O cinema amador em Memória de Helena: verdade e sentimento

June 3, 2017 | Autor: Lila Foster | Categoria: Brazilian Cinema, Home Movies and Amateur Film
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PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES

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apresenta

06 A 08 JANEIRO DE 2015 AV. ALMIRANTE BARROSO, 25, CENTRO #VIVAMAISCULTURA

CURADORIA PEDRO HENRIQUE FERREIRA E THIAGO BRITO

Não recomendado para menores de 18 anos.

FACEBOOK.COM/CAIXACULTURALRIODEJANEIRO

A CAIXA é uma das principais patrocinadoras da cultural brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos culturais em seus espaços, com o foco atualmente voltado para exposições de artes visuais, peças de teatro, espetáculos de dança, shows musicais, festivais de teatro e dança em todo o território nacional, e artesanato brasileiro. Os eventos patrocinados são selecionados via Programa Seleção Pública de Projetos, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todas as unidades da federação, e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa em patrocínio. A mostra Paisagens do Rio de Janeiro: a poética de David Neves apresentará uma panorama atualizado da obra de Davi Neves tendo como pano de fundo a trajetória do cinema carioca. Serão exibidos 11 longas e 15 curtas-metragens do cineasta, um dos mais importantes do Cinema Novo além de encontros que pretendem aprofundar a discussão em torno de sua obra. Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura nacional e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo de seus 152 anos de atuação no país, e de efetiva parceira no desenvolvimento das nossas cidades. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e participação efetiva no presente, compromisso com o futuro do país, e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro.

Caixa Econômica Federal

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Rascunhos da vida “As coisas nem sempre se passam como quer nosso vão e egoísta idealismo”1

1994-2015. São já 21 anos de sua ausência. Recentemente, caminhávamos pela Prado Junior, em Copacabana, e perguntávamos às pessoas com quem nos deparávamos na rua se conheceram pessoalmente a David Neves. As respostas positivas eram quase unânimes. Um senhor que jogava fora conversa com o chaveiro dizia ter sido seu médico durante seus últimos dias de vida. No restaurante El Cid, o garçom recordava seu hábito de sentar em uma mesa à janela, e, acompanhado do seu cotidiano “suco de pão”, desenhar ou fazer anotações observando os pedestres. Asmático, passava a tarde e a noite acordado pelas ruas, e dormia durante os dias. Um jornaleiro lembra que ele se sentava em uma cadeira na calçada e lia seu jornal diário às 17h, quando tomava café-da-manhã com o morador de rua conhecido como “Jacaré”. E logo depois, uma limusine estacionava e ele ia encostar no boteco com um diplomata ou militar. David Neves foi esquecido pelo cinema e lembrado pelos botecos. Esteve na pequena cúpula que inventou o Cinema Novo, antes mesmo de Glauber Rocha chegar à cidade maravilhosa. Ou melhor, cidade turbilhão. No imaginário do movimento, David é uma figura relegada ou deslocada. Por um lado, porque, na alvorada dos sessenta e nos primórdios do que viria a ser o grupo mais comentado da historiografia nacional, David Neves não fazia filmes. Propagava o Cinema Novo, quiçá mais que qualquer outro, através da crítica cinematográfica no jornal O Metropolitano (na Itália, o chamavam carinhosamente de Il critico). E, logo em seguida, ocupando um cargo governamental no Itamaraty, promovendo oficialmente o jovem cinema brasileiro no exterior. Na medida do possível, David era uma figura low profile, o “líder afetivo”, como diziam os demais membros do insipiente movimento. De modo que só foi filmar seu primeiro longa-metragem, Memórias de Helena, em 1969, num outro momento, 1 Trecho de texto encontrado no livro Cartas do meu Bar, organizado e editado pelo David Neves, em 1993, através da Editora 34.

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quando o impulso radical inicial do movimento já se transformara, após a concretização da ditadura militar e o decreto do ato institucional número cinco. Quando falamos em uma poética no cinema de David Neves, é, senão impossível, improvável pensa-la separada da cidade turbilhão: as ruas onde vivia e frequentava, os amigos que fazia e os desconhecidos que via passar, o

cotidiano pulsante de viver na metrópole carioca durante os anos setenta. O Rio de Janeiro foi seu cenário, e dedicou a ele uma trilogia de crônicas - Muito Prazer (1979), Fulaninha (1986) e Jardim de Alah (1988) – além de tê-lo presente como pauta em praticamente todas as suas obras. Sob os olhos de David Neves, o Rio de Janeiro é ao mesmo tempo o palco das contradições sociais que o Cinema Novo expunha com tanta veemência um ambiente de decadência onde, lado-a-lado com membros da elite da zona sul, vivem figuras marginalizadas, moradores de rua, alcoólatras, prostitutas e travestis. Mas ao invés do confronto direto entre classes retratado em obras como Os Fuzis, Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Desafio, dentre outras das mais célebres do primeiro momento do Cinema Novo, os filmes de David Neves se passam em um momento onde já “não se é possível lutar”. O trabalho político (e político, somente na justa medida em que deixa de ser político) agora era não permitir que estas figuras marginalizadas fossem esquecidas. Que não fossem abandonadas pelo regime instaurado, varridas deste Brasil progressista que “queria ser algo que não é”. Artisticamente, tratava-se de demonstrar a humanidade do marginal. Humanidade não como capacidade de conciliação e de levar à cabo os valores da moral burguesa, mas justamente a capacidade de passar por cima destes valores e ainda deslumbrar e ser deslumbrado. Um deslumbre joyceano, encontrado soterrado num ambiente que não lhe parece propício. Num ambiente onde destoa, como a copa da árvore e os pássaros na primeira imagem de Fulaninha, o idílio encontrado no meio de apartamentos barulhentos, pessoas brutas e o trânsito confuso da Prado Junior. O cinema de David é político, justamente por que ama aquilo que retrata. Pois a humanidade surge (desponta, eleva-se) na capacidade que o homem tem de ficcionalizar o mundo; no gesto de sublimar o objeto mais simples e elevá-lo, amá-lo, até torna-lo presente para que ele viva e exista com as pernas próprias, ainda que não tenha se encontrado dentro do mundo. Ainda que não tenha precisamente um nome. *** O presente catálogo pretende expandir a discussão em torno destas aparentes múltiplas facetas de David Neves que, em realidade, sempre foram uma e a mesma. Tripartido, o ponta pé inicial é uma fortuna crítica inédita que analisa a obra de Neves a partir de um amplo prisma de questões: do seu papel na construção do Cinema Novo, até uma análise mais detida sobre o uso de filmes caseiros e de uma estética amadora como forma de atingir um

