O ciclo performático da obra de Ismael Nery na Dança Contemporânea (resumo expandido)

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O CICLO PERFORMÁTICO DA OBRA DE ISMAEL NERY NA DANÇA CONTEMPORÂNEA

Aila Regina da Silva*

RESUMO A partir da obra “O eu e o outro” da Cia Carne Agonizante este ensaio analisa a relação entre a dança contemporânea e arte visual, representadas aqui pelo artista modernista Ismael Nery cuja vida e obra deram base para o espetáculo de dança. Com o objetivo de aprofundar a investigação do artista brasileiro começada pelo coreógrafo Sandro Borelli, o ensaio apoia-se na arte performática e nas questões da dança contemporânea para mostrar um ciclo de criação artística, onde os dançarinos representam a obra de Nery (re)significando-a pela dança, transpondo as imagens da tela na coreografia e, pela dança, criando um novo signo visual. Palavras-chave: Dança contemporânea. Movimento. Artes plásticas.

                                                                                                                *

Aila Regina da Silva é mestranda no Programa de Pós Graduação em História e Estética da Arte da Universidade de São Paulo, sob orientação de Arthur Hunold Lara e bailarina atuante.

INTRODUÇÃO O filósofo Friendrich Nietzsche (Rocken, 1844 – Weimar, 1900) e o compositor Richard Wagner (Leipzig, 1813 – Veneza, 1883) já rascunhavam ideias de uma dança comprometida com o corpo e o movimento, algo que libertasse o ser humano das amarras da técnica ocidental civilizada que eram esteticamente rígidas. No século XX, na Europa, alguns grupos seguem esse raciocínio, como o de Sergei Diaghilev e o de Jean Börlin. O primeiro reuniu os principais nomes do balé do século XX, Anna Pavlova, Vaslav Nijinsky, Michel Fokine e George Balanchine, inovando na linguagem do balé clássico. Diaghilev acreditava que a dança deveria ser o encontro de todas as artes e, além da coreografia, o cenário e a música vinham de encontro ao seu pensamento de vanguarda, para tanto usou Picasso nos figurinos e o jovem Stravinsky nas composições. O grupo de Bördan, provindo da Opera Real de Estocolmo, usufruía de extravagante criatividade, pensamentos e mensagens condizentes com a sua época, entretanto, também como Diaghilev, mantinha a técnica clássica como base principal para o bailado. Ambas companhias tiveram resultados negativos da sociedade, onde o público dos espetáculos vaiavam e a crítica era desfavorável. Quando o teórico de dança Rudolf Laban (Bratislava, 1879 – Weybridge, 1957) propõe seus novos meios e estudos, que integram artes visuais, música, escrita, espaço cênico e corpo a ruptura com a técnica clássica dá lugar a um novo modo de enxergar o movimento e, portanto, um novo caminho se abre, livre do antigo sistema técnico e comprometido em totalidade com a busca pela consciência corporal conectada com o sentimento. É nesse contexto histórico que o cenário da dança contemporânea começa a se formar. Durante muitos séculos a dança manteve-se como entretenimento e estava subordinada à música, hoje a dança contemporânea pode construir-se sobre a mensagem antes da escolha da técnica ou estética final, como afirma a bailarina americana Isadora Duncan: “Para mim, a dança não é só a arte que exprime a alma humana através do movimento, mas o fundamento de uma concepção completa de vida, mais livre, harmoniosa, mais natural. Resumirei isso num aforismo: Dançar é viver.” (DUNCAN, 1927, p.33)

Essa tendência na dança é vista no oriente com o surgimento do Butoh, na América do Norte com a dança moderna, com a visitação da dança contemporânea sobre as

danças étnicas asiáticas e africanas e com a valorização das danças regionais no Brasil. A realidade da dança contemporânea caminha junto da arte performática e do teatro, no momento em que todos usam o corpo como base para expressar sua ideia maior. Renato Cohen define o processo performático: “À medida que o ator entra no ‘espaço-tempo-cênico’ ele passa a ‘significar’ (virar um signo) e com isso ‘representar’ (é o próprio conceito de signo, algo que represente outra coisa) alguma coisa, podendo ser isto algo concreto — o qual tem-se nomeado ‘personagem’— ou mesmo abstrato”. (COHEN, 2002, p. 95)

