O Chão e a Fúria

September 16, 2017 | Autor: Uirá Garcia | Categoria: Amazonia, Awá-Guajá
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O ESTADO DE S. PAULO

DOMINGO, 12 DE JANEIRO DE 2014

Tribo ao alvo

Aliás E9

Na quinta, a presidente Dilma Rousseff delegou ao ministro Celso Amorim o acompanhamento da situação dos índios tenharim na região de Humaitá, sul do Amazonas, que está no centro das buscas da PF por três homens desaparecidos desde 16 de dezembro. PAULO PAIXÃO/ESTADÃO

O chão e a fúria Alguns índios são atacados por possuírem terra e outros, que nada têm, por ódio puro e simples Uirá Garcia

circulou em meio às festas de fim de ano. No dia de Natal, o município deHumaitá,no suldo Amazonas, passaria a serconhecidocomoolocalondeumamultidão furiosa incendiou as sedes e os equipamentos de órgãos do governo federal (Funai e Funasa). Carros, barcos e motos foram destruídos. Dois dias depois, cerca de 300 pessoas do município invadiram as aldeias da Terra Indígena Tenharim Marmelos e atearam fogo nas casas, destruindo os pedágios mantidos pelos indígenas tenharinsnotrecho deRodoviaTransamazônica que atravessa a reserva. Esse foi o início de uma série de acontecimentos que continuam em curso na região. A revolta é atribuída ao desaparecimento de três homens há quase um mês. A populaçãodacidadesustentaqueforamassassinados em vingança pela morte do cacique Ivan Tenharim, falecido após um acidente de moto em 3 de dezembro. Os tenharins negam qualquer envolvimento, e a família do cacique morto, cujo luto foi interrompido por essa onda de fúria indômita, encontra-se perplexa pela acusação. Ninguém sabe qual será o desfecho da história e a Polícia Federal ainda não encontrou os desaparecidos. A população de Humaitá, contudo, alimenta a certeza de que os responsáveis pelas mortes foram os indígenas tenharins. O fato de os tenharins negarem qualquer

A notícia

envolvimento com o ocorrido parece não significar nada. Ao ler sobre o horror desse caso recente, cujos desdobramentos ainda estão por vir, acabei associando-o a outra situação também em curso que venho acompanhando como pesquisador há alguns anos. Trata-se da desintrusão da Terra Indígena Awá. Os awá-guajás vivem a milhares de quilômetrosdedistânciadostenharins, noextremo oposto da Amazônia. Mas os acontecimentos da TI Tenharim, tal como acontece na distante TI Awá, são a objetivação de uma violência fomentada por elites e pelas prefeituras dos municípios onde se encontram essas terras. O interesse é claro: a exploração desses territórios. Tem-se a ideia arraigada de que as terras indígenas são, no fundo,áreasociosas,onde vivegenteprimitiva (ou até mesmo oportunista), os “índios”, que nem sequer contribuem para o desenvolvimentodo País. NacidadedeHumaitá, por exemplo, ainda hoje os tenharins são “tratados como bichos”, tal o desabafo de uma liderança recentemente (As Estradas e os Índios, Egon Heck, site do Conselho Indigenista Missionário – Cimi). O recente processo de desintrusão da Terra Indígena Awá, no noroeste do Estado do Maranhão, é acompanhado de perto pela imprensa mundial. Os awá-guajás, caçadores habilidosos, que viveram durante séculos exclusivamente de caça e de coleta, são tratados como “índios puros”, os “últimoscaçadorescoletoresdo Brasil”,seguindo uma velha dicotomia essencialista que