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sentimento diferenciado e único em Memória de Helena. O conjunto de quatro textos inéditos trilham a proposição de que ainda há muito o que cavar e revirar dentro de sua obra, mesmo após 21 anos de sua morte. A segunda parte se dedica a um conjunto de entrevistas com profissionais e amigos que trabalharam e conviveram ao lado de David, mas jamais tiveram a oportunidade de falar de forma mais detida sobre ele. São sete entrevistas inéditas que nos apresentam um retrato para lá de complexo do diretor – do engravatado que trabalhava no Itamaraty, ao sujeito pacato, tocado pela simplicidade da vida e das coisas, passando pelo alcoólatra dedicado à esbórnia e ao submundo da Prado Junior. São nestas entrevistas que nos damos conta do seu método de trabalho, suas consciência artística e seu esmero técnico. Por fim, a terceira parte é composta por seus textos pessoais, encontrados em uma extensa pesquisa por inúmeros acervos. Destacam-se os textos encontrados no Acervo David Neves, localizado no Centro Universitário Moacyr Bastos, em Campo Grande. Ao total, foram 31 textos produzidos por David ao longo de sua vida, incluindo material de seus primeiros passos no periódico O Metropolitano, passando pelos textos mais diretamente voltados à construção ideológica do que viria a ser o Cinema Novo, incluindo textos de seu livro Cinema Novo no Brasil (o primeiro a ser publicado sobre o tema), até os textos mais maduros, onde analisa os descaminhos do Cinema Brasileiro. Toda a terceira parte do catálogo é estruturada por vai-e-vem, elaborando intersecções – ou, como diria David Neves, gatos – que quebrassem a aparente harmonia de seus textos e criassem diálogos, ruídos e ressonâncias. Além de um panorama de fotos, pinturas e fotografias de autoria do diretor, que também era exímio com o pincel, mesclamos com seus textos críticos o inédito Diário de Luz del Fuego, um caderno rosa, ou hebdomadário, como dizia David, redigido durante as filmagens de seu maior sucesso de público; os aforismos e poesias encontrados em Cartas do Meu Bar, escrito em idade avançada, quando David já era marcado por doença que levaria ao seu falecimento em 1994, demonstrando uma visão filosófica e existencial muito mais ampla do que todos os seus textos críticos; uma entrevista reveladora com Rubens Fonseca, autor do livro que adaptou em Lúcia McCartney, uma garota de programa; e, por fim, uma passagem raríssima e fortemente confessional do Diário de Jardim de Alah, produzido no mesmo espírito que o anterior. Mais do que respostas, terminamos com perguntas. O que aconteceu com o David? O que estava passando? O que estava se buscando, e por que sua vida tomou este rumo?

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É possível que tais respostas não existam. Qual o Iago de Othelo, David se despede, em Cartas do Meu Bar, sob tom shakespeariano, elucubrando sobre o que Brasil é, ao invés do que poderia ou deveria ter sido. E, com efeito, David Neves foi. Definitivamente, foi um homem de mão cheia, de vida experimentada, tortuosa, complexa, e plena de afeto, carinho, amigos e depressão. Como julgar a vida de um homem, afinal? O rascunho, o croqui, está aí, diante de vocês. Tudo o que, então, lhe pedimos, querido leitor e espectador, é que não faça ideia errada sobre nós. Elevemo-nos, nós mesmos, à condição única, banal e extraordinária, de que, mesmo com todo progresso e iphones, ainda vive-se apenas uma vez. E, no entanto, aqui estamos... diante de David.

Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito curadores

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sumário

Textos introdutórios

Textos introdutórios

Memória de Helena Lila Foster

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David Neves: impressões Luís Alberto Rocha Melo

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David Neves e o Cinema Novo Arthur Autran

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O Cinema da Indução Hernani Heffner

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ENTREVISTAS

ENTREVISTAS

Jom Tob Azulay

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Ittala Nandi

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Joaquim Vaz de Carvalho

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Carlos Moletta

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Joel Barcellos

71

Mariana de Moraes

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Paulo Thiago

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Textos de david neves

Textos do david neves

Duas peças de Bach

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Relações Internas

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Diário de Luz Del Fuego I

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O Primeiro Passo

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Diário de Luz Del Fuego II

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O Mestre e o Poeta

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Diário de Luz Del Fuego III

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Concessão é Conformismo

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União e Censura Cultural

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O Testemunho de Marcoreles

106

Afinal, o realismo.

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A verdade do Nordeste

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Garrincha decalcado?

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Diário de Luz Del Fuego IV

118

Poética do Cinema Novo

120

Cartas do Meu Bar I

124

Diário de Luz Del Fuego V

125

Guimarães Rosa e o Cinema

126

Rio, Zona Norte

130

Diário de Luz Del Fuego VI

137

Uma Aventura Malgaxe

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Cartas do Meu Bar II

142

A Vida como Rascunho

143

Diário de Luz Del Fuego VII

144

Feu Follet

145

Diário de Luz Del Fuego VIII

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Vista para o Mar

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Cartas do Meu Bar III

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Cartas do Meu Bar IV

152

Entrevista com Rubem Fonseca

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Diário Jardim de Alah

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David Neves, Sem título

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Cartas do Meu Bar V

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Filmografia

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textos introdutórios 14

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O cinema pode ser: 1. A maquilagem da vida. 2. A revelação pura e simples da vida. 3. A destruição da própria vida.(...) O bom cineasta é o que diz verdades em forma de mentiras. O cinema é a mentira por excelência. (...) A mentira é o veículo e a verdade, o passageiro. (David Neves em Cartas do meu bar, 1993)

O cinema amador em Memória de Helena: verdade e sentimento Lila Foster Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP, mestre em Imagem e Som pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de São Carlos (PPGIS) e formada em Filosofia (2005) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH - USP). Articulando pesquisa histórica e preservação audiovisual, o seu trabalho se concentra no levantamento da produção amadora e de filmes domésticos no Brasil.

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A feitura de filmes domésticos, esses filmezinhos amadores que registram os pequenos e grandes eventos do cotidiano familiar, talvez seja uma das práticas audiovisuais mais comuns desde a invenção do cinema. As formas e as possibilidades de se filmar a família, evidentemente, mudaram muito no decorrer do tempo por conta das inovações tecnológicas, que permitiram novos usos das câmeras amadoras, e porque as demandas que dirigimos às imagens também se alteraram. A distância que separa os filmes de família rodados em 16 mm no Brasil na década de 1930 e os vídeos digitais caseiros compartilhados no YouTube é, de fato, enorme. O desejo de realizar filmes ou vídeos domésticos, no entanto, se une por uma premissa básica: o poder dos sentimentos, uma potência que se estende e se multiplica em diversas temporalidades. A força que une a família no momento da filmagem - aqui podemos entender a família em um sentido mais amplo, considerando amigos, pessoas de um mesmo círculo de convivência - e o arrebatamento que esses filmes causam no espectador distante no espaço ou no tempo. Roland Barthes, Susan Sontag e André Bazin1 tematizaram essa relação particular e sentimental do espectador com a fotografia familiar, uma percepção que também se funda na crença das imagens como provas de existência, índices de realidade. Tais imagens também não deixam de ser uma luta contra a morte, a imagem que sustenta a existência de um ser ausente. Estendendo tal ideia para a imagem em movimento, o filme doméstico tem as suas próprias “regras do jogo”, situadas entre a vocação para o registro e a constituição de memória, e a condensação de um tempo que se antecipa como lembrança e ausência. Ele se define, portanto, pelo seu valor sentimental e mnemônico, sua estética particular e seu efeito de real-presença. Parte expressiva da nossa cultura visual, o cinema nunca deixou de se apropriar e se inspirar no filme doméstico2 amador. Diante do manancial de imagens amadoras preservadas em arquivos particulares e públicos, o arquivo se tornou

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1 Ver, respectivamente, A câmara clara: nota sobre a fotografia (Nova Fronteira, 1989), Sobre fotografia (Companhia das Letras, 2004) e “Ontologia da imagem fotográfica” em O que é o Cinema? (Cosac Naify, 2014). 2 As câmeras amadoras -- 9.5 mm, 16 mm, 8 mm e Super 8 – também permitiram os primeiros exercícios em cinematografia de diversos cineastas, como Humberto Mauro, que rodou o seu primeiro filme, Valadião, o cratera (1925) com uma Pathé-Baby; Jacques Demy, que teve a sua incursão no amadorismo ainda adolescente, representada no belíssimo Jacquot de Nantes (1991) de Agnes Varda; e, inclusive, David Neves, que fez dois filmes amadores em 16 mm, Domingo e Fuga, rodados com Cacá Diegues no início dos anos 1960 e, infelizmente, desaparecidos.

