O CENTRO, O CÍRCULO E O VÍNCULO: Sobre Tobie Nathan e as técnicas de influência

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

O centro, o círculo e o vínculo Sobre Tobie Nathan e as técnicas de influência

Mauricio Siqueira Filho

Rio de Janeiro 2016 1

O CENTRO, O CÍRCULO E O VÍNCULO Sobre Tobie Nathan e as técnicas de influência

Mauricio Siqueira Filho

Orientador: Marcio Goldman

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social Aprovada por:

_________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Marcio Goldman- orientador (PPGAS/MN/UFRJ) _________________________________________ Prof. Dr. Gabriel Banaggia (PPGAS/MN/UFRJ) _________________________________________ Prof. Dr. José Carlos dos Anjos (PPGAS/UFRGS)

Rio de Janeiro 2016

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SIQUEIRA FILHO, Mauricio O centro, o círculo e o vínculo: sobre Tobie Nathan e as técnicas de influência/ Mauricio Siqueira Filho- Rio de Janeiro: UFRJ/MN, 2016 100 p. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – UFRJ, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2016 Museu Nacional. Antropologia Social. 2. Etnopsiquiatria. 3. Antropologia das terapias. 4. Influência. I. Goldman, Marcio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. III. Título.

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Para Lésia, minha mãe

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AGRADECIMENTOS Agradeço Marcio Goldman, meu orientador,

pela parceria, pelas aulas e pela

oportunidade de ver meu trabalho discutido por um autor que admiro. Aos demais membros da banca examinadora, Gabriel Banaggia, José Carlos dos Anjos e, na qualidade de membros suplentes, a Edgar Barbosa Neto e Luísa Elvira Belaunde, por terem aceitado o convite. Aos professores Olívia Maria Gomes da Cunha, Luís Fernando Dias Duarte, Marta Cioccari e Eduardo Viveiros de Castro, pelos ótimos cursos ofertados. A todos os colegas do NANSI com quem aprendi e desaprendi muitas coisas. À amiga Luísa Girardi, pelo imprescindível trabalho de revisão e comentários generosos. Pelas conversas instigantes durante o processo agradeço também a Carol Vaz. Aos amigos de Minas: Marcinho, Levindo, Patrick, Daniel, Clarisse, Edgar e Fernanda... por nossos encontros e desencontros. À

minha

madrinha

Helena,

que

forneceu

apoio

financeiro

e

emocional

indispensáveis. À Karenina Andrade, parceira de vida e de antropologia. À Cecília Diaz, a quem devo tantas memórias extraordinárias. À Mila, pela sinceridade. Porque não teria conseguido sem ela, agradeço à minha família no Rio de Janeiro: Roberto, Malu, Cami, Fernando, Natália, Julian, Aninha, Raul e Luana. A esses dois últimos sou particularmente grato por terem “segurado a barra” em um momento difícil, quando terminar este texto não era a única tarefa que me parecia impossível. 6

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Ainda estou à espera de que um médico filosófico, no sentido excepcional da palavra – um médico que tenha o problema da saúde geral do povo, tempo, raça, humanidade, para cuidar –, terá uma vez ânimo de levar minha suspeita ao ápice e aventurar a proposição: em todo filosofar até agora nunca se tratou de verdade, mas de algo outro, digamos saúde, futuro, crescimento, potência, vida... (Friedrich Nietzsche)

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RESUMO

O trabalho consiste numa apresentação e apropriação do pensamento do etnopsiquiatria francês Tobie Nathan. Dispersos ao longo de mais de três décadas de trabalho intelectual, os conceitos, insights e elaborações do autor serão aqui explorados do ponto de vista da singularidade da prática que o identifica e o distingue. Palavras-chave: Tobie Nathan; Etnopsiquiatria; Influência

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SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................……..14 Capítulo 1: Partilhas..................................................................................................19 1.1 Onirocrítica do sono antropológico.......................................................................21 1.2 O retorno do charlatão..........................................................................................26 1.3 A técnica................................................................................................................36

Capítulo 2: Influências..............................................................................................49 2.1 “Influência que cura”……………………………………………………………………51 2.2 Psicologia como demonologia..............................................................................55

Capítulo 3: Práticas...................................................................................................77 3.1 Despertar do sono pela “ecologia das práticas”...................................................79 3.2 Palavras e outras coisas.......................................................................................83 3.3 Cultura ou captura?......................................................................…………......…86 Nota..............................................................................................................………...94 Referências…….............................................................................................…...… 96

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Introdução Como começar um texto sobre um autor? Deleuze e Guattari, no livro que escreveram sobre Kafka (1997), sugeriam: entraremos então por qualquer extremidade, nenhuma vale mais que a outra, nenhuma entrada é privilegiada, mesmo se for quase um beco sem saída, uma estreita passagem, um sifão, etc. Procuraremos apenas com quais outros pontos se conecta aquele pelo qual se entra, por quais cruzamentos e galerias se passa para conectar dois pontos, qual é o mapa do rizoma, e como imediatamente ele se modificaria se entrássemos por um outro ponto. O princípio das entradas múltiplas impede somente a introdução do inimigo, o Significante, e as tentativas para interpretar uma obra que na verdade se propõe apenas à experimentação. (p. 7).

Para mim, o que há de interessante nessa postura é a maneira como ela conecta o desafio da descrição ao da experimentação. Apesar da evidente distância em relação ao exercício exemplar dos autores, gostaria de apresentar a dissertação como uma que adota estratégia semelhante. Percorrer as publicações de Tobie Nathan implicará, também aqui, na condução de um movimento em ziguezague semelhante àquele das “entradas múltiplas” de que nos falam. O trabalho é, portanto, menos disciplinado que o de exegese e não é capaz de, ao final, apontar para uma unidade. A intenção foi a de que o texto se assemelhasse mais a algo como um comentário “não autorizado” ou “interessado” que pudesse responder à observação de Bruno Latour, para quem argumentos formam um sistema ou estrutura somente se nós nos esquecemos de testá-los. O quê? Se pretendo atacar um elemento, todos os outros vem se aglutinar ao meu redor sem um momento de hesitação? Isso é muito improvável! Toda coleção de actantes inclui o preguiçoso, o covarde, os agentes duplos, o indiferente e os dissidentes (1988, p. 177)

Dessa multiplicidade, privilegiei uma leitura dos textos de Nathan que pudesse ressaltar a emergência de uma série particular de elementos. Inseridos no que esse autor descreve como uma “influenciologia”, como uma reflexão sobre as “técnicas de influência”, eles permitem, sugiro, destacar certo traço singular da prática a partir da qual foram elaborados. 14

Ainda assim, talvez alguém optasse por classificar um exercício semelhante como algo do tipo “autor e obra”. Gostaria, no entanto, de me afastar da postura que costuma acompanhar uma expressão como essa. A tentativa é a de não equacionar, de antemão, o que se acredita saber acerca de alguém – quer se o fraseie como a “tradição de seu pensamento”, o “espírito de seu tempo” ou, como no idioma do sociólogo “crítico”, o seu “lugar de fala”, e o conjunto de possíveis que suas ideias são, eventualmente, capazes de suportar. O perigo, aí, é o de perder de vista o essencial. Há algo que parece atravessar o texto citado de Deleuze e Guattari, mas que também se apresenta nos vários trabalhos do primeiro “sobre autor”. Todos parecem estar submetidos a um mesmo procedimento: aquele que o faz falar de Kafka por meio da arquitetura d’O Castelo, de Foucault (1988) pela exploração de camadas e dobras entre seus livros ou, ainda, de Espinosa (2002) pela adoção de um imperativo “prático”. O que parece estar em jogo aí é a indiscernibilidade entre o que chamamos de “autor” -que, claro, não se define apenas pela assinatura de um livro-e a presença de algo como um “estilo”, de uma singularidade que permite formular menos uma resposta que uma pergunta interessante.

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Durante a composição do texto, adotei certa negligência quanto à necessidade de dar um “contexto” aos textos de Nathan e de situar sua fala “em seu devido lugar”. É que, para além das limitações que me impediriam de tentar algo assim, o trabalho do contextualizador serve a finalidades que não são as desta dissertação. Além disso, ele não corresponde a uma prática teórica cujos problemas fundamentais são, precisamente, aqueles do movimento, da transformação e do equívoco. Um dos pontos fortes da etnopsiquiatria de Nathan está na maneira como incorporou o desafio conceitual, mas também ético, de pensar a presença irredutível do ‘estrangeiro’ entre nós, dos imigrantes na periferia de Paris, aqueles que têm, precisamente, a fala de um outro lugar. 11 Essa singularidade é tanto ética quanto estética e foi Guattari (1992) quem, com apenas um hífen, instaurou sua indissociabilidade. Essa, quando capaz de vencer a propensão à inércia do leitor desatento ou avesso a incertezas, para quem ela é apenas “um pouco” diferente, ou uma reedição atualizada do mesmo, permite desencadear o acontecimento, sempre “antinatural”, que é o de forçar o pensamento. O paradigma “ético-estético” pode ser ainda um bom conector de certas posições de Tobie Nathan sobre a dinâmica de trabalho de sua equipe. Seu interesse está na maneira como submete essas noções a um princípio de incerteza. O primado da imanência que distingue uma ética é o mesmo que “distribui” os fundamentos do julgamento estético e evita seu monopólio (pelo olhar especializado do crítico de arte, por exemplo) e é também o que impede que se identifique a primeira a uma “moral”. O hífen que vincula o “belo” e o “bom” indica sua saída do campo transcendental e os reinsere na prática, movimento que nos interessará mais à frente.

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A organização da dissertação propõe um percurso diferente. Se como, dizem Deleuze e Guattari (1993), pensar é algo como “seguir o vôo da bruxa”, investir na linha de fuga que ele traça, organizei este texto perseguindo o que imagino serem seus destinos mais arriscados. Tentei indicá-los no título da dissertação ao qual cheguei sem muita certeza. Centro alude ao dispositivo terapêutico criado por Nathan e sua equipe, o Centre George Devereux, mas também ao problema da relação entre um centro e sua periferia. Círculo faz menção ao desafio colocado por este dispositivo para o pensamento dos “modernos”, os quais se distinguem, segundo Isabelle Stengers (2003), exatamente por um pensamento “circular”. Esse segundo termo indica também certa oposição: aquela entre o Centre de Nathan e o círculo psicanalítico de Freud e os pressupostos que este incorporou e remodelou. Vínculo, por fim, faz alusão à adoção de um princípio pelo qual, sugiro, se vislumbra uma linha de fuga dessa totalidade circular e em relação ao qual Nathan, por ter insistido em sua elaboração, se mostra alguém que, acredito, se deveria conhecer melhor. Para dizer mais sobre o que o trabalho não é, apenas mais um ponto. A produção da imagem reconfortante que oferece um “contexto” diz respeito não apenas à sobrecodificação de um pensamento por causalidades de tipo “social” ou “biográfico”, mas também ao procedimento de homogeneização que circunscreve seu sentido aos limites de uma “disciplina”. Investir nesse caminho implicaria em selecionar os elementos mais ambientados ao território estriado das instituições universitárias, em reiterar a partilha do espaço epistemológico que distribui, entre físicos, médicos e antropólogos, seus quinhões específicos de mundo: o lugar exclusivo onde suas proposições “valem”. Uma rota alternativa, que se depreende dos livros mesmos de Nathan, é menos respeitosa em relação a essas fronteiras. Ela consiste no esquecimento estratégico da cartografia dos departamentos universitários e aposta na descrição das práticas de conhecimento assumindo a impossibilidade de desvincular um pensamento, uma prática e o dispositivo que confere suas condições de felicidade. O resultado que se tem, espero, é a confecção de um mapa algo diferente do oficial. É necessário arriscar uma aposta: ou bem se investe na exploração das vias de cruzamento e bifurcação de uma “obra”, em certa apropriação criativa de suas entradas e saídas, ou bem se corre o risco de desembocar em um fosso, na profundidade circular do “Significante” de que nos alerta o filósofo. Se é verdade que 16

esta reafirma e protege os limites do castelo, também é verdade que impede igualmente as possibilidades de conexão. Apenas sob outro ponto de vista se poderia dizer que o objeto da dissertação diz, sim, respeito a uma disciplina: àquela requerida pela prática teórica e terapêutica de Tobie Nathan e da equipe de etnopsiquiatria do Centre George Devereux. Ao falar em “etnopsiquiatria”, portanto, farei alusão não a uma identidade no interior de um sistema classificatório (que se poderia usar para, por exemplo, produzir um englobamento hierárquico entre o “etno” e o “psi” que o nome conjuga), mas para indicar, exclusivamente, a qualidade emergente do agenciamento entre a “arquitetura” do Centre, a singularidade da prática terapêutica de sua equipe e a produção conceitual da etnopsiquiatria, tal como elaborada por Nathan. O objetivo do primeiro capítulo da dissertação é ressaltar as linhas de transmissão e ruptura do trabalho etnopsiquiátrico em relação à “medicina racional” (Pignarre, 1995) e apresenta uma série de pontos retomados mais lentamente nos dois capítulos posteriores. Levanto aí alguns pontos que aproximam e afastam o trabalho no Centre de outras experiências terapêuticas que foram afetadas, segundo modulações diversas, pela “redistribuição das luzes” que, para Foucault (2010), determinou a paisagem epistemológica na qual se movem as práticas científicas “modernas”. Como Foucault, gostaria de ter realizado um trabalho “arqueológico”, mas o que ofereço é não mais que uma prospecção inicial interessada em seus vínculos com outras “máquinas concretas” (Deleuze, 1991) com planos de funcionamento mais ou menos divergentes. Espero, com isso, fornecer elementos para descrever o grau de um outro afastamento: aquele entre as “regras concretas” que orientam o dispositivo terapêutico de Nathan e a “máquina abstrata” (ibid), surgida no acontecimento que Foucault definiu como uma “mutação do pensamento”, e que qualifica os atributos da razão científica dos “modernos”. Já que tanto “razão” quanto “modernidade” dizem, simultaneamente, coisas demais e absolutamente nada, nessa primeira sessão o problema é o de fornecer uma descrição menos vaga do “moderno” e problematizar certa imagem hegemônica que se costuma oferecer de suas práticas científicas. Baixando um pouco a altitude, tentarei pontuar o mesmo em relação à sua medicina, a “medicina racional” que se constituiu precisamente por meio do silenciamento de outras medicinas “menores” e 17

da perseguição a seus modos de existência muito particulares. Na segunda sessão, pretendo me deter sobre uma apresentação de Nathan que indique a relação entre sua prática e a tentativa de impor um fim a esse silenciamento e, ao fim do capítulo, farei uma descrição sucinta do Centre George Devereux. De saída, seria bom precisar alguns termos. Sugeri até aqui que as proposições de Tobie Nathan se referem a uma prática, que está última é indissociável de certo dispositivo e que pretendo descrever a etnopsiquiatria por meio de seu contraponto a certos pressupostos modernos. Começo, no primeiro capítulo, por esta última noção, a mais vaga e propensa a mal-entendidos. Quando imaginava “entradas” possíveis em relação ao Centre, acabei por coordená-las segundo um acento particular, modulado pelos textos de Nathan e pelas discussões que, em geral, são agrupadas sob a expressão “antropologia da ciência”. No interior desta, minha preferência por dois autores, Bruno Latour e Michel Foucault, determinou o ponto de partida desta dissertação. É bem verdade que eles escreveram livros muito diferentes, mas já que nos desobrigamos da submissão ao problema das “tradições”, me apoiarei em ambos para sublinhar a especificidade da epistemologia moderna e a estranheza causada pelo dispositivo de Nathan frente a alguns de seus pressupostos.

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Capítulo 1 Partilhas

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E eis que nessa Dobra a filosofia adormeceu num sono novo; não mais o do dogmatismo, mas o da Antropologia. (Michel Foucault)

I’m speaking of we and this “we” does not refer to a concrete group to wich one may or may not belong, but to all recipients of the message of modernity. (Isabelle Stengers)

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1.1 Onirocrítica do sono antropológico

Não estamos sozinhos no mundo é o título que Nathan deu a um de seus livros e que pretende evidenciar, por meio de uma aparente obviedade, certo princípio pelo qual define sua prática. Quem, no entanto, é esse “nós” a que se refere e por que uma formulação negativa? E quem seriam, em oposição, aqueles capazes de dizer o contrário, de afirmarem estar, sim, “sozinhos”? E em relação a quais possibilidades de presença? Como não é raro que se refira à etnopsiquiatria como uma variante das chamadas “ciências psi”, é razoável especular que a alusão seja a seus praticantes ou, mais amplamente, a todos os investidos em uma prática científica. Uma alternativa, no entanto, seria imaginar que esse coletivo a que Nathan se refere seja definido não pelos critérios que delimitam as fronteiras internas e externas às ciências, mas por sua identificação ao espaço epistêmico que as orienta: aquele da modernidade. Nesse caso, o que estaria em jogo é a necessidade de forçar o reconhecimento de que nós, os “modernos” portadores de Ciência, não estamos sozinhos porque o ocidente não é tudo, de que existem outros povos distribuídos no interior de um mesmo mundo. Mas há, contudo, algo mais em jogo. Gostaria de lembrar uma frase de Davi Kopenawa na qual o xamã yanomami define os “brancos” como os membros daquele povo que, apesar de dormir muito, só é capaz de sonhar consigo mesmo (Kopenawa & Albert, 2015, p. 37). A potência (talvez xamânica) dessa formulação está na maneira como os “brancos” – tomados aqui como sinônimo de “modernos” – são descritos como aqueles cujo solipsismo é definido no interior de uma certa “sonolência”. Dessa, Michel Foucault (2010) soube produzir um relato interessante que indica não apenas o modo como se definiu esse “nós” de que fala, mas também, para esse, certo “mundo”. Segundo a tese apresentada em As Palavras e as Coisas, o aparecimento de uma épistemè moderna significou a submissão do pensamento clássico às limitações postuladas pela crítica da razão que funcionou como uma dobradiça entre esses dois regimes. O “despertar do sono dogmático” que, para Kant, determinou sua descoberta de um sujeito transcendental foi, do ponto de vista de Foucault, na verdade, um novo adormecimento; aquele cujos sonhos estão encerrados no interior do espaço de uma Antropologia (aqui em maiúscula). 21

Uma das principais consequências dessa passagem foi o fim de um regime classificatório onde uma série de diferenças parciais permitia, pelo “desdobramento da representação”, a coabitação, no interior de um mesmo plano de imanência, dos diversos componentes do mundo. Uma outra imagem do pensamento foi a que isolou esses componentes segundo as três “positividades” modernas: as do trabalho, da linguagem e da vida. Em lugar da heterotopia de uma “superfície sem ruptura dos seres” (ibid, p. 332), a modernidade instaurou a “analítica da finitude” que condicionou o acesso das palavras às coisas aos limites de uma figura que é, para Foucault, não causa, mas efeito do pensamento moderno: aquela do homem ou, mais precisamente, da “figura homem”. Como consequência, as ciências modernas, ao se pretenderem o fim da metafísica pela adoção da física como seu modelo ideal, restringiram a razão aos condicionantes das práticas de conhecimento que Stengers (2003) descreve como “teórico-experimentais”. Nessas, sob a perspectiva foucaultiana, o humano aparece, simultaneamente, como condição, meio e limite do conhecimento no centro de um protocolo de purificação que relega outras entidades – muito bem estabelecidas no interior de outros modos de conhecimentos – à posição de “crenças” ou “projeções” codificadas conforme alguns pressupostos acerca do humano. “Modernidade” designa, portanto, menos um período histórico que uma certa operação, aquela que garante ao pensamento de Nathan, bem como à prática a que faz referência, a estranheza que, acredito, decorre de sua recusa. A negativa do autor com a qual começamos, indica uma oposição a esse procedimento endemicamente presente no discurso científico dos modernos, ao seu solipsismo de fundo: A psicoterapia dita ‘científica’ – eu não falo, evidentemente, de sua verdade, somente de seu método; qualquer que seja sua orientação teórica (freudiana, antifreudiana ou neo-freudiana, kleiniana fanática ou cripto-lacaniana) – esse tipo de psicoterapia, eu disse, contêm sempre uma só premissa; ela é clara, explícita: o humano está sozinho! Ele está sozinho no universo, portanto sozinho frente a ciência e, por consequência, sozinho também face ao Estado (Nathan e Stengers, 1995, p.11, tradução minha)

Latour (2014b), permite entender como esse triplo solipsismo decorre de uma mesma operação: aquela que promove um abismo entre o par sujeito/objeto e que sustenta os pressupostos modernos acerca das condições de possibilidade do conhecimento e que foi descrita por Whitehead (1978) como uma “bifurcação da 22

natureza”. Uma “natureza bifurcada” é aquela composta por duas séries de qualidades: as “primárias” – consideradas atributos intrínsecos dos objetos tal como existiriam no mundo –, e as “secundárias” – derivadas das limitações impostas pelos sentidos. Como enfatiza Latour, o efeito desse corte foi o de situar os modernos diante de duas entidades fantasmagóricas. Se as qualidades primárias, a natureza stricto sensu, só são acessíveis conforme uma dinâmica aproximativa (condicionada ao rigor do método) elas não podem ser mais que decalques imperfeitos destas; e se, por outro lado, as qualidades secundárias são apenas efeitos de uma distorção, tampouco estas podem ser pensadas como ingredientes legítimos para a composição do mundo:

(…) o resultado dessa bifurcação foi a criação de uma definição idealista e matéria onde todas as agências encontradas cotidianamente têm de responder apenas à seguinte questão: “Você é objetiva, isto é, material, isto é real; ou você é subjetiva, ou seja, provavelmente significativa, mas irreal?”. A consequência tardia dessa questão foi a que situou objetos como um ponto no espaço sem um espaço real e em um momento no tempo sem um tempo real (Latour, 2014b, p. 301, tradução minha)

Foi por meio da extensão dessa bifurcação que se estabeleceu a hegemonia do que ficaria conhecido como “medicina racional” e o que se teve como efeito foi a perseguição dos representantes de uma “segunda medicina” (Pignarre, 1995), impedidos doravante de fornecer os critérios de avaliação acerca de seus próprios princípios, objetos e técnicas. O interesse nessa definição de modernidade está na maneira como esta permite desvincular a noção do triunfalismo da metanarrativa elaborada pelos “modernos” em razão própria. Ela permite estabelecer um parâmetro para descrever o desvio adotado por Nathan em relação tanto aos pressupostos de uma epistemologia científica quanto daqueles (daí derivados) do cientificismo das ciências psi. O procedimento que, conforme Whitehead, “bifurcou” a natureza teve como efeito a proliferação de muitas outras bifurcações. Essas, adotando os mesmos princípios de partilha, tanto separaram “externamente” as ciências do “primário” daquelas

do

“secundário” como, “internamente”,

organizaram as fronteiras

disciplinares em ambos os lados dessa cisão. A partilha que deu ao cientista social e 23

ao psicólogo suas porções de mundo e que promoveu certa distinção complementar entre as disciplinas é apenas um dos desdobramentos daquela outra que opôs as ciências do homem às ciências naturais. Em relação às primeiras, esse trabalho de esquadrinhamento aparece claramente sintetizado num célebre personagem conceitual, aquele do homo duplex durkheimiano. A noção importa para nossa discussão na medida em que funda uma dualidade que se perpetuará como a primeira voz das tentativas de conjugar o etno e o psi e da qual se distancia a etnopsiquiatria de Nathan. O conceito durkheimiano insiste na ideia de que o homem habitaria, simultaneamente, um mundo social – do qual faria parte como a substância miscível de um composto – e, um outro, onde existiria como entidade natural e discreta em relação à qual o autor oscila entre uma definição biológica e psicológica. Aí, a relação entre esses dois níveis ocorre de forma a reforçar a partilha que lhes originou já que a segunda dimensão fornece, por contraste, tanto o espaço como os limites da primeira. Com o estabelecimento de uma individualidade “infrasocial” – matéria concreta, discreta e singular –, se obteve a condição para a postulação da qualidade sui generis que distinguiria um “fato social”. Desse modo se produziu a versão sociológica da “natureza bifurcada”, aí traduzida em “homem duplicado”. Em relação ao domínio psi, a proliferação desse dualismo conformou dois grandes ramos de pensamento com um lastro filosófico muito anterior à epistemologia moderna, mas que nela foram elaborados de maneira a opor versões muito diferentes daquilo que garantiria a validade do conhecimento produzido por elas. Canguilhem (1958) descreveu sua oposição como aquela entre uma “física do sentido externo” e uma “ciência do sentido íntimo”. A primeira descreve as várias versões de uma psicologia interessada em explicar as razões da deformação fenomenológica do mundo. Essa tendência descreve uma linha que, partindo de Wilhelm Wundt, criador do primeiro laboratório de psicologia experimental em 1879, a conecta com as propensões da neuropsicologia

e

do

neurocognitivismo

contemporâneos.