É nessa reinvenção que a essência da relação arte-corpo flutua, na resignificação da transmutação de dança em teatro (a exemplo de Pina Baush), do teatro em happening (experiências do Teatro Oficina) e do produto da dança em arte plástica (performances de Trisha Brown fazendo desenhos através da dança). Este ensaio propõe-se a analisar, com base na obra de dança contemporânea, a aproximação da dança com a arte plástica. Visa mostrar um ciclo criativo, onde a dança torna-se espelho do trabalho de um artista plástico, representada pelo processo criativo da Cia Carne Agonizante na vida e obra de Ismael Nery. CIA CARNE AGONIZANTE E ISMAEL NERY “Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas. Eu sou o que não existe entre o que existe. Eu sou tudo sem ser coisa alguma. Eu sou o amor entre os esposos, Eu sou o marido e a mulher, Eu sou a unidade infinita” Ismael Nery – trecho de Eu

Formada em 1997 sob o nome de FAR-15 e dirigida por Sandro Borelli, passou em 2004 por uma reestruturação e começou a utilizar o nome Cia Borelli de Dança e, hoje, é Cia Carne Agonizante. Seu repertório, como o nome já instiga, é questionar obcessivamente a existência humana e seus desenlaces, os entremeios duais da construção humana onde “a certeza é substituída pela recusa de soluções lineares, transformando o gesto e o

movimento não em narrativas, mas em signos estruturalmente prisioneiros da ambiguidade” de acordo com a própria Cia. Trabalhando com base na dança-teatro, sua base filosófico-intelectual passeia pelos universos de Ernesto ‘Che’ Guevara, Augusto dos Anjos e Franz Kafka. Ismael Nery (Belém, 1900 – Rio de Janeiro, 1934) foi uma personalidade inquieta e multitalento do modernismo brasileiro. Pintor, desenhista, poeta e filósofo, ele mesmo nunca se definiu como artista plástico, sua complexidade artística assemelha-se a um poliedro onde cada face utiliza uma ferramenta (pintura, desenho, poesia, filosofia) e isolar uma única face é impossível, já que uma sustenta a outra. Formado pela Escola Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro), Ismael viaja à França onde estuda na Académie Julian e, de volta ao Brasil, casa-se com a poetisa Adalgiza Nery e se aplica aos seus estudos do “Essencialismo”, sistema filosófico criado por ele mesmo. De volta a França, Nery entra em contato com André Breton (1896 – 1966), Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) e Marc Chagall (1887 – 1985) que influenciam diretamente seu trabalho, particularmente Chagall. Em 1930 constata-se que Nery está com tuberculose e ele passa a produzir em menor quantidade, mas suas obras tem maior projeção. Expõe em Nova Iorque, além de Belém, São Paulo e Rio de Janeiro. Seu trabalho é reconhecido postumamente, engajado pelo poeta e amigo Murilo Mendes e pelo crítico Mário Pedrosa. A peça “O eu e o outro”, realizada a primeira vez em 2000, é baseada na biografia de Nery. Com cenas realizadas por dois bailarinos (homem e mulher), a coreografia desenvolve um diálogo entre corpos onde os movimentos, hora espelham-se, hora apoiam-se, resultando numa relação simbiótica entre os corpos. Aspectos Feminino e Masculino Os bailarinos, durante toda a peça, usam um figurino simples, composto por apenas uma calça preta e o tronco nu. De pronto, o espectador precisa aceitar o corpo humano e dessexualizá-lo para compreender a conexão mais profunda dos corpos. A sequencia de movimentos não valoriza o aspecto masculino ou feminino e, de uma primeira percepção sugere igualdade de gêneros em seu aspecto social, onde podemos tomar os movimentos coreográficos pelo cotidiano social do ser humano e, embora tenha momentos onde ambos ajam diferentes não há diferenciação no peso de cada gesto.

Numa futura versão da peça chamada “O eu em ti”, de 2011, Borelli coloca mais bailarinos em cena e, embora a coreografia se desenrole com um casal por vez em cena, nesta versão, há pares de dois homens ou duas mulheres. Ora pode-se caminhar para o aspecto de igualdade de gênero, ora pode-se pensar num caráter andrógino das personagens, e num terceiro momento vem à tona a questão da homossexualidade. A ressignificação é intrínseca à concepção da peça. Ismael Nery em seu “Auto-retrato” (óleo sobre tela, 32 x 23 cm, coleção particular, São Paulo) pinta-se como um ser andrógino, de cabelos à melindrosa, olhar sedutor e boca colorida, em tons sóbrios e escuros, trabalhados em nuances que remetem às luzes de cabaré. Longe de remeter a um estereotipo travesti, a androginia aparece em vários quadros, inclusive os que tem sua mulher como modelo. Em “Duas amigas ou Eva” (1923, óleo sobre tela, 49,5 x 34 cm, coleção Benjamim Fleider, São Paulo), quadro expressionista, a sensualidade e o jogo homoerótico gritam ao primeiro olhar. A mulher de cabelo curto tem seu rosto mais iluminado e segura uma maçã, a de trás, à sua sombra, segura o queixo numa posição interrogativa. Ambas com boca vermelha e olhar de soslaio. Olhando melhor, vemos que a primeira é Adalgisa Nery e que a segunda mulher lembra muito os autorretratos de Ismael. De acordo com André Cordeiro “reunindo os opostos, o poeta, feito originalmente à imagem e semelhança de Deus, reencontra o equilíbrio” (p. 182) Nery busca a androginia primordial, porque para ele, Deus é andrógino, exatamente tal qual Adão, que diz-se hermafrodita. De acordo com Chevalier e Gueebrant: “Conforme a primeira narrativa da Criação no Gênesis, Adão aparece sob um aspecto bissexual; segundo certos autores, ele é hermafrodita. No Midrasch Bereshit Raba, diz-se que Deus criou Adão ao mesmo tempo macho e fêmea. Sentido idêntico é apresentado na Cabala que, além disso, fala de Deus sob o duplo aspecto de rei e rainha.”

Na cena em que o casal se beija, eles começam com um beijo sensual, apaixonado, e a cena desenrola-se para uma conexão mais profunda, mais visceral, onde ambos não conseguem desvencilhar-se. O fluxo de movimentos passa a ser contínuo e espelhado, como uma transição da paixão para uma mistura de corpos, onde homem e mulher confundem-se no espaço-tempo. Esses momentos de transição, das mudanças de emoção num mesmo movimento e

a representação corporal das cores, tons e nuances dos quadros, conferem a obra de bailado um novo signo visual, mas que, tal qual o casal em cena ou o casal nos quadros de Nery, sugerem a todo momento novos caminhos no imaginário. CONCLUSÃO As técnicas de arte vêm fundindo-se e as conexões dos movimentos artísticos aumentam e aliam-se cada vez mais. Essa mistura irrefreável entre objeto e signo, cinestesia e sinestesia, (re)construir-se, a constante troca de movimentos e evolução dos mesmos, são reflexões a serem pensadas a cada obra nova. Nesse artigo especificamente, à dança hoje e, por meio da experiência e interação entre coreógrafo, bailarino e envolvidos, a forma está em constante mutação. Merleau-Ponty em seu livro O visível e o invisível traz-nos a concepção de percepção compreendida como ação do corpo: “Antes da ciência do corpo – que implica a relação com outrem – a experiência de minha carne como ganga de minha percepção ensinou-me que a percepção não nasce em qualquer outro lugar, mas emerge no recesso de um corpo.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 21)

Então, tal qual o corpo está em constante transformação, nossa percepção de nós mesmos e do que é externo também está. Se voltarmos a essas mesmas obras daqui algum tempo, as diferenças poderão ser aprofundadas, distinguidas e percebidas. Poderíamos seguir adiante, dentro da obra de cada um e certamente haveria mais a acrescentar. BIBLIOGRAFIA CHEVALIER, Jean e GUEERBRANT, Alain Dicionário de Símbolos. 14a edição, Ed. José Olympio, 1999 COHEN, Renato. Performance como Linguagem. Ed. Perspectiva, 2002 CORDEIRO, André Ismael Nery: o olho no telescópio. Dissertação de Mestrado em Estudos Literários, Universidade Federal do Pará, 2003

GATTINONI, Rosita Danse et art contemporain. Paris: Scala, 2011 MERLEAU-PONTY, Maurice O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004

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