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matéria de criação, sendo o caso mais exemplar o do cineasta húngaro Peter Forgács, que, através de filmes domésticos rodados em diversos países da Europa, reconstitui, do ponto de vista particular e da intimidade, grandes eventos traumáticos que assombram a Europa, como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Civil Espanhola. Já a defesa do amador nos filmes de Jonas Mekas perpassa não somente a contraposição ao modus operandi do cinema profissional, mas também a captação amorosa da família nuclear e estendida: cada filme com a sua implicação estética de um cinema próximo ao coração. A câmera amadora, seja analógica ou digital, possibilita a produção de filmes-diário, a filmagem em tempo estendido como escrita imagética pessoal e quase onipresente, caso dos documentários Diários (1973-1983), de David Perlov e Tarnation (2004) de Jonathan Cauette. Vale lembrar que o gesto do amador também pode ser ficcionalizado e a estética precária da imagem amadora, emulada; procedimentos tão comuns hoje em dia na publicidade e na ficção. Nos últimos anos, a produção audiovisual brasileira tem explorado com frequência o uso de imagens domésticas de arquivo e a estética amadora como elementos da criação. Podemos citar, dentre vários exemplos, Pacific (2009) de Marcelo Pedroso, Olhos de Ressaca (2009) e Elena (2012) de Petra Costa, Babás (2010) de Consuelo Lins, Avós (2009) de Michael Wahrmann, Supermemórias (2010) de Danilo Carvalho, Os dias com ele (2013) de Maria Clara Escobar, Já visto Jamais visto (2013) de Andrea Tonacci, Cine-Penhor (2013) de Guilherme Martins, Elegia à Rimbaud (2011) de Leo Pyrata e Roberto Cabeção (2011) de Salomão Santana. Cada um a seu modo, todos apontam para a centralidade que essas imagens ocupam no cenário atual. Memória, arquivo, poética amadora, cotidiano, intimidade, amorosidade, observação, corporeidade, subjetividade, efeito de real, autenticidade, biografia e morte são algumas palavras-chave que podem sintetizar essa diversidade de relações. E são palavras que também definem Memória de Helena (1969). Primeiro longa-metragem de David Neves dirigido durante o que podemos chamar de segunda fase do Cinema Novo, o filme vai na contracorrente do cinema feito pelos seus companheiros de geração, dedicados ao diagnóstico do país, ao didatismo, ao gesto da intervenção e ao ideal revolucionário coletivo (a luta de classes aparece ali, mas numa chave muito diversa). Íntimo, pessoal e com um olhar que observa, ao invés de intervir, o filme habita um espaço temático muito mais próximo ao do cinema contemporâneo, principalmente no gesto de apropriação do código do cinema amador e do filme doméstico como arquivo de rememoração. Mas apesar dessa semelhança, a relação final com a encenação

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e a apropriação do universo amador nos parecem distantes. É evidente que toda e qualquer generalização seria redutora, mas existe algo que subjaz muito da produção audiovisual contemporânea construída a partir da categoria amadora, - aqui podemos incluir as artes visuais e a mídia - algo que diz muito sobre o nosso tempo e sobre a relação que construímos com a imagem: a busca de uma verdade constituída a partir de uma relação de colamento com o real, uma prova, o seu flagrante ou a sua tentativa de reconstituição. O que se busca nesse recurso ao amadorismo é o próprio real, esse, por sua vez, sempre inacessível. Diria que nesta relação existe quase sempre uma dureza, uma aridez entre a realidade e a nossa percepção dela, uma cisão, um desalento. Diante deste cenário, assistir a Memória de Helena se torna uma experiência reveladora. Não são somente os quarenta e cinco anos desde o seu lançamento que nos separam. Assim como Rosa e Renato revisitam as imagens amadoras filmadas por Helena e seu Tio Mario, também revisitamos outro tempo do cinema brasileiro, outra forma de entender o que é a verdade e a autenticidade no cinema, uma questão cara a David Neves. O diretor não nos convida somente para o mundo íntimo de uma jovem vivendo em Diamantina, Minas Gerais, mas para a sua biografia e para um conjunto de referências que se confundem com o próprio cinema brasileiro da época, fazendo da experiência e da vida o solo da representação3. Memória de Helena se assume como construção fílmica desde o início. A voz off de Rosa anuncia esta pequena história intimista, um filme sentimental feito por David Neves e equipe. Helena é ainda um mistério para o espectador que acompanha a descoberta dos seus filmes domésticos por Renato, um namorado de adolescência, e por Rosa, a melhor amiga de Helena. É a luz da projeção desses filmes no rosto dos personagens e o som do projetor que antecedem o aparecimento dos primeiros filmes caseiros, imagens em preto e branco no formato original do 16 mm, com sua janela reduzida e de bordas arredondadas. São imagens que mostram Diamantina, seus morros e sua gente trabalhadora, é um plano de uma babá negra segurando um bebê: olhar de atenção sociológica, que também permeará outros desses filmezinhos. Esse segundo lugar e dispositivo fílmico, o espaço amador, vai oscilar entre os filmes feitos por Helena e pelo seu tio, entre o olhar particular da adolescente – seu quarto, seu diário, suas amizades – e um olhar de atenção sociológica, tão caro ao Cinema Novo, dirigido ao mundo do trabalho fora e dentro do ambiente doméstico: as empregadas, a cozinha, a mulher que passa a roupa. Nos dois, percebemos uma atenção à Diamantina, à captação de certo espírito mineiro - as

3 Vale citar aqui um trecho do texto “Idiotas da subjetividade”, de David Neves, publicado na coletânea Telégrafo visual: crítica amorosa de cinema (Editora 34, 2004): “Minha preocupação maior é com a maneira de dizer e não com aquilo a ser dito. Quando penso num filme, procuro encaixar o assunto numa forma original. (...) O cinema deveria ser considerado uma coisa lúdica, sempre, até quando se dedica a reproduzir ou documentar a História. (...) Se meus filmes não são plenamente originais como eu desejaria que fossem, ao menos têm qualquer coisa de enigmático ou marginal que me agrada (...) meus filmes foram sempre um pouco marginais, umas experiências que eu mesmo produzi, não tinham compromisso com o mercado, eram quase meio autobiográficos, confessionais até certo ponto, sem, entretanto se encaixarem nessas características. O que eu acho é que o cinema que foi feito até um tempo atrás foi um cinema sem senso de oportunidade, porque tinha muito dessa idiotice de objetividade; quer dizer, era muito despersonalizado. (...) Fomos o tempo todo idiotas da objetividade, sejamos pelo menos idiotas da subjetividade.”