Embora

Wundt

empregasse um modelo físico de causalidade psíquica, restringiu sua exploração ao conteúdo consciente das apreensões fenomenológicas. O motivo pelo qual defendia essa restrição, se o afasta de certo reducionismo “neurocultural”, também permite entrever a qualidade moderna de sua prática: a postulação de um paralelismo psicofísico que, se restringiu sua exploração ao dado psicológico, foi para melhor 24

entrever sua distância em relação ao que seria, simplesmente, o dado. Outra linha é a que conceberia a psicologia como a procura introspectiva pelo que, nos termos de Canguilhem (ibid), seria o “fato primitivo do sentido íntimo”. A reação da filosofia de Maine de Biran ao materialismo iluminista, pelo modo como elaborou algo como um “kantismo invertido”, faz de seu autor uma figura importante. Essa importância consiste em que nele um espaço epistêmico que certamente não é o das modernas ciências psi preparou o terreno para a aquela que pretendeu ser o exemplar mais bem-acabado dessas: a psicanálise freudiana. Sua filosofia recusou as respostas ao gap representativo que tanto definiam a psicologia como uma ciência do erro subjetivo quanto endossavam sua circunscrição a uma fenomenologia do mundo externo. Segundo Canguilhem, embora tenha sido Maine de Biran um dos principais representantes de uma “psicologia das profundidades”, seu problema não era o de mensurar a miopia do sujeito frente ao objeto. O que se operou com ele foi uma nova bifurcação que deslocou a oposição entre interioridade e exterioridade naquela entre o interior da consciência e um “mais interior”: o espaço do inconsciente. O segundo termo, no entanto, não tinha ainda o sentido que assumiria posteriormente com Freud. Esse transformou o que era, para Biran, o fruto de uma ação introspectivapela qual o indivíduo, ao virar as costas ao mundo que o confundiria nas coisas, simultaneamente se produzia e se descobria como um pouco mais profundo do que imaginava- no objeto de uma ciência2. A consequência desse deslocamento subsequente foi o aparecimento de uma terceira figuração do psi que possibilitou o aparecimento da psicanálise, cujo objetivo não seria mais apenas o íntimo, mas o que Canguilhem (ibid) descreve como o “abissal”. Nessa, “o psíquico não é mais o que está escondido, mas aquilo que se esconde (o que alguém esconde)” (p. 6). A filosofia psicológica de Biran, por 2Para Biran, a subjetividade individual era o resultado de uma disposição que faz da instrospecção a maneira pela qual o sujeito, aceitando a distinção entre o interior e o exterior, se rebela à sua sobredeterminação externa se criando como atividade de resistência a ela. Segundo Umbelino (2010,) “a individualidade pessoal e todos os modos activos nascem dessa dualidade primitiva, o que faz do ‘eu’ não substância ou princípio lógico, mas acto, indivisível unidade na diferença de uma força de vontade e de uma resistência muscular, de uma causa que não se perde no seu efeito e de um efeito que se retoma na sua causa. O sentimento do esforço funda a experiência interior de mim que, então, se conquista na relação, mantendo-se irredutível a qualquer um dos elementos que a estruturam e dos quais, justamente, nada se pode saber em separado. A noção de relação é aqui fundamental: o solo da apercepção, da consciência de si, do pensar (-se) coincide com o sentimento do próprio perseverar activo” (p. 69)

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definição, não poderia ser concebida como uma ciência moderna, mas, ainda assim, preparou o terreno para um pensamento que, nos termos de Stengers (2003), se não é exatamente moderna, é explicitamente “modernista”: a psicanálise. A distinção da autora entre ciências modernas e ciências modernistas é a seguinte: as primeiras, conforme seu autoatribuído monopólio do acesso ao Real, ao se definirem, inserem uma diferença entre o que sabem e aquilo que imaginam as “crenças” ou “opiniões” que o cientista pretende substituir. O modernismo, diferentemente, indica a operação das ciências que não só se distinguem da “crença”, mas, exclusivamente, contra ela; negativamente, portanto. Desse modo, modernista é aquele que, necessariamente, não prescinde do que quer destruir – e, consequentemente, destrói aquilo que poderia descrever. Sua epistemologia, portanto, não é aquela que descende de Kant, mas de um “racismo epistêmico” pelo qual Bachelard (1973) pôde se autoidentificar, de maneira muito significativa, como uma espécie de “psicanalista do saber”. Se insiro aqui esse desvio por uma descrição esquemática da divisão entre o social, o psicológico e o físico é com o objetivo de levantar alguns elementos para distanciar a prática de Tobie Nathan de uma confusão usual a que a adoção do termo “etnopsiquiatria” frequentemente induz e que tentarei esclarecer em seguida.

1.2 O retorno do charlatão

A produção de Nathan impressiona pela quantidade e heterogeneidade de textos. Nathan publicou mais de três dezenas de livros, entre monografias individuais, coletâneas e trabalhos a quatro mãos. Distribuídos por quatro décadas de um trabalho intelectual ininterrupto, incluem proposições sobre técnica psicoterapêutica, apresentações e tentativas de sinopse da área etnopsiquiátrica, relatos de sua experiência com terapias não modernas (sobretudo a partir de suas viagens à África), romances, artigos de caráter interventivo e até mesmo um experimento que ele define, um pouco ironicamente, como

“filosoficção”, e que

intercala uma narrativa romanceada com notas sobre o tema da imigração, do encontro, do contágio e da cura. 26

Apesar disso, quase não existem tentativas sistemáticas de apropriação de seu trabalho – muito embora, cabe notar, ele tenha escrito desde uma instituição universitária de prestígio3 e que goze, para alguns, do status de alguém que redefiniu todo um campo de estudos. Fora do círculo psi sobretudo, a familiaridade com suas ideias não é muito frequente. É possível imaginar que para a maioria dos antropólogos

“etnopsiquiatria”

soe

com

as

mesmas notas do

humanismo

universalista dos que se filiaram à disciplina homônima imaginada por George Devereux por volta de 1940. Nathan trabalhou com Devereux entre 1971 e 1981, período em que elaborou sua tese de doutorado e, progressivamente, passou de aluno a algo como um sucessor. A criação conjunta de ambos, em 1978, da Ethnopsychiatrica – a primeira revista francófona de etnopsiquiatria –, talvez tenha sido o ápice dessa parceria, que seria desfeita não muito depois. A cisão foi desencadeada por uma ideia de Tobie Nathan que redefiniria radicalmente tanto os princípios quanto a finalidade do que se definia, então, como etnopsiquiatria. Sugiro que, se o trabalho terapêutico de sua equipe atende, ainda hoje, pelo mesmo nome, foi sob a condição de virar de cabeça para baixo o sentido dessa conjunção entre o “etno” e o “psi” que já o identificou. Em relação a esses dois termos, a importância do gesto consistiu na interdição da operação que, em Devereux e muitos antes dele, subordinava, silenciosamente, o primeiro ao segundo. Se o universalismo psi e o multiculturalismo antropológico são as duas faces da moeda moderna, o metro que define a equivalência de tudo por ser – ele próprio, nada mais que essa operação de aplainamento –, em cada um desses lados a oposição é novamente desdobrada. O efeito decorrente disso foi a dissimulação da mesma partilha sob a aparência de uma superação que, na verdade, a reforçou por torna-la menos evidente. Foi seguindo essa via que se pôde conceber, do lado psi, algo como uma psicologia “social”, “cultural” ou, aporísticamente, “transcultural” e, de outro, projetos tão distintos quanto os do “interacionismo simbólico” de Goffman e o das “grandes sínteses” de Giddens e Bourdieu sobre o interminável dilema “agência versus estrutura”. Seguindo esse mesmo tipo de procedimento, o tipo de conjunção “etnopsi” que propunha Devereux – e que também, antes dele, mobilizou figuras como, por 3 Desde 1986, Tobie Nathan leciona psicologia clínica e patológica na Universidade de Paris-VIII.

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exemplo, Geza Roheim e organizou a querela um tanto inócua entre Malinowski e Ernest Jones sobre a universalidade do “édipo” – foram apenas as expressões mais óbvias de uma identidade escamoteada sob a aparência de uma oposição. Bateson (1972) soube formular claramente a maneira como o relativismo multiculturalista, sob a aparência de um pensamento da multiplicidade, opera, na verdade, como uma estratégia de imposição de um mesmo plano de natureza em relação ao qual se pode entrever certo projeto assimilacionista de fundo: (…) o naturalista, observando o comportamento humano, formulará questões diferentes. Se ele for um relativista cultural, ele deve concordar com aqueles filósofos que imaginam que uma ‘verdadeira’ ontologia é concebível, mas ele não questionará se a ontologia das pessoas que ele observa é ‘verdadeira’. Ele esperará que a epistemologia deles seja culturalmente determinada ou até idiossincrática e ele esperará que a cultura como um todo faça sentido em termos de suas epistemologias e ontologias particulares. Se, por outro lado, está claro que a epistemologia local é errada, então o naturalista deve estar alerta para a possibilidade de que a cultura como um todo nunca faça realmente sentido, ou faça sentido apenas sob determinadas circunstâncias que o contato com outras culturas e novas tecnologias podem vir a desfazer” (p. 228, tradução minha)

A etnopsiquiatria de Devereux, lida sob esse ponto de vista, torna evidente que esta, mesmo que tenha tido o mérito de borrar as fronteiras disciplinares, continuava a bifurcar o mundo. Aí, a multiplicidade “étnica”, submetida ao universalismo

psi, continuava

a

delinear

os contornos de

uma

narrativa

tranquilizadora acerca de nossas próprias pressuposições. A etnopsiquiatria de então era um “estudo das manifestações específicas de desordens em certas culturas” e uma análise de “sistemas tradicionais de tratamento”, mas que não tinha nenhuma ideia das práticas reais que esses conhecimentos poderiam produzir. Era, portanto, um trabalho exclusivamente “teórico, descritivo e explicativo” (Nathan, 2000, p.197). A ousadia do aluno de Devereux foi a de imaginá-la, antes de tudo, como uma prática, como um arranjo terapêutico entre outros. Essa postura culminaria, após outras tentativas, na criação do Centre George Devereux, que Nathan dirigiu até muito recentemente e onde elaborou a maior parte de suas ideias. Essa virada na década de 1980 possibilitou a elaboração de vários experimentos de recomposição da cena terapêutica, levados a cabo por Nathan e, alguns dos ex-alunos de Devereux. Ela incluiu o teste de várias arquiteturas da cena 28

terapêutica, experimentação de sessões coletivas, intensificação do estudo dos aspectos operacionais das “técnicas tradicionais” através de viagens a campo, e incorporação da manipulação dos “objetos terapêuticos” (Nathan, 2005). Desses elementos, a presença conspícua dos objetos, seja, talvez, o que gera maior estranhamento. Tudo isso, elaborado de maneira tateante, se potencializou, em 1993, com a fundação do Centre, cuja arquitetura torna difícil classificar a que tipo de atividade corresponde. É fácil imaginar o espanto de um visitante que, ao entrar numa instituição financiada pelo sistema público de saúde, encontre algo entre uma sala de reuniões e o que diríamos um terreiro de umbanda. Se a manipulação de objetos é o traço que suscita o maior número de críticas é porque ela parece atualizar, para o médico, a lembrança do eterno retorno de um fantasma contra o qual – ou, como nota Stengers (2012), justo por meio do qual – se consolidou a sua disciplina e que ele tenta exorcizar, desde então, com o nome de “charlatanismo”. Assim, também para o psicanalista, o susto é o de reviver um trauma originário, reconhecido e lamentado por Freud em seus escritos sobre a técnica analítica: a impossibilidade de extirpar completamente, da atividade do analista, os riscos da “manipulação” e da “influência”. Foi essa a peste da “peste” de Freud, a que ele acabou, segundo Stengers e Chertok (1990), aceitando no período tardio de sua produção ao afirmar que seria “muito provável também que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta” (Freud, 1976, p. 180). Para Tobie Nathan, a incorporação dos objetos correspondeu a um princípio de desneutralização do pensamento implicado nas terapêuticas não modernas. Sua ousadia, como a entendo, foi a de abandonar, simultaneamente, a monocausalidade que “explica” e o relativismo que “localiza” em direção a uma postura onde é impossível dissociar seu pensamento e o seu uso. É o mesmo movimento adotado também por Stengers e Chertok (ibid) em sua exploração dos problemas colocados pela hipnose: De maneira geral, é a totalidade das práticas terapêuticas, inclusive as práticas taumatúrgicas, que, do ponto de vista pragmático, se veem, não igualadas, mas igualmente problematizadas, no sentido de que todas levantam a questão do tipo de acontecimento que suscitam (p. 186)

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O que há de interessante nisso é o que se seguiria como efeito dessa mudança aparentemente procedimental. Ao abandonar o privilégio de nossa teoria da prática dos outros para sermos nós os praticantes de algo indissociável da teoria deles, o que se obteve, do lado de cá, foi toda uma outra prática teórica. Nessa, as técnicas não modernas deixam de estar submetidas ao culturalismo modesto que reduz suas diferenças a variações acessórias, (quer se dê a elas um sotaque “social”, ou “cultural”). Para Nathan, o que fazem feiticeiros, xamãs e muitos dos nossos “charlatães” é, ao contrário, endereçar, a algo ou alguém, uma pergunta. E, como toda técnica é questão de seu uso, o desafio aí é, sempre, o de formular bem essa pergunta. O risco implicado, no entanto, não é da mesma espécie do que se ocupam tanto epistemólogos quanto psicanalistas. Ele não está na distância que separa verdade e ilusão ou interpretação e manipulação, mas no espaço entre algo como a diferença entre a produção de uma mudança e a manutenção da indiferença ou, o que é mais grave, entre a produção de um efeito terapêutico e a reprodução de um efeito devastador. Sobre essa última possibilidade, Nathan faz questão de pontuar a maneira como uma técnica “eficaz” é sempre, e necessariamente, uma técnica perigosa. Isso porque o que parecem dizer os representantes dessa medicina “menor” – aquilo que singulariza sua prática –, é a proposição de que “a influência que cura” é a mesma que, muito frequentemente, adoece e mata. Daí decorre a necessidade da multiplicação de intermediários capazes de modular a ação do curador e das forças que ele agencia, algo que muitos povos fazem com estratégias muito diferentes. É toda uma lógica dos efeitos que teve a necessidade de ser aprendida com o desafio imposto por essa pragmática. Ela teve, como efeito, a adoção de postura ética e metodológica que o autor comenta assim: O marroquino tem a experiência de que o amuleto cura; o senegalês, que a areia fala, o limusino que as mãos veiculam um fluido. Eles não creem no curandeiro, como em geral se diz, eles respeitam os objetos de um profissional: o amuleto, a areia, o fluído - assim como a expertise que alguém adquiriu. Focalizar nossa atenção sobre os objetos de que falam os terapeutas e pacientes é, como gosta de dizer Bruno Latour, olhar para a lua do sábio, e não para o dedo do idiota” (Nathan, ibid, p. 9, tradução minha).

Sugiro que é nos momentos em que a Nathan adota esse princípio 30

como critério de distinção de sua prática que ambos assumem uma qualidade interessante. É por meio dele que a etnopsiquiatria pode ser lida como uma arma de guerra contra “a maldição da tolerância” de que fala Stengers (2003), contra o procedimento tranquilizador pelo qual a “Ciência” pretende explicar sem se implicar e localizar sem ter de ser, simultaneamente, deslocada. A intenção da dissertação, portanto, é a de ler os textos do autor tendo em vista capturar o desafio embutido na incorporação dessas “técnicas de influência” e explorar a maneira como Nathan elabora sua singularidade. O desconhecimento da interseção que se operou, com o Centre, em relação à anterior etnopsiquiatria “de gabinete” é apenas um dos motivos pelos quais se ouve tão pouco sobre Nathan. Esse desconhecimento, é óbvio, não constitui justificativa para uma pesquisa. Não faria sentido investir em um “resgate” de alguém em pleno trabalho criativo. O que parece ser mais produtivo – porque revela algo de nossas próprias alianças conceituais, algo da maneira como temos nos restringido a certa “imagem do pensamento” (Deleuze, 1993) – é elaborar conexões possíveis entre essa indiferença e a qualidade inquietante do trabalho no Centre. A referência que Nathan faz acima a Bruno Latour não é fortuita. Foi em alguns dos textos deste último, como em certos trabalhos de Isabelle Stengers e Philippe Pignarre, que a potência desestabilizadora da prática de Tobie Nathan foi melhor ressaltada. Esses autores constituem uma exceção em relação ao desconhecimento do trabalho de Nathan. Todos eles ressaltaram a potência disruptiva de seu dispositivo em relação à equivalência entre conhecimento e o modelo “teórico experimental”, e descrevem a maneira pela qual ele interdita o descrédito automático dos “modernos” em relação às práticas de “curandeiros” e “charlatães”. Importa lembrar que, como diz Latour (2013, p. 9), a expressão “modernos” “não designa um povo específico ou uma geografia particular, mas todos aqueles que esperam que a ciência mantenha uma distância radical da política”, os que acreditam que “atrás deles há um passado que combinava, de modo infeliz, fatos e valores e que, diante deles, a distinção entre fato e valor será muito precisa e clara”. O trabalho de Nathan importa não apenas porque assume a indiscernibilidade entre o que se indica por cada uma dessas duas noções, mas por ter feito dessa contatação, como tentarei apontar, um princípio operacional de sua prática terapêutica. Dado o desconhecimento do autor, não seria inútil esboçar uma 31

descrição mais detalhada de sua biografia. Sua história é certamente impressionante. A maneira pela qual um filho de imigrantes judeus, tendo sido perseguido e forçado a uma emigração abrupta do Cairo – lugar que o deixou com uma impressão duradoura por congregar, em um mesmo espaço, mundos muito diferentes –, iria ser afetado pelo desafio que é pensar o (e na presença do) “estrangeiro” certamente não é uma história banal. Mas privilegiei a descrição de sua prática, que interessa mais ao que tenho tentado pensar4. O estabelecimento desse corte que “bifurcou” a natureza e pretendeu extirpar o passado “pré-moderno” teve como efeito uma série de outras bifurcações internas ao percurso que deu certa forma ao que se entende como uma “medicina” e que fornece o contraponto para a descrição da etnopsiquiatria nos textos de Nathan. São duas as maneiras pelas quais seria possível abordar esse percurso: aquela que aceita a versão “oficial” – e que legitima a radicalidade da ruptura – e uma outra, que rejeita não apenas suas conclusões como seu procedimento descritivo. Quando Nathan diz que uma teoria “não deve explicar seu objeto, mas permitir que ele exista” (Nathan, 2001) – afirmação que exploraremos mais detidamente no segundo capítulo –, ele se situa ao lado de uma posição minoritária em relação não só à autoimagem da Ciência, como também à maneira como se costuma descrevêlas. Como uma reverberação do sono moderno, Stengers (2003, p. 17) mostra que certo modelo jurídico foi o que fez com que a posição dominante em relação à descrição das práticas científicas tenha consistido na “vã tentativa de fundamentar de direito aquilo que se impõe a nós como um fato histórico: em certos campos e sob certas condições, os homens aprenderam uma nova maneira de trabalhar juntos”. O que há aí são duas vias radicalmente diferentes pelas quais se pode conceber o conhecimento. Tais vias distinguem, como um de seus efeitos, o que Pignarre, Les Deux Medicines (1995), descreveu como a diferença entre “duas medicinas”. Conforme o autor sugere, a medicina moderna se constitui, impulsionada pelos princípios da revolução francesa, como um novo tipo de agenciamento entre o poder e o saber universitários. O autor mostra como, nesse momento, ela poderia ser descrita muito mais como um projeto do que como uma realidade evidente. Nesse momento, a “medicina oficial”, atrelada aos aparelhos de Estado, intensificou sua perseguição às práticas que passou a abrigar sob a rubrica de “charlatanismo”. O 4 Indico, nesse sentido, a autobiografia de Nathan: Ethno-Roman (2012).