Quem é o cacique? Militares se reúnem com tenharins na reserva de Humaitá, sul do Amazonas

define alguns povos como mais tradicionais que outros. Essa percepção mascara toda a multiplicidade criativa de povos que falam línguas e possuem soluções de vida muito diferentes entre si. Em contraponto, o interesse crescente damídiapelo casoéproporcional àscríticas formuladas pela nobreza ruralista. A senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), lançou uma nota divulgada pela imprensa rebatendo a acusação do secretário nacional de Articulação Social da Secretaria-GeraldaPresidênciadaRepública, Paulo Maldos, na qual ele afirma que na TI Awá só haveria “plantadores de maconhaemadeireiros”.Seadeclaraçãodosecretario demonstra desconhecimento sobre a realidade em questão, isso não faz com que as críticas superficiais da CNA à desintrusão possam ser consideradas pertinentes. A TI Awá é uma área repleta de ilícitos como extração ilegal de madeira, grilagem de terras públicas e plantação de maconha. Entre 2009 e 2010 a TI esteve em primeiro lugar na lista das mais desmatadas da Amazônia. De acordo com dados da Coordenação Geral de Monitoramento Territorial da Funai (CGMT), tem a maior taxa de desmatamento da Amazônia Legal. No entanto, muitos trabalhadores rurais tratados como “agricultores pobres enxotados de suas terras”, segundo nota da CNA, estão diretamente ligados a um pequeno grupo de fazendeiros e grileiros que puseram tais agricultores na TI, vendendo lotes co-

Santa piada

Eles entraram no humor pela porta dos fundos, mangando do sagrado e do burguês. Mas são palhaços revirando crenças, não inimigos atacando vítimas

A trupe

de humoristas Porta dos Fundos está no meiodeumburburinhocom gruposreligiosos que se consideram ultrajados por alguns de seus vídeos. O Especial de Natal parece ter sido o capítulo final da saga, apesar do sucesso de audiência. O argumento do ultraje é uma leitura curiosa do artigo do CódigoPenalquediz serproibido“escarneceralguém por motivo de crença religiosa”. Escarnecer é zombar ou, em termos regionais, mangar de alguém. O alguém, nesse caso, não é um sujeito em frente a um delegado reclamando ter sido ultrajado por outro, mas hordas de crentes que se sentem humilhados quando símbolos religiosos são transformados em espetáculo do riso. Asolenidadedaverdadesupremanãopoderia ser objeto de escárnio, dizem as tentativas de silenciar os palhaços que entraram no humor brasileiro pela porta dos fundos. Há duas formas de discordar da tese dos mal-humorados. A primeira é duvidar da leitura estreita do Código Penal sobre a proibição do escárnio. Se zombar de crenças é proibido, não pode mais haver humor. Nãome parecerazoável supor que somente as crenças religiosas ganhariam o estatuto

✽ UIRÁ GARCIA É ANTROPÓLOGO, DOUTOR EM ANTROPOLOGIA PELA USP, PROFESSOR COLABORADOR E PÓS-DOUTORANDO NA UNICAMP. TRABALHA COM OS AWÁ-GUAJÁS DESDE 2006

O vídeo “Especial de Natal”, do humorístico Porta dos Fundos, está provocando a revolta de grupos religiosos, que consideraram blasfêmia a paródia feita com o nascimento de Jesus. Nessa semana, internautas católicos começaram a boicotar o vídeo no YouTube.

Rir ainda é melhor Debora Diniz

mo se fossem terras privadas. Tais lotes continuaramsendo vendidos a famílias pobres até o ano passado, mesmo quando todo o processo judicial pós-homologação já tinha sido finalizado. Há tempos a tensão entre indígenas e pequenosprodutoresnaAmazôniaémobilizada visando a interesses específicos. Isso ocorria durante a ditadura militar, na qual os “vazios demográficos” da Amazônia eram oferecidos a quem se interessasse em ocupar. E ocorre hoje, quando, por exemplo, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Maranhão (Faema), entidade ligada à CNA, emite nota fazendo crer que o verdadeiro problema para os agricultores retiradosdaTI Awásão osindígenas,enão a concentraçãodeterra,olatifúndio,amonoculturaeaoligarquiaquetransformouoMaranhão no Estado mais pobre do Brasil. Nos anos recentes, nos deparamos com os nomes tenharim, jiahui, awá-guajá, guarani-caiouá e munduruku não pelos motivos que gostaríamos, mas por suas tragédias, acompanhadas quase em tempo real. E,enquantoparaalgunspovosas terrasaindasão motivode ataque, contraoutros, que vivem fora da região amazônica, como os guaranis que nem a terra possuem, só sobrou a fúria.

de intocáveis para a zombaria – qualquer crença digna de ter alguém postulando-se como seu representante poderia reclamar osentimentodehumilhaçãocomosuficiente para silenciá-la. O humor é a prática da zombaria – mangar do que nos escapa à compreensãoouapreensãoépartedasociabilidade. Rimos do que acreditamos, mas também zombamos do que estranhamos. E somos livres para não rir ou ignorar a zombaria de outros sobre o que acreditamos. Mais provocativo ainda é quando zombamos não só dos resquícios da senzala na casa-grande,masdasaladeestardossenhores de engenho – o alvo da zombaria já foram os nomes das latinhas de refrigerante que o dicionário desconhece, mas agora os personagensdapilhéria sãoas elitescristãs. Mas o Código Penal fala de “alguém”. O alguém não é o sujeito que peticiona contra a trupe, mas o personagem concreto a ser zombado pelo humor. Para que a zombaria ameace a integridade moral de alguém, é preciso que o humor tenha tido um sujeito específico como alvo e não simplesmente crenças. Ou que tenha sido mais do que um humor ocasional: uma paródia sistemática pode levantar a suspeita da antipatia ou da perseguição. Até onde sei, são sempre os palhaços em situações inusitadas que contracenam, seja no divã de um psicanalista

REPRODUÇÃO

embrutecido, seja no sofá da velhinha com seu sequestrador. Em meio à criatividade quefazpoucodevaloresburguesesoufamiliares,há a zombariadas verdades sagradas. Mas isso é o humor – “a risada é umamaneira de lidar com o incompreensível”, disse uma vez Slavoj Žižek ao analisar os filmes sobre os campos de concentração nazistas que introduziam o humor nas narrativas. Houve quem se indignasse com filmes co-

Pelas barbas do artista. Religiosos não curtiram o satírico ‘Natal’ no YouTube

moA Vida éBela, deRoberto Benigni (1997): o respeito à dor pediria o silêncio e jamais o riso. O risco é transformar a história dos campos no indizível e deixar de se emocionar com o pai e o filho que resistiram pela fantasia à tortura dos kapos nazistas. O cômico é um falso espetáculo, por isso os que pedem que a porta dos fundos seja fechada me parecem sujeitos, além de malhumorados, intolerantes à ironia. A verdade da crença não é abalada pelo humor ou, nas palavras de deus no Especial de Natal: “Querido, relaxa, o pessoal acredita em qualquer coisa. Vai por mim”. Sim, seguir deus nessa tese é a segunda maneira de resistir à interpretação equivocada dos que sustentam haver ofensa no humor. Somos livres para acreditar em qualquer coisa, inclusive para acreditar ou não no poder do humor como libertação. O espaço em que os palhaços se exibem é de difícil acesso. É preciso ligar um computador, conectar-se à internet, selecionar o episódio, cujo título já anuncia o tom sarcástico, e postar-se diante da tela como audiência. O alguém que se sente ofendido pelo humor escolheu lançar-se como audiência, mas nem de longe a trupe tem o poder de suspender suas crenças. A verdade é que acredito que o humor nãopodeser policiado–ridendocastigatmores, já dizia Cícero. A porta dos fundos não nos castiga, mas revira nossos costumes. É um divã pelo humor que nos testa sobre o que seremos capazes de estranhar como verdades pouco sagradas. Mas não é preciso substituir a crença pelo riso. É possível rir do que não cremos. O humor é uma forma de linguagem em que importa conhecer o estatuto de quem fala e a quem se dirige a mensagem. No caso do espetáculo do Porta dos Fundos, são palhaços revirando crençase nãoinimigosagredindo vítimas.Entre o palhaço e a audiência, não há lugar para a polícia. Acreditem: rir ainda é o melhor. ✽ DEBORA DINIZ É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB) E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

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