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4 David Neves dirigiu, em 1975, o curta-metragem Mauro, Humberto para o INC – Instituto Nacional de Cinema -, um filme que também une gerações em torno do pioneirismo de Mauro e da brasilidade de seus filmes. Com depoimentos de Glauber Rocha e Alex Viany, o filme não deixa de ter uma qualidade doméstica por mostrar Mauro em sua rotina cotidiana, uma domesticidade que culmina numa cena em que Humberto Mauro, Rogério Sganzerla, Helena Ignez e Julio Bressane conversam em torno da mesa da sala de jantar. O filme sintetiza uma característica do cinema de Neves, a união de gerações de pensadores e cineastas brasileiros e a busca desta geração pelo estilo brasileiro de cinema.

pedras, os rios, a cachoeira, a sua História - e uma característica de inspiração “maureana”: o encantamento e a mistura dos personagens ���������������������� à��������������������� paisagem. Esses filmes domésticos também complementam a presença de Humberto Mauro, atuando no filme como o Tio de Helena, e condensam a clara admiração pelo cineasta mineiro. A presença também se conecta a Paulo Emílio Salles Gomes, roteirista do filme, que dedicou ao cineasta intensa pesquisa sintetizada no livro Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte (Editora Perspectiva, 1974). Os dois, crítico e cineasta, formam uma dupla de grande inspiração para David Neves4. Os onze filmezinhos caseiros, em conjunto com as vozes em off, também serão estruturantes em termos narrativos e dramatúrgicos. No primeiros minutos do filme, que podemos chamar de “introdução à Helena”, a voz off de Rosa funciona como análise, fonte de informação e instaura o tempo da memória. No primeiro filmezinho, o amor pelos gatos traduz sua personalidade: “o universo felino de Helena: preguiça e agressividade”, diz Rosa. No segundo, as ruínas de Diamantina ilustram a história de Xica da Silva e o espaço de predileção da personagem principal. No terceiro, mais um vestígio de Helena nas imagens das páginas do seu diário. No quarto, a voz de Rosa apresenta os membros da família, que acenam para a câmera e sorriem, um gesto clássico do gênero doméstico. Quando Helena surge por detrás de um lençol no varal, como se estivesse abrindo as cortinas de um palco, o passado passa agora a ser colorido e o filme instaura o tempo do passado vivido e não captado em imagens preto e branco. A fotografia e a montagem exploram o contraste entre esses dois passados, o primeiro com um o olhar de observação do espaço um tanto distanciado dos seus personagens e o segundo explorando a integração entre quem filma e quem é filmado, outra característica marcante do gênero amador. Neste movimento, vamos sendo apresentados ao mundo de Helena. A atenção às mulheres da família – sua mãe, sua tia e avó – oprime e ressalta a sua inadequação e ansiedade em relação ao futuro já desenhando para uma boa moça de família mineira: a sua realização como mulher através do noivado e do casamento, a conquista de um homem como fundamento da existência. A leitura do diário e a narração de algumas imagens são agora assumidas por Helena. O filme caseiro seguinte relembra a chegada de Rosa, a personagem principal de pequenas encenações em preto e branco, essas signo da força da amizade entre as duas e a paixão explícita, mas delicada, de Rosa. Mulher ajustada ao papel social imposto na época, Rosa é considerada fútil, um contraponto às aspirações de liberdade de Helena, mas, ao mesmo tempo, é fonte de frustração pois ressalta a sua incapacidade de sentir: “acho que a mulher tem que ser inteligente para

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sentir e não para pensar”, escreve Helena. Renato é o segundo personagem que surge através dos filminhos, uma tentativa de ajuste, um contato que mergulha Helena não só na sua dificuldade de entrega, mas na vergonha de sua inexperiência amorosa. Nas imagens seguintes, Helena filma uma procissão religiosa e a família, em contraste com o que ela chama de “lugares sagrados ou o jardim encantado”, cenas da fazenda, do jardim sem capinar, do moinho e da roda d’água. Um mundo exterior, de normas e convenções que a amedronta e que se opõe ao seu mundo íntimo e secreto. O último filmezinho sintetiza sua crise, um filme quase delírio que move o olhar pelas copas das árvores. O corte brusco mostra ele, André, à distância. O homem que, ao realizar o desejo de Helena de ter uma paixão verdadeira e correspondida, a lançará na maior das suas angústias. Ocupada com a sua paixão, Helena não filma mais, o hobby não mais parece ter importância. Quem produz as imagens agora é André, fotógrafo profissional. Lançada no desespero com o sumiço do amante, Rosa mergulha definitivamente na paisagem de Diamantina. A morte torna ainda mais impactante o último filme caseiro, que fecha este conto antimoral. Helena em preto e branco pela primeira vez, um plano próximo iluminado e um pouco fora de foco dela acariciando o seu gatinho. Helena, que morre de forma tão trágica, volta para a vida através desses filme domésticos, das páginas do seu diário e das lembranças do casal Rosa e Renato. Não só pela função narrativa, o recurso ao filme doméstico em Memória de Helena é completo. Uma recriação que se guia pelo efeito emocional das imagens, algo alcançado com o belo trabalho de câmera e fotografia dos trechos amadores e pela montagem que une diversas temporalidades. A prática de filmar e de projetar filmes no ambiente doméstico, uma forma de captura da imagem e de compartilhamento que se alterou com o surgimento do vídeo, aparece incorporada à vida dos seus personagens, um capítulo da história de como nos filmamos e compartilhamos as imagens de nós mesmos. A fotografia dos filmes caseiros emula a filmagem “malfeita”, o filme sem montagem, cheio de flares, a comunicação entre quem filma e quem é filmado e a atenção amorosa aos seus personagens. E é no corpo a corpo com a linguagem do cinema, essa mentira que transporta a verdade como passageira, que David Neves realiza um dos filmes mais líricos do cinema brasileiro. Um filme que investe sua energia de observação para recriar não um mundo convincente, mas uma geografia apurada dos sentimentos e dilemas de amadurecimento de uma jovem adolescente se descobrindo mulher. Ao invés de fazer do cinema a continuidade, o espelho do mundo, David Neves investe na fabulação e na afirmação das verdades que não vemos, mas que podemos sentir.

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David Neves: impressões Luís Alberto Rocha Melo Cineasta, pesquisador e professor do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da UFJF. Dirigiu os longas-metragens Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo (HD, ficção, 2012) e Legião estrangeira (HD, doc., 2011); o curta-metragem em 35 mm Que cavação é essa? (ficção, 2008) e o média-metragem O Galante rei da Boca (DV, doc., 2004). Seu primeiro trabalho como diretor foi Alex Viany – Um documentário em vídeo (1990), seguido pelos experimentais O desejo de Deus (1992), A projeção no cinema (1993), Fernando Py (1994), Fragmentos – Uma narrativa intranquila (1997) e O trapezista (1999).