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Texto de Pignarre parte dos problemas colocados pelo “placebo” para a “farmacologia racional” para evidenciar como esta medicina não “superou” nada, mas se implantou precisamente no vácuo deixado pela cruzada que ajudou a promover. Conforme o avanço dessa cruzada, o que se obteve foi uma série de purificações sucessivas que pretenderam afirmar certo contorno da “razão médica”. À medida que se definiu a figura do médico como aquele capaz de curar por seu acesso privilegiado à fisiologia dos corpos, o “charlatão” e todos os representantes do que o autor chama de “segunda medicina” foram aparecendo como aqueles que curariam “pelos motivos errados” (Nathan e Stengers, 1995), isto é, pela sugestão ou influência que exercem sobre a psicologia do paciente. No terreno das psicoterapias, é essa deslegitimação que ressalta na linha de progressão que leva do magnetismo animal de Anton Mesmer à psicanálise freudiana, passando pela hipnose de Charcot. Nessa passagem, o que se vê é certamente a tentativa de delimitar o domínio da razão e opô-lo àquele das “crenças”, mas também de estabelecer uma única maneira pela qual se definiria certa imagem de “razão”. Essa imagem é aquela recusada por Nathan ao defender uma prática terapêutica orientada não pelo que se postula como a natureza de uma desordem, mas pela ação do terapeuta. Em outro lugar, Stengers e Chertok (1990) indicaram como a oposição entre duas “políticas do fato” ficam evidentes numa querela que é interessante não só por fornecer um exemplo da persistência dessa oposição: Que vem a ser um fato? Segundo o método de Lavoisier, os únicos fatos são aqueles obtidos em condições experimentais perfeitamente controladas. (…) Para Jussieu, ao contrário, o fato era positivo, no sentido de que suscitava e impunha um problema. Não podia ser aceito tal e qual, mas devia ser examinado nas condições em que se produzia. Opuseram-se, portanto, duas políticas do fato, dois usos da razão. (Stengers e Chertok, 1990, p. 36)

Quanto a isso, só ressalto a maneira como tal persistência se conecta a um movimento já esboçado por George Devereux e que pode ser, isso com mais facilidade, considerado como sua contribuição para a etnopsiquiatria de Nathan. É o que, para esse, no que ficou conhecido como sua “teoria do complementarismo” (Devereux,1980), o traço distintivo das “ciências do comportamento” tinha algo a ver com diferença entre o estudo de um corpo morto e o de um corpo vivo: no segundo caso, fica clara a impossibilidade de que não haja uma “perturbação mútua” senão pelo que descreve como uma “mutilação do objeto”, e, justamente para evitá-lo, nos 33

sugere, o primeiro passo é o reconhecimento da indiscernibilidade entre interpretação e influência, ou, em chave etnopsiquiátrica, entre a objetivação dos sujeitos e a subjetivação dos objetos. Essa diferença entre os que pretendem saber apesar da influência e os que agem precisamente por meio dela foi elaborada por Nathan (ibid) extrapolando a oposição de Da Vinci entre duas modalidades de criação artística: as que procederiam per via de levare, por extração e eliminação de excessos (é o caso, por exemplo, da escultura) e as que se dariam per via de porre, trabalhando por agregação e agenciamento de materiais heterogêneos (como, para ele, a pintura). Com a expansão do front modernista que instaurou a hegemonia da razão médica contra diletantes e “charlatães”, a imagem de uma prática terapêutica legítima foi, gradativamente (embora não sem violência), circunscrita àquela do levare, a das práticas de purificação e eliminação de mistos, movimento que desencadeou, com a emergência da “farmacologia racional” (Pignarre, 1995), uma caça às bruxas no interior mesmo da medicina moderna. À medida que se hegemonizou o médico como aquele que cura por seu acesso privilegiado à fisiologia dos corpos, o “charlatão” e o feiticeiro – representantes do que o mesmo autor chama de “segunda medicina” - foram aparecendo como aqueles que curam “pelos motivos errados” (Stengers, 1995), pela influência que exercem sobre a psicologia do paciente, pelo que, em relação ao medicamento moderno, é chamado “efeito placebo”. Foi em relação ao episódio, narrado em Stengers e Chertok (1990, p. 23), sobre a “Comissão Mista de Investigação”, instalada em março de 1784 pelo rei Luís XVI para “prestar-lhe contas do magnetismo animal praticado pelo Sr. Deslon” que se opuseram Jussieu e Lavoisier. O evento é exemplar no modo como aponta os critérios de julgamento pelos quais a epistemologia moderna desqualificou “a primeira explicação a se afirmar racional daquilo que se apresentava como a própria desrazão” (Ibid. p. 45).25 Segundo a descrição de Stengers e Chertok (1990), as sessões de magnetização, na segunda metade do século XVII, eram ocasiões onde os 5A controvérsia entre Deslon, Jussieu e os demais comissários, portanto, pertence menos à história “das ideias” do que à história, sempre atual, do que definimos como “práticas racionais”. Ela diz respeito ao preço que concordamos ou não em pagar para manter uma diferença clara entre essas práticas e aquelas que podemos suspeitar procederem do poder do “coração”, e não do da “razão”, descenderem da linhagem dos taumaturgos, dos mágicos e de outros milagreiros, e não dos cientistas. (Id. Ibid. p. 46)

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representantes da mais prestigiosa burguesia parisiense, em sua grande maioria mulheres, se submetiam ao dispositivo arquitetado por Anton Mesmer. No entanto, além desse acolhimento, que permitiu ao magnetismo resistir às posteriores investidas contra ele, a terapia dos fluidos foi também uma “febre” amplamente difundida entre as classes populares. Aquilo que chamaria a atenção das autoridades era não só a qualidade convulsiva das reuniões – que pareciam oscilar entre um culto pagão, um tratamento e uma festa –, mas também a maneira como dissolviam as divisões de classe entre mulheres que, se em outras ocasiões jamais se dirigiriam palavra, ao redor da máquina de Mesmer se contorciam, choravam e compartilhavam um êxtase com não poucos matizes eróticos. Segundo Pignarre (1995), a progressão das sessões culminava numa efervescência dada pela afinação de um padrão de ressonância que fazia da primeira crise o gatilho que desencadeava uma série de crises convulsivas que se reforçavam mutuamente e transformava figuras muito hábeis nas performances públicas de esposas e filhas, trajadas segundo um rococó refinado, numa massa amorfa e descontrolada. Pelos efeitos de influência mútua, o fluido invisível, concentrado e distribuído pela cuba, eram sempre imprevisíveis. Stengers e Chertok (2010) apontam como foi por essa qualidade imprevisível do fluido, que dissolvia as fronteiras já ameaçada dos três estados franceses, que os “mesmerianos radicais” viram no magnetismo uma potência subversiva que anunciava e acelerava a queda do regime. O veredicto da comissão real foi o de que o magnetismo não se referia a nenhum fato científico capaz de ser mesurado objetivamente e, dessa maneira, condenou os efeitos terapêuticos do fluido a serem não mais que um efeito ilusório. O trabalho de Mesmer foi, então, considerado mais uma versão daquele dos charlatões pré-modernos já que nenhum ‘fluido’ de efeitos previsíveis e reprodutíveis, permitia explicar a crise mesmeriana. Esta não podia prevalecer-se de estar trazendo para o conhecimento um objeto ou uma razão novos. O mesmerismo não era coisa da ciência, mas da lei. Os homens de ciência transferiram o encargo àquele que era responsável pela ordem social e moral. (Id. Ibid., p. 25).

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1.3 A técnica

Para que uma coletividade de humanos possa produzir mercadorias ou conhecimentos (os inventar, os fabricar, os comercializar) é preciso que ela possa produzir também a subjetividade. A produção de uma mercadoria é acompanhada hoje pela produção de um conhecimento. Ora, não existe produção coletiva de subjetividade sob um modo que não o rizomático. Esse compreende o savoir-faire que se transmite de indivíduo a indivíduo. A aprendizagem de técnicas habituais não se aprende apenas nos livros. Ela supõe uma transmissão de gestos, o modo de fazer de certos gestos, e ela será, para grande surpresa do observador, diferente de um laboratório a outro. (Pignarre, 1995, p. 30)

A partir de 1978, no hospital de Avicenne, em Paris, teve início uma experiência terapêutica singular no tratamento a distúrbios psíquicos com populações imigrantes. Aquilo que seria posteriormente designado como “etnopsiquiatria” faz parte de um experimento que, desde então, vem afinando progressivamente sua metodologia e suas implicações teóricas para o interior dos saberes psi. Após esse primeiro período em Avicenne, tal experiência foi transferida de 1987 a 1982 para a Protection maternelle e infantile de Seine-Saint-Denis e, em seguida, para o Centre George Devereux, no interior da Universidade de París-VIII. Em uma sala não muito grande se reúnem, em círculo, mais de uma dezena de pessoas: psicólogos e psicanalistas, mas também tradutores, antropólogos, estudantes e curiosos. Todos eles, inclusive os curiosos, compõem a equipe de consulta etnopsiquiátrica do Centre George Devereux, hoje coordenada pelo etnopsiquiatra e autor iorubá Lucien Hounkpatin. No centro da sala, quase sempre, há uma mesa de lanches ao redor da qual se conversa, antes e durante as sessões. Nas paredes e nos cantos da sala, conforme uma organização pouco clara, estão distribuídos alguns objetos: obras de arte, recordações de viagens da equipe, instrumentos de divinação e objetos provenientes de vários lugares. Também há uma câmera de vídeo, com a qual se filma, quando há consentimento dos interessados, a dinâmica das sessões, a qual gera as imagens usadas, posteriormente, para que os participantes discutam e revisem, entre si, aquilo que se passou. É uma exigência a de que esteja presente pelo menos uma pessoa que fale a língua materna dos “usuários” – expressão que, aí, substitui o termo “paciente”, por motivos que, espero, ficarão autoevidentes. É preciso que esta pessoa seja capaz de 36

fazer a tradução. Outra, é a de que um “usuário” nunca chegue sozinho. O trabalho, idealmente, sempre envolve uma coletividade de profissionais e uma outra de pessoas com as quais o usuário mantêm vínculos importantes: sua família; na ausência desta, seus amigos; outros profissionais (médicos, assistentes sociais, professores, etc.) que acompanharam seu percurso até lá. Via de regra, são atendidas pessoas que já passaram por outras instituições e que, tendo visto falhar, sucessivamente, as tentativas de resolução de um problema, são encaminhadas ao Centre numa espécie de última tentativa. Seu perfil engloba desde o que a psiquiatria consideraria um padrão esquizofrênico até casos em que uma desordem persistente indica, para o médico, a presença do que classifica, exatamente quando não há classificação, como de natureza “psicossomática”. O trecho abaixo, encontrado na apresentação do Centre no site da instituição, resume: Aquele responsável por conduzir a família fala de saída e explica aquilo que pretende com a realização dessa consulta. Expõe aquilo que, do seu ponto de vista, constituem as dificuldades e os sofrimentos—em suma, a problemática da família. Particularmente interessados pelos fenômenos de tradução, favorecemos a expressão na língua materna. A multiplicidade de interventores permite a expressão de uma multiplicidade de interpretações da desordem. […]. As consequências clínicas de um tal dispositivo são as que confundem a repartição habitual das expertises que são, via de regra: ao paciente o conhecimento do desenvolvimento singular de seu mal e ao terapeuta aquele da doença e de seus tratamentos. Em uma sessão de etnopsiquiatria vemos se multiplicar os status de expertises – expertises clínicas, certamente, mas também expertises linguísticas, de costumes, de sistemas terapêuticos locais da região do paciente e de outras regiões, expertises do sofrimento singular. Vendo se desdobrarem uma multiplicidade de interpretações de seu mal, são os pacientes que desenvolverão tal ou tal aspecto da questão a partir de uma ou outra das proposições […]. Na medida em que organizamos a sessão segundo esses princípios de trabalho, o paciente perde, subitamente, sua posição de objeto de ser sem consistência que se deveria atravessar para perceber, nele, apenas aqueles elementos que nos interessam. […] Ele é, de fato, parceiro obrigatório, indispensável alter ego de um empreendimento comum […]. Generalizar a lógica da etnopsiquiatria a todo paciente, seja qual for a sua origem, nos obriga a pensá-lo “construído” como “caso”, a postular sobretudo, que essa fabricação o concerne e o interessa – em uma palavra: que o paciente é o interlocutor privilegiado do que a teoria do clínico pensa dele. Pensamos, que esse modo de fazer […] permite transformar o paciente em ser potencialmente recalcitrante, permitindo, talvez, a emergência daquilo que pode refutar o discurso dos terapeutas”. (Disponível em :http://www.ethnopsychiatrie.net. Acesso em 19/10/2015, tradução minha).

A importância

da

abertura

desse

espaço

para

a

recalcitrância

foi 37

exemplificada, em outro lugar, da maneira que descreve a citação adiante – maneira essa que indica, também, o valor do abandono de alguma neutralidade epistemológica em favor de um trabalho de negociação que, quando é bem executado, não descarta o reconhecimento dos pontos fundamentais de um impasse: Após termos tratado, com sucesso, de uma criança fóbica de 8 anos nascida no Zaire que pretendia, ela mesmo, ser um “feiticeiro canibal”, alguns de seus parentes nos acusaram assim: ‘A partir desse instante, vocês permitiram que ele não fale mais de feitiçaria. Mas nós, nós estamos ainda mais inquietos que antes. Talvez o seu trabalho tenha permitido a ele dissimular suas atividades feiticeiras. Você não estará lá quando ele, aos 18 anos, resolver nos enfeitiçar sem que ninguém se dê conta. Entre nós, o curador o teria feito vomitar a sua feitiçaria, definitivamente’. (Id. Ibid, tradução minha)

A tentativa de assimilar e de se permitir ser afetado por situações como essa é o motor de muitos textos do autor. O desafio, para ele, parece ser o de dificultar o acionamento de uma resposta rápida que neutralizaria o que pode estar implicado no problema. É a esse procedimento de complicação, ou de “lentificação”, que Nathan (2001: 89) se refere quando diz procurar “a prática da diplomacia no universo da psiquiatria”. Um dos encargos dessa prática diplomática consiste em evitar a circunscrição da cena terapêutica ao modelo médico-paciente, aquela que confere a uma sessão de psicanálise sua qualidade confessional, intimista, isenta de testemunhas. Em relação a isso, lembre-se o comentário de Deleuze (1998) para quem o analista, atrás do divã, é um avatar mais recente da figura padre. Essa só pode se permitir a benevolência da escuta sob algumas condições: a da separação radical entre o corpo do sacerdote e o do fiel e a de não permitir, pela tecnologia do confessionário, a coincidência de olhares do penitente que confessa, sobre si, o que se escondia e o seu próprio que, permanecendo escondido, pretende julgar sem ser influenciado. Cito: Os padres não são a mesma coisa que os tiranos, mas eles têm em comum o fato de manterem-se no poder através das paixões tristes que eles inspiram aos homens. Do tipo: ‘arrependa-se em nome da dívida infinita, você é objeto da dívida infinita’. Por esse caminho, eles têm o poder. O poder é sempre um obstáculo diante da efetuação das potências. Eu diria que todo poder é triste. (Id. ibid, p. 56)

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“Obstáculo”, aí, pode ser lido de muitas formas. Uma delas, certamente, diz respeito à maneira como a postura do padre e do analista bloqueiam a possibilidade de que aquele que fala confira, sobre o que diz, seus próprios critérios de avaliação. Em ambos os casos, tanto por meio do apelo ao caráter transcendente de deus ou àquele, em idioma lacaniano, do Je em relação ao moi, têm-se a reiteração dessa dívida que retira, daqueles que, nessas relações, estão mais gravemente implicados: a justa capacidade de se explicar. Outra interpretação, no entanto, é “material”. É impressionante a maneira como, mesmo entre os historiadores da psicanálise, são poucas as reflexões sobre a arquitetura do espaço em que ocorrem as sessões de análise. Ao ler Pignarre (1995), se pode perceber a maneira como Freud, imortalizado como aquele que institui uma terceira “revolução copernicana”, foi completamente ignorado em seu talento para o design de interiores. A história do divã na psicanálise é um tema importante a ser explorado. Ele é um mediador importante na composição do espaço a partir do qual Freud e seus sucessores puderam dizer alguma coisa singular. A uniformidade como ele foi adotado exportado, permite uma observação curiosa: ele pode ser lido como uma espécie de literalização daquilo que Latour (2012) chama de “móveis imutáveis” em relação às práticas dos cientistas de laboratório. O conceito designa tecnologias de fixação do conhecimento que o permitem ser transportado sem perderem os seus atributos fundamentais, aquilo que garante, justamente ao ser escamoteado do discurso científico, a pretensa universalidade do primeiro. Da mesma forma, na bibliografia psicanalítica, e mesmo nos autores mais preocupados com o problema da “técnica”, raramente se encontram considerações sobre a potência e as limitações do espaço composto há muito tempo por Freud, em Viena, na Bergasse, 19. Como antídoto à proliferação de obstáculos constitutivos do dispositivo freudiano, Nathan sugere substituir o abandono do espaço confessional em direção a algo como uma arena parlamentar. Mas, sobre esse parlamento, diz que “não só o interesse dos homens será representado, [mas] um no qual se defenderá também o interesse das “coisas” e, igualmente, os interesses dos deuses” (Nathan, 2014, p. 63, tradução minha). A proposição de um “parlamento dos deuses” desloca a qualidade política da 39

etnopsiquiatria em direção àquilo o que Stengers (2003) define como sendo, mais exatamente, o problema de uma “cosmopolítica”. Para a autora, a alusão a um cosmos não indica a tentativa de postular uma totalidade capaz de julgar – como na denotação kantiana da expressão – todos os interesses em disputa pela postulação de um “bem comum”. Ao contrário, ela alude à adoção de uma postura hesitante diante de qualquer tentativa de instaurar, por uma estratégia redutiva, um princípio de englobamento:

O cosmos se refere ao desconhecido constituído por mundos múltiplos e divergentes, e às articulações de que eles, eventualmente, são capazes, em oposição à tentação de uma paz que se pretenderia final, ecumênica: uma paz transcendente com o poder de instar qualquer coisa que não se reconheça ela mesma como uma pura expressão individual daquilo que constitui o ponto de convergência de tudo”. (Id. Ibid, p.5, tradução minha)

A proposição cosmopolítica, na medida em que interdita a imposição de um universal arbitrário, só faz sentido em relação a “situações concretas”, aquelas onde é uma prática o que delineia os termos de um problema. Ela propõe, para os práticos, a necessidade de adotar uma postura que é a mesma do “idiota”, personagem conceitual elaborado por Deleuze (1993) a partir do livro homônimo de Dostoievski. Para Stengers, o idiota é uma figura que “desacelera” os procedimentos do pensamento e que hesita diante da confirmação das certezas correntes porque, como o Bartebly de Herman Melville (2005) “prefere não”. O cosmos não propõe uma circularidade capaz de reunir o múltiplo sob a forma do um, embora ele seja o operador de uma atividade de equalização ou, se preferirmos, de simetrização (sensu Latour, 1994). A autora diferencia essa atividade de uma mise en equivalence e a descreve como mais próxima de uma mise en égalité: a primeira diz respeito à postulação de uma medida comum derivada da Antropologia kantiana; a segunda, por sua vez, propõe uma definição de simetria que não a imagina produto de uma homogeneização, mas de uma prática profilática, a que impede a subordinação dos interesses em disputa. Como diz, a irrupção do cosmos no seio da política é o que impede, diante de um impasse, a equivalência de um “e então” capaz de encerrá-lo, mas, ao contrário, um “e” que produz uma suspensão que garante a possibilidade de

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que seja constantemente reaberto6 . Relacionar a etnopsiquiatria de Nathan à proposição cosmopolítica de Stengers é interessante porque a segunda ressalta da primeira não apenas a injunção prática que, como indicarei à frente, a distingue de outras modalidades de conexão “etnopsi”, mas também a singularidade do pensamento implicado nas técnicas que ela manipula. Ao conceber a identidade como um problema de ordem “etho-ecológica”, a autora indica “a inseparabilidade do ethos, o modo peculiar de comportamento de um ser, e oikos, o habitat desse ser e a maneira pela qual esse habitat satisfaz ou opõe as demandas associadas com o ethos, ou origina oportunidades para um ethos original arriscar a si mesmo” (Id. Ibid., p. 9, tradução minha). A criança zairense mencionada por Nathan foi levada por sua família até o Centre precisamente por falar todo o tempo sobre feitiçaria (algo que, como se imagina, envolve muitos riscos). Mas o que desejavam não era apenas “resolver” um problema –fazer a criança falar de outra coisa ou se calar –, mas conduzi-lo segundo uma técnica precisa que tem de levar em conta, simultaneamente, a substância do corpo feiticeiro, a diferença entre uma criança com uma fixação perigosa e um “feiticeiro canibal” adulto e, por fim, a temporalidade restrita de uma relação terapêutica. Num espaço com essas características não parece ser o padre ou o juiz as figuras capazes de operar seu funcionamento, mas o idiota, aquilo com qual se deve aprender a desaprender. Que Nathan fale em “recalcitrância” é interessante porque permite minorar, ou dar um relato alternativo do problema da “resistência” em psicanálise, da tendência do analisando a frear o trabalho de escavação pretendido pelo analista. Para a equipe do Centre, sua presença não é problema a ser superado, mas uma qualidade que se quer promover. Aí, sua promoção é tanto o que permite uma relação terapêutica quanto, e sobretudo, o princípio ético que garante a legitimidade de um agenciamento desse tipo. Desse ponto de vista, é preciso conceder ao conceito um valor pragmático: “resistência” como em “resistência elétrica”. Para os físicos, ela 6“Igualdade não significa que todos têm o mesmo a dizer sobre a questão, mas que todos eles têm de estar presentes de maneira a tornar a decisão o mais difícil possível, a que impede qualquer atalho ou simplificação, qualquer diferenciação a priori daquilo o que conta e daquilo o que não conta” (Stengers, 2005, p. 27, tradução minha)

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indica a capacidade de um corpo de se opor à passagem de corrente quando existe uma diferença de potencial aplicada, é a resistência de um corpo a se comportar como um condutor perfeito. Da mesma forma, a promoção da recalcitrância, a resistência positivada, é o que, para Nathan, deve impedir tratar uma pessoa específica como um paciente ideal. É que, em relação à primeira, nunca se sabe o material que entra em sua composição e, consequentemente, o quantum de resistência que será capaz de nos impor. O ponto de partida de uma sessão no Centre é, sempre, a indecidibilidade acerca das agências que determinam um estado de coisas, uma desordem ou problema. Grosso modo, o percurso do trabalho etnopsiquiátrico segue o seguinte trajeto, conforme a síntese de Nathan (2012): primeiramente, o da constatação de uma questão – aquela que motivou a chegada, no Centre de um grupo de usuários-; em seguida, o exercício é o da especulação acerca da existência, na produção de certo estado de coisas, de agências ou intencionalidades desconhecidas, as quais se tenta, conforme várias estratégias, explicitar; à explicitação, o terceiro passo do processo, conduz então, sendo este bem-sucedido, à produção de uma diferença relevante para os envolvidos; o que se tenta, por fim, é a negociação conjunta de uma resposta adequada. O movimento é um que nos força a pensar o que se diria “traço individual” como efeito de uma ação em rede, sendo a qualidade das forças que essa comporta o único índice legítimo do tipo de estratégia que será adotada. O que poderia ser diagnóstico ou interpretação, termo final, é tomado como ponto de partida para um experimento. Essa diferença é importante porque opõe dois modos de conceber o efeito que a medicina moderna costuma chamar de “sintoma”. Segundo Nathan (2005) se, para a medicina que ele chama de savant (a dos “modernos”), os signos atualizados em um comportamento, corpo ou discurso são tratados como expressões de uma interioridade – “estrutura psíquica” ou make-up genético, etc. –, o trabalho no Centre procede investigando o que diríamos serem relações com uma exterioridade, ainda que seu resultado seja a complicação dessa partilha entre um “dentro” e um “fora”. Como ele nos diz, não se trata de “amalgamar” uma pessoa e seu sintoma, de promover uma relação de identificação entre eles ou, tampouco, de adotar um

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modelo do tipo intenção-expressão (diferenciando, como no inglês, Disease e illness7). O procedimento, ao contrário, é o de “distribuição”, na medida em que permite, como procuro indicar posteriormente, a possibilidade de uma manipulação ou de uma “inversão”. Ao contrário de qualquer “psicologia da profundidade”, a intenção não é revelar o que há “dentro” de alguém, mas cartografar certo momento das

forças

agindo

“sobre”

ele.

