O cidadão bem-informado

August 10, 2017 | Autor: Mozahir Bruck | Categoria: Sociologia do Conhecimento
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Nota do tradutor: Schutz faz uma discussão aprofundada sobre a expressão interest at hand, no artigo Relevance: knowledge on Hand and in Hand. (SCHUTZ, A. Collected papers IV. Kluwer Academic Publishers. Norwell, USA.)
Nota do tradutor: Schutz utiliza uma metáfora tomando os sistemas de pressão: o isohypses dizem respeito a uma linha em um mapa que liga pontos de conexão de altura igual e pressão barométrica igual.



THE WELL-INFORMED CITIZEN
An Essay on the Social Distribution of Knowledge

by ALFRED SCHUTZ

Social Research 13, 4 (1946) :463-78


O cidadão bem-informado Um ensaio sobre a distribuição social do conhecimento Alfred Schutz Social Research 13, 4 (1946) :463-78
Tradução: Mozahir Salomão Bruck. Porto, Abril de 2014.
A característica marcante da vida do homem no mundo moderno é a sua convicção de que o mundo da vida como um todo não é nem totalmente compreendido por ele mesmo e nem totalmente compreensível a qualquer um dos seus semelhantes. Há um estoque de conhecimento teoricamente disponível para todos, construído pela experiência prática, pela ciência e pela tecnologia como percepções garantidas. Mas esse estoque de conhecimento não é integrado. Trata-se de uma mera justaposição mais ou menos coerente de sistemas de conhecimento em que eles próprios não são nem coerentes e nem mesmo compatíveis uns com os outros. Pelo contrário, os abismos entre as diferentes atitudes envolvidas na abordagem de sistemas especializados são, eles mesmos, uma condição para o sucesso da pesquisa especializada.

Se isso se coloca como de uma verdade para os vários domínios da investigação científica, também o é, por razões ainda mais válidas, para os vários campos de atividade prática. Onde nosso interesse prático predomina, estamos satisfeitos com o nosso conhecimento sobre como certos meios e procedimentos podem alcançar certos resultados desejados ou não desejados. O fato de nós não entendermos o Porquê e Como funcionam e de não saber nada sobre sua origem não nos impede de lidar sem perturbação com situações, coisas e pessoas. Utilizamos os dispositivos mais complicados preparados por uma tecnologia muito avançada sem saber como tais artifícios trabalham. Nenhum motorista de carro tem que estar familiarizado com as leis da mecânica, nenhum ouvinte de rádio com as da eletrônica. Pode-se até ser um empresário de sucesso sem uma visão sobre o funcionamento do mercado, ou um banqueiro sem um conhecimento acerca da teoria monetária. O mesmo vale para o mundo social em que vivemos. Contamos com o fato de que nossos semelhantes reagirão como prevemos se agirmos sobre eles de um modo específico; que instituições como governos, escolas, tribunais ou serviços públicos funcionarão; que uma ordem de leis e costumes, de crenças religiosas e políticas irão reger o comportamento de nossos semelhantes, uma vez que governam a nossa. Em termos de grupo social, podemos dizer, com Scheler, que, internamente, qualquer grupo tem um conceito relativo de mundo natural, que seus membros tomam por admitido.
Útil como conceito em muitos aspectos, é claro que nem todos os membros de um grupo aceitam o mundo do mesmo modo, admitindo-o sem questionamentos, e que cada um pode selecionar elementos distintos como objeto de reflexão adicional. O conhecimento é socialmente distribuído e o mecanismo dessa distribuição pode ser o assunto de uma disciplina sociológica. É verdade, nós temos uma chamada sociologia do conhecimento. No entanto, com poucas exceções, a disciplina, assim chamada erroneamente, tem abordado o problema da distribuição social do conhecimento apenas do ponto de vista do fundamento ideológico da verdade em suas perspectivas sociais, com destaque para as condições econômicas, ou a partir das implicações sociais da educação ou do papel social do homem que produz conhecimento. Não apenas sociólogos, mas economistas e filósofos têm estudado alguns dos muitos aspectos teóricos do problema. Os economistas descobriram que certos conceitos de economia, como a concorrência perfeita e monopólio e todas as suas formas intermediárias, pressupõem que os vários atores do mundo da economia são concebidos como possuidores de um estoque variado de conhecimento dos meios econômicos, fins, procedimentos, chances e riscos envolvidos na mesma situação. Os filósofos, por sua vez, têm lidado com o caráter intersubjetivo do conhecimento, intersubjetivo não apenas por que se refere a um mundo real comum a todos, e porque está sujeito a confirmação e refutação por outros, mas também por que o conhecimento pessoal de cada um de nós se refere ao conhecimento adquirido de outros - nossos professores e antecessores - e que nos foi transmitido como um estoque previamente organizado de problemas, com os meios para a sua solução, com as regras processuais e assim por diante. Todos esses múltiplos problemas pertencem a uma ciência teórica que tenta lidar com a distribuição social do conhecimento. A presente investigação é apenas um modesto passo nessa direção. Seu objetivo é investigar as motivações imediatas que levam homens adultos, que vivem sua vida cotidiana em nossa civilização moderna, a aceitar algumas coisas, sem questioná-las, a partir de uma visão relativamente natural de mundo, e submeter outras a questionamentos.