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Entre os 2.862 filmes/planos que compõem a série Cinématon, de Gérard Courant, o de número 984 recebe o título de David Neves1. Seguindo o modelo dos demais, David Neves consiste em uma única tomada silenciosa, com cerca de 4 minutos de duração - espécie de “instantâneo em movimento”. O encanto da série Cinématon talvez decorra exatamente desse aparente paradoxo: justamente porque concebidos como retratos fotográficos estáticos, esses filmes ampliam o prazer da sensação/da apreensão do movimento cinematográfico pelo espectador. Tudo o que o retratado tem a fazer, no caso, é permanecer diante da câmera e agir como quiser. Gestos mínimos das mãos, dos olhos, da boca etc., se tornam, assim, verdadeiros ensaios impressionistas de uma autobiografia involuntária. Quatro minutos de cinema instantâneo silencioso como esses, muitas vezes, valem por dezenas de documentários biográficos de longa-metragem. É bem este o caso de David Neves. Em sua delicada operação poética/estética, Gérard Courant absorve, por meio do movimento e de sua duração, o mais íntimo na personalidade do cineasta, para, em seguida, transformá-lo em epiderme e, depois, nos jogar de volta à subjetividade do “biografado”. Ou, para nos lembrarmos do jogo de palavras godardiano, a expressão se torna impressão – e vice-versa. Mas não é isto o cinema? David Neves exprime-se em David Neves, quatro minutos de impressões a 24 quadros por segundo, imagem silenciosa de um personagem titubeante, inquieto e retraído. O ideal aqui seria ver o filme, já que qualquer descrição será incapaz de dar conta da experiência espectatorial. Mas deixo a dica ao leitor para que ele o acesse via YouTube. Por enquanto, e provisoriamente, vale a pena mencionar pelo menos alguns gestos reveladores. Quando o filme se inicia, o olhar de David Neves parece perdido em algum ponto de seus pensamentos ou de suas lembranças; ele não olha para a câmera, sequer parece olhar para fora de si. Mas o fato é que há uma câmera diante dele, ela é incontornável. Não há escolha: é preciso encará-la. E David a olha/nos olha. Um olhar sério. Subitamente, como se tal situação fosse insustentável por mais que alguns segundos, ele se desvia, e, ao inclinar-se lateralmente, quase sai de campo. Retorna um tanto curvo à posição anterior, ensimesmado, o rosto quase escondido na parte inferior do quadro. A câmera permanece imóvel, impassível; desafiadora, é o que parece dizer a olhadela furtiva que ele (nos) dá. Por alguns instantes, é essa a relação que se mantém: David olha para a câmera/para nós, desvia o olhar, olha novamente, seu rosto oscila entre o fora e o dentro de campo. Mas toda essa movimentação, que, até então, nos parecia inquietude ou mal-estar, enfim se justifica quando o vemos acender uma cigarrilha com piteira. É que o campo estreito do enquadramento frontal nos impedia de ver o simples ritual de pegar a cigarrilha e o isqueiro.

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1 O filme, rodado em 27 de novembro de 1987, em Paris, pode ser assistido no YouTube (https://www.youtube.com/ watch?v=kakO-TDBlBw). Sobre o trabalho do escritor, cineasta e ator Gérard Courant, especialmente a série em processo Cinématon, “o filme mais longo do mundo”, cf. o site oficial www.gerardcourant. com. Desde 1977, utilizando películas 16 mm, 8 mm ou vídeo, Courant vem filmando cineastas, atores, atrizes e personalidades do cinema mundial,em ocasiões diversas, em geral no contexto de festivais e mostras: em cerca de 190 horas de duração total, já foram retratados de JeanLuc Godard a Robert Kramer, de Juliet Berto a Samuel Fuller, incluindo brasileiros, como Nelson Pereira dos Santos e Luiz Carlos Barreto.

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2 Jean Epstein. “Bonjour cinéma - Excertos”. In: Ismail Xavier (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal/ Embrafilme, 1983, p. 278. 3 David E. Neves, “O dégradé impossível”. In: David E. Neves. Telégrafo visual. Crítica amável de cinema. Carlos Augusto Calil (org). São Paulo: Editora 34, 2004, p. 169. Originalmente publicado em O Metropolitano. Rio de Janeiro: 30 jun 1962.

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Após a primeira tragada, David tosse. Apanha do bolso do casaco uma bombinha e a aspira. Quem conhece o personagem sabe que se trata de um asmático. Um asmático que fuma. Sublime e reveladora contradição eivada de um humor irônico. O cigarro e a bombinha: quase uma gag ao melhor estilo de um Jacques Tati. Por outro lado, nada mais providencial para um não ator diante de uma câmera inquisidora do que fumar um cigarro. Pelo menos, sabe-se o que fazer com as mãos. A cigarrilha deixa David mais convicto e corajoso: nos segundos que se seguem, ele olha demoradamente para a objetiva. Agora é a luta contra a fumaça que parece penosa, e ele tosse novamente. Ao encarar a objetiva com mais vagar, é como se um duelo se instalasse entre o retratado-David e a câmera-Golias. O que é o cinema para David? Ele desvia mais uma vez o olhar. O cinema não se vê, não se define; ele existe acima, dentro, em torno ou apesar de nós. Não há como vencê-lo pelo olhar. No máximo, seremos seus cúmplices ou súditos. Alguma conclusão a respeito de sua própria possível derrota diante da câmera/cinema/espectadores faz com que David, pela primeira vez em cerca de dois minutos de projeção, esboce um sorriso, que não sabemos dizer se nasce dos olhos ou da boca. E, tão logo esse sorriso se pronuncia, também logo se apaga. Talvez aí, nesse sorriso, se manifeste uma vitória – sutil, particular, infantil, subversiva. Um lampejo de absurdo (o cinema? a vida?) temperado de melancolia. Ou, como exemplificou Jean Epstein, a própria fotogenia: “O rosto que se prepara para o riso é mais bonito que o próprio riso”.2 Assim David se expressa, e dele vamos acumulando impressões. Esse processo, detonado pela visão de seu retrato animado em Cinématon, não deixa de remeter ao próprio método que caracterizou a atuação de David Neves como crítico e cronista de cinema. Um trabalho que sempre oscilou entre o reconhecimento do espetáculo da objetividade cinematográfica e a fidelidade à música dos sentidos e das impressões. Interior/exterior, cine-reportagem e diário íntimo. Algo que transparece não só nas críticas como também nos filmes que realizou, em especial no curta Mauro, Humberto (1966) e nos longas-metragens Memórias de Helena (1969), Muito prazer (1979) e Fulaninha (1986). A primeira fase do David crítico, militante do Cinema Novo e cineasta é, por exemplo, marcada por uma curiosa tensão entre a necessidade política das ideias claras e a sedução do pensamento impressionista. Por um lado, o compromisso ideológico de David Neves com o movimento cinematográfico do qual fazia parte o conduzia ao elogio da radicalidade e à recusa dos meios-tons, conforme se observa em um texto de 1962: “O brasileiro, culturalmente subdesenvolvido, é avesso ao dégradé. [...] No Brasil cinematográfico de hoje devem ser procurados os tons. É um primeiro estágio necessário, obrigatório, insubstituível”.3 A importância de filmes como Couro de gato (Joaquim Pedro

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de Andrade, 1960) e Barravento (Glauber Rocha, 1962) decorrem justamente dessa urgência. O primeiro é resultado de “uma elaboração cuidadosa, oriundo de um espírito criador de alto gabarito”, razão pela qual “a fita se despe conscientemente dos resquícios de subjetivismo e se apresenta numa roupagem reveladora, pela sua objetividade”. Já o longa-metragem de estreia de Glauber Rocha “não só não possui dégradés como evidencia desconhecer de que se tratam esses inúteis e desvirtuantes recursos. É um filme concreto, palpável, desadjetivado”4. Em muitos outros textos da mesma época, contudo, se torna clara a irremediável atração que sobre o jovem David exerciam não só os meios-tons como uma série de outros aspectos defeituosos de um cinema ainda buscando afirmar-se perante um público que, não por acaso, era visto como “principal adversário”5 ou como um “obstáculo a transpor”6. Aqui, observamos quase mesmo o contrário, em relação ao dégradé: deplora-se, justamente, no cinema brasileiro, a tradição dos tons absolutos que, por um lado, marcam a linhagem “expressionista” da chanchada e do “cinema tradicional ou industrial”, com seus enquadramentos que tendem para a “estratificação e a rigidez”, e personagens “à disposição do espectador”, que “posam para falar e estão sumamente preocupados com a clareza de suas palavras”7. É contra este cinema tradicional, exagerado, artificial, que o novo cinema feito pelos jovens realizadores da virada dos anos 1950-60 se afirmaria: Porto das Caixas, de Paulo Cézar Saraceni, foi o primeiro longa-metragem a quebrar no cinema novo a falsa e precária técnica de “perfeição”. O flou, o trompe l’oeil, o sussurro são as saídas adotadas. Um filme verdadeiramente realista, sem exageros ou cacoetes. A sugestão da realidade é o elemento que conta.8

