O CHOQUE: O punk como tradução cultural / Subcultura e pós-colonialismo na música de The Clash e M.I.A.

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O choque: o punk como tradução cultural Subcultura e pós-colonialismo na música de The Clash e M.I.A. Com as grandes narrativas desacreditadas, imersos na tecnologia da sociedade capitalista que superou a industrialização, diante do fim da opressão da História, vivemos na esfera do além. A evolução histórica do homem neste início de século XXI é marcada, talvez na falta de melhores expressões, por uma característica comum que denota tanto superação quanto conseqüência e está presente no uso repetido de um determinado prefixo. No campo econômico, enfrentamos o capitalismo em seu terceiro estágio ou pós-industrial; a condição pós-moderna, conforme apontada por Lyotard, define o estatuto de nosso saber; a arte pós-histórica celebrada por filósofos como Arthur Danto libertou o artista do determinismo modernista e instaurou o pluralismo. “‘Além’ significa distância espacial, marca um progresso, promete futuro”. A promessa de futuro vislumbrada pelo pensador Homi K. Bhabha (1998, p. 23) está no movimento dos milhões de humanos afetados por outra condição expressa com a ajuda de nosso reincidente prefixo. O termo pós-colonial refere-se, especialmente, à condição originada em meados do século XX, após a independência das últimas nações acorrentadas à política colonialista européia, quando ex-colonizados fazem o movimento reverso, deslocando-se para antigas metrópoles em busca de uma vida melhor e refúgio político. O termo também designa a produção cultural baseada neste local impreciso de fluxo e trocas, cores mistas, refúgio e exílio, diferenças inconciliáveis e diálogo necessário. Uma produção marcada por traduções e negociações que tentam representar identidades complexas, múltiplas, construídas a partir de um conjunto de diversas características (etnia, gênero, geração, instituição, geopolítica, orientação sexual), identidades forjadas no terreno pantanoso da disjunção. A filosofia de Homi K. Bhabha – expoente da crítica pós-colonial – posiciona o local da cultura nesta fronteira onde diferenças culturais são articuladas. São chamados por ele de “entre-lugares”, locais dos fluxos migratórios e das identidades complexas que extrapolam noções binaristas e integram um novo internacionalismo de deslocamentos, trocas e negociações. “A significação mais ampla da condição pós-moderna reside na consciência de que os ‘limites’ epistemológicos daquelas idéias etnocêntricas são também as fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes” (p. 24).

As teorias pós-colonialistas celebram o híbrido, tomam partido dos destituídos e combatem uma visão eurocêntrica de mundo, denunciando a hierarquia cultural fundamentada em ideais éticos de liberdade, tolerância e caridade como apenas mais um jogo social de poder. Para Bhabha “a metrópole ocidental deve confrontar sua história pós-colonial, contada pelo influxo de migrantes e refugiados do pós-guerra, como uma narrativa indígena ou nativa interna a sua identidade nacional.” (p. 26). Na construção de tal narrativa, a tradução é ferramenta imprescindível. A tradução é o processo que possibilita a recodificação dos signos, produz a comunicação entre grupos em atrito pelos deslocamentos pós-coloniais, engendra cultura; a tradução é uma resposta, uma reação ao movimento que conduz ao choque. Punk: uma tradução cultural

Formado em 1976, em Londres, o grupo The Clash (O Choque, em tradução livre) é um dos mais significativos expoentes artísticos da subcultura punk que emergiu na Inglaterra em fins dos anos 1970 – ela própria uma versão de um movimento estético, musical e comportamental que vinha acontecendo no submundo de Nova Iorque e em outras cidades dos Estados Unidos desde o início da década. O punk se insere em uma tradição de subculturas juvenis, urbanas e proletárias que se sucederam no Reino Unido após a II Guerra Mundial (sendo seus antecessores teddy boys, mods e skinheads), sintetizando em seu estilo elementos de todas elas. Estas subculturas, conforme apontou o sociólogo Dick Hebdige no seminal estudo Subculture: the meaning of style devem ser “reinterpretadas como uma sucessão de diferentes respostas à presença da imigração negra na Grã Bretanha a partir dos anos 1950.”¹ (1991, p.29). A sucessão de formas subculturais brancas pode ser lida como uma série de adaptações estruturais profundas que simbolicamente acomodam ou expurgam a presença negra na comunidade hospedeira. É no plano estético: nas roupas, na dança, na música; em toda retórica do estilo, que encontramos o diálogo entre negro e branco muito sutilmente e compreensivelmente registrado, embora em código. (p. 44-45)

O estilo punk é, para Hebdige, fruto de uma relação racial, trata-se de “uma tradução branca da etnicidade negra” (p. 64), uma resposta codificada ao movimento (ao patoá, à música, ao gestual, à postura política) dos imigrantes negros,

principalmente os oriundos da região das Antilhas, da qual faz parte a Jamaica. Os imigrantes deste país que chegaram à Inglaterra massivamente a partir do início dos anos 1950 trouxeram com eles sua cultura (a religião rastafári – ela própria de caráter sincrético –, o consumo de ganja e os ritmos como rock steady, ska e reggae) que rapidamente ganhou penetração entre jovens proletários londrinos sendo recodificada, dentre outros, no estilo punk. Descrevendo, interpretando e decifrando estes códigos, podemos construir uma oblíqua contagem das trocas ocorridas entre as duas comunidades. Podemos assistir, encenadas nas superfícies carregadas das culturas proletárias juvenis britânicas, uma história fantasmagórica das relações raciais desde a guerra. (p. 45)

O Clash é um produto desta tradução cultural. Na canção “White riot”, primeiro single do grupo, lançado em março de 1977, o vocalista Joe Strummer clama por sua própria revolta branca, em referência aos conflitos que haviam tumultuado o carnaval caribenho de Notting Hill, no verão londrino do ano anterior, quando foliões incomodados pela repressão da polícia em presença massiva no evento iniciaram os tumultos. A canção, que foi mal interpretada por nacionalistas neonazis como apologia da raça branca, era, na verdade, um comentário sobre a necessidade da classe baixa branca se revoltar contra a sociedade opressora da mesma forma que o faziam os irmãos negros. As traduções (sujeitas a más interpretações) nem sempre tem um caráter positivo. Fenômenos complexos que são, podem se apresentar como um tipo de resposta negativa, o que poderia ajudar a explicar a perigosa atração do punk pelo fascismo e a relação entre hardcore e nacionalismo. No campo estético, a cultura jamaicana também traria a influência do reggae, o gênero musical mais ouvido pelos primeiros punks ingleses que se identificavam com a natureza rebelde desta música. O processo de tradução ainda geraria um estilo musical híbrido, o dub punk praticado por, dentre outros, o próprio Clash. O subgênero sobrepõe (para usar um dos conceitos caros à filosofia de Bhabha: o da sobreposição dos domínios da diferença) o minimalismo e a distorção, característicos do punk, à batida pulsante do baixo e ao ritmo hipnótico, típicos do dub (um tipo de reggae ainda mais arrastado e esparso, normalmente com poucas linhas vocais e muitos efeitos de eco). No punk, que “nasce de um movimento de afastamento do consenso” (HEBDIGE, 1987, p. 132), a dissonância e a dissidência, enunciadas pelos excluídos a partir das fronteiras da cultura, são radicalizadas em resistência e recusa, atributos

básicos de toda subcultura, que, apesar disso, não está imune a posteriores diluições, incorporações e retraduções. A subcultura assimila os códigos da cultura alienígena e os recria, isolando-se em um estilo de vida que, em um primeiro momento, não pode ser compreendido pelos grupos hegemônicos (pais, escola, polícia), que o condenam. Na etapa posterior, graças ao papel dos veículos de comunicação de massa, o estilo transgressor vai sendo categorizado e diluído, tornando-se mercadoria. Este é o processo de incorporação do qual fala Hebdige, ele ocorre quando os signos subculturais (roupas, música etc.) são convertidos em objetos de consumo de massa e o comportamento divergente é categorizado pelos grupos dominantes. Passado o choque inicial, a estranheza é aceita, pois ela está estampada diariamente nos jornais sensacionalistas, que vendem à suas custas. Assim aconteceu com o punk: enquadrado pela mídia e abduzido pela indústria fonográfica, transformado em franquia de rebeldia, exportado ao mundo na forma de produto. O punk como mercadoria e suas retraduções: pós-colonialismo transformado em pop na música de M.I.A.

O punk faz então, como mercadoria, o movimento inverso: do centro em que foi originariamente produzido, a partir de choque e tradução, em direção às margens, onde novamente será traduzido em expressões próprias de identidades não menos complexas (vale notar a importância dos meios de comunicação na formação de identidades), muitas vezes hibridizando-se com expressões culturais nativas. Ocorre uma retradução, corrompida, impura e viva. Hoje, quase 40 anos após seu surgimento, ele pode ser encontrado nas Américas, espalhado por toda a Europa, na África e até no Oriente (em fins de 2011 dezenas de jovens da Indonésia tiveram seus cortes moicanos, ofensivos à tradição islâmica, raspados pela polícia). A partir de associações com outras formas musicais, como com a música eletrônica e um tipo de música étnica (novamente o sincretismo musical operando na construção da cultura), o punk ainda é capaz de gerar proposições artísticas interessantes. A ex-pintora e rapper de origem anglo-cingalesa M.I.A. (Maya Arulpragasam, 1975) parece encarnar em vida e arte as teorias pós-colonialistas. Filha de um exilado político emigrado para a Inglaterra, M.I.A. (sigla para missing in action, uma expressão que designa combatentes mortos em ação) habita um desses entre-lugares, integrando um novo internacionalismo, por suas origens e associações artísticas. Ela incorpora em sua obra sincrética uma estética terceiro-mundista (funk carioca, estamparia africana), elementos da cultura urbana (grafite, rap), o tom dissidente

herdado do punk, além de um discurso político totalmente comprometido com os marginalizados, exilados políticos, perseguidos e revolucionários. Uma de suas composições mais conhecidas, “Paper planes” (2008), é produto exemplar do processo de tradução cultural de que nos fala Bhabha. A canção é construída pela estratégia do sampling (amostragem, em tradução livre), baseada na apropriação de trechos de obras musicais existentes para a criação de uma nova. A fonte (ou sample), no caso, é uma canção do Clash, grupo que traduz as relações raciais codificadas no punk. Sob a base eletrificada de sintetizadores de “Straight to hell” (1982), M.I.A. canta as duas primeiras estrofes, duplamente:

I fly like paper, get high like planes If you catch me at the border I got visas in my name If you come around here I’ll make’em all day I get one done in a second if you wait

Sometimes I feel sick on trains Every step I get to I’m clocking that game Everyone’s a winner, I’ll be making my fame Bonafide hustler making my name

E no refrão, ajudada por um coro de crianças e efeitos sonoros de tiros e de uma campainha de caixa registradora:

All I wanna do is BANG BANG BANG BANG And take your money ² O local de onde M.I.A. canta “Paper planes” é a própria fronteira, com o fluxo dos trens que a deixam enjoada, a exigência dos vistos de entrada e sua falsificação. Mas ela está do lado de dentro, na metrópole, aprendendo a fazer o jogo do poder e sabotando-o ao mesmo tempo, oferecendo falsos vistos a forasteiros que quiserem entrar no mesmo jogo. O manifesto sonoro político e multiculturalista é destinado aos antigos colonizadores: tudo o que ela quer é tomar o dinheiro deles, seja ocupando os postos de trabalho, seja à força, a tiro, em revide por séculos de exploração. Retraduzindo o que antes já havia sido uma tradução (a canção punk do Clash), a artista – ela própria uma tradução, um fruto dos movimentos pós-coloniais, filha de exilados, migrante, internacional – instala-se neste terreno movediço de fluxo e trocas,

cores mistas, refúgio e exílio, diferenças inconciliáveis e diálogo necessário, o próprio local da cultura. A fantasmagórica história das relações raciais presente na Londres punk de 1977 (e cristalizada na música do Clash) é reencenada por M.I.A., que, tal qual um teórico pós-colonialista, sabe perfeitamente em que lado do jogo está. O tabuleiro deste jogo é o ambiente urbano das grandes cidades. Nelas talvez se encontre a promessa de futuro presente no prefixo que nomeia, ainda que imprecisamente, nossa suposta evolução (social, cultural, política, econômica). A urbe – cosmopolita, turbulenta, marcada pela presença do outro, a urbe das identidades complexas – é o espaço intermediário das traduções.

Leo Felipe

¹ Todas as traduções de Hebdige são do autor ² Em tradução livre: Voo como papel, subo como aviões / Se você me pegar na fronteira, tenho visas em meu nome / Se você vier aqui, eu os faço o dia todo / Faço um rapidinho se você esperar / Às vezes me sinto enjoada em trens / Todo passo que dou estou no ritmo do jogo / Todo mundo é um vencedor, estarei fazendo a minha fama / Malandro de primeira fazendo meu nome / Tudo o que eu quero é BANG BANG BANG BANG e tirar o seu dinheiro

REFERÊNCIAS BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad.: Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. DANTO, Arthur. Após o fim da arte o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. Trad.: Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus Editora/Edusp, 2006. HEBDIGE, Dick. Subculture: the meaning of style. 3ª reimpressão. Londres: Routledge, 1991. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad.: Ricardo Corrêa Barbosa. 12. ed. Rio de Janeiro: Ed. José Olympo, 2009.

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