II
Para o propósito do nosso estudo, vamos construir três tipos ideais que serão denominados de especialista, homem da rua, e cidadão bem informado.

O conhecimento do especialista é restrito a um campo limitado, mas que é claro e distinto. Suas opiniões são baseadas em afirmações fundamentadas; seus julgamentos não são meras conjecturas ou suposições soltas.

O homem da rua tem um conhecimento prático de muitos campos que não são necessariamente coerentes entre si. É um conhecimento a partir de prescrições que lhe indicam como, em situações típicas, obterá resultados típicos por meio típicos. As prescriçõs indicam procedimentos que podem ser confiáveis , mesmo que não sejam claramente compreendidos. Seguindo a prescrição, como se fosse um ritual, o resultado desejado pode ser alcançado sem que haja questionamento, pois deve seguir exatamente aqueles passos na seqüência prescrita. Em toda a sua imprecisão, este conhecimento ainda é suficientemente preciso para o propósito prático que se tem à mão. Em todos os assuntos não relacionados com tais finalidades práticas de interesse imediato, o homem da rua aceita seus sentimentos e paixões como guias. Sob essa influência, ele estabelece um conjunto de convicções e pontos de vista não esclarecidos, nos quais ele simplesmente confia, desde que esses não interfiram com a sua busca da felicidade.

O tipo ideal que nos propomos chamar de cidadão bem informado (encurtando assim a expressão mais correta: o cidadão que pretende ser bem informado) situa-se entre o tipo ideal do perito e do homem da rua. Por um lado, ele não é, nem pretende ser, possuidor de conhecimentos especializados; por outro, ele não concorda com a imprecisão fundamental de um conhecimento prescrito ou a irracionalidade de sentimentos e paixões que não lhe são claras. Estar bem informado significa para ele chegar a opiniões razoavelmente fundamentadas em domínios que, como ele sabe, pelo menos indiretamente, são de preocupação para ele, embora não sejam de seu interesse mais próximo.
Os três tipos assim descritos, mais ou menos, é claro, são apenas construções concebidas para a finalidade desta investigação. Como, aliás, cada um de nós, na vida diária, é, a qualquer momento e simultaneamente, especialista, cidadão bem informado e homem da rua, mas, em cada caso, em relação a diferentes províncias do conhecimento. Além disso, cada um de nós sabe que isso também vale para cada um de nosssos semelhantes e este fato codetermina o tipo específico de conhecimento a ser empregado. Por exemplo, para o homem da rua é suficiente saber que existem especialistas disponíveis para uma consulta, se ele precisar de seu conselho para alcançar um interesse mais próximo. Suas prescrições dizem-lhe quando deve consultar um médico ou um advogado, onde pode obter informações necessárias e afins. O especialista, por outro lado, sabe muito bem que só um colega especialista vai entender todos os aspectos técnicos e as implicações de um problema no seu campo e ele nunca vai aceitar que um leigo ou diletante seja um juiz competente de suas performances. Mas é o cidadão bem informado que se considera perfeitamente qualificado para decidir o que é um especialista competente e até mesmo para fazer-se convencido, depois de ter escutado as opiniões de especialistas que tenham posições diferentes.
Muitos fenômenos da vida social podem ser plenamente compreendidos se forem observados à luz da estrutura geral subjacente da distribuição social do conhecimento, assim delineada. Este recurso, por si só, torna possível uma teoria sociológica de profissões, de prestígio e competência, de carisma e autoridade e leva à compreensão de algumas relações sociais complexas como as existentes entre o artista, seu público e seus críticos, ou entre o fabricante, o vendedor, o agente de publicidade e o consumidor, ou entre o executivo do governo, seu assessor técnico, e a opinião pública.