Por isso, e já em 1962 – contrariando seus mestres Alex Viany e Paulo Emilio Salles Gomes –, a preferência de David Neves recai não no Nelson Pereira dos Santos neorrealista de Rio, 40 graus (1955), e sim no realizador mais sincero e prosaico de Rio zona norte (1957), filme que estaria, no entender do crítico, distante do “hipercinematografismo”, isto é, de um “desejo extremado de ser claro-através-do-cinema”9. Anos mais tarde, David Neves retomaria a análise de Rio zona norte, reforçando os valores de organicidade narrativa e de simplicidade da encenação: Do mural ambicioso que foi Rio, 40 graus [Nelson Pereira] passou a um filme com uma bela estrutura arredondada, fazendo uso expresso do flash-back como recurso narrativo e, por outro lado, apto a se dedicar à sua personagem central, o compositor Espírito da Luz Soares, extraordinariamente protagonizado por Grande Otelo.10

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4 David E. Neves. “O dégradé impossível”. In: Op. cit., p. 170. 5 David E. Neves. “O dégradé impossível”. In: Op. cit., p. 169. 6 David E. Neves. “Um obstáculo a transpor: o público”. In: Cinema Novo no Brasil. Petrópolis: Ed. Vozes, 1966, pp. 17-19. 7 David E. Neves. “Da chanchada ao Cinema Novo”. In: Op. cit., p. 14-16. 8 David E. Neves. “Da chanchada ao Cinema Novo”. In: Op. cit., p. 16. Grifos do autor. 9 David E. Neves. “Mandacaru vermelho”. In: David E. Neves. Telégrafo visual. Crítica amável de cinema. Carlos Augusto Calil (org). São Paulo: Editora 34, 2004, p. 154. Originalmente publicado em 1962 (sem identificação de fonte). 10 David. E. Neves. “Rio zona norte. Um filme esquecido”. Filme Cultura, nº 28. Rio de Janeiro: fev 1978, p. 91.

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O elogio à estrutura narrativa circular, à centralidade do protagonista e ao uso dos flash-backs remete, aparentemente, ao que se convencionou chamar de linguagem “clássica”; mas não é bem nesse sentido que a argumentação de David Neves se encaminha. O que ao crítico interessa destacar, em relação à Rio zona norte (e talvez também a uma concepção mais ampla do próprio cinema) é o investimento na “linha ideológica de simplificação e de economia de tempo”. É por esta razão que, segundo David Neves, o “rigor pressentido” de Rio zona norte só encontrará par em Vidas secas (1963), a obra-prima de Nelson Pereira dos Santos.11 Ou seja, o rigor de um filme não precisa residir no didatismo ou na afirmação expressionista de algum método. Assim também, o realismo não está na pura e simples exposição de uma dada realidade à objetiva impassível de uma câmera que ambiciona reorganizar o mundo. Necessário, antes, é entender a extrema limitação do cineasta diante da realidade ficcional de seus personagens. Não é jamais pela perfuração dessa camada fluída da diegese (no fim das contas, um tiro n’água) que o realizador encontrará uma pretensa “verdade”; ao contrário, é na aceitação mesma das imprecisões, dos descentramentos, dos encontros e desencontros de subjetividades (do cineasta, dos personagens, dos espectadores, do próprio crítico) que se poderá descobrir a sinceridade fundamental, cara aos verdadeiros artistas. No limite, para se chegar a essa sinceridade, torna-se necessário romper com o próprio Cinema Novo, na medida em que o movimento se estabiliza no que David Neves chamará, em 1973, de “cacoetes”: Fomos o tempo todo idiotas da objetividade, sejamos pelo menos idiotas da subjetividade. Nesse sentido, o Glauber [Rocha] e o José Celso [Martinez Correia] e a dramaturgia clássica foram funestos ao cinema brasileiro. [...] Se você juntar esses três elementos e examinar alguns filmes feitos de 1964 a 1971, verá que tenho minhas razões. Essas influências desvirtuam o cinema, solenizam em excesso o relacionamento do autor com o filme.12

11 David E. Neves. “Rio zona norte. Um filme esquecido”, cit., p. 91. 12 David E. Neves. “Idiotas da subjetividade”. In: David E. Neves. Op.cit, pp. 225-226. Originalmente publicado em Opinião. Rio de Janeiro: 1973.

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A passagem do David-crítico ao David-cineasta não deixará de carregar essa tensão entre compromisso político e originalidade individual, entre a expressão e a impressão, o concreto e o abstrato, o aparato mecânico e fotoquímico e o fenômeno espiritual de figuração do real. Não deve nos deixar indiferentes o fato de que essa passagem não se fez sem o cumprimento de certas etapas profissionais, talvez necessárias a um temperamento mais recluso, como o de David Neves. Antes de dirigir seu primeiro curta, Mauro, Humberto (1966), David foi assistente de fotografia, fotógrafo, assistente de direção e coordenador de produ-

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ção em filmes como Couro de gato, Garrincha, alegria do povo (Joaquim Pedro de Andrade, 1963), Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964) e Integração racial (Paulo César Saraceni, 1965). A esse aprendizado técnico, somam-se os anos em que David foi o responsável pelo Setor de Filmes Documentários da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que havia sido criado a partir de uma doação de equipamentos (uma câmera Arriflex 35 mm e um gravador Nagra) pela Fundação Rockfeller. Filmes como Memórias do cangaço (Paulo Gil Soares, 1963), Integração racial e O circo (Arnaldo Jabor, 1965) foram realizados com o equipamento do S.F.D. e financiamento da Divisão de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores. Em depoimento a Alex Viany David13 conta que Mauro, Humberto foi sendo feito aos poucos, com o equipamento do Setor de Filmes Documentários e sobras de negativos de 35 mm colorido e preto-e-branco dos filmes ali produzidos. As filmagens eram realizadas nos finais de semana, na casa de Humberto Mauro, na Tijuca, zona norte do Rio. Era um hábito de David visitar Humberto Mauro em sua casa, aos sábados, ou então no INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo), onde Mauro trabalhava desde 1936. O interesse de David era justamente capturar o cotidiano do personagem-título, fugindo do didatismo tradicional. Como explica a voz over do narrador, logo no princípio do filme, a respeito da abordagem sobre Humberto Mauro: “Não se pretendeu fazer um levantamento detalhado de sua vida. São as impressões que vão contar.” A busca pela espontaneidade se dava dentro das coordenadas de um cinema direto possível ao Brasil dos anos 1960, o que significava adaptar-se às condições técnicas e tecnológicas daquele momento, condições que, por sua vez, impossibilitavam em parte a concretização desse ideal.14 David Neves se refere a Mauro, Humberto como uma espécie de “coleção de fotografias animadas”.15 Embora com resultados muito diversos, essa feliz definição faz lembrar a já comentada série de Gérard Courant: Cinématon. Essencial no projeto de David, contudo, era conseguir a proximidade necessária à captação da personalidade através da espontaneidade. E é a partir de uma compreensão muito particular da dialética entre proximidade e distância que David Neves forja, em Mauro, Humberto, estratégias de encenação e de superação de entraves técnicos que, pela criatividade de suas soluções, merecem aqui ser observadas mais de perto. Em Mauro, Humberto – como de resto na maior parte dos filmes brasileiros dos anos 1960 afinados à corrente do cinéma vérité – era fundamental conquistar a cumplicidade do espectador, fazendo com que ele acreditasse na intimidade da cena filmada pelo cineasta. Mesmo quando se tratasse de depoimentos formais para a câmera. Certos procedimentos, para tanto, deveriam ser questionados, quando não francamente recusados. Um deles, que particu-

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13 David E. Neves, entrevista a Alex Viany. “1983: David Neves”. In: Alex Viany. O processo do Cinema Novo. José Carlos Avellar (org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p. 273. 14 Cf. David E. Neves. “A descoberta da espontaneidade (Breve histórico do cinemadireto no Brasil)”. In: Flávio Moreira da Costa (org.). Cinema moderno. Cinema novo. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1966, pp. 253-278. 15 David E. Neves, entrevista a Alex Viany. “1983: David Neves”, cit., p. 275.