Esse problema da relação entre um “dentro” e um “fora” pode ser desdobrado em outro sentido importante: o da maneira como as medicinas não modernas, e que o uso das técnicas que o Centre tenta incorporar, se coloca o problema da maneira pela qual se chega a conhecer alguma coisa, a compor o que um médico diria ser um “diagnóstico”. Se pressupor “fora” para revelar, pelo monopólio legítimo da épistemè, um “dentro” sintetiza o autorretrato que a ciência dos modernos costuma divulgar sobre si a partir da estratégia retórica que Latour chama de “duplo clique” (2013), aquela que escamoteia a importância da ação de mediadores muito heterogêneos na produção daquilo que será, logo em seguida, “descoberto” ou “revelado”. É o que Nathan (1994) recusa ao defender uma prática terapêutica que parta “não da natureza da doença, mas da ação do terapeuta”. De seu trabalho, talvez essa proposição tenha sido a melhor explorada porque é o tema do livro de Latour (2009) sobre sua prática e a maneira como essa traça uma linha transversal entre a oposição moderna entre o “fato” e o “feito”. Quanto a isso, só ressalto a maneira como ela se conecta com um movimento já esboçado por George Devereux e que pode ser, isso com mais facilidade, considerado sua contribuição para a etnopsiquiatria de Nathan. É que em sua “teoria do complementarismo” (Devereux,1980) a impossibilidade é a de que não haja uma relação de influência entre o critério do observador e a qualidade do que é observado e o seu reconhecimento aquilo que garante a um pesquisador que não esteja “mutilando seu objeto”. E, justamente para evitá-lo, nos sugere, o primeiro passo é o reconhecimento da indiscernibilidade entre descrição e influência. 7O trabalho de Annemarie Moll (2003) elabora bem os pressupostos que sustentam essa oposição. Embora tenha pretendido lidar unicamente com a “medicina alopática, cosmopolitana, ocidental” ela propõe uma transformação significativa nos estudos antropológicos sobre saúde ao retirá-los do escopo de uma multiplicidade representacional ou fenomenológica e estabelece uma agenda de pesquisa centrada nos processos de produção e emergência (enactment) das próprias patologias: “diferentemente de muitos outros livros sobre a medicina e seus processos, este não fala de diferentes perspectivas sobre o corpo e suas doenças. Ao contrário, ele conta como estas são feitas. Isso significa que o livro pretende falar sobre uma série de diferentes práticas. Essas são práticas nas quais alguma entidade está sendo cortada, colorida, sondada, falada, contada, cortada, impedida de caminhar ou prevenida” (Id. Ibid, p.1, tradução minha)

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Com a expansão do front modernista contra “diletantes” e “charlatães”, a imagem dominante da medicina e das psicoterapias foi, gradativamente (embora não sem violência), circunscrita àquela do levare, à das práticas de purificação e eliminação de mistos – o que, com a invenção da “farmacologia racional” (Pignarre, 1995), desencadeou uma caça às bruxas no interior mesmo da medicina moderna. É o que parece ficar evidente também na linha de progressão que leva do magnetismo animal de Anton Mesmer à psicanálise freudiana, passando pela hipnose de Charcot. A maioria das críticas ao trabalho de Nathan são uma extensão dessa postura e só assim se entende – e se concede alguma indulgência – a alegações como a de Elizabeth Roudinesco (2009), para quem o trabalho de Nathan, ao questionar a descoberta de Freud sobre a universalidade do inconsciente, coloca em risco não só a razão psicanalítica como os princípios democráticos da república francesa. Nada de novo, note-se, num comentário assim: Deleuze e Guattari (1997) já alertavam sobre como a produção da interioridade psicológica e a imposição da interioridade imposta pelas fronteiras da “nação” são efeitos de um mesmo trabalho de estriamento operado pelo aparelho de Estado. A necessidade de restringir ao modelo do “sintoma”, epifenômeno que emerge de uma psique que o psicanalista deve escavar (mas sem manipular!) para encontrar, lá dentro, sua raiz, é um produto de tudo isso. Contra ele, Nathan sugere o que diz ser o modelo da “divinação” (1995) que, diferentemente, não escava nem desvela, mas compõe e propõe. É esse o contraste que o autor sublinha entre os pressupostos de um Teste de Rorschac e aqueles da cafeomancia e, acrescentaria, do jogo de búzios. De um lado, a intenção é fazer, do latente, manifesto, exteriorizar o que supostamente já estava dentro e, de outro, um trabalho de coprodução que oferece um possível acerca não do que alguém projeta sobre o mundo, mas do que pode estar sendo projetado sobre ele, do que o faz fazer certas coisas e determina a encruzilhada da qual, talvez, gostaria de sair. De um exercício desse tipo, Contreras e Favret-Saada (1990) fizeram uma análise fina ao descrever o tarot de Madame Flora, desenfeitiçadora do Bocage francês. Os autores mostram como, por uma técnica compósita (que envolve imposição de cartas, manipulações semânticas, aliteração discursiva, repetição gestual, planejamento do espaço, etc.) se chega à definição da origem de um ato de feitiçaria. Mas isso, no entanto, com a condição de que se tenha, simultaneamente, forçado o interessado, por meio dessa técnica, a se engajar ativamente na 44

elaboração do que é revelado. A condição de felicidade de uma técnica como essa é a de que o enfeitiçado, pelo mesmo processo em que se descobre como tal, simultaneamente apreenda a dinâmica vetorial da feitiçaria, estabeleça alianças em seu sistema de forças e passe a ocupar um lugar em seu interior. De todo modo, aquele que descobre a origem de um ato de feitiçaria não pode permanecer idêntico ao que era quando ainda não se havia descido as cartas.8 Cabe notar que, do ponto de vista de Mdme. Flora, a distinção sugerida por Da Vinci adquire outro sentido: aquele que vê, no porre, a condição mesma de todo levare, e não sua antítese. E, também que, numa prática como essa, que partilha características similares com o dispositivo de Nathan, o que se reconhece ativamente é a impossibilidade de uma identificação total entre aquilo que se põe e aquilo que se leva. Latour (2013) diz, de um experimento científico bem-sucedido, que esse se caracteriza por oferecer algo mais do que recebeu de saída e que a quantidade a mais daquilo dá é função do risco que ele é de incorporar. O caráter altamente arriscado do Tarot de Mdme. Flora, como aquele do dispositivo de Nathan, tem relação com o fato de eles inserirem, por princípio, muitas coisas, mas também com sua disposição em não querer julgar, a priori, o que seria o elemento mais importante a entrar nessa composição. Quando se lê os relatos de Nathan sobre as sessões do Centre, parecem injustificadas as alegações de figuras como Didier Fassin (1999) sobre uma suposta exotização dos imigrantes ao vinculá-los às “técnicas tradicionais”. É que a equipe sabe bem que não há garantia, a priori, de que, para um beninense, uma técnica do Benin seja mais adequada ou eficaz. Recorre-se a muitos meios diferentes com a finalidade de produzir um efeito: a aposta em uma estratégia permanece como uma aposta. É importante lembrar que grande parte das enfermidades das quais os pacientes se queixam nas sessões pertence ao hall das desacreditadas crenças animistas e fetichistas (possessões, obsessões, presenças invisíveis, etc.). Negando a possibilidade de reduzi-las a “projeções” de uma interioridade acessível apenas aos especialistas esses seres que ao paciente parecem bem reais, a etnopsiquiatria toma 8 O que não é tão surpreendente já que a identidade a si é justamente o que se reconhece impossível quando se leva a sério a afirmação de que a feitiçaria não está dentro da cabeça de alguém, mas num mundo cheio de gente.

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como princípio metodológico a abolição da distinção entre mundo visível e invisível (entre caracteres primários e secundários da natureza) em favor de um posicionamento no qual o discurso do paciente interessa ativamente no processo de descrição etiológica de seu caso clínico. Nathan sugere que uma “psicopatologia verdadeiramente científica” é uma que seja capaz de reconhecer não só aquilo que singulariza as práticas assentadas no modelo divinatório em relação ao modelo moderno, quanto as implicações de suas diferenças procedimentais. É que, mesmo que sua utilização no Centre corresponda a uma pragmática onde elas são feitas coabitar, isso não significa, para a equipe de profissionais, a pressuposição de sua equivalência. O fundamental é o reconhecimento de que é impossível delimitar, de antemão, os critérios que importam para sua distinção ou adequação a um caso específico. No entanto, um modo de traçar uma linha entre elas foi explorado por Nathan de modo particularmente interessante. Ele não se refere exatamente ao que essas técnicas incorporam, mas ao que elas permitem elaborar por não estarem submetidas aos pressupostos da filosofia do acesso que acompanha o “sintoma”. Dessas, o conceito de “pavor” (frayeur), desenvolvido por Nathan sob várias figurações, pretende indicar tanto o seu mecanismo central de funcionamento quanto aquilo que é manipulado tecnicamente. “Frayeur”, nos diz Nathan, tem a raiz em fragor, que indica a aparição de um afeto repentino e intenso. Em várias publicações de Nathan, ideias semelhantes são pinçadas nas teorias do adoecimento e da cura – i.e., da metamorfose – de vários povos. Assim, por exemplo em Bambara, diatigé (dia: sombra, tigé: desligado, cortado) é o efeito produzido pelo encontro com um Djinn, com um feiticeiro ou com a alma de um morto. Em Wolof, sama fit dem na, se traduz, literalmente, com: “minha alma (princípio vital) escapou do meu corpo” e, no Árabe, para mais um exemplo, existem dois termos que indicam eventos semelhantes: sar: “derramar” ou “perder a forma”, e khal’a, algo da ordem de um “desenraizar”. Também em Quechua, tem-se o susto,

frequentemente

acompanhado

de

tristeza,

perda

do

apetite

e

enfraquecimento. Nesses, como em muitos casos descritos pelo autor, o tema do encontro é indissociável daquele da transformação. Em todas essas versões, o conceito engloba dois sentidos: o do encontro com um ser radicalmente diferente dos que se encontra habitualmente e o efeito desestruturante que decorre dele e determina uma diminuição da potência vital. 46

Mdme. Visnelda, feiticeira da Ilha da Reunião com quem Nathan passou certo tempo, expressa esse evento como a “extração de alguém para fora de seu envelope” (1994, p. 224). Para mim, o interesse no conceito está em que ele permite elucidar vários aspectos da singularidade da prática de Nathan e do que é possível pensar fora da obsessão moderna com o “acesso”. Tanto a noção de “pavor” quanto o regime de signos do modelo divinatório retiram sua estranheza de um contraponto a certa partilha

fundamental

entre

os

modernos:

aquela

entre

“interioridade”

e

“exterioridade”. Latour ressaltou bem o ponto: para ele, o espaço da psicologia é definido como tendo sido constituído no mesmo movimento pelo qual se deu à epistemologia seu local de trânsito privilegiado. No reino da interioridade, a psicologia prestaria o mesmo tipo de serviço e surtiria os mesmos efeitos que a epistemologia no domínio da exterioridade. Isso porque, segundo ele, elas só se definem por meio de sua contraposição recíproca, por um jogo de espelhamentos onde aquilo que a res extensa não pode admitir é a res cogitans que acolhe. Como o shur, instrumento dos feiticeiros Kabila descrito por Nathan, a psiqué é uma entidade que se poderia mesmo caracterizar mesmo como um antiobjeto. Eles são “fragmentos de pura negatividade” (Nathan, 2004), com comportamento semelhante ao dos buracos negros (e tão perigosos quanto) em sua capacidade centrífuga. O único protocolo que a psiqué parece respeitar é o de selecionar suas presas fora daquela outra profundidade chamada “matéria”, território fortemente defendido por outros tipos, não muito diferentes, de guardiões. Para Nathan e Latour, sua semelhança tem a ver com a repetição de uma mesma limitação: a de não reconhecer as redes que constituem o objeto que elas têm como objetivo descrever. Assim, como as chamadas science studies tiveram o mérito de demonstrar a complexa infraestrutura envolvida na relação de Pasteur e seu ácido lático (seu caráter ao mesmo tempo dado e construído), Latour sugere que a “despsicologização” etnopsiquiátrica representa um experimento em que as redes de constituição de interioridades, aquelas compostas pelo que Latour chama de “psicomorfos” (2009) ou “condutores de subjetividade” (2012), são não apenas analisadas, mas, sobretudo, manipuladas. Aí reside um aspecto interessante do conceito de “pavor” elaborado pelo autor. Segundo sua lógica, aquela em que uma teoria da metamorfose é sempre acompanhada de uma teoria do encontro, interioridade e exterioridade figuram 47

resultados provisórios de um processo contínuo de fabricação de fronteiras. O que o pensamento dessas medicinas “menores” com as quais nos confrontam as “técnicas tradicionais” parece sugerir é a necessidade do abandono de uma concepção “molar” dessa partilha. Se essas instâncias não são mais do que efeitos de um evento anterior e se, como lembram Deleuze e Guattari no Anti Édipo (1976), o sujeito é sempre um “resto”, aquilo que sobra de um processo produtivo, é sobre o processo produtivo que devemos nos deter. É sobre as dobras que possibilitam o trânsito entre o dentro e o fora que devemos olhar para entender a gênese de um processo de subjetivação. Assim se compreende o desafio assumido pela equipe do Centre que, desafiando o nosso pavor dos outros, elaborou um dispositivo interessante onde se manipulam outros pavores. Porque esses são muitos e múltiplos, o trabalho no Centre tem de funcionar como um dispositivo apenas precariamente definido e os princípios conceituais da etnopsiquiatria – ou, mais precisamente, de uma que pretenda fugir de nossa circularidade – devem funcionar como proposições submetidas ao princípio da não-mutilação de que falava Devereux. Daí provem sua qualidade fundamentalmente elástica, e que não poucos gostariam de interpretar como uma inconsistência. Diria que o que ela oferece claramente é a necessidade de corresponder a uma ética que, conforme aquela de Espinosa, tem como fundamento a promoção dos bons contra os maus encontros no interior de mundos que, para aqueles que não se pretendem sozinhos, têm muito de susto e risco.

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Capítulo 2 Influências

Jeanne-Paule Visnelda (1922-1991)

Charge satiriza a publicação do livro "Memórias

da

Descoberta

do

Magnetismo Animal". Londres, 1784.

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Não se trata de formas, mas da lógica de transformação das formas (Tobie Nathan)

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2.1“Influência que cura” L’Influence Qui Guerit, publicado em 1994, é um texto interessante não por ser a formulação mais bem-acabada dos argumentos de um autor que me interessou, precisamente, pelo inacabamento e inconstância que multiplica as possibilidades de leitura. Além do fato de ter sido, talvez, o livro mais lido de Nathan, ele nos interessa por apontar para um desafio cuja importância, sugiro, não se restringe à área psi ou àquela mais familiar aos antropólogos. Por isso a descrição que farei a seguir de certas ideias do autor pode ser lida como uma retomada dos temas centrais que organizam o livro em questão – os quais, cabe notar, o próprio Nathan abordou de maneiras diferentes. A necessidade de elaborar o que o autor chama de um “pensamento da influência” foi expressa aí tendo em vista tanto as limitações do modelo das ciências “teórico-experimentais” a que aludimos anteriormente quanto da tendência psi a encerrar, em versões diferentes, aquilo que dizem seus pacientes em uma interioridade que os desrealiza. O termo “influenciologia” pode ser tomado como um corolário conceitual da “segunda medicina” de que nos fala Pignarre (1995). A expressão indica um pensamento que afasta Nathan não apenas da anterior etnopsiquiatria de seu professor como promove, no interior de suas próprias publicações, um deslocamento rumo à singularidade conceitual da prática pela qual se tornaria conhecido. Considerando os dados imediatos da experiência, e para respeitar sua especificidade, eu defini anteriormente a psicoterapia como um procedimento de influência, eu já precisei inclusive que, em sentido estrito, não pode existir senão uma ‘influenciologia ‘ e não uma teoria geral da psicoterapia. Os leitores mal-intencionados disso interpretaram que eu promovia a prática da influência direta, da hipnose, talvez da manipulação. Minha proposição é, simultaneamente, mais simples e mais rica de consequências: trata-se e de prestar atenção ao fato de que toda psicoterapia é, por natureza, uma prática de influência, e de que todos os que pretendem escapar a isso não o fazem senão por mimetizar – e isso de maneira completamente inadaptada – as metodologias das ciências duras. Isso porque não é no que Isabelle Stengers bem nomeou “a purificação da cena analítica”, a exemplo da purificação do campo de experiência do químico, que se deve procurar a capacidade da psicoterapia de “devir ciência”, mas bem na possibilidade que ela pode oferecer ao” sujeito” de se revelar recalcitrante. (Nathan, 2001, p. 113, tradução minha)

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Se, como aludimos anteriormente, “universalismo” e “relativismo” são versões de uma mesma certeza moderna, o conceito de Nathan pode ser lido como uma tentativa de fornecer uma alternativa a essa oposição apenas aparente. Pensar as técnicas de influência significa tanto avançar uma crítica à doxa da psique universal quanto à postura “tolerante” que reduz os objetos e técnicas mobilizados nas terapias “tradicionais” a fenômenos de caráter acessório, àquilo que, via de regra, é tomado como certa idiossincrasia “cultural” de seus praticantes. Da psicanálise Nathan não pretende contestar nem sua a eficácia e nem seu “poder de modificação”, mas questionar os limites da descrição que ela foi capaz de fornecer de si mesma e que permite a seus praticantes imaginar sua suposta superioridade. Contra as certezas da medicina savant, a intenção é apresentar os princípios operatórios da etnopsiquiatria do ponto de vista dos efeitos de emergência que sua prática é capaz de desencadear, e não pela defesa de qualquer tipo de novo invariante que poderia tomá-la como uma metapsicologia. O que torna a via dos efeitos interessante é a maneira como o estatuto da teoria é aí submetido não às exigências de uma epistemologia, mas às condições de uma pragmática. Para a equipe do Centre George Devereux, o emprego de uma estratégia terapêutica tem seu critério de avaliação subordinado à maneira como esta permite aos etnopsiquiatras “fabricar um material clínico utilizável” (Nathan, 1994, p. 18). Sobre esse ponto, há uma frase do autor que poderia ser facilmente mal interpretada se não interpretada à luz desse imperativo pragmático. Em relação às populações imigrantes, diz: “eles exigem sentido e o ocidente lhes oferece causas” (Id. Ibid). A passagem, como espero esclarecer, não corrobora a perspectiva de alguma “eficácia simbólica” (sensu Lévi-Strauss, 1963). Ao contrário, ela encara a produção de sentido não como o termo final de um percurso terapêutico, mas como sua condição operatória. Essa pragmática dos conceitos conecta Nathan a uma linha de força minoritária em relação ao modelo moderno de julgamento que distingue um conceito “bom” de um “ruim”. Sua balança não opera, como nessa, pela mensuração de sua capacidade de decalcar o mundo, mas daquela de fazer avançar o pensamento, de produzir uma mudança significativa acerca de um problema. Dessa postura, a leitura de Whitehead (2011) feita por Stengers fornece uma ótima síntese: Conceitos irão então assegurar que a racionalidade afirme seus direitos, todos os seus direitos, mas não o direito de uma última e

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autossuficiente explicação. A própria ideia de uma tal explicação não pode seduzir o matemático: cada explicação tem suas premissas, e cada premissa designa a responsabilidade irredutível do que quer que demande uma explicação, essa explicação e não outra. As premissas são parte do trabalho. O direito reclamado pelo trabalho conceitual é o direito de não transformar aquilo que é último em um limite do pensamento, lá onde é o pensamento especializado que encontra seus limites. Como de tudo nós nos atentamos pela percepção, por conseguinte, todas as nossas explicações especializadas serão “colocadas no mesmo barco” (Whitehead, 2011, p. 145, tradução nossa) .

Para Nathan, a monocausalidade psi oferece causas, mas não pode responder à necessidade de elaborar positivamente a singularidade das terapêuticas de outros povos senão purificando-as de tudo aquilo que constitui, do ponto de vista de seus procedimentos técnicos, seus aspectos centrais. Como diz o autor, a atração gravitacional pode fornecer um relato plausível para a queda dos corpos, mas não pode fornecer parâmetros, como no trabalho divinatório, para responder a questões do tipo “porque eu é que caí da árvore e não meu irmão ou meu primo? E por que exatamente naquele momento?” (Nathan 1994, p. 20) Como se sabe, tais questões costumam ser mais da alçada dos feiticeiros que daquela dos físicos. O que há em disputa aí são ao menos dois modos de pensar a eficácia das técnicas: aquele assentado nos pressupostos de uma monocausalidade e outro cujos critérios de avaliação de um enunciado “verdadeiro” são indissociáveis daqueles em que uma verdade pôde ser enunciável 9. Como sublinhado por Viveiros de Castro (2005), na clássica descrição de Evans-Pritchard (2005), o “propósito epistemológico” do sistema divinatório zande indica, como sugere Viveiros de Castro na introdução da edição em português do mesmo livro, não uma “física da causalidade objetiva, mas uma política da intencionalidade subjetiva; não o fenômeno e o conceito, mas o evento e o sentido” (p. 7). Foi em relação à necessidade de retirar as implicações técnicas e teóricas de sistemas como esse que Nathan inseriu o problema de formular os princípios de uma “influência que cura”. Dela decorrem algumas perguntas: o que resta para a psicoterapia se a ideia de uma psiqué universal é não mais que uma ficção 9Conforme dizia Evans-Pritchard (Id. Ibid.), a verdade de que é capaz o sistema oracular zande decorre de um agenciamento onde, se a validade das revelações oraculares dependem da “crença” na bruxaria, do mesmo modo “também a crença na bruxaria depende dos adivinhos, dos oráculos e da magia”. (p. 244).