III

Os três tipos de conhecimento discutidos acima diferem em sua disposição para tornar as coisas como admitidas. A zona de coisas tomadas como admitidas pode ser definida como o lugar do mundo que, em conexão com o teórico, ou seja, o problema prático com o qual estamos preocupados em um determinado momento, não parece precisar de mais investigação, embora não tenhamos uma percepção clara e distinta compreensão sobre ele internamente, sobre sua estrutura. O que é dado como certo, até que seja invalidado, acredita-se ser simplesmente "dado" e "dado como aparece para mim" - isto é, como eu ou outras pessoas em quem confio experimentamos e interpretamos. É dentro dessa zona de coisas tomadas como admitidas que temos de encontrar nossas orientações. Todo o nosso possível questionamento sobre o desconhecido surge apenas dentro de um mundo de coisas que suponhamos conhecer previamente, e pressupõe a sua existência. Ou, para usar os termos de Dewey, é a partir de uma situação indeterminada que toda investigação inicia-se com o objetivo de transformá-la em algo determinado. Claro, o que é dado como admitido hoje pode se tornar questionável amanhã, se somos induzidos por nossa própria escolha ou, de outra forma, movemos nosso interesse, tornando o estado de coisas aceito um campo de investigação a mais.
Ao referir-nos a uma mudança de nosso próprio interesse, abordamos o cerne do nosso problema. Antes de prosseguirmos em nossa análise dos três tipos de conhecimento em questão, é necessário esclarecer a relação entre juros e distribuição de conhecimento.
É o nosso interesse à mão que motiva todo o nosso pensamento, projetando, atuando, e, com isso, estabelecendo o problema a ser resolvido pelo nosso pensamento e os objetivos a serem alcançados por nossas ações. Em outras palavras, é o nosso interesse que quebra em pedaços o campo problemático do conhecimento prévio em várias zonas de relevância no que diz respeito aos juros de cada um deles, exigindo um grau diferente de precisão do conhecimento.

Para o nosso propósito, podemos distinguir cerca de quatro regiões de relevância decrescente. Primeiro, há aquela que faz parte do mundo ao nosso alcance, que pode ser imediatamente observada por nós e é também, pelo menos parcialmente, dominada por nós - ou seja, que se altera e é reorganizada por nossas ações. É o setor do mundo em que nossos projetos podem ser materializados. Essa zona de relevância primária requer um ideal de compreensão de sua estrutura clara e distinta. A fim de dominar uma situação, temos de possuir o know-how - a técnica e a habilidade - e também a compreensão precisa do porquê, quando e onde usá-los. Em segundo lugar, existem outros campos que não são abertos ao nosso domínio, mas indiretamente ligados à zona de relevância primária, pois, por exemplo, fornecem ferramentas prontas para serem usadas para atingir a meta projetada ou estabelecem as condições das quais o nosso próprio planejamento ou sua execução depende. É suficiente estar apenas familiarizado com essas zonas de menor relevância para se familiarizar com as possibilidades, as chances e riscos que podem conter, no que dizem respeito ao nosso interesse. Em terceiro lugar, há outras zonas que, por enquanto, não têm essa conexão com nossos interesses à mão. Vamos chamá-las de relativamente irrelevantes, indicando, assim, que podemos continuar a tomá-las como admitidas, desde que nenhuma mudança ocorra dentro delas de tal modo que possam influenciar os setores em questão com novas e inesperadas chances ou riscos. E, finalmente, há as zonas que sugerimos chamá-las de absolutamente irrelevantes porque nenhuma mudança que possívelmente ocorra dentro delas - ou assim acreditamos – irá influenciar o nosso objetivo em questão. Para todos os efeitos práticos, uma crença cega no Isso e no Como das coisas dentro desta zona de irrelevância absoluta mostra-se suficiente.
Mas essa descrição é muito grosseira e requer algumas qualificações. Em primeiro lugar, temos falado de um "interesse à mão", que determina o nosso sistema de relevâncias. Mas, no entanto, não existe nada que seja um interesse isolado. Um interesse único em questão é apenas um elemento dentro de um sistema hierárquico ou mesmo de uma pluralidade de sistemas, de interesses que, na vida cotidiana, chamamos de nossos planos - planos de trabalho e de pensamento, para o imediato e para a nossa vida. Para ser claro, este sistema de interesses não é constante nem homogêneo. Ele não é constante porque na mudança de qualquer Agora no que ocorre Agora, os interesses individuais passam a ter um peso diferente, uma predominância diferente dentro do sistema. Ele não é homogêneo, pois mesmo na simultaneidade de qualquer Agora podemos ter interesses díspares. Os vários papéis sociais que assumimos simultaneamente oferecem uma boa ilustração disso. Os interesses que tenho na mesma situação como pai, cidadão, membro da minha igreja ou da minha profissão não podem ser diferentes e nem mesmo incompatíveis entre si. Eu, então, decido qual desses interesses díspares devo escolher, a fim de definir a situação a partir da qual inicio uma averiguação complementar. Esta escolha irá indicar o problema ou definir a meta a respeito do mundo em que vivemos, sendo que nosso conhecimento sobre ele é distribuído em zonas de relevâncias variadas.