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16 Isso, em parte, explica as duras críticas que Gustavo Dahl dirige ao filme Garrincha, alegria do povo, em carta a Glauber Rocha, 1963: “Num cinema antiespetacular [Joaquim Pedro] procurou o pitoresco, com os primeiros planos no estádio [...] você não ataca a realidade para fazer montagem, nem filma o povo de teleobjetiva. Você pega a câmera e começa a andar no meio dele, com ele, esta é a vantagem da câmera que anda”. Citado em Luciana Corrêa de Araújo. Joaquim Pedro de Andrade. Primeiros tempos. São Paulo: Alameda, 2013, p. 148. 17 Veja-se, por exemplo, certas passagens de Memórias do cangaço e de Brasília, contradições de uma cidade nova (Joaquim Pedro de Andrade, 1967).

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larmente nos interessa, era o uso da teleobjetiva. Por um lado, o foco em longa distância possibilitava que o documentarista capturasse de bem longe certas reações ou movimentos, sem que o sujeito filmado notasse a intervenção da câmera. Mas isso tinha um preço: a configuração mesma da distância entre a câmera e o personagem (evidenciada na imagem pelo plano de fundo fora de foco), o que, no limite, negava em termos concretos a proximidade almejada pelo ideal estético e, pior ainda, poderia tornar exótico o tema tratado.16 Por outro lado, havia o problema do som direto. Em um momento em que a captação da fala em sincronismo era tão importante para o projeto da espontaneidade quanto a proximidade com os corpos filmados, conciliar a gravação do som do Nagra com planos próximos realizados por câmeras 35 mm sem blimp, isto é, extremamente ruidosas, era algo bastante complicado de ser executado, a menos que a câmera estivesse bem longe, a uma distância segura para que o ruído do motor não fosse capturado pelo microfone, pois isto obviamente atrapalharia o registro da fala. Diante desse impasse, o documentarista tinha duas alternativas: ou mantinha-se afastado e filmava em plano de conjunto o entrevistado, assumindo a presença, no interior do quadro, de parte da equipe de filmagem (diretor e técnico de som)17, ou filmava-se a uma longa distância mas, com o uso da teleobjetiva, enquadrava-se em plano próximo a figura que estivesse falando. Nos dois casos, porém, a sensação da distância entre o cineasta e o personagem permaneceria. Em Mauro, Humberto, David Neves procurou solucionar esse problema. O filme conta com depoimentos de Alex Viany, Glauber Rocha e do próprio Humberto Mauro. Ou seja, o realizador teve de se defrontar com o jogo de proximidade/distância acima referido, uma vez que os depoimentos foram filmados em som direto. Assumindo o uso do primeiro plano com teleobjetiva (o que o permitiria gravar em sincronismo o som das falas), David faz com que os entrevistados se posicionem sempre rentes ou levemente perpendiculares a um fundo próximo (uma parede, no caso de Viany e Mauro, ou, como ocorre com Glauber Rocha, o cartaz de seu filme Deus e o diabo na terra do sol, 1964). O fundo colado à figura que fala anula a sensação de distância provocada pelo plano de fundo em foco difuso, típico das tomadas em teleobjetiva; por outro lado, com esse recurso, a ilusão de proximidade entre a câmera e o depoente reforça o aspecto de intimidade almejado por esse “novo realismo”. O cinema de David Neves – isto é, o cinema para David Neves – parece situar-se a essa meia-distância entre a proximidade e o recuo, um procedimento que condiz não só com o retraimento de sua personalidade como também com o respeito que ele sente pela vida interior de seus personagens, que deve sempre, de algum modo, permanecer parcialmente intocada. Postura que, de certa forma, revela a percepção do cinema como um fenômeno espiritual,

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como algo de secretamente religioso – que não pode, portanto, deixar de incluir, entre seus elementos centrais, o sagrado e o profano. “Um filme sentimental”. Com esse letreiro, David Neves define seu longa-metragem de estreia, Memória de Helena. Não deixa de ser curioso observar o quanto a noção de proximidade e de distanciamento impregna a realização desse filme incomum, o que tanto pode ser observado pelos filminhos caseiros de Helena (Rosa Maria Penna), quanto pelo jogo interior/exterior tão bem expresso pela sequência do passeio de táxi de Helena pelas ruas do Rio (nos quais não vemos a paisagem que ela vê) e pela cena em que, de dentro de sua casa, olhando pela janela, ela enxerga do lado de fora - como num delírio ou numa projeção de lanterna mágica - as pessoas que tiveram mais importância em sua vida: elas passam, olham ou acenam para Helena, demarcando o espaço exterior e interior da vida sentimental/amorosa da personagem. De fato, este é o drama de Helena: ela recusa o mundo exterior, não por medo de se entregar a ele, mas por já possuí-lo em demasia. Seria um equívoco acreditar que, nos filmes de David Neves, o que determina a intimidade com o personagem (ou sua tradução em sentimentos) seja apenas o uso do plano próximo. Em Memória de Helena, tão tocante quanto os closes em preto e branco dos filminhos caseiros de Helena é a cena de seu suicídio, filmada em plano geral. Definir a distância exata da câmera é, de fato, o problema principal com o qual deve lidar o cineasta, e isso inclui a percepção do quanto estar próximo ou distante em relação aos atores/personagens ajuda ou atrapalha na performance dos mesmos. Basta pensarmos nas longas cenas dialogadas de Muito prazer (filmado em 16 mm, o que facilitou bastante esse tipo de encenação), em particular o bate-boca na cozinha entre Octávio Augusto e Ítala Nandi; ou no magistral plano-sequência de Fulaninha, no qual Canela (Roberto Bonfim) xinga e escracha longamente os personagens que o cercam, seus amigos e sua mulher Sulamita (Zaira Zambelli). Nessa cena, a câmera fixa colocada a uma distância correta – nem muito perto, nem muito longe, acima dos personagens – cria um espaço de extravasamento absolutamente necessário às energias represadas. A proximidade e o jogo de olhares estabelecido entre câmera e retratado em David Neves, de Gérard Courant – para voltarmos à referência inicial do texto – nos ajudam a pensar sobre a própria relação entre David Neves e o cinema. Uma questão de distância focal e de duração do movimento, que, no entanto, não se resume à mera instrumentalização de um aparato técnico, mas ao problema fundamental do ser e do existir. Assim, o olhar titubeante de David Neves diante da objetiva (recusando o confronto, olhando de soslaio, desafiando ou afirmando o poder expressivo do registro impresso) vai construindo um acordo de desarmonia perene – e,

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por isso mesmo, cômica – entre a implacabilidade da máquina de filmar e a fragilidade da existência humana. Num piscar de olhos, ou no gesto de encarar fixamente a câmera, tendo à frente dos olhos a sinuosa e difusa fumaça de um cigarro provisório, o que resta são as marcas do desaparecimento de si mesmo e, ao mesmo tempo, a ressurreição: David E. Neves, impresso em cinema.