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politicamente conveniente? Como continuar a pensar quando se interdita a possibilidade de que as teorias que endossam sua existência detenham o monopólio legítimo do Real? Para o autor, do ponto de vista de sua prática clínica, resta o fundamental: o desafio de “modificar o outro”. A adoção de um critério de avaliação dos agenciamentos terapêuticos pautado em sua capacidade metamórfica é o que distingue um “pensamento da influência”. Dessa expressão, interessa sublinhar a maneira como ela conecta duas noções cuja relação, via de regra, não parece autoevidente. Do solipsismo savant, daquilo que Devereux poderia ter descrito (caso ignorasse a contradição em ser ele a dizê-lo) como a “neurose étnica” de seus adeptos, decorre a imagem mais frequente do que significa “pensar”. A ação costuma se referir a algo de uma “vida interior”, às volições idiossincráticas de um espírito ou, para alguns, ao movimento dos “fluxos de consciência” que, mesmo se descreve uma associação semântica ou imagética, permanece limitado ao que seriam as fronteiras de uma individualidade bem delimitada. A noção de influência, em sentido oposto, costuma indicar certa relação de força com uma exterioridade e que não raro é tomada como um empecilho mesmo ao pensamento – como quando se diz, com a intenção de desqualificar, que alguém pensa sob a influência de algo ou de alguém. A fórmula de Nathan permite repensar o vínculo entre essas duas ações: “pensamento da influência” indica não só uma reflexão sobre a noção de influência, mas também a imagem do próprio pensamento do ponto de vista das ações de influência. Esse pensamento pode ser apresentado como consistindo numa pouco usual teoria da ação. Nessa, a relação entre as agências desencadeadoras de uma desordem e o sujeito que essas desordenam – como também a que se dá entre um terapeuta e seu paciente – descreve um processo de afetação recíproca: “não é B que age deliberadamente sobre A, mas B que é agido por agir sobre A” (Nathan, 1994, p. 26). Se, como sugere Nathan, uma teoria do fato é parte da produção do fato mesmo, qualquer agenciamento terapêutico implica na necessidade de que sua teoria seja avaliada em termos da qualidade “metamórfica”, das diferenças que é capaz de promover em relação a determinado estado de coisas. Para o etnopsiquiatra, o paradoxo fundamental das modernas ciências psi consiste em sua propensão a “agir sem explicitar” de maneira a poderem “explicitar 54

parecendo não agir” (ibid, p. 28). Em oposição a essa tendência, uma das condições de felicidade das medicinas não modernas consiste em favorecer, explicitando-a, a recalcitrância que permite a perturbação mútua entre aqueles agenciados por determinado dispositivo terapêutico. Esse duplo vínculo concede ao curador um status fundamentalmente ambíguo na medida em que sua intencionalidade é incluída como um elemento constitutivo do sistema: “em um mundo onde todo terapeuta pode se revelar também um feiticeiro, o problema consiste em identificar sua verdadeira natureza e, consequentemente, em explicitar seus desejos profundos” (ibid., p. 29, tradução minha). Desse ponto de vista, em qualquer relação terapêutica pelo menos três agências estão envolvidas: a do paciente, aquela do terapeuta e a de um terceiro, cuja aparição foi o que motivou a emergência de uma desordem e que Nathan (2001, p. 127) descreverá como a “coisa” que, do ponto de vista do etnopsiquiatra é “o que produz aquilo que se observa”. Em relação a esse terceiro (que, na verdade, sempre indica uma multiplicidade), se deve aprender a assimilar a existência e a dominar a linguagem para proceder a uma relação que pode ser tanto “diplomática” quanto de franco combate. Numa sessão de etnopsiquiatria, portanto, “levar a sério” o discurso do paciente não corresponde a uma motivação humanitária de simples “escuta” do outro, mas deriva de um imperativo técnico: é por meio dele que se é informado acerca das qualidades das agências em jogo que determinam a adoção de uma estratégia terapêutica específica.

2.2 Psicologia como demonologia As condições de felicidade de um “pensamento da influência” foram elaboradas em um interessante relato de Nathan produzido após sua viagem à Ilha da Reunião, departamento ultramarino francês a leste de Madagascar. Lá, ele conheceu Jeanne-Paule Visnelda, ou “Mdme. Visnelda”, curadora cujo prestígio ia muito além da ilha e que, pela eficácia de sua técnica, foi também bastante procurada por antropólogos, médicos e profissionais psi. Visnelda, falecida em 1991, ocupava à época uma posição singular em relação à maioria das mulheres reunionesas. Empregada em um posto administrativo de prestígio da prefeitura local, 55

ela passou grande parte de sua vida viajando para fora da ilha. Por articular relações entre os moradores da Ilha e os Zoreilles, e desenvolver um trabalho terapêutico que a vincula a outros tipos de “estrangeiros”, Nathan a descreveu como uma “mediadora de mundos”. A maneira como o “dom” para a cura foi revelada a Visnelda é interessante porque indica como, de uma sucessão de eventos aparentemente desconexos e restritos à singularidade de uma biografia, se forma uma conexão que faz deles pensamento ou, em um sentido específico, uma “teoria”:

Eu era afligida regularmente por mal-estares. Eu mergulhava em um estado semi-letárgico que me deixava provisoriamente inconsciente e insensível. Então, uma manhã, eu identifiquei uma voz. Eu ainda estava adormecida mas tinha certeza que alguém me falava. Era aconselhável me tratar com camomila, a que está próxima ao portão do jardim, precisou a voz. A voz me disse ainda que eu poderia curar aos outros…e eu fui até como ela havia indicado. Aos pés do portão havia, efetivamente, a camomila. Eu fiz uma infusão e meu mal-estar desapareceu. (Mocadel, 2005, p. 76, tradução nossa)

Nathan identifica no relato de Visnelda as linhas de um processo idêntico a diversos outros, presentes na literatura antropológica, sobre o modo pelo qual alguém assume a tarefa de curar outras pessoas. Em muitos casos, a presença de um adoecimento inicial se revela uma via de acesso à identificação de uma vocação (que é, simultaneamente, uma sina) e que imprime sua marca no estilo de uma técnica de cura: no caso de Visnelda, o inchaço decorrente de sua dismenorreia foi apropriado como uma ferramenta de diagnóstico imprescindível para sua técnica. Esse adoecimento inicial se mostrou uma via de acesso ao conhecimento de sua insuspeita capacidade para a cura, colocada à prova em um segundo evento. Sua primeira cura se deu quando uma vizinha próxima apresentava um inchaço que havia paralisado seus movimentos e Visnelda intuiu que poderia curá-la impondo as mãos sobre suas pernas, no que se mostrou bem-sucedida. Sua técnica se enriqueceria ao encontrar a ferramenta que passou a utilizar nas sessões de cura, conforme uma expertise aprimorada gradativamente, em aliança com outros objetos terapêuticos. Conta Nathan que certo dia, voltando de seu trabalho, Visnelda encontrou, abandonada junto a uma igreja próxima de seu trabalho, uma cruz de madeira que ela, não acreditando no acaso da situação, recolheu Segundo Nathan, em outra ocasião, assistindo ao clássico “O Exorcista”, de 56

William Friedkin, teve o insight de que deveria utilizar a cruz e curar aos enfermos da mesma maneira como os exorcistas que havia visto no filme, expulsando os demônios pela imposição da cruz. Ela havia encontrado ali os parâmetros fundamentais de um procedimento que, acrescido do conhecimento botânico legado a ela por seu pai, identificaria seu estilo singular, o selo da técnica capaz de atualizar o seu “dom”. Sobre este último, Visnelda posteriormente viria a conhecer algo mais quando, ao ser acometida por uma enxaqueca decorrente de uma cura particularmente difícil, consentiu, em tom de brincadeira, que sua neta a curasse repetindo os mesmos gestos que ela empregava e que esta havia aprendido a reproduzir. Para sua surpresa, a ação se mostrou eficaz e ela passou a saber que o “dom” era um atributo transmissível. Embora a descrição de Nathan seja vaga a esse respeito, Andoche (1988) parece sugerir que Visnelda pensava a possessão sempre como uma variação da feitiçaria. Essa incluía, além do ataque por um espírito mal-intencionado, objetos e substâncias lançadas sobre a vítima ou, secretamente, postas em contato com ela, e que a penetravam, descritas pela desenfeitiçadora como “sujeiras”. No primeiro caso, as entidades acionadas poderiam ser tanto espíritos humanos

(em sua maioria

suicidas ou vítimas de alguma morte trágica) que vagavam em um plano onde eram mais facilmente cooptáveis quanto outras entidades, não-humanas. Essas últimas também eram exorcizadas por Visnelda e correspondiam a qualidades muito diferentes de seres, vinculadas aos diversos espaços de culto que coabitam na Ilha: hindus, malgaxes, islâmicos, etc. Visnelda não possuía uma equipe de trabalho, mas o trabalho era realizado diante das famílias dos doentes e de outros visitantes que a ajudavam quando solicitados. A principal ferramenta utilizada para o diagnóstico, em ambos os casos, era o próprio corpo da curadora. Pelas sensações que experimentava diante da presença do enfermo, Visnelda identificava o que se passa em cada caso: se doença “arranjada” (feitiço ou possessão) ou algo que ela devia encaminhar para atendimento médico padrão. Os enfeitiçados pela ação de um objeto-feitiço eram tratados face a face, sentados à mesa onde a curadora anotava meticulosamente os detalhes de cada caso. Os possuídos, por sua vez, eram conduzidos até uma maca onde eram imobilizados com a ajuda de alguns presentes. Com isso, se impedia tanto as esperadas investidas contra a exorcista quanto uma fuga que deixasse inacabado o processo gradual de identificação e dominação das entidades, processo 57

que culminava com o reenvio dos mortos ao cemitério e as demais entidades aos seus respectivos lugares de origem. Quando se tratava de um caso de possessão, o diagnóstico era dado pelo inchaço instantâneo de alguma de suas mãos. Quando por um objeto-feitiço, variava: se esse estava fora do corpo de alguém e tentava penetrá-lo, a sensação era próxima a algo como picadas de agulha em sua pele e se, já dentro, havia “ocupado todo o espaço interno” da vítima, novamente o inchaço de um dos membros de Visnelda indicava haver mais coisas do que deveriam dentro de alguém. Para Visnelda, o efeito resultante de um desenfeitiçamento bem-sucedido não era, como no descrito por Favret-Saada (1997) a que fiz referência anteriormente, um novo enfeitiçamento, um contra-ataque ao agressor. Como no Bocage, o sistema de feitiçaria de Visnelda correspondia também a uma dinâmica bélica, mas era, para ela, entre Deus e o Demônio que se dava o combate que, manipulando os vínculos entre os homens, fazia desses as ferramentas de uma disputa travada alhures. Pode-se dizer que o corpo de Visnelda operava também como um demônio, mas o de Maxwell, capaz de identificar e de inverter, no sentido físico e médico do termo, um estado de “desordem”. Seu trabalho consistia em identificar aquilo que, invadindo um corpo, determina a diminuição de sua “energia vital”. A técnica consistia, primeiramente, em identificar o evento onde poderia ter ocorrido o enfeitiçamento e em especular sobre seus possíveis autores. O trabalho de. Visnelda era indissociável, para se tornar operacional, daquilo que Nathan chama de “operadores de inversão” (1994, p. 52). O principal deles era o próprio corpo da curadora, que funcionava como uma “dobradiça” entre o interior e o exterior do corpo do enfeitiçado. “Eu sou um robô teleguiado” (Ibid. p. 47) foi como descreveu a si e a seu “dom”, descoberto por meio de uma voz não identificada, durante o espaço fronteiriço do sono. Permanecendo na fronteira, a reunionesa conjugava em si também os atributos ambíguos que Nathan identifica como frequentes naqueles que, podendo curar, podem, igualmente, prejudicar, lugar assumido explicitamente por ela: “como você vê, não me falta malícia” (ibid. p. 45). O nome que Nathan deu a sua técnica foi o de “magnetismo em U” e faz referência ao episódio (para ela nada inabitual) em que um “professor parisiense” pretendeu mensurar objetivamente a potência de seu

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magnetismo10. O relato e o nome são interessantes pela referência à linhagem de práticas terapêuticas representadas na figura de Mesmer, também submetido a uma tentativa de mensuração semelhante, mas que, diferentemente do que deu com Visnelda, condenou a ação magnética a ser mais uma versão daquilo que, modernamente, não passa de “imaginação”. Interessante notar é que, contra esse “imaginacionismo”filosofia espontânea dos modernos –, o magnetizador Charles Deslon, já havia fornecido uma via para complicar seu conceito base: Para fazer desse atributo de nossa alma um princípio atuante nas moléstias reais que trato, e nas curas igualmente reais que efetuo, talvez os senhores comissários devesse ter-nos comunicado suas ideias e seus princípios. Na metafísica, a imaginação é apenas uma grande atividade de concepção. Na física, se quisermos defini-la, diremos que ela é o fluido que aflui em nós e reflui de nós, mais ou menos vivamente, conforme esbarre em resistências internas ou externas mais ou menos intensas. Sob qual dessas duas acepções terão os senhores comissários considerado o poder que conferiram à imaginação em meus tratamentos?” (Stengers e Chertok, 1990, p. 40, tradução nossa)

Há certamente, do mesmerismo parisiense até a feitiçaria da Reunião, uma distância maior que apenas um oceano e dois séculos. Ela, no entanto, é menor do que aquela que Freud impôs entre a análise e a manipulação por não estarem submetidas, ambas, à epistemologia que permite essa oposição. A referência ao magnetismo é interessante também se preenchida com o sentido dado ao termo pela física e que indica a técnica de Visnelda como uma imantação que permite redistribuir os elementos de um composto. Formando um U, Visnelda, com a mão direita apoiada no enfeitiçado, atraía a substância maligna que, saindo de dentro do corpo deste, percorria seu braço e era invertida para fora ao passar pelo topo da cabeça e descer, sendo repelida pela mão esquerda. Dessa forma, do enfeitiçado à desenfeitiçadora e, dessa, para fora do circuito, há uma dupla inversão da penetração em expulsão. Aí, o princípio de atração magnética dos polos opostos é traduzido na linguagem (apenas formalmente cristã) de uma demonologia. Decorre daí a topologia que faz da mão dexter o ponto 10Ele tinha um instrumento em forma de U, graduado até oito, e, assim que ele me pediu para pôr as mãos em cima, a coluna de mercúrio subiu muito mais alto que as graduações. Aliás, o professor me disse que eu tinha muito mais magnetismo natural que ele: 8,875, segundo sua escala (Id. ibid. p. 42).

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de atração do “mal” e, da mão sinister, a esquerda que o repele. Ela dá também um outro sentido pelo qual se poderia especular uma outra leitura que não a cristã para a exortação de Visnelda a não “responder o mal com o mal” (Adoche, 2007, p. 7). Tecnicamente falando, em seu procedimento de inversão, de fato, era pelo “lado do bem” que se dava a resposta. Para Visnelda, a vulnerabilidade de alguém tanto à feitiçaria quanto à possessão demoníaca costuma estar relacionada a certa desatenção quanto à adoção de medidas profiláticas: preces, encaminhamento de missas pelas almas desafortunadas, infusões banhos purificadores. Em um dos casos presenciados por Nathan, uma senhora de sessenta e dois anos de idade, moradora da ilha, se apresentou à exorcista como sofrendo de um agudo reumatismo. Nesse caso, para Visnelda uma possessão agravada pela ação de um objeto-feitiço, o procedimento adotado combinou elementos associados às duas dinâmicas de tratamento. Finda a extração magnética da “sujeira”, Visnelda procedeu ao exorcismo propriamente dito. Depois de instalar a possuída enferma em uma maca onde foi impedida pelos parentes de se mover, Visnelda lançou, repentinamente, um bocado de sal em cada um de seus olhos e, em seguida, forçou a entrada de todo o conteúdo de um pote com água pelas narinas enquanto lançava imprecações que visavam, gradativamente, dominar e enfraquecer a entidade. O trabalho de cura implicou, portanto, em quatro tipos de procedimento: a manipulação, o uso do sal, da água e da cruz. Ao término desse processo, a enferma dizia se sentir “leve” e Visnelda a disse curada da enfermidade que até então impedia que ela se locomovesse sem os habituais tremores nas pernas. O fim da sessão narrada por Nathan é igualmente importante: após pedir que a paciente curada se retirasse, Visnelda se dirigiu privadamente ao marido desta: Mdme. V.: - Por acaso, você não emprestou dinheiro a alguém no jogo? Marido: - “Não…eu não creio… Mdme. V: - Ah! Não me venha com história, hein! Marido: - Talvez, mas era uma pequena quantia. Mdme V.: - Não procure por mais nada, é isso! Aquele a quem você emprestou dinheiro tentou confundir sua cabeça para que você não mais se recordasse. Ele deixou uma sujeira sobre sua porta e foi a sua mulher, ao varrer o quintal, que pisou sobre ela.” (p. 57, tradução minha).

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Desse diálogo, ressalto a maneira como Visnelda desdobra o problema de sua paciente

no

interior

de

uma

dinâmica

mais

ampla

que

envolve

outras

intencionalidades completamente ignoradas de saída. A curadora encerra esse diálogo final com uma admoestação: “Me prometa agora que você não contará jamais que você veio me procurar para se desembaraçar dessa sujeira porque, se o outro toma conhecimento, ele irá ver, por sua vez, uma outra pessoa e tudo recomeçará. Vá, me prometa!”. Aparecem implicadas aí toda uma série de agenciamentos: entre objetos, intencionalidades e estratégias. Entre elas, a reversibilidade das forças indica a qualidade reversível de um processo onde “tudo pode recomeçar”. Pela inversão dos fluxos habituais da boca e nariz (a água entrando pelo primeiro e o ar pelo segundo) a curadora possibilitou inverter o fluxo já invertido pelo feitiço, estabelecendo outro padrão de organização. Esse trabalho de manipulação procede de maneira oposta àquele postulado pela técnica psicanalítica: não se trata aí de fazer das palavras um instrumento interpretativo, mas de, em reverberação com uma série de outros elementos técnicos, de fazê-las produzir uma transformação, um efeito que não visa apenas produzir um sentido, mas que submete o sentido de uma teoria do adoecimento a um princípio de incerteza quanto ao que garante sua eficácia: “Trata-se de desencadear um mecanismo, e não de o explicar”. Como na piada, o que importa é o efeito (o riso) e não o conteúdo do que é dito para obter o efeito” (Nathan, 1994, p. 62) Em várias passagens, Nathan procura se distanciar da postura que concede um papel privilegiado às teorias dos curadores e muito pouco espaço para a descrição da maneira como essas são manipuladas e submetidas a uma finalidade pragmática no interior dos dispositivos terapêuticos. Para ele, o que deve ser ressaltado é a distribuição dos elementos conceituais dessas teorias em uma multiplicidade de objetos concretos, acionados conforme as exigências de uma prática. A teoria da cura deve ser, portanto, considerada como “operador funcional”, apenas um entre os múltiplos elementos operatórios que não se restringem e, em alguns casos, divergem do que é enunciado verbalmente A maneira como Visnelda pensa as fronteiras do corpo é oposta à de um sôma que confinaria uma psique no mesmo sentido da oposição de Deleuze e Guattari (1980) entre as noções de “limite contorno”- efeito repressivo do contentor sobre o contido-e de “limite dinâmico”- resultado provisório da inclinação dos corpos 61

uns sobre os outros. Seria possível, se quisermos, descrever o acontecimento que opera a inversão dos eixos corporais como aquele de uma dobradura. A imagem é interessante porque qualquer dobra implica numa mudança das superfícies de contato, dos pontos de conexão e, logo, a mudança das formas agenciadas em uma dada situação. O trabalho de inversão procura interromper, portanto, a repetição de uma perturbação dos fluxos por meio de uma outra inversão que marca o deslocamento da perspectiva daquele que é tratado em relação a si próprio (ao uso do próprio corpo) e em relação às intencionalidades que determinaram seu adoecimento. Por consistirem, fundamentalmente, em um trabalho de manipulação, as técnicas de influência têm, na centralidade que concedem aos objetos, uma de suas características principais. Conforme Nathan, eles são interessantes por serem, simultaneamente fabricados e possuírem uma “vida própria”, independente daquela de quem os criou. É por meio desses “operadores de inversão” que se objetiva a relação entre o paciente e o curador, e que se pode proceder (em um sentido bem diferente do freudiano) a uma relação “transferencial”. Nathan afirma, peremptoriamente, que tais operadores técnicos possuem um caráter universal em relação a qualquer técnica terapêutica, reconheçam essas ou não sua centralidade, que estes estão presentes tanto entre os modernos quanto entre os não modernos. Para o autor, a abordagem das técnicas por meio dos objetos que essas manipulam é o que permite uma perspectiva particularmente produtiva, aquela que se poderia dizer propriamente a de uma “antropologia das terapias” quando liberada de certos procedimentos descritivos de neutralização do valor terapêutico da manipulação de objetos. Proponho, então, estudar as psicoterapias como casos particulares de um conjunto de práticas utilizadas no mundo destinadas a modificar as pessoas, os grupos, e as situações a partir de um procedimento técnico (2001, p. 118, tradução minha)

O procedimento que manipula a natureza de uma desordem é o mesmo que cria aquilo que, na psicopatologia moderna, se chama um “caso clínico”. Concordando com Devereux, para quem não era a mecânica clássica, mas a quântica, a que fornece um bom modelo para uma epistemologia das ciências humanas, Nathan concebe o Centre como algo próximo ao que ocorre em um 62

acelerador de partículas. Como esse, ele opera a partir não só do reconhecimento do vínculo entre produzir e descrever como submete as técnicas não modernas a condições excepcionais ou “aceleradas”, de funcionamento. O que se procura não é o aceso direto à “natureza” oculta de um mal, mas a aproximação a uma perspectiva onde a coisa descrita, a ferramenta descritiva e o sujeito que descreve se situam numa relação de implicação mútua. O desafio consistiu em elaborar um dispositivo que não apenas pretende manejar a coabitação de pensamentos muito diferentes, mas um capaz de fazê-lo sem limar, em relação a cada uma das “técnicas tradicionais”, a multiplicidade interna a cada uma delas: O espaço terapêutico que desenvolvemos é de uma complexidade exasperante. Mas seu objetivo é simples de formular: trata-se de acolher, em um mesmo espaço, os mundos a mediar e os mediadores possíveis desses mundos. (Nathan, 1994, p. 102, tradução minha)

Nos situamos aqui em um espaço distinto tanto daquele proposto pelo naturalismo biomédico quanto daquele relativismo antropológico que supõe, em última instância, a inexistência dos objetos postulados pelas culturas. 11Nesse, “a psicopatologia não pode descrever senão a relação entre um dispositivo e um objeto hipotético” (Id. ibid p.84, tradução minha) que, por ser hipotético não deixa, como aquele da física subatômica, de ser, igualmente, real. Assim, como nas medicinas não modernas, a etnopsiquiatria não visa à explicitação de uma elaboração interna inconsciente, mas propõe, para o interessado, um processo associativo que pode se revelar terapêutico. Inverte-se, assim, o sentido habitual de qualquer “psicologia da profundidade”. A eficácia não é pensada aí como a corroboração da força do sentidoefeito de uma arqueologia de representações ignoradas-mas como o que resulta da exploração dos sentidos das forças, da exploração da dinâmica vetorial das afetações recíprocas entre os corpos. Por meio desse deslocamento, estabelece-se um diferendo, por exemplo, em 11“Consequentemente, um tal dispositivo implica numa mudança radical de posição epistemológica. Não se observa mais, como os antropólogos, as técnicas terapêuticas, eu as manejo, ou, mais exatamente, eu manipulo certos elementos previamente isolados afim de testar o valor de suas performances técnicas” (1994, p. 102, tradução minha)

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relação aos pressupostos da dinâmica da “associação livre” em psicanálise. É preciso

pensar

que

aquilo

que,

em

determinado

momento,

se

mostra

semanticamente conectado é a cadeia significante, certamente. Isso, no entanto, não deve anular o fato de que certo padrão de conexão deve ser tomado como o resultado temporário da ação de forças “conectantes”, vindas “de fora”, aquilo que concede seu caráter “livre”, isto é, instável e indeterminável à priori. De modo semelhante, se, no trabalho analítico, aquilo que a associação livre desencadeia é a “transferência”, o espelhamento que faz tomar o outro pelo mesmo, a figura do analista pela de uma outra do passado do analisando, as técnicas de influência implicam, em oposição, numa percepção do mesmo como outro, do doente como alguém alienado da própria força vital. A noção de “continente formal” proposta por Nathan foi elaborada a partir da noção de “significante formal” (Anzieu, 1985). A mudança do termo indica sua retirada do paradigma linguístico a que o vinculava seu autor. O conceito foi elaborado para descrever a recorrência de certas imagens e disposições corporais experimentadas por seus pacientes em certos momentos críticos do processo de análise que apresentam qualidades problemáticas para o modo habitual, em psicanálise, de descrição do chamado “aparelho psíquico”. Essa estranheza decorre da irredutibilidade dessas experiências a um modo de pensar a psiqué do ponto de vista das associações elaboradas no interior das cadeias significantes. Para Nathan, os “continentes formais” indicam menos formas que a linguagem expressaria que forças que operam a torção mesma da linguagem “concernindo à percepção do espaço, das sensações corporais, dos ritmos e dos objetos”. (1994, p. 97) O que se pretende indicar por meio dessa noção é o trabalho de dobradura que permite certa consistência ideal dos corpos e que passa não apenas pelas palavras como também, e sobretudo, por uma determinada maneira de organizar os corpos. Para Nathan eles parecem não ter sentido justamente porque estão na origem da própria criação e modificação do sentido: gestos, posições, tiques, etc. Do

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modo como o entendo, ele indica algo de um “ritornelo” 12 (Deleuze e Guattari, 1980) um processo onde, por meio da variação intensiva em torno de um tema, se delineia, contra as forças de exterioridade que simultaneamente possibilitam e modificam certo “território existencial”, um modo de compor e habitar um corpo. A inversão espacial, particularmente elaborada na técnica de Mdme. Visnelda, ilustra bem os momentos em que a perturbação (súbita ou quase imperceptível) de um padrão que provê certa consistência dos corpos é colocada em cheque pela ação das intencionalidades de um “fora”. Também em um grande número de casos que Nathan presenciou em seu trabalho clínico, o evento desencadeador de um estado patógeno é descrito como o início de uma série de inversões: “um eixo vertical se inverteu”, “um apoio caiu”, “um corpo sólido me atravessou”, “um objeto aparece e desaparece”, “uma luva foi virada do avesso”, “um duplo me deixou ou me controla”, “um objeto que se aproxima me persegue” (1994, p. 97). Em relação aos eventos de possessão (que não necessariamente indicam, para os usuários, aquilo de que se querem ver livres), as expressões utilizadas remetem muito mais a uma linguagem das intensidades sonoras, dos ritmos e das danças que desfazem um trabalho de contenção dos limites de um corpo. A constatação da qual decorre essa crítica ao significante é a de que, do ponto de vista das terapêuticas não modernas, é inviável atribuir uma precedência lógica das formas significantes em relação às forças mobilizadas no interior de uma prática, ou, para usar os termos de Stengers e Chertok (1990), das dinâmicas da razão em relação àquelas do “coração”. Pensar assim implica em deslocar a imagem corrente da psicoterapia como atividade de atribuição de sentido às experiências de não-sentido ou de formalizar o discurso informe da loucura. Tanto o relativismo da 12François Zourabichvili (2004) faz uma observação acerca desse conceito que avança algo de uma dinâmica apropriativa que é o que Nathan pretende ressaltar: “O valor do território é existencial: ele circunscreve, para cada um, o campo do familiar e do vinculante, marca as distâncias em relação a outrem e protege do caos. O investimento íntimo do espaço e do tempo implica essa delimitação, inseparavelmente material (consistência de um "agenciamento") e afetiva (fronteiras problemáticas de minha "potência"). O traçado territorial distribui um fora e um dentro, ora passivamente percebido como o contorno intocável da experiência (pontos de angústia, de vergonha, de inibição), ora perseguido ativamente como sua linha de fuga, portanto como zona de experiência. No Anti-Edipo, o território não se distinguia do código, pois era antes de tudo um indício de fixidez e fechamento. Em Mil platôs, essa fixidez não exprime mais do que uma relação passiva com o território, e eis por que este último se tornou nessa obra um conceito distinto (396): "marca constituinte de um domínio, de uma “permanência", não de um sujeito, o território designa as relações de propriedade ou de apropriação, e concomitantemente de distância, em que consiste toda identificação subjetiva - "um ter mais profundo que o ser". O nome próprio e o eu só assumem sentido em função de um "meu" ou de um "em minha casa" (p. 24).

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forma “cultura” como, em psicanálise, o idioma do significante e da “lei”, indicam um mesmo procedimento de redução que tanto sobrecodifica, sob a sensatez do “um”, o pressuposto nonsense de uma multiplicidade e ignora a exterioridade das relações de força pela imposição da interioridade de uma Antropologia. O que não se tem aí é a possibilidade de conceber um outro espaço epistêmico, muito diferente. Nesse, pensar e ser afetado descrevem o mesmo processo, aquele que situa um “pensamento da influência” fora do espaço epistêmico moderno. A necessidade de considerar as técnicas de influência como técnicas de produção de acontecimentos (e não apenas de sentido) se depreende dos efeitos terapêuticos, relatados por Nathan e sua equipe, suscitados pela emergência de uma presença inesperada. As sessões no Centre, interessadas na modificação desses “continentes formais”, estão submetidas ao desafio de compor um espaço no interior do qual outros territórios possam ser, não anexados, mas capazes de fornecer parâmetros para o que deve ser incluído e excluído da cena terapêutica. A variação de seus formatos decorre dessa tentativa de não dissociar o conteúdo do discurso dos usuários daqueles continentes aos quais estes se relacionam. O objetivo é não separar aquilo que se fala das muitas formas pelas quais o falante faz e refaz o espaço de validade daquilo que diz. O desafio é o de não impor, de saída, uma hierarquia entre as nossas palavras e as coisas dos outros, mas em arriscar aquilo que Nathan chama de “exploração aventureira do mundo das coisas em um universo de palavras” (1994, p. 103). O personagem capaz da aventura de que fala Nathan é um capaz de adotar uma postura que, pela inversão da célebre expressão lacaniana, o posiciona como um “sujeito-suposto-desconhecer”. Esse desconhecimento diz respeito tanto à postura do terapeuta que, voluntariamente, a faz coincidir com aquela do “idiota” de Stengers, e também à maneira como este se dá a imagem do desconhecimento do outro acerca daquilo que o constitui (e destitui). O ponto de partida assumido pela etnopsiquiatria é o de que essa opacidade a si não indica qualquer deficiência reflexiva ou propriedade constitutiva do “sujeito”. Ele se aproxima à constatação de que, do ponto de vista da feitiçaria, todo pensamento se dá “do lado de fora”, ou melhor, nos procedimentos de dobradura que tornam difícil concebê-lo no interior de uma geometria euclidiana. É pelo fato de um “usuário” ser constituído no ponto de confluência de uma exterioridade que produz o sentido de sua (des)ordem que, para Nathan, o “sentido 66

do não-sentido” não é uma coisa que se possa “encontrar”, mas algo que, por percorrer os vários elementos de um agenciamento terapêutico, se pode, no máximo, “manipular”. Como dito no capítulo anterior, as publicações de Nathan, após sua guinada rumo a uma pragmática, tornaram-se cada vez mais críticas em relação à doxa que orientava a disciplina de seu professor. Isso, no entanto, não implica que ele ignore os efeitos que o agenciamento fala-escuta-divã, mesmo em seu formato mais ortodoxo, são capazes de gerar. O que se quer evitar é a imagem do pensamento que ela incorpora como princípio e faz proliferar como efeito, aquela que, ignorando a renúncia de Freud à pretensão de distinguir completamente a ação do psicanalista da manipulação hipnótica, “recalca” as relações de força em seus enunciados teóricos:

Eu também conheço, por havê-la experimentado, a força das convicções geradas sobre o divã. Mas eu não posso aderir às teorias que proclamam habitualmente os psicanalistas, meus colegas, para dar conta da eficácia de seu método. Eu não posso crer na magia da tomada de consciência, nem na eficácia simbólica do verbo ou em não sei qual verdade do sujeito (FOURMI humana, bêbada de universal, seu arbitrário é bem um signo, aquele da barbárie). Eu não sei por que a transferência psicanalítica se resolveria, ou mesmo se dissolveria -, enquanto que a relação terapêutica com um curandeiro tradicional deveria ser considerada a priori como um conjunto de manipulações hipnóticas (1994, p 106, tradução minha)

Como a atividade psicoterapêutica corresponde a uma lógica dos efeitos, Nathan defende não a simples desqualificação dos vários paradigmas psi, mas uma postura que os subverte por submeter o julgamento de seu valor àquilo que se mostram capazes de produzir diante de uma dada situação 13. A psicanálise, como qualquer técnica terapêutica eficaz, é uma modalidade das técnicas de influência, uma prática de modificação do outro. A dificuldade em concebê-la dessa maneira, de imaginar

algo

como

uma

descrição

propriamente

“etnográfica”

de

seus

procedimentos decorre da blindagem tanto de seu espaço operatório como

13Cito: “eu não penso as teorias de Winnicott mais verdadeiras que as de M.Klein, de Balint, de Bion, de Lacan ou de Anzieu até que me chegue o momento de encontrar pacientes “kleinianos”, “balintianos”, “winnicotianos e, mesmo, “lacanianos”. Em psicopatologia as teorias são, ao mesmo tempo, metafóricas e engajadas em um movimento de permanente deriva (..) é sob essa condição que elas se revelam, úteis ao clínico “ (Id. ibid. P. 3, tradução minha)

67

conceitual.

14

Uma sessão de etnopsiquiatria é incapaz de fornecer tanto um

decalque exato das elaborações inconscientes do paciente quanto uma descrição completamente inteligível das determinações “culturais” de seu discurso consciente. A intenção é experimentar os efeitos sobre ele de uma ação. Ela pretende descrever, portanto, não a natureza oculta por trás de um sintoma, mas a multiplicidade de vínculos que, por o terem feito, indicam maneiras de especular sobre as possíveis formas de desfazê-lo. O feiticeiro, ou melhor, um bom feiticeiro é, em oposição, aquele cuja maestria no uso de suas ferramentas o torna capaz de explorar a reversibilidade do que se chama um “fato psíquico”. Essa reversão não indica algo como um retorno mas como um encontro. Essa reversibilidade, diria, se expressa em ao menos dois sentidos: seu procedimento não concebe a passagem do infans ao adulto como um movimento linear; não postula a precedência lógica que imagina um processo de subjetivação como um movimento do simples ao composto, mas, antes, como uma sequência de passagens que levam de um composto a outro composto.Sobre o trabalho do babalaô iorubá, por exemplo, Nathan e Hounkpatin (1998) dizem:

(...) o terapeuta iorubá utiliza Legba, divindade essencial nas técnicas de cura. Nós percebemos seu papel complexo na cosmogonia iorubá, comparável ao trabalho do curador. Ele é, com efeito, descrito como um complexificador impedindo a reprodução ad libitum do idêntico. Porque se Legba não intervisse perfurando os humanos e tornandoos sexuados eles seriam todos fabricados de modo idêntico. É por isso que se diz que se os humanos se fabricam entre eles, eles “misturam” os traços dos ancestrais e fazem nascer uma nova combinação original. Esse é, eminentemente, o papel do curador, que deve fazer advir uma nova criação original. É por isso que cada curador possui- seja uma estatueta bifronte de tipo Janus, seja uma cabaça na entrada de sua casa” (Id. Ibid., p. 40, tradução minha)

Disso decorre que não se exige dos usuários nenhuma convicção anterior, nenhuma adesão implícita ou explícita aos pressupostos de uma técnica ou seu 14 Na verdade, esse fechamento é alcançado por meio da maneira como ambas as estratégias se reforçam mutuamente. Pela injunção do “passe” em psicanálise, nota-se a circularidade que restringe a avaliação da expertise de seus aspirantes aos critérios de outros psicanalistas. O julgamento do mesmo pelos mesmos parece ter sido uma constante em sua história. Há, no entanto, certa ironia em lembrar como o alinhamento teórico do grupo de Zurique também foi conseguido graças a certos objetos (pouco levados em consideração) pelos quais Freud fez e desfez alianças entre pessoas, ideias e técnicas: os anéis distribuídos por Freud em seu “Comitê dos Sete Anéis”, suas centenas de cartas trocadas com seus inimigos e aliados, etc.

68

encerramento em termos de uma matriz cultural. Para Nathan, espera-se simplesmente que ela aja “por si mesma”, que provoque uma mudança significativa para os usuários. A eficácia de um procedimento não é nem “simbólica” nem “psicológica”, é técnica; diz respeito menos a uma hermenêutica que a uma pragmática. Sai-se, por aí, do quadro de referência para o qual a manipulação (a imposição de mãos dos magnetizadores, os objetos do hipnotizador, a mise-enscène do curandeiro tradicional) visam não mais que a construção artificial de uma experiência de cura para um outro no qual são as próprias pessoas que aparecem como “objetos manufaturados” (2001, p. 133). Se, em relação ao primeiro, o “sujeito” é constituído na ausência mesma de seu “objeto”, para a segunda é esse “sujeito” mesmo que se mostra um objeto compósito usado, isto é, modificado, por outros objetos. Não acredito que, do ponto de vista de Nathan, haja apenas um jogo de palavras na oposição acima. Como se sabe, tanto “sujeito” como “objeto” comportam sentidos diferentes no interior mesmo das escolas psicanalíticas, mas o que ela parece não poder conceber, e nisso ela deixa explícito o seu “selo” moderno, é a possibilidade do abandono dessa oposição pela adoção da via na qual se situa a prática

de

Nathan

como

todas

aquelas

provenientes

da

linhagem

dos

“manipuladores”. Nessa, só se pode descrever o sujeito como um objeto com a condição de que qualquer objeto seja tomado, simultaneamente, também como um “sujeito”, ou seja, como o condutor de um feixe de intencionalidades. Entende-se, assim, a oposição do autor entre as figuras do neurótico psicanalítico, seu tipo ideal de analisando, e aquela do feiticeiro, que é, para essa, o melhor exemplo de algo como um “antianalista”. Se a imagem que se tem do primeiro é a de um “escravo do pensamento”, a que se poderia fazer do segundo, fora da psicanálise, é a de um “virtuose da técnica” (1994, p. 117). A escravidão neurótica deriva da maneira como ela restringe o pensamento ao tempo de uma biografia psicológica “arborescente” que a enraíza no conflito mal resolvido ou no trauma não elaborado, em suma, na circularidade de um eterno retorno do mesmo sob a aparência do diferente. O procedimento etnopsiquiátrico não concebe a psicogênese necessariamente como um movimento linear; não postula a precedência lógica que imagina um processo de subjetivação como um movimento do simples ao composto, mas, antes, como uma sequência de passagens que levam de um composto a outro composto, o 69

que faz dela uma técnica de manipulação das misturas. O feiticeiro, ou melhor, um bom feiticeiro é, em oposição ao neurótico, aquele cuja maestria no uso de suas ferramentas o torna capaz de explorar a reversibilidade do que se chama um “fato psíquico”. Essa reversão não indica algo como um retorno, mas como um encontro. As técnicas de influência-interessadas nos processos de composição e decomposição dos corpos – se aproximam mais de uma teoria rizomática dos processos de subjetivação. A condição colocada por Nathan para que se possa aproximar um curador “tradicional” de um analista é a de que se subverta o termo, resgatando, para o termo “análise”, a metáfora química originalmente presente na expressão freudiana. A química oferece aquilo que Stengers (2005) propõe como uma via alternativa aos modelos da física e da biologia para pensar os modos de interação entre os corpos e os fenômenos de emergência que eles implicam. Diferentemente do modelo mecânico e daquele biológico da “composição harmônica” - preocupado com a funcionalidade e coesão dos organismos: Esse modelo se depreende da arte dos químicos, que entendem a multiplicidade do que eu chamaria de “actantes” químicos com os quais eles lidam em termos das maneiras de manipulá-los e fazê-los fazer aquilo de que são capazes. Falar de uma arte dos químicos significa fazer referência não à química contemporânea, que é frequentemente concebida como um tipo de “física aplicada”, mas à velha química do século dezoito. Usar o termo “actante” aí significa assumir o lugar dos pensadores iluministas (especialmente Diderot ou, posteriormente, Goethe) que o contrastaram com o modelo mecânico, recusando sua submissão ao ideal de uma definição teórica das associações químicas do qual as possibilidades de reação seriam supostamente inferidas (esse “ideal” está longe de ser alcançado pela química contemporânea). Se há uma arte, é porque os “actantes” químicos são definidos como “ativos” sem que sua atividade possa ser atribuída a eles; ela depende das circunstâncias e cabe à arte dos químicos criar o tipo de circunstâncias nas quais eles se tornam capazes de produzir o que o químico deseja: arte da catálise, ativação, moderação” (p. 18, tradução minha)

Nathan procura retirar a noção de influência da definição que, em psicanálise, a definiu como um empecilho à boa aplicação de sua técnica e que, conforme o procedimento modernista indicado por Stengers, forneceu o modelo de terapêutica contra o qual ela se definiu negativamente. Para Nathan, “influenciar” indica, sobretudo, algo de um “pensar - pensar no sentido forte do termo; de produzir o 70

pensamento”. (2001 p. 114). A atividade do curandeiro põe em movimento tanto uma elaboração acerca da natureza de um mal quanto um gesto que visa, simultaneamente, produzir e modificar essa mesma natureza. Ou, dito de outro modo: “os dispositivos terapêuticos contem, em geral, as duas versões desse tipo de indução: 1) a afirmação de uma ontologia e 2) o exercício de uma autoridade” (Id. ibid. p. 115). Esse ato de “autoridade” não deve consistir, todavia, na neutralização do discurso do paciente pela chave interpretativa do terapeuta, mas – conforme o vínculo etimológico que deriva a autorictas da augere, da atividade de “fazer crescer” de potencializar – condiciona sua validade aos efeitos que a ação do curador é capaz de desencadear. Embora as técnicas de influência sirvam todas à mesma finalidade (produzir uma transformação), Nathan salienta que elas não o fazem da mesma maneira porque seus procedimentos, muito variáveis, fornecem não apenas respostas como perguntas irredutíveis umas às outras. O que permite as reunir, no entanto, é o fato de que, para o autor “toda terapia (incluída a psicoterapia) é uma ação sobre a matéria com a finalidade de modificar o ser” (Ibid. p. 120), definição que precisa ser esclarecida. Porque elas se definem, precisamente, por uma ação é que Nathan defende uma definição destas na qual sua “verdade” reside principalmente nos objetos que estas manipulam e na maneira como são acionados estrategicamente. É na medida em que Nathan propõe uma definição dessas técnicas que as vincula essencialmente à qualidade dos objetos que manipulam que se estabelece a impossibilidade de uma definição negativa dessas práticas. Os terapeutas são manipuladores de objetos e estes estão situados na dobradiça entre o estado indesejável se quer reverter e o pensamento daquele considerado capaz de promover essa inversão, e revelam ou atualizam o pensamento desse último. Para o autor, são três as possibilidades encontradas na psicoterapia moderna em relação à questão da cura. Uma delas diz respeito à sua definição como uma espécie de “eureka miraculosa” que revela subitamente a alguém o sentido oculto de um caos aparente e outra é àquela das “análises transacionais e terapias cognitivas”, que a definem como uma adaptação conseguida por meio de um trabalho pedagógico. Uma terceira é, ainda, aquela de uma “renúncia cínica a toda modificação, posição que Isabelle Stengers definiu assim: aprender enfim a se descobrir incurável” (2001 p. 123). É essa última a que se depreende da psicanálise e que Lacan sintetizou dizendo: “Saber lidar com seu sintoma, é isso o fim da 71

análise” (Lacan, 1976, P. 77). Para Nathan, o problema da transformação é indissociável daquele da produção de alianças, da manipulação dos vínculos que, por determinarem a consistência específica de um corpo, são os elementos capazes de a modificar. O equívoco psi, nesse sentido, foi o de só ter sido capaz de remeter a mudança a uma interioridade e de ter ignorado a impossibilidade de que a inserção de uma diferença (um objeto técnico, um acontecimento, um espírito, etc.) não gere o diferinte em todos os pontos dessa cadeia, fazendo com que seja toda a rede que seja colocada em

jogo

nas

técnicas

de

influência:

Foram sem dúvida os antigos os que mais refletiram sobre esse problema, notavelmente os gregos, evocando, em seus relatos míticos, a possibilidade de metamorfoses- problema pouco retomado, salvas as exceções, evidentemente, em Kafka, mas, sobretudo, em Deleuze, que soube compreender muito bem que a metamorfose é uma questão de aliança. (Nathan, 2001, p. 123, tradução minha)

Dessa perspectiva, a produção de uma cura é sempre a instauração de um devir. A finalidade de uma terapia não é, portanto, estabelecer o retorno a um padrão de normalidade definido de maneira genérica, mas produzir um futuro, um estado distinto tanto daquilo que se era antes e daquilo que, indesejavelmente, se é: “as palavras-chave de uma teoria da transformação em psicoterapia: “devir”, “evolução entre heterogêneos”, “contagio”, “criação” (Id. ibid. p. 124). Todo

agenciamento

terapêutico

capaz

de

promover

essa

aliança

transformadora se apresenta como um dispositivo composto de pelo menos três elementos: uma teoria, os objetos que a atualizam e um técnico capaz de manipulálas. A finalidade de um tal dispositivo é descrever a agencia da “coisa”, então desconhecida, que produziu uma determinada desordem. “Coisa” é um termo utilizado por Nathan em um sentido preciso: “coisa é aquilo que captura aquilo de que se aproxima” (Id. ibid. p. 127), aquilo capaz de desestabilizar, por meio do

72

vínculo que produz com alguém, o arranjo de forças que o sustenta 15 A aparição de uma desordem, portanto, é a consequência de um devir instaurado pela presença de uma “coisa”, pelo vínculo que se estabelece entre ela e àquele a quem se vincula; o procedimento terapêutico por sua vez consiste na reversão de um estado pela produção de um novo devir, capaz de rearranjar as forças em jogo de uma maneira que seja propícia aos interessados. Os “estilos de devir” de que uma técnica se mostra capaz de promover são aquilo que a distinguem e conferem sua potência terapêutica. Nathan evoca o procedimento divinatório que, no caso fetichismo congolês, faz da identificação da origem de um mal pela pergunta que formula ao “fetiche. Como se sabe, os fetiches são constituídos de um aglomerado compósito de elementos que, não obstante terem sido fabricados por mãos humanas, possuem a capacidade de falar e expressar algo que escapa ao conhecimento daqueles que os fabricaram. A analogia que, para Nathan, estaria implicada aí é aquela que procede da

seguinte

maneira:

Se um objeto manufaturado, composto de um conjunto de materiais heteróclitos se mostra capaz de falar inteligentemente, aqueles seres dos quais a principal característica é falar, os humanos, são igualmente agregados compósitos. Assim, a especulação empreendida pelo dispositivo congolês poderia ser resumida de acordo com a seguinte fórmula: os humanos são objetos manufaturados (por isso, quando se fabrica corretamente esses objetos que são os fetiches, eles se comportam, por sua vez, como os humanos e se metem a falar) (2001, p. 133, tradução minha)

Segundo Nathan, portanto, o estilo de devir implicado nesse dispositivo é aquele que se poderia se chamar “devir-objeto-manufaturado”. É ao longo da aliança pela qual se obtém, simultaneamente, um devir humano do objeto fetiche e um devir fetiche dos humanos, que se instalam as ações de influência. Outro caso aludido na 15“Os gregos antigos poderiam dizer: ”Foi Afrodite que tornou Romeu apaixonado por Julieta”. Nesse caso, Afrodite, o desejo amoroso, é uma coisa. De modo ainda mais demonstrativo: a língua é uma coisa-tipicamente, aquilo que “causa”-; e esse último exemplo nos permite apreender uma característica das coisas: elas são produto de uma fabricação, sempre obra de um coletivo. As plantas alucinógenas tais como foram descobertas/produzidas pelos ameríndios são uma coisa. E lá (nós poderíamos rir): “As coisas têm uma alma”- ou ao menos uma intencionalidade. A coisa causa e os humanos produzem os objetos para encarnar e se aproveitar da coisa “(Id. ibid. p. 128, tradução minha).

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mesma passagem, e que indicaria também a potência terapêutica das alianças, é o do sheik muçulmano. Segundo Nathan, esse conceberia o Corão não apenas como um texto, de cuja interpretação decorreriam as explicações para o sofrimento dos homens. Mais exatamente, ele o manipularia como uma “coisa”, “um ser que causa, que age” (Id ibid. p. 135) e cuja simples presença é capaz de modificar um determinado estado de coisas. Assim, os Djinns – gênios causadores de uma série de enfermidades- podem ser capturados pela influência do texto corânico e convertidos automaticamente ao Islã por sua potência metamórfica. Essa potência, no caso dos humanos, é bem explicitada pela repetição exaustiva de certas passagens no exercício do dhikr pelos sufis que, por meio dele, chegam a transmutar sua própria substância em substância divina. Segundo Nathan, a qualidade transformadora desse objeto-texto reside tanto naquilo que chama de seus “macroelementos” (nomes de demônios e anjos invocados por ele, as palavras pronunciadas durante sua fabricação, a potência de seu fabricante, etc.) como em seus “microelementos” (suas letras, as relações de contiguidade entre essas, a textura do papel que as comporta, a qualidade do animal do qual foi feito, etc.). Dessa maneira, para além da qualidade propriamente semântica do texto, dos sentidos de suas palavras para qualificar as razões do sofrimento humano e das possibilidades de proteção contra esse sofrimento, Nathan frisa a maneira como o texto corânico aparece como “um agregado de elementos heteróclitos impossível de ser desfeito-o conjunto constituindo uma espécie de ser vivente que age com uma certa inteligência” (Id. ibid. p. 136, tradução minha). O que é necessário sublinhar aí é a maneira como à materialidade do texto corânico é concedida uma importância tão grande quanto a que se dá ao conteúdo de suas palavras; à maneira como ele é empregado como uma espécie de amuleto que deve ser não apenas lido segundo um cânone interpretativo, mas como ferramenta que se deve aprender a empunhar corretamente. Como no caso do fetiche congolês, Nathan defende que o que se passa num uso terapêutico da potência do texto corânico é um processo que propõe um devir para os humanos, um devir-texto, aquele que toma o homem, como o texto, como um conjunto fundamentalmente compósito que deve ser manipulado e “envelopado” corretamente para que seja capaz de resistir às forças que poderiam desagregá-lo. Nesse trabalho de ligadura, de composição de uma textura própria, uma série de objetos são 74

necessários e é por meio da vinculação dos corpos humanos a esses objetos que procedem técnicas como aquela de Mdme. Visnelda descrita acima. Em relação à aliança entre o terapeuta e aquele de que ela trata, os estilos de devir implicados nessas técnicas escapam das únicas duas alternativas que, segundo Nathan, foram as que a medicina savant pôde oferecer. De um lado, têm-se uma perspectiva que veria no paciente alguém que deve ser educado, alguém definido por sua ignorância constitutiva; de outro, aquela que Nathan descreve como um “contrato de tipo capitalista liberal” onde se imagina a possibilidade de anular a diferença, óbvia, entre a expertise do terapeuta e daquele alguém que, justamente por se julgar incapaz de resolver sozinho determinada situação, delega ao primeiro a capacidade de agir sobre seu corpo. O que Nathan diz haver em técnicas como as aludidas acima é mais algo da ordem de um “convite”- e nisso, conforme sugere o etnopsiquiatra, ela comporta uma parte de sedução: “Se você se engajar comigo na aventura de devir-água, o segredo dos fluidos te será revelada…” (2001, p. 146, tradução minha). É em relação a isso que a psicoterapia pode se revelar subversiva e não em relação aos conteúdos teóricos que ela veicula, sempre “recuperáveis”, absorvíveis pelos poderes políticos instituídos. Mas o reverso da medalha é que os dispositivos terapêuticos produzem espontaneamente adeptos. É também em razão de sua capacidade de seduzir, de envolver, de constituir grupos, de construir hierarquias paralelas que as autoridades são cautelosas em relação aos dispositivos terapêuticos e os tentam controlar (ibid. p. 147, tradução minha)

Essa potência associativa das técnicas terapêuticas, capaz de instaurar e de dissolver grupos, não é per si subversiva. Quando utilizada para reiterar o humanismo que coordena os pressupostos das ciências savant ela pode ser mesmo utilizada para deslegitimar as técnicas terapêuticas que revelam o humano como produto de uma dinâmica associativa que envolve seres e forças muito diferentes daqueles capazes de serem reunidas sob a ideia de uma psique universal. Ela o é apenas quando, ao revelar o humano como produtos de uma cadeia de nós, é o próprio solipcismo humanista que é colocado em questão. No caso da psicanálise, essa qualidade “subversiva” das técnicas terapêuticas parece ter sido utilizada como uma ferramenta de reprodução de uma mesma 75

imagem do Homem e de um mesmo grupo de peritos: daqueles que se autoatribuem o monopólio do conhecimento da razão subjetiva. Como lembram Stengers e Chertok (1990), a doxa psicanalítica faz de todo analisando um analista em potencial por conceber o objeto de interrogação do analista com as mesmas propriedades que fundamentam o trabalho de análise. Foi por meio desse procedimento circular que Lacan definiu, e nisso marcou uma certa distância de Freud, o “sujeito” da psicanálise como o mesmo o sujeito da Ciência: a análise, na qualidade de produção daquilo que a autoriza, é, identicamente, uma reprodução dos que a praticam” e é por isso que “o [objeto] analisando confirma a legitimidade da técnica que o produziu” (Ibid. p. 214).

É nesse sentido que a produção de uma subjetividade em psicanálise só pode ser concebida circularmente: como reprodução de um mesmo modelo 16.

16A esse respeito é importante relembrar como Pankeiv, o famoso “Homem dos Lobos” analisado por Freud, se transformou em um personagem incapaz de se dissociar de seus psicanalistas, mesmo após seis décadas de análise. A cura mais famosa de Freud seria colocada em jogo pelo próprio que, ao fim da vida, teria dito “tudo isto parece uma catástrofe. Eu estou no mesmo estado que quando vim ver Freud, e Freud já não existe.” (Obholzer, 1993)

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Capítulo 3 Práticas

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No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito… (Jorge Luis Borges)

Então não se perguntará qual o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido. O acontecimento pertence essencialmente à linguagem, mantém uma relação essencial com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas. (Gilles Deleuze)

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3.1 Despertar do sono pela “ecologia das práticas” Lembro de ter escutado (ou lido) em algum lugar uma proposição que não reencontrei, mas que não pude esquecer porque me parece muito interessante. Era algo como: “o humanismo só é capaz de conceber duas posições para o homem: ser o centro do mundo ou estar fora do mundo”. Essa imagem do pensamento, em relação às práticas científicas modernas, é aquela da qual Stengers e Chertok (1990) dão uma boa definição e sugerem um modo de escapar. Foi em relação ao constrangimento que a hipnose trouxe e ainda traz às ciências por ocupar, irredutivelmente, o centro de uma grande encruzilhada. Com relação a ela, a modernidade psi parece falhar sucessivamente em conter em seu interior as linhas de força que reinserem, subitamente, o “pré-moderno” no interior da modernidade e que ameaçam retirar dela, progressivamente, a certeza de que possa haver um limite capaz de dar dela um contorno definitivo. Mesmo antes de se multiplicar em uma multiplicidade técnica e conceitual, a hipnose já tinha, na figura de Charcot, a conjunção entre médico, manipulador e taumaturgo que fez dele tanto mestre quanto inimigo conceitual de Freud. O eminente neurologista deu a esse tanto a via de acesso a seu objeto quanto prefigurou o beco sem saída de sua técnica, aquele em que a interpretação acaba, invariavelmente, por se aproximar perigosamente da indução. O tratamento da histeria vinculou também as duas formas de criação apontadas por Da Vinci: o “teatro da histeria” reunia semanalmente na mansão de Charcot tanto médicos renomados quanto um bom número de representantes da intelectualidade parisiense que assistiam, os pacientes de Charcot se travestirem e encenarem a própria crise que acabava por vir “naturalmente”. O personagem que investiu na determinação das bases fisiológicas dos sintomas das crises histéricas foi o mesmo que sustentou que esses eram precipitadas pela presença de um público porque a histeria era, além de uma doença, uma performance e que a mise-en-scène era também uma modalidade de terapia. Por essa multiplicidade é que Stengers e Chertok (Ibid) dizem que a hipnose impede uma circularidade auto referencial. Essa não é outra que aquela descrita por Foucault onde, depois de Kant, se operou a confusão entre o empírico e o transcendental “em todos os lugares onde as disciplinas fecharam o círculo de seus 79

julgamentos (em termos derivados de Kant, esse círculo se expressa como ”as categorias da disciplina são também e ao mesmo tempo os princípios do objeto”: Muito curiosamente, após décadas de pesquisas e milhares de artigos, é difícil considerar que a experimentação tenha permitido compreender a hipnose..Antes, ela esbarrou, em suma, em seus próprios limites: a hipnose turva a distinção entre a encenação experimental, que garante a purificação e o controle dos fenômenos, e o estudo do fenômeno purificado e controlável. A hipnose constitui há dois séculos, como veremos-um desafio para a razão experimental, tal como constitui, desde que a psicanálise reconheceu, com Freud, não ter de fato podido encontrar-lhe um “substituto”, um desafio para a razão psicanalítica. (Id. Ibid. p. 21)

Ao longo de seu Cosmopolitiques, Isabelle Stengers forjou um modo de se aproximar das práticas científicas na qual o dispositivo de Nathan aparece como um modelo de procedimento que interessa não apenas às ciências psi, mas, de modo mais amplo, a todas as chamadas ciências humanas. Sobre esse último termo, no entanto, é preciso fazer uma ressalva porque por meio dele a autora conecta práticas aparentemente distantes, mas que se tocam em relação ao “risco” específico que distingue suas práticas: Aqui eu estou me referindo ao que é geralmente conhecido como “ciências sociais” e que cobre um espectro que vai da psicanálise, psicologia e medicina a várias formas de sociologia, ensino, antropologia e muitos outros campos que servem de referência a várias formas de intervenção e assistência social. Mas o termo também se refere a práticas que, de um modo ou de outro, servem de zeladores de nossa “ecologia” sociocultural, práticas que se voltam, para bem e para mal, para os relacionamentos que devem ser produzidos entre grupos heterogêneos” (Stengers, 2003, p. 304, tradução minha)

A organização da “ecologia” de Stengers opera segundo um procedimento de simetrização que visa corrigir a assimetria nos modos de julgamento das práticas por meio da identificação dos “constrangimentos” 17 específicos (2003, p. 73) que as distinguem e que se desdobra, por sua vez, em dois tipos:

“exigências” e

17 Como em relação à noção de pertencimento, a autora prefere o uso do termo “constrangimentos” a “condições” pelo segundo ser usualmente apropriado como uma forma de se referir a um campo científico pré-definido. “Constrangimento”, em oposição indica aquilo que é exigido dos praticantes, mas que não comporta nenhuma definição substancial, algo que se percebe no modo como ele é preenchido de modos muito diferentes conforme se percorra a paisagem descrita ao longo dos sete volumes. (Cf. Stengers, 197, pg. 74).

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“obrigações”. É indispensável, antes de definir esses conceitos, que se tenha uma boa noção da intenção da autora ao privilegiar uma definição por via da prática. Em um primeiro nível, ele impede a replicação da partilha ontológica ao nível disciplinar que poderia endossar a legitimidade de uma divisão do trabalho teórico que o corresponda ponto a ponto. Além disso, ela evita também aquilo que chama de um “realismo de reivindicação”, patente no caso da física experimental por ser ela o modelo hegemônico de acesso ao real, aquele que não precisa se justificar (a não ser internamente) acerca daquilo que diz e, portanto, pretensamente descolada de qualquer tipo de determinação extrínseca. Segundo Stengers, “prática” tem ainda a vantagem de ser um conceito "meso", de nos situar em um ponto intersticial tato entre o micro e o macroscópico como entre o "individual" e o "social" por indicar nada mais que um trabalho de conexão, de produção de "pertencimentos": um prático é, por definição, um membro de um coletivo e é em nome desse que ele pode enunciar algo acerca daquilo que faz aqui já se entreve um ponto que será importante para Nathan. Dizer que "prática" indica um pertencimento não significa o mesmo que dizer que ela descreve uma "identidade". Esta última noção, ao contrário da primeira, indica um substancialismo que é o mesmo do físico que imagina que, não importando em que lugar da Terra, esteja ele sozinho ou acompanhado, seus enunciados terão sempre a mesma potência eque ele será capaz de reproduzir sempre a mesma definição de si e daquilo que faz. Dito isso, é preciso esclarecer como Stengers operacionaliza o conceito. A noção de “obrigação” indica os "valores" que aqueles que pertencem a uma prática se colocam como distinguindo -a e permite distinguir, em um dado campo, uma boa questão de uma questão fora de lugar. A noção de "exigência", por sua vez, indica aquilo que os praticantes devem fazer para se relacionar com o seu meio e com as dificuldades colocadas por aqueles a quem sua prática se volta. Em relação às ciências sociais, no entanto, por estas estarem particularmente suscetíveis à “maldição da tolerância”, Stengers (Id. Ibid. p. 305) indica que o melhor caminho para realizar sua descrição passa pelo privilégio das “obrigações” em relação às “exigências” e isso porque é endêmico no campo a tendência a estabeleceu uma diferença de “grau” entre “nós” e os “outros” que desqualifica suas técnicas como não mais que “crenças”: “A partir desse ponto, a questão principal será aquela das obrigações, porque o constrangimento a que me referi como 81

”exigência” não é mais, nesse ponto, um guia confiável” (Id. Ibid. p. 305, tradução minha) Essa medida tem como finalidade evitar aquilo que a autora indica como o “risco” específico das ciências sociais, o de “mesmo com as melhores intenções no mundo, o esforço para criar conhecimento, em seu caso, se transforme em abuso de poder” (Id. Ibid., p. 309, tradução minha). No caso de Nathan, foi esse abuso aquilo que ele pretendeu evitar por meio de sua ruptura com Devereux ao interditar a pretensão a estabelecer a “ciência do humano no homem” e estabelecer uma injunção prática para a etnopsiquiatria. Nesse sentido, seu conceito de “pavor”, por exemplo, não tem a pretensão de dizer uma verdade última sobre as terapias não modernas, apenas descrever as “exigências” colocadas por seus praticantes. Dar um estatuto conceitual ao que a medicina “racional” supõe ter que desqualificar para merecer o adjetivo, é antes de tudo, reclamar um território existencial negado às técnicas de influência. Do ponto de vista do trabalho realizado no Centre, ele tem também um valor operacional; a dinâmica interativa que ele implica é o que orienta tanto a arquitetura do espaço quanto o modo de formular as estratégias terapêuticas junto aos usuários. Dessa postura decorre, para Stengers, a importância do trabalho de Nathan para um deslocamento dos regimes de produção do “real” nas ciências humanas:

Tobie Nathan, com o quadro conceitual da etnopsiquiatria que ele renovou, sugere uma prática, e talvez uma chave. Os co-terapeutas reunidos devem participar de um estranho processo: eles devem participar de, ou se engajar eles mesmo, na construção de palavras “ativas” e com objetos requeridos pela tradição não moderna a qual o paciente (originalmente um imigrante) sob seus cuidados pertence, queira o paciente ignorá-la em favor das categorias europeias ou não. Aqui, a análise da contratransferência deixa de ser uma panaceia, um remédio “universal”: durante esse processo, não é mais possível associar a angústia experimentada pelos co-terapeutas com uma razão geral e indiferenciada, como a fantasia da “mágica”, “toda poderosa” relação. Ao contrário, o processo obriga-os a confrontar aquilo que chamamos de “crenças”. Um co-terapeuta é amaldiçoado quando procura manter uma relação de julgamento com relação aos gestos e palavras “mágicas”, aceitando-as apenas como condições de um relacionamento que ele deve estabelecer para o “bem” do outro. Porque, fazendo isso, ele falha em reconhecer o poder apavorante da intrusão associada com a sobrenatureza à qual esses gestos e palavras se referem. (2003, p. 334, tradução minha)

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Essa injunção de valorar um conceito de um ponto de vista pragmático pode ser desdobrada ainda em outro sentido. Que o uso da teoria na prática etnopsiquiátrica interdite uma pretensão ao monopólio da verdade sobre os usuários é uma condição do sistema, mas é preciso ressaltar nesse sentido alguns pontos sobre as consequências que essa postura traz para o estatuto daquilo o que tanto a equipe de terapeutas quanto os usuários dizem e fazem no trabalho etnopsiquiátrico.

3.2 Palavras e outras coisas Em seu livro (1998) escrito em coautoria com Lucien Hounkpatin, etnopsiquiatra iorubá que hoje coordena os trabalhos no Centre George Devereux, os autores mostram como o trabalho do babalaô iorubá consiste em compor uma estratégia que lança mão de materiais muito heterogêneos no trabalho de cura: O mundo dos ancestrais é considerado como um universo indiferenciado e heteróclito, assim como o panteão das divindades: o indivíduo é herdeiro de uns como de outros. Quando o curador pretende restituir todas as partes de seu ser ao doente, ele deve então passar por uma elaboração complexa do pensamento mítico: ele acabará sempre por teorizar. Os babalaôs fabricam sem cessar as teorias. Sublinhamos igualmente que, se os elementos que ele retira sucessivamente do mundo dos ancestrais, daquele das divindades e da relação do indivíduo com as partes sagradas de seu corpo, podendo se articular entre eles, estes são, a princípio, independentes uns dos outros. De fato, ele deverá superpor diversas teorias (Id. Ibid., p. 34, tradução minha)

Esse trabalho de superposição conceitual tem, no caso do babalaô iorubá, a finalidade de criar tanto aquilo que chama de “palavras ativas” como o que chama de “palavras invertidas”; essas, têm como finalidade funcionar como ferramentas capazes de manipular o “envelopamento” do corpo e devem, portanto, reverter a inversão causada pela agência do que quer que tenha causado a doença: “a palavra quando, tal como o bisturi de um cirurgião, serve para abrir, é chamada “palavra invertida”, outras vezes ela serve para cauterizar, para fechar, ou também para abrir novamente uma vez que já se tenha fechado: trata-se dessa vez da “palavra ativa” (Id. Ibid., p. 27, tradução nossa) 83

Da mesma forma, para Nathan o uso das palavras nas sessões de etnopsiquiatria indicam que essas são pensadas como algo mais que um suporte do sentido; exigir a presença de um tradutor como um princípio operacional do dispositivo não decorre apenas de um problema expressivo.