Em segundo lugar, os termos "zonas" ou "regiões" de relevâncias variadas podem sugerir que há reinos fechados de relevâncias distintas em nosso mundo e, de forma correspondente, que há várias províncias do nosso conhecimento sobre ele, claramente separadas uma da outra por linhas fronteiriças. O contrário é verdadeiro. Esses vários reinos de relevâncias e precisão são misturados, mostrando os mais varios enclaves e interpenetrações, enviando suas franjas a províncias vizinhas, criando, assim, zonas crepusculares de transições. Se tivéssemos que desenhar um mapa mostrando figurativamente tal distribuição, ele não se assemelharia a um mapa político, mostrando os vários países com suas fronteiras bem estabelecidas, mas sim um mapa topográfico representando a forma de uma cadeia de montanhas com intervalos na forma habitual, com linhas de contorno que conectam pontos de igual altitude. Picos e vales, colinas e encostas estão espalhados sobre o mapa em configurações infinitamente diversificadas. O sistema de relevâncias é muito mais semelhante a um sistema de isohypses do que a um sistema de coordenadas, originárias de um centro 0 e que permitem a medição de uma rede equidistante.


Em terceiro lugar, temos que definir dois tipos de sistemas de relevâncias que propomos chamar de sistema de relevâncias intrínsecas e sistema de relevâncias impostas. Novamente, esses são apenas tipos construtivos que, na vida diária, estão quase sempre misturados uns com os outros e raramente são encontrados em estado puro. No entanto, é importante estudá-los separadamente em sua interação. As relevâncias intrínsecas resultam de nossos interesses escolhidos, definidos pela nossa decisão espontânea ao resolver um problema, originado em nosso pensamento, para atingir um objetivo pela nossa ação, para alcançar um estado de coisas projetado. Certamente, somos livres para escolher o que nos interessa, mas tal interesse, uma vez estabelecido, determina o sistema de relevâncias intrínsecas ao interesse escolhido. Temos que aceitar as relevâncias assim definidas, aceitar a situação determinada pela sua estrutura interna, para poder cumprir com as suas exigências. E ainda assim elas permanecem, pelo menos até certo ponto, dentro de nosso controle. Uma vez que o interesse, do qual dependem as relevâncias intrínsecas e no qual foram originadas, foi estabelecido por nossa escolha espontânea, esta pode, a qualquer momento, mudar o foco desse interesse e, assim, modificar as relevâncias intrínsecas a ele, obtendo, assim, um ideal de clareza. Esse processo completo ainda irá mostrar todas as características de uma performance espontânea. O personagem de todas essas relevâncias como relevâncias intrínsecas - ou seja, intrínseca a um interesse escolhido - será preservado.
Somos, no entanto, não apenas centros de espontaneidade, atuando dentro do mundo e gerando mudanças, mas também meros receptores passivos de eventos fora do nosso controle, que ocorrem sem a nossa interferência. Impostas sobre nós como relevantes, são situações e eventos que não estão conectados com os interesses definidos por nós, que não têm origem em atos de nossa decisão, e que temos de lidar com elas assim como são, sem qualquer poder de modificá-las por nossas atividades espontâneas, exceto por transformar as relevâncias assim impostas em relevâncias intrínsecas. Enquanto isso não se dá, não consideramos que as relevâncias impostas estejam conectadas com os nossos objetivos escolhidos espontaneamente. Porque elas nos são impostas, permanecem sem esclarecimento e bastante incompreensíveis.

Não é o nosso objetivo lidar aqui em detalhes com as relevâncias impostas ao indivíduo por acontecimentos em sua vida pessoal, como doença , luto, atos de Deus, ou os problemas metafísicos do destino, providência, ou o sentimento de sermos " jogados no mundo ", que Heidegger considera uma condição fundamental da existência humana. Mas as relevâncias impostas têm uma função importante dentro da esfera social, o estudo sobre ela nos levará de volta ao nosso principal problema.


IV

Nosso esboço sobre as várias zonas de relevância revelou que o mundo ao meu alcance é o núcleo de relevância primária. Este mundo dentro do meu próprio alcance é o primeiro de todos os setores do mundo ao meu alcance real; então, o setor que anteriormente estava em meu alcance real, está agora ao meu alcance potencial, pois pode ser trazido de volta ao meu alcance real; e, finalmente, está ao meu alcance atingível, pois está ao alcance real de você, meu companheiro, e poderia ser um mundo ao meu alcance real se eu não estivesse aqui onde estou, mas estivesse onde você está, mesmo que por pouco tempo. Ou seja, se eu estivesse no seu lugar. Assim, efetivamente ou potencialmente, um setor do mundo está ao alcance comum meu e de meus semelhantes, está ao nosso alcance, desde que - e esta restrição é muito importante - o meu próximo tenha um lugar definido dentro do mundo do meu alcance como eu tenha no dele. Teremos, então, um comum circundante a ser definido pelos nossos interesses comuns, o seu e o meu. Para ser claro, eu e ele teremos um sistema diferente de relevâncias e um conhecimento diferente de nossa borda comum, não por outra razão que o que ele vê de "lá" tudo o que eu estou vendo "daqui". No entanto, eu posso, dentro deste comum ao redor e dentro da zona de interesses comuns, estabelecer relações sociais com o outro de maneira individualizada; cada um pode agir sobre o outro e reagir à ação do outro. Em suma, o outro está parcialmente dentro do meu controle, eu estou parcialmente dentro do dele, e ele e eu não só sabemos deste fato, mas também sabemos de nosso conhecimento mútuo, que em si é um meio para o exercício do controle. Espontaneamente voltados para o outro, de forma espontânea "transformando em" uns aos outros, nós temos, pelo menos, algumas relevâncias intrínsecas em comum.
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Mas só algumas. Em qualquer interação social, continua a haver no sistema de cada parceiro uma parte de relevâncias intrínsecas não compartilhadas pelo outro. Há aí duas consequências importantes. Em primeiro lugar, imagine que Peter e Paul são parceiros em uma interação social de qualquer tipo. Na medida em que Peter é o objeto da ação de Paul e tem de levar em conta os objetivos específicos de Paul dos quais ele, Peter, não compartilha, relevâncias intrínsecas de Paul são impostas a Peter e vice-versa. (O conceito de relevâncias impostas aplicado às relações sociais não contem qualquer referência ao problema se uma imposição é aceita ou não pelo parceiro envolvido. Parece que o grau de disposição em aceitar ou não aceitar a imposição de outras relevâncias intrínsecas, para ceder ou para resistir, poderia ser usado com vantagem para uma classificação dos diversos relacionamentos sociais). Em segundo lugar, Peter tem pleno conhecimento apenas de seu próprio sistema de relevâncias intrínsecas. O sistema de relevâncias intrínsecas de Paul, como um todo, não é totalmente acessível a Peter. Na medida em que Peter tem um conhecimento parcial do mesmo - pelo menos ele vai saber o que Paul lhe impõe - este conhecimento nunca vai ter esse grau de precisão que seria suficiente se o que é apenas relevante para Peter por imposição for um elemento dele, o sistema de relevâncias intrínsecas de Peter. Relevâncias impostas permanecem vazias, antecipações não cumpridas. .

Assim é a distribuição do conhecimento no relacionamento social entre indivíduos, se cada um tem seu lugar definido no mundo do outro, se cada um está sob o controle do outro. Em certa medida, o mesmo é válido para a relação entre o que é interno aos grupos e para fora grupos - se cada um deles é conhecido pelo outro na sua especificidade. Mas, quanto mais do outro se torna anônimo e menos o seu lugar no cosmos social é determinável para o parceiro, mais a zona de relevâncias intrínsecas comuns diminui e a de relevâncias impostas se amplia.


Estendendo o anonimato recíproco dos parceiros, ele é uma característica da nossa civilização moderna. Somos cada vez menos e menos determinados em nossa situação social nas relações com parceiros individuais dentro de nosso alcance imediato ou remoto, e cada vez mais por tipos altamente anônimos que não têm lugar fixo no cosmos social. Somos cada vez menos capazes de escolher nossos parceiros no mundo social e de compartilhar nossa vida social com eles. Estamos, por assim dizer, potencialmente sujeitos a controle remoto de todos. Nenhum ponto do globo é mais distante do lugar onde vivemos de sessenta horas de avião; ondas elétricas transportam mensagens em uma fração de segundo de uma extremidade da terra até a outra; e muito em breve todo lugar neste mundo será o alvo potencial das armas destrutivas liberadas de qualquer outro lugar. Nosso próprio círculo social está ao alcance de todos, em toda parte; outro anônimo, cujos objetivos são desconhecidos para nós por causa de seu anonimato, pode nos reunir com o nosso sistema de interesses e relevâncias dentro de seu controle. Estamos cada vez menos e menos senhores de nosso próprio direito de definir o que é e o que não é relevante para nós. Relevâncias impostas politicamente, economicamente e socialmente além do nosso controle, têm que ser levadas em conta por nós, como elas são. Por isso, temos de conhecê-las. Mas até que ponto?

V

Esta questão leva-nos de volta para os três tipos ideais de conhecimento descritas no início como o perito, o cidadão bem informado, e o homem da rua. A vida deste último, por assim dizer, tem uma ingenuidade própria e relevâncias intrínsecas de seu próprio grupo. Ele leva em conta as relevâncias impostas apenas como elementos da situação a ser definida ou como dados ou condições para o curso de sua ação. Eles são simplesmente dados e ele não se preocupa em entender sua origem e estrutura. Não se preocupa também em entender por que algumas coisas são mais relevantes do que outras, porque zonas de irrelevâncias aparentemente intrínsecas podem esconder elementos que podem ser impostos a ele amanhã como assuntos de maior relevância; essas questões não influenciam seu agir e pensar. Ele não vai atravessar a ponte antes que elas cheguem a ele, mas mesmo assim toma como certo que vai encontrar uma ponte, quando ele precisar dela e que ela será forte o suficiente para levá-lo. Essa é uma das razões pelas quais na formação de suas opiniões, ele é muito mais regido pelo sentimento do que pela informação, porque ele prefere, como as estatísticas têm mostrado amplamente, as páginas de quadrinhos dos jornais à notícia estrangeira, os programas de quizzes de rádio aos comentaristas de notícias.

O especialista, como entendemos este termo, se sente em casa apenas em um sistema de relevâncias impostas - ou seja, pelos problemas pré-estabelecidos dentro de seu campo. Ou, para ser mais preciso, em função de sua decisão de se tornar um especialista, ele aceitou as relevâncias impostas dentro de seu campo como sendo intrínsecas, e como as únicas relevâncias intrínsecas para o seu agir e pensar . Mas este campo é rigidamente limitado. Para ser claro, há problemas marginais e até mesmo problemas fora de seu campo específico, mas o especialista está inclinado a atribuí-los a outro especialista, que se referem supostamente ao outro. O especialista parte do pressuposto de que não só o sistema de problemas estabelecido dentro de seu campo é relevante, mas que é o único sistema relevante. Todo o seu conhecimento diz respeito ao seu quadro de referência que estabelece de uma vez por todas. Aquele que não o aceita como o sistema monopolizado de suas relevâncias intrínsecas não compartilha do universo de discurso do especialista. Ele pode esperar do conselho do especialista apenas a indicação de meios adequados para atingir fins dados previamente, mas não a determinação desses fins. A famosa afirmação de Clemenceau que a guerra é muito importante para uma empresa para ser deixada exclusivamente nas mãos dos generais ilustra a maneira pela qual um homem orientado para fins mais abrangentes reage a um aconselhamento especializado.

O cidadão bem informado encontra-se colocado em um domínio que pertence a um número infinito de possíveis quadros de referência. Não há fim dado previamente, não há linhas de fronteira dentro das quais ele pode procurar abrigo. Ele tem que escolher o quadro de referência para escolher o seu interesse; ele tem para investigar as zonas de relevâncias que aderem a ele; e ele tem que reunir o máximo de conhecimento possível sobre a origem e a fonte das relevâncias efetiva ou potencialmente impostas sobre ele. Em termos da classificação utilizada anteriormente, o cidadão bem informado irá restringir, na medida em que for possível, a zona do amanhã irrelevante, consciente de que o que é hoje relativamente irrelevante pode ser imposto como uma relevância primordial e que a província do chamado absolutamente irrelevante pode revelar-se como a casa dos poderes anônimos que poderá alcançá-lo. Assim, o seu modo de agir é muito diferente daquele do perito, cujo conhecimento é delimitado por um único sistema de relevâncias, ou como o do homem da rua que é indiferente à estrutura da própria relevância. Por isso mesmo, ele tem que formar uma opinião razoável e procurar informações. Quais, no entanto, são as fontes de informações, e por que razão pode o cidadão considerá-las suficientes para capacitá-lo a formar uma opinião própria?
VI

Mais uma vez, somos levados a um problema principal da teoria da distribuição social do conhecimento. Parece ser um mero truísmo afirmar que só uma parte muito pequena do nosso conhecimento atual e potencial se origina em nossa própria experiência. A maior parte do nosso conhecimento consiste em experiências não propriamente nossas, mas que nossos semelhantes, contemporâneos ou antepassados tiveram, e que eles nos comunicaram ou tenham deixado para nós. Vamos chamar este tipo de conhecimento de conhecimento derivado socialmente. Mas por que acreditamos nisso? Todo o conhecimento derivado socialmente é baseado em uma idealização implícita que pode ser mais ou menos formulada da seguinte maneira: "Eu acredito na experiência do meu colega porque se eu estivesse (ou esteja) em seu lugar eu teria (ou tenha) a mesmo experiência que ele teve (ou tive) , poderia fazer exatamente como ele fez (ou faz) , teria as mesmas chances ou riscos na mesma situação. Assim, o que para ele é (ou era) um objeto realmente existente de sua experiência real é para mim um objeto ilusoriamente existente de uma experiência possível". Esta é a idealização básica e não podemos entrar aqui nas várias possibilidades do estilo típico em que o conhecimento derivado socialmente é experimentado. No âmbito deste trabalho, temos que nos restringir a poucos exemplos para que não fique exaustivo.


Conhecimentos derivados socialmente podem ser originários de quatro formas diferentes. Primeiro, pode vir da experiência imediata de outro indivíduo que comunica para mim esta experiência. Para efeito desse raciocínio, tal indivíduo será chamado de testemunha. Minha crença em seu relato baseia-se no fato de que o evento relatado ocorreu no mundo ao seu alcance. De " lá", de sua posição no espaço e no tempo, as coisas poderiam ser observadas e os acontecimentos vividos, que não eram observáveis "daqui", a partir de minha posição; mas se eu estivesse "lá" e não "aqui" poderia ter experimentado o mesmo. Esta crença pressupõe, por outro lado, certa conformidade do meu sistema de relevâncias com o da testemunha. Caso contrário, eu estou inclinado a supor que eu teria observado certos aspectos do evento que permaneceram despercebidos a ele e vice-versa.

A segunda fonte de conhecimento derivado socialmente pode ser a experiência imediata de outro indivíduo - não necessariamente uma testemunha ocular e não necessariamente reportando-se diretamente a mim, para quem o evento observado tem o seu lugar em um sistema de relevâncias intrínsecas de uma configuração substancialmente diferente da minha. Vamos chamar essa pessoa de insider. Minha crença em seu relato é baseada na suposição de que o insider, como ele experimenta o evento relatado em um contexto único ou típico de relevância, "conhece-o melhor" do que eu o conheceria se tivesse observado o mesmo evento, mas sem a consciência de seu significado intrínseco.

Em terceiro lugar, há a opinião de outra pessoa, com base em fatos por ele recolhidos a partir de uma fonte ou de outra de conhecimento imediato ou derivado socialmente, mas dispostos e agrupados de acordo com um sistema de relevâncias semelhantes ao meu. Tal indivíduo será chamado de analista. Sua opinião terá mais peso para mim quanto mais eu tenha conhecimento sobre os fatos nos quais ele se baseia, e eu estou convencido da congruência do seu sistema de relevâncias com o meu.


E, finalmente, há a opinião de outro indivíduo com base nas mesmas fontes do analista, mas agrupados de acordo com um sistema de relevâncias consideravelmente diferente do meu. Vamos chamá-lo de comentarista . Sua opinião é de confiança, se me permite formar um conhecimento suficientemente claro e precisa do sistema de desvio subjacente de relevâncias.

É claro que a testemunha, o insider, o analista e o comentarista representam apenas quatro dos muitos tipos ideais de transmissão de conhecimentos derivados socialmente. Nenhum desses tipos é susceptível de ser encontrado na sua pureza. Qualquer historiador, professor, editorialista, ou propagandista irá representar uma mistura de vários tipos ideais traçados. Para a classificação de um comunicador de acordo com esses tipos é irrelevante se ele é ou não é um especialista, se ele usa este ou aquele sistema de sinais, símbolos ou artefatos para se comunicar, se a comunicação ocorre face- a-face, ou qualquer outra relação social, seja o informante intimamente conhecido por nós ou se ele permanece mais ou menos anônimo. Mas todos esses fatores são de extrema importância, mesmo decisivos, para o peso que nós, cidadãos em busca de informação, conferimos à fonte do nosso conhecimento derivado socialmente.

É impossível entrar aqui em todas as implicações do problema. No entanto, mesmo a imagem rudimentar delineada seria ainda incompleta sem que se mencione brevemente outro aspecto da distribuição social do conhecimento que, de certa forma , é o oposto do conhecimento derivado socialmente. Vamos chamá-lo de conhecimento socialmente aprovado. Qualquer conhecimento, nossas próprias experiências originais, bem como qualquer tipo de conhecimento derivado socialmente, recebe peso adicional se for aceito, não só por nós, mas pelos outros membros do nosso grupo. Para estar correto, acima de qualquer dúvida, eu acredito em minhas próprias experiências se os outros que eu considero competentes, corroboram com o que eu encontrei, seja por suas próprias experiências ou simplesmente porque eles confiam em mim. Eu considero meu pai, meu padre, meu governo por serem autorizados, então as suas opiniões têm peso especial e este peso em si tem o caráter de uma relevância imposta. O poder do conhecimento socialmente aprovado é tão estendido que o que o grupo aprova - formas de pensar e agir, como costumes, modos populares, hábitos - como se fosse simplesmente um dado admitido, torna-se um elemento do conceito relativamente natural do mundo, embora a fonte de tal conhecimento permaneça inteiramente escondida em seu anonimato.

Assim, a zona de coisas admitidas, o conceito relativamente natural do mundo a partir do qual toda investigação começa e que toda investigação tem pressupostos, revela-se como o sedimento as experiências - a minha própria, bem como de outras pessoas – as quais são socialmente admitidas.

Permitam-me concluir com algumas observações sobre a natureza e a função da interação entre o conhecimento socialmente derivado e o socialmente aprovado e elaborar apenas uma conclusão prática para o diagnóstico de nossa situação atual.

Conhecimento socialmente aprovado é a fonte de prestígio e autoridade; é também a casa da opinião pública. Só é considerado um especialista ou um cidadão bem informado aquele que é socialmente aprovado como tal. Tendo obtido este grau de prestígio, as opiniões do cidadão bem informado ou do perito recebem um peso adicional no âmbito do conhecimento derivado socialmente. No nosso tempo, o conhecimento socialmente aprovado tende a substituir o sistema subjacente de relevâncias intrínsecas e impostas. Enquetes, entrevistas e questionários tentam avaliar a opinião do homem da rua, que nem sequer olha para qualquer tipo de informação que vai além de seu sistema habitual de relevâncias intrínsecas. Sua opinião, que é o que se entende hoje em dia como sendo a opinião pública, torna-se cada vez mais socialmente aprovada em detrimento da opinião informada e, portanto, impõe-se como relevante sobre os membros mais bem informados da comunidade. Este risco aumenta com uma tendência a interpretar mal a democracia como uma instituição política em que o parecer do homem desinformado da rua deve predominar. É o dever e o privilégio, portanto, de o cidadão bem informado, numa sociedade democrática, fazer a sua opinião particular prevalecer, em termos da opinião pública, sobre a opinião do homem da rua.


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