David Neves e o Cinema Novo Arthur Autran Pesquisador e professor da UFSCAR. Autor dos livros “Pensamento Industrial aCinematográfico Brasileiro” e “Alex Viany: Crítico e Historiador”.

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1 CALIL, Carlos Augusto. O jardim particular de David. In: NEVES, David. Telégrafo visual – Crítica amável de cinema. Organizado por Carlos Augusto Calil. São Paulo: Editora 34, 2004. P. 10. 2 PARANAGUÁ, Paulo Antônio. Cinema Novo. In: RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe (orgs.). Enciclopédia do cinema brasileiro. 3ª Ed. São Paulo: Senac, 2012. P. 178.

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O Cinema Novo permanece insuficientemente estudado pela nossa historiografia, em que pese o fato dele ser constantemente citado e de alguns diretores – notadamente Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos – já contarem com diversas análises de suas obras com elevado grau de profundidade. No entanto, a história do Cinema Novo como movimento ainda merece muita discussão, já que vários dos seus realizadores têm sido pouquíssimo estudados, como é o caso de David Neves – uma das suas figuras de proa e de primeira hora. Esse texto busca apontar para o papel de David Neves como um dos articuladores principais do Cinema Novo, possuindo como recorte temporal o período do final dos 1950 até o início dos 1970. Em 1957, o carioca David Neves, então aluno no curso de Direito de PUC, foi convidado, por Paulo Alberto Monteiro de Barros – mais conhecido pelo pseudônimo que adotaria posteriormente, Artur da Távola -, para ser crítico de cinema no jornal O Metropolitano, órgão da União Metropolitana dos Estudantes. A partir de então, passou a frequentar a Cinemateca do MAM, cujas sessões eram realizadas na sede da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), começando, assim, a se inserir no ambiente cinematográfico. Pouco depois, David começou a experimentar a prática cinematográfica, fazendo a fotografia de curtas-metragens em 16 mm: Perseguição (1958), de Paulo Perdigão, Fuga (1960) e Domingo (1960) - esses dois últimos de Cacá Diegues, que conhecera na Rua da Matriz, em Botafogo, onde ambos moravam e se tornaram amigos. Ainda em 1960, trabalhou como assistente de câmera em Couro de gato, curta dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e fotografado por Mário Carneiro. Aqui, novamente, é possível constatar o peso das relações pessoais, pois Joaquim Pedro travou conhecimento com David por intermédio de Alexandre Eulálio, intelectual primo do jovem crítico. Conforme Carlos Augusto Calil anota, Alexandre Eulálio, Joaquim Pedro e Paulo Emílio Salles Gomes foram muito importantes na formação de David Neves.1 Paulo Antônio Paranaguá aponta Couro de gato, Arraial do Cabo (Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, 1959) e Barravento (Glauber Rocha, 1961) como os “primeiros passos do Cinema Novo”.2 Começava aí uma das aventuras mais importantes da história do nosso cinema e que teria em David Neves um articulador fundamental. Mas essa articulação possuía caráter particular, assinalado por Cacá Diegues: Fraternal, interessado pelo outro, solidário e sempre disposto a ouvir, era uma espécie de confidente oficial do Cinema Novo, assumindo muitas vezes a res-

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ponsabilidade pela pacificação de eventuais disputas dentro do grupo, coisa que sabia fazer com extrema habilidade. O que Leon Hirszman conduzia politicamente, David completava no plano pessoal dos sentimentos e das idiossincrasias, com o objetivo de manter a união do que considerávamos ser uma família.3

Se Leon Hirzsman foi a figura política do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos a figura paternal e inspiradora, Glauber Rocha o aglutinador, agitador e teórico e Paulo Emílio Salles Gomes e Alex Viany os mestres da história do cinema, coube a David Neves esse papel difícil de decifrar - mas que o texto de Cacá Diegues taquigrafa tão bem -, de “confidente” e pessoa que buscava (re) unir os amigos, especialmente após as brigas. Ao longo dos anos 1960, David Neves continuou a atuar como crítico de cinema em alguns dos principais jornais do país – Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Diário Carioca e O Estado de S. Paulo – de par com sua atividade na prática cinematográfica como assistente de direção – em Garrincha, alegria do povo (Joaquim Pedro de Andrade, 1963) –, coordenador de produção – em Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964) – ou fotógrafo – em Integração racial (Paulo César Saraceni, 1964). Também integrou organismos estatais, como a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o setor cultural do Itamaraty e a CAIC (Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica). No primeiro, David trabalhou no setor cinematográfico, que possuía uma moviola e um gravador de som Nagra, equipamentos que possibilitaram a realização de diversos documentários importantes, tais como o já citado Integração racial ou Memória do cangaço (Paulo Gil Soares, 1964); no segundo órgão, atuou junto ao diplomata Arnaldo Carrilho na difusão internacional de filmes; e o terceiro foi uma iniciativa do antigo estado da Guanabara, visando a colaborar no financiamento das produções. Em todos esses órgãos, sempre batalhou em prol do Cinema Novo, então em plena luta pela sua afirmação no campo cultural. Essa luta, que é dura pela disputa por recursos financeiros e reconhecimento público, tornou-se, naquele período, mais aguda devido ao forte enfrentamento político-ideológico entre esquerda e direita que marcou os anos 1960 e que, a partir de 1964, com o golpe militar, tornou a vida brasileira sombria. David Neves também viajou frequentemente à Europa, estabelecendo relações com intelectuais, críticos de cinema e diretores, com destaque para a amizade com o cineasta italiano Gianni Amico. E entre os amigos europeus é impossível não citar François Truffaut, que conhecera no Brasil em 1962 e cujos filmes admirava a ponto de tomá-los como influência importante na sua obra futura.

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3 DIEGUES, Cacá. Vida de cinema – Antes, durante e depois do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. P. 62.

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Talvez o exemplo mais representativo da militância de David Neves pelo movimento tenha sido o seu livro Cinema Novo no Brasil, editado pela Vozes em 1966. Nesse texto, o autor busca traçar algumas das principais características do Cinema Novo, demarcando sua diferença em relação a outros grupos ou momentos do cinema brasileiro, bem como os principais problemas enfrentados. A perspectiva do livro não possui nenhuma distância crítica e aí reside o seu principal defeito e, ao mesmo tempo, virtude. Logo de início, David assim define o seu objeto: ... ele [o Cinema Novo] é um estado de espírito, um estado revolucionário de espírito, relativamente às coisas de nossa cinematografia.4

4 NEVES, David. Introdução ao Cinema Novo. In: Telégrafo visual – Crítica amável de cinema. Organizado por Carlos Augusto Calil. São Paulo: Editora 34, 2004. P. 204. Nessa coletânea de textos de David Neves foram republicadas partes de Cinema Novo no Brasil. 5 NEVES, David. Um obstáculo a transpor: o público. In: Op. cit. P. 210. 6 NEVES, David. Poética do Cinema Novo. In: Op. cit. P. 213.

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O livro é um importante documento da ideologia do grupo. Ele expressa, por exemplo, o elitismo que impregnou o Cinema Novo quando afirma que o público, caracterizado como “mal-informado e comodista”, seria “um obstáculo a transpor”.5 Mas também contém germes de interpretação da “poética” do movimento, que são deveras interessantes, tais como a constatação de que ele seria marcado “por uma unidade dentro da diversidade estilística”, de maneira a destacar a extrema variedade de formas cinematográficas constituídas por diretores como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Paulo César Saraceni6, embora possamos dizer que o desejo de revolucionar a linguