

CEPIHS |6

O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo...

três poços/sondagens os enterramentos 1 e 2 foram de novo tapados com geotêxtil e terra. Posteriormente, as três sondagens foram totalmente seladas e reposto e lajeado.

Fig. 19 – Plano do poço/sondagem 2 onde é observável parte do soco em xisto do alicerce da igreja e o enterramento 1

Fig. 20 – Plano do poço/sondagem 3 onde é observável parte do soco em xisto do alicerce do contraforte da igreja ali escavado, assim como o enterramento 2 CEPIHS | 6

405

Bruno M. Magalhães

O osso mais representado em toda a amostra é o fémur direito, com um total de 4 elementos ósseos pertencentes a indivíduos adultos. O NMI presente na amostra recolhida nos três poços/sondagens e valas de drenagem escavados na Igreja Matriz de Torre de Moncorvo é, assim, de pelo menos quatro indivíduos. Todos os ossos aqui representados têm as epífises fundidas, pelo que foram considerados pertencentes a indivíduos adultos. Análise paleopatológica

Não foram identificadas quaisquer lesões patológicas nos ossos soltos recuperados, o que pode ter a ver, quer com a sua pouca quantidade, quer com o seu grau de fragmentação bastante elevado. Para além disso, os dois esqueletos registados na amostra não foram levantados (o que dificultou a observação de possíveis lesões patológicas), sendo que a observação realizada aos ossos enquanto eram registados no campo também não revelou qualquer tipo de lesão. Limites do cemitério da igreja matriz de Torre de Moncorvo

Com a escavação das três pequenas sondagens e três valas de drenagem atrás descritas parece-nos algo difícil determinar quais os verdadeiros limites e cronologia de utilização do cemitério da igreja matriz de Torre de Moncorvo, até porque em nenhuma delas a escavação foi completamente aprofundada até ao solo geológico. No entanto, o acompanhamento arqueológico e antropológico permitiu perceber que a área de enterramento não se limitou apenas à zona em frente à entrada principal da igreja, mas aglutinou o seu espaço lateral. Não foi, no entanto, possível confirmar a utilização da sua parte traseira, uma vez que, para além de alguns ossos soltos, nenhum enterramento foi aí registado. Isto pode ter a ver com as sucessivas obras de nivelamento que se realizaram no local e que podem ter destruído os enteramentos que aí poderão ter 406

CEPIHS |6

O cemitério do adro da igreja matriz de Torre de Moncorvo...

existido. No entanto, é provável que toda a área que circunda a igreja tenha sido utilizada como cemitério municipal até meados/2.ª metade do século XIX, se tivermos como termo comparativo outras igrejas do país onde isto acontecia com normalidade. Conclusões

A intervenção arqueológica e antropológica na Igreja Matriz de Torre de Moncorvo foi inserida na “Empreitada de reabilitação exterior da cabeceira da igreja matriz de Torre de Moncorvo e respetiva envolvente”, através do acompanhamento e registo de todos os passos inerentes à abertura de três poços/sondagens e três valas de drenagem que tinham como objetivo a inspeção visual das fundações das paredes da igreja. O acompanhamento arqueológico permitiu perceber que a área traseira do adro da igreja foi preenchida com vários níveis de regularização do espaço, para além de que o anterior cemitério deverá ter utilizado toda a área que a circunda, tal como acontece para as mesmas épocas em inúmeras igrejas por todo o país. Foi identificado um número mínimo de pelo menos 4 indivíduos adultos. Neste contexto, foram escavados dois indivíduos adultos, inumados em decúbito dorsal. Se a orientação do indivíduo 2 está dentro da norma canónica, já o indivíduo 1 foi inumado com orientação este-oeste e com braços e pernas cruzados, posição que não é normal, principalmente no que aos membros inferiores diz respeito. Infelizmente, os poucos ossos recuperados em toda a amostra, assim como a sua má preservação e grande fragmentação, não permitiram a identificação de lesões patológicas.

CEPIHS | 6

407

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.