Ainda que fale

perfeitamente o francês, a possibilidade de que um iorubá possa falar iorubá não é determinada, tampouco, por uma lógica do chiste: a suposição de haver um significado mal camuflado nos significantes 18. A consulta etnopsiquiátrica, porque parte do que se enuncia como enigma, procede recolhendo as pistas sugeridas pelos usuários e testando, uma a uma, as hipóteses dos terapeutas, dão ao trabalho da equipe de Nathan um ar detetivesco. Em tudo isso, as palavras têm um valor fundamental e a presença do tradutor é certamente importante por garantir a compreensão mútua, reparar os equívocos e pontuar algumas nuances que possam ter passado desapercebido. Ainda assim, do ponto de vista dos procedimentos de influência, o motivo é outro. Em um de seus diálogos com Catherine Clément (Clement e Nathan, 2002), Nathan diz: Esse homem letrado, que tinha todos os meios para pensar e uma larga experiência clínica para afinar seu pensamento ainda fala de “linguagem”? Por que ele fala de linguagem e não de línguas? Teria ele já encontrado um ser humano que falava a “linguagem”? A mim me parece que é mais produtivo, na clínica, se interessar elas línguas. É nesse sentido que eu propus que uma língua é uma “coisa”. (Id. Ibid.. 221, tradução minha)

Para Nathan, as línguas, ou, uma língua tem as propriedades daquilo que chama de “coisa”, um termo que, embora não tenha empregado em muitos lugares, descreve um modelo de relação que é o mesmo sugerido pela noção de influência. Que a noção não seja descritiva é interessante porque permite aplicá-la, com o 18Cito: “Porque para um psicanalista “escutar” significa não se deixar prender ao sentido imediato da palavra. Para escutar aquilo que está atrás da palavra não deve haver nenhum obstáculo à compreensão imediata dessa palavra. A tradução nos fez perder consideravelmente em “fluidez de escuta””, mas nos fez ganhar em multiplicações dos laços de escuta” (Nathan, 2001, p. 83, tradução nossa). Sobre essa injunção psicanalítica de escutar “aquilo que está atrás”, Lacan deu, a seu estilo, uma formulação tão obscura que chega a ser ilustrativa da postura: “Que se diga fica esquecido detrás do que se diz no que se ouve” (Id., p. 26)

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perdão da expressão, justamente a qualquer coisa (embora não a uma coisa qualquer). O ponto é que ela não diz respeito a uma entidade, mas a um modo de relação ou, ainda, a um modo de conceber “relação”. Os exemplos desse tipo de relação incluem, além daquela de um coletivo iorubá com sua língua, várias outras: dos muçulmanos com a corão, dos homens com as divindades do Vodum na África ocidental, com o fetiche no Benin, etc. De outro ponto de vista, o da “ecologia” de Stengers, sugeria que se poderia dizer, igualmente, que a relação dos cientistas com aquilo que sua prática manipula diz respeito a algo como uma “coisa”. Como sugere Stengers, um cientista nunca fala em nome próprio, mas em nome do coletivo ao qual pertence e sem o qual nenhuma prática científica é possível. Como, por definição, ninguém pode praticar nada coisa sozinho (nem mesmo os modernos), isso implica em que a “perturbação-mútua” (Devereux, 1980, p. 369) de qualquer atividade define um processo de “dupla-captura” (Deleuze, 1997, p. 8) em, pelo menos, dois sentidos: do membro de um coletivo que, simultaneamente, produz a esse e é produzido por ele e no da coprodução entre esse coletivo e aquilo que ele manipula. Nathan, da mesma forma, sugere que a importância terapêutica da língua também está na maneira como ele figura como convergência de uma multiplicidade de vínculos, como o espaço de um “devir”: “eu chamo de ”coisas” os objetos que fabricam os homens. Certos objetos, em geral fabricados coletivamente pelos homens, fabricando os homens em retorno” (Clement e Nathan, 2002, p. 221, tradução nossa). Desse ponto de vista, os homens, como as palavras e as coisas, aparecem como objetos manufaturados, aqueles que são feitos e refeitos nas terapias não modernas e no trabalho etnopsiquiátrico. Pensar as palavras como ferramentas não indica apenas pensá-las em sua concretude, gráfica ou sonora, mas também na multiplicidade de formas como podem ser agenciadas tecnicamente em situações muito diversas: O babalaô é um verdadeiro artista. Ele tem que congregar elementos extraídos da cultura, cobri-los com “palavras comuns” que são imediatamente acessíveis, e deslizá-las em uma fórmula que resista ao tempo e ao espaço de maneira que, mesmo dez anos depois, o paciente ainda possa usar aquela palavra para enriquecer sua existência. Resistir ao tempo e ao espaço e produzir uma relevância renovada em circunstâncias que ainda estão para serem

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determinadas, poucos filósofos puderam oferecer uma definição tão bonita da construção que chamamos de abstração” (Stengers, 2003, p. 327)

3.3 Cultura ou captura? Enfatizei, ao longo dos capítulos precedentes, a qualidade disruptiva do dispositivo e da prática teórica de Nathan em relação aos pressupostos da “medicina racional” de forma mais ampla e das ciências psi em particular. Quero agora ressaltar essa mesma qualidade em relação ao modo como Nathan opera um deslocamento que, se dificulta a classificação de sua Etnopsiquiatria como uma psicologia, também o faz em relação quadro teórico mais usual das ciências sociais e, dentro desse, em especial ao antropológico. Como ressaltei, a partilha ontológica que distribuiu em polos complementares o “psicológico” e o “social” são decorrentes de uma mesma operação que a prática de Nathan permite complicar. Nesse mesmo sentido, pretendo ressaltar, em seguida, essa mesma complicação em relação ao domínio usualmente referido como “cultural”. A intenção é explorar o tipo de perturbação de que é capaz a etnopsiquiatria em relação aos pressupostos de uma antropologia ao impedir sua identificação à uma Antropologia (aqui em maiúscula). A Etnopsiquiatria ocupa um lugar importante naquilo que Stengers (2003) identifica como uma nova maneira de reorganizar essas fronteiras disciplinares de modo a evitar a reprodução do “sono moderno”, naquilo que chamou de uma “ecologia das práticas” (ibid., p. 305). Essa ecologia indica uma estratégia de fuga da assimetria pela qual o front modernista desqualificou não só a “segunda medicina” (Pignarre, 1995), mas, de modo mais amplo, todas as práticas de conhecimento elaboradas não só contra, mas também aquém das ambições dos modernos. Avançar nessa ecologia significa abandonar o hábito de pensar as práticas científicas conforme uma definição que é seletiva para as ciências modernas, isolando dessas o que as aproxima do modelo hegemônico de razão e “negativa” -i. e. não descritiva-para as práticas não modernas. Conforme a perspectiva “etoecológica” a que fiz referência anteriormente, o que se pretende na ecologia de Stengers é extrair todas as implicações da constatação da indissociabilidade dos

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enunciados científicos e as práticas de enunciação que se depreendem de seus objetos e procedimentos de seus praticantes. Nessa empreitada, desenvolvida pela filósofa ao longo dos sete volumes que compõem sua Cosmopolitiques, a etnopsiquiatria de Nathan ocupa um lugar fundamental. O motivo, no entanto, não é alguma “interdisciplinaridade” sugerida em seu nome, mas, antes, certa qualidade “indisciplinar” daquilo que ocorre nas sessões do Centre George Devereux. Embora sua equipe seja, de fato, interdisciplinar, aquilo que Stengers sublinha é não sua capacidade de conjugar disciplinas cujos objetos estariam dos dois lados da bifurcação moderna, mas de operar, irredutivelmente, num ponto intersticial; nesse, é a própria possibilidade de impor um critério definitivo de partilha aquilo o que é recusado, ou melhor, posto em suspensão. A autora descreve como uma “maldição da tolerância” a propensão, atualizada sob diversas figurações, na qual, sob uma bem-intencionada intensão pluralista, o colonialismo epistêmico moderno faz com que as diferenças só sejam “toleradas” na medida em que suas distâncias recíprocas sejam reduzidas a variações em torno de um denominador comum, aquele monopolizado pela Ciência. Stengers (ibid.) aponta esse procedimento em relação ao conhecimento antropológico no que se refere ao modo como os antropólogos, frequentemente, mesmo se pretendem fornecer o conhecimento de uma outra cultura relacionando-a à sua própria fazem com que “o relacionamento do qual esse conhecimento deriva não aparece em sua base, ou aparece apenas a serviço da ciência que o produz. (p. 305, tradução minha) No interior da tradição antropológica, a injunção de revelar o “recalcado” da relação que fundamenta a prática etnográfica serviu a finalidades distintas. Tendo isso em vista, é preciso estabelecer aqui uma diferença entre essa crítica Stengers e uma outra, apenas aparentemente semelhante: aquela do “pós-modernismo” em antropologia. Embora seja injustificada uma homogeneização das linhas de força que percorrem empreendimentos coletivos como Writing Culture (1985), é notável a maneira como aí o projeto foi, de saída, definido negativamente. Essa negatividade indica sua identificação não só ao procedimento epistêmico da modernidade, mas, para usar a distinção de Stengers (2003), àquele do “modernismo”. Stephen Tyler (1986), em um dos textos da coletânea supracitada, sintetizava: “A etnografia pósmoderna constrói seu programa não tanto de seus princípios como das ruínas de sua desconstrução” (p. 131). Pela ênfase na impossibilidade da textualização da 87

experiência, o problema kantiano da representação adquiriu uma nova figuração. O que estava em jogo aí, obviamente, não era mais o desafio positivista de depurar, do “fato”, a “ficção etnográfica” ou de elaborar uma tradução que não fosse, simultaneamente, uma traição. No entanto, como entendo, pelo modo como foram elaboradas aí as consequências dessa constatação, o que se viu, conforme um paralelo inusitado, foi um movimento complementar àquele que fundou o espaço posteriormente ocupado e remodelado pela psicanálise: o da reflexividade biraniana que, aceitando o solipcismo humanista, deu ombros ao problema e definiu a psicologia como um desdobramento infinito do psi sobre o psi. Esse parentesco inusitado consiste em que, em ambos, a bifurcação moderna só é negada explicitamente em um nível para ser, implicitamente, reproduzida em outro. Como aludi anteriormente, se depreende de Canguilhem (1958) duas resoluções do campo psi diante da impossibilidade de reatar os dois lados da natureza. Uma consistiu em se restringir à ser não mais que uma métrica do erro subjetivo e outra foi a trilhada por Biran e aprofundada na psicanálise, cujo problema não era mais a distorção do objeto do sujeito, mas, nas palavras de Lacan, do je em relação ao moi. Do mesmo modo, se a crítica pós-moderna se opôs ao modelo das etnografias “clássicas” (Clifford, 1986) foi apenas pela denúncia de seu lugar mal resolvido nessa partilha, e não por a ter recusado. Que as culturas sejam representações parciais do mundo nunca foi, até recentemente, um problema para a antropologia. Essa parcialidade, ao contrário, era o que se supunha garantir a multiplicidade cultural e a etnografia como desdobramento de uma representação em outra. A crítica pósmoderna partiu daí, mas fez uma crítica necessária de qualquer pretensão à neutralidade nesse processo. Aquilo que qualifica seu modernismo, no entanto, foi não o problema colocado, mas, conforme sugere Goldman (2011), as respostas que ela ofereceu a esse problema, a negatividade de sua solução: (…) creio que o melhor que se pode dizer dos chamados pós-modernos é que foram capazes de levantar algumas questões realmente importantes, ainda que não tenham oferecido respostas interessantes para nenhuma delas! Isso provavelmente porque seus objetivos nunca foram os de responder ao que quer que fosse, mas, como se dizia, de adotar uma postura “irônica”, quer dizer, a daqueles que ao menos sabem que nada sabem ou podem saber com certeza. Postura responsável, talvez, pela incapacidade última de transformar a “crítica da representação” e o anúncio do caráter inevitavelmente

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ficcional da etnografia em um novo começo para a antropologia. (p.199)

Como na psicanálise, no pós-modernismo o solipcismo moderno é aceito, mas duplicado em outro sentido. Se o inconsciente é sempre, como dizia Lacan, o “discurso do outro” em mim, o que o pós-modernismo tomou como denúncia foi a projeção de si no discurso do outro. No entanto, em ambos os casos, a suposição é de que a partilha seja anterior àquilo que se possa dizer sobre ela, assim como a natureza é pressuposta como só uma antes de sua representação. James Clifford (1986,) definiu o mundo pós-moderno como um mundo, simultaneamente,

“pós-científico”

e

“pós-religioso”,

onde

“nem

a

ciência

transcendental e nem a religião transcendental podem estar em casa” (Id. ibid., p. 135, tradução minha). Essa definição é herdeira de um modo de conceber tanto “ciência” quanto “religião” de um modo que se opõe não apenas ao modelo “ecológico” de que falamos como também ao regime de coabitação entre elas proposto pelo Centre George Devereux. Sua nivelação “por baixo”, ou seja, por aquilo que, do ponto de vista da Ciência, descreve as religiões como uma ilusão e, do ponto de vista dessas, faz da primeira um dogma é não apenas um procedimento de redução dos pontos de contato possíveis entre elas, mas também da multiplicidade interna a cada uma desses modos de existência. Segundo Strathern (1988), esse procedimento é uma extensão da estratégia “relativista” que consiste em purificar a multiplicidade das diferenças que nos separam dos outros (ou dos outros desses) para reter apenas aquilo que permite a subordinação de uma alteridade arbitrária a uma necessária identidade. A cultura aí é definida de modo semelhante ao que diz Nathan sobre a figura do neurótico: esse, quanto mais se esforça para se diferenciar de um padrão repetitivo, mais perfeitamente padroniza a repetição de uma identificação. De modo mais amplo, esse giro em torno do próprio rabo perpassa todas as modalidades daquilo que Jean-Marc Lévy-Leblon descreveu como um “pensar em círculo”, que é caracteristicamente moderno tanto por sua interiorização forçada do múltiplo no um como na modulação de seu próprio fechamento ao exteriorizar essa mesma multiplicidade apenas o suficiente para empreender uma captura ainda maior e, preferencialmente, em uma circunferência ainda menor. 89

A postura relativista que percorria o modelo “clássico” de etnografia operava por circunscrição e contextualização do sentido dos enunciados “nativos” pela imposição de um modelo “arborescente” (sensu Deleuze, 1995) que fazia com que esses fossem sempre restringidos aos limites da forma “cultura”, não importando as pretensões do que se dizia em seu conteúdo19. O pós-modernismo inverteu apenas parcialmente a imposição desse “limitecontorno” (Deleuze e Guattari, 1980) e muitos autores já fizeram uma descrição detalhada dessa torção (cf. Goldman, 2015, Viveiros de Castro). Pretendo apenas enfatizar aqui aquilo que tem uma importância para a perspectiva de Nathan: o modo como a assimetria objetivista entre o condicionamento da proposição (explícita) do nativo pela posição (implícita) deste não foi superada aí pela equivalente circunscrição das proposições do etnógrafo, não se procurou, como em Geertz, por exemplo, contextualizar também o texto sem contexto do etnógrafo, mas em desalojar também aquele do nativo. Isso pode ser entendido em dois sentidos: um deles seria não o dos pós-modernos, mas, em sentido oposto, aquele no qual o fim da restrição significaria que todos têm acesso legítimo ao mundo, o que implicaria, consequentemente, que o mundo não poderia mais ser um só. Para Clifford, no entanto, o mundo do

“pós” significou que ninguém mais o tinha, nem a ciência do

etnógrafo, nem a religião nativa e, tampouco, aquilo que se criava por meio de seu cruzamento: todos agora desabrigados. 20

19Viveiros de Castro (2002,) dá uma formulação precisa: “A matriz relacional do discurso antropológico é hilemórfica: o sentido do antropólogo é forma; o do nativo, matéria. O discurso do nativo não detém o sentido de seu próprio sentido. De fato, como diria Geertz, somos todos nativos; mas de direito, uns sempre são mais nativos que outros” (p. 115).

20 Essa postura fica clara no comentário de George Marcus (1986) acerca da possibilidade de etnografar o que chama de “sistema mundo moderno”: A sutileza desse uso do ensaio é a de, seja ou não o sujeito explicitamente visto como vivendo em um sistema mundo fragmentado, ao nível de sua experiência e daquela do etnógrafo o mundo mais amplo é evocado indiretamente através da tentativa de transmitir na escrita etnográfica a experiência alheia. Essa é a aproximação radical da representação da diferença cultural em um mundo onde a saliência das diferenças tem diminuído, ao menos entre os leitores da classe média ocidental. Tal etnografia procura comunicar a qualidade da experiência de seus sujeitos, liberta da mediação de costumes e instituições, conceitos que carregam um viés em direção a ver ordem onde, no nível da experiência, tal ordem não é sentida ou imaginada no mesmo grau. A etnografia como ensaio moderno perturba o comprometimento com o holismo que está no coração das etnografias mais realistas e que é crescentemente problemático […] ela não promete que seus sujeitos são parte de uma ordem mais ampla. Ao contrário, pelo caráter aberto da forma, ela evoca um mundo mais amplo, de ordem incerta (p. 192, tradução minha)

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Aquilo que mobiliza a injunção de Stengers de que partimos, a de explicitar a relação que subjaz o conhecimento antropológico, é bem diferente da que moveu a crítica pós-moderna. Ao contrário de Clifford, o(s) mundo(s) que Stengers imagina não é aquele onde não se tenha nem ciência e nem religião, mas um onde seus praticantes possam deter a possibilidade de elaborar, do ponto de vista das práticas que os distinguem, seus pontos de conexão e disjunção; recusando sua adequação a um zoneamento ontológico imposto arbitrariamente. Nisso, Nathan também fornece alguns elementos interessantes para escapar tanto da “tolerância” moderna quanto do niilismo decorrente da postura pós-moderna. A noção de “clôture logique” (Nathan e Stengers, 1996) é um conceito que tem como finalidade fugir dessa encruzilhada que leva, de um lado, a uma concepção monádica de cultura; como fronteira que determinaria a impossibilidade de diálogo dos imigrantes e seus dilemas no processo terapêutico e, de outro, à ideia de uma necessária dissolução das constelações culturais em função do processo migratório. Entre esses dois polos, a noção de clôture aponta para a imagem de algo como um “cercamento” onde determinados conteúdos são mantidos e outros transpostos, mas sempre ao preço de um esforço artificial (i.e. ativamente produzido) de passagem. Em termos pragmáticos, isso significa que a etnopsiquiatria só pode mobilizar no processo terapêutico aquilo que pode ser transportado: as técnicas, os modos de fazer e tudo aquilo o que constitui as condições de funcionamento de um dispositivo terapêutico. “O que é um iorubá se ele deixa de comer dendê?”, pergunta Nathan em La Guérison Yoruba (1998). Com isso o autor não pretende reificar uma identidade, mas apontar para o modo como a existência de uma cultura só se atualiza por meio de uma inserção em uma multiplicidade de práticas. Se não há substancialidade identitária, é preciso refazer-se constantemente, desafio que, no caso das famílias imigrantes, torna-se uma atividade especialmente complexa. É nesse mesmo sentido que as sessões etnopsiquiátricas procedem de modo a desvelar os agenciamentos implicados no aparecimento de um determinado distúrbio, no modo como determinada doença foi “feita” e que, da mesma forma, indicam os caminhos pelos quais poderia esta mesma doença pode ser “desfeita”. Durante as manobras de atracação e desatracação nos portos ou em áreas com restrição à navegação, os que devem conduzir as embarcações em segurança são chamados “práticos”. “Prático” é também aquele que pratica qualquer coisa, para 91

além da praticagem. Sugiro que o desafio assumido por Tobie Nathan e sua equipe de trabalho pode ser lido sob os dois pontos de vista. É certamente a defesa de uma injunção prática para a etnopsiquiatria, mas uma que tem sua especificidade na maneira como explora o problema da relação entre a saída e a chegada dos imigrantes, do que se passa entre os movimentos de desterritorialização e reterritorialização dos povos, mas também de suas técnicas e de seu pensamento. Ao recusar a redução dos “casos clínicos” aos invariantes da fisiologia ou a uma matriz também universal da psicologia humana, restou, para Tobie Nathan, apenas a noção de “cultura” como um índice para se saber com quem se lida numa sessão terapêutica. O termo, no entanto, é tomado em sua acepção forte: se não há humanidade de fundo – ou um princípio totalizador que possa abrigar, em um mesmo idioma, todas as psicopatologias em um código comum –, a “cultura” não pode aí ser pensada como uma espécie de adorno a um corpo nu. Das condições de felicidade do dispositivo etnopsiquiátrico aparece sua necessária definição como multiplicidade de vínculos ou appartenances. Stengers (2003) foi capaz de dar uma ótima síntese daquilo que pode ser “cultura” se pensada do ponto de vista de uma multiplicidade prática (o que é algo diferente de pensar a “cultura na prática”). Isto resta pensar, e o trabalho de Nathan permanece, em relação a essa tarefa, muito interessante:

Gostaria de experimentar a definição proposta por Tobie Nathan, na medida em que o que ele define não é uma entidade, mas um problema: “A cultura tenta resolver dois problemas: fechamento e transmissão. Como um grupo pode ser encompassado de modo que se torne permeável a outros, e como pode esse cercamento ser transmitido à próxima geração? Para resolver este problema técnico, toda cultura faz as suas escolhas. A cloture de que fala Nathan não é física, mas lógica, no sentido de que toda lógica é, obviamente, inseparável da prática e não pode ser explicitada e formalizada em termos lógicos. Além disso, essa cloture, que caracteriza o que Nathan se refere como “grupos étnicos”, é explicitamente associada com a questão da troca. Aqui, cultura não tem nada em comum com uma identidade “fechada”, no sentido estático que é frequentemente associado com a noção de autopoiesis. Cultura é parte de uma problemática técnica que é, por sua natureza, estritamente ecológica: fechamento e transmissão do fechamento como “condição da troca”. Além disso, ela não pode, enquanto tal, ser objeto de uma teoria. Cada modo de fechamento e transmissão constitui uma solução única que cria os seus próprios constrangimentos, problemas, encargos e obrigações segundo os termos da troca. Em suma, ela cria a identidade prática daquilo que é “trocado”. É importante ter em mente que cultura, como ela aparece estritamente na problemática etnopsiquiátrica, onde a questão da cura aparece, e cultura na

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maneira como a ecologia das práticas a apresenta são problemas distintos. A cultura à qual o processo terapêutico se refere ativamente é relativa a esse processo e à “desordem” cujo significado será construído e situado. O processo e aqueles que falam em seu nome não são capazes, quanto tais, de representar o que a cultura, em geral, é, ou do que ela é capaz. Sua evidência está relacionada à maneira pela qual ela é testada e implementada através da prática da terapia, à maneira pela qual ela participa, como recurso e ingrediente, nessa prática. Consequentemente, é em termos técnicos, antes que científicos, que a questão da cultura aparece na prática etnopsiquiátrica. A definição de cultura não é, e não deve ser a mesma, esteja ela relacionada às “trocas” entre culturas ou a práticas terapêuticas. (Id. Ibid, p.336, tradução minha)

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Nota

Este trabalho tentativo serviu a uma dupla finalidade. A primeira consistiu em, a partir da exploração parcial de um material bibliográfico relativamente volumoso, realizar uma apresentação sintética de um autor e de uma prática, aquela realizada pela equipe de Nathan há mais de duas décadas no Centre George Devereux. A segunda consistiu em retirar as implicações de uma terapêutica que procura levar a sério os desafios colocados pela questão identitária em situações de diáspora, bem como as implicações de sua dinâmica para uma problematização das partilhas instauradas na modernidade. Do ponto de vista das ciências sociais, minha aposta foi a de que essas partilhas, pensadas exclusivamente sob um viés disciplinar-como uma natural divisão do trabalho teórico entre especialistas do “psi” e do “social”-, escamoteia os argumentos de cunho ontológico que sustentam a alegada incomensurabilidade entre esses domínios. Frequentemente, tal cisão assume tanto uma feição “escalar”- onde o psicólogo é considerado o especialista das microrelações em oposição aos grandes

conjuntos

sociológicos-,

como

“topográfica”

(e

pretensamente

complementar) onde a psicologia figura como o reino de uma interioridade contraposta à exterioridade absoluta dos fenômenos estudados pela sociologia ou pela antropologia. A problematização dessa divisão pode ser mirada a partir de, pelo menos, três perspectivas distintas. Pode-se, como uma das opções, se chegar a ela por meio da incorporação de uma linearidade histórica indagando como essas ciências puderam emergir como campos de saberes distintos, com seus próprios espaços institucionais e protocolos de pesquisa. Aqui alguém se perguntaria: “Por meio de quais procedimentos institucionais ou inovações metodológicas se pôde delimitar um campo do saber em oposição a todos os outros?”. Pode-se também, e ao invés disso, realizar uma pergunta ligeiramente distinta e questionar não as instituições, mas os homens, de modo a atualizar a questão frequentemente atualizada acerca dos interesses políticos e das especificidades biográficas daqueles que teriam, por virtude de uma singularidade conceitual mais ou menos reconhecida, lançado seus fundamentos epistemológicos: “Quem foram? Quais as idiossincrasias de seu 94

pensamento? Que espécie de relação estabeleceram com os acontecimentos políticos de seu tempo?”. Outra via ainda, da qual igualmente procurei me distanciar, é aquela que não diz respeito nem às conexões históricas e políticas dos “pais fundadores” e nem ao processo de institucionalização de seus respectivos nichos disciplinares, mas à tentativa de delimitar claramente os atributos ontológicos de seus objetos: “Quais as especificidades dos fatos sociais em relação aos fenômenos psicológicos? Quais são seus principais atributos distintivos?”. Embora possam ser formuladas em termos interrogativos, esses modos de se aproximar do problema, sugiro, escondem uma afirmação. E uma afirmação importante já que sua não problematização tem como efeito a neutralização de nossa capacidade de duvidar dos fundamentos dessas partilhas. Perde-se, por essa via, a possibilidade de pensar tudo aquilo que esse tipo de bifurcação veio a negligenciar, ou fazer desconhecer.

Meu intuito aqui, em relação ao desafio de abandonar

esse modo de formular perguntas, não foi mais que sugerir, de modo certamente incompleto, a maneira como o pensamento de Nathan pode funcionar como um trickster a reembaralhar essas e outras espécies de certezas; liberando o pensamento de se fechar sobre si, de não ser mais que um círculo, aquele que alguém poderia retraçar ao redor de seu próprio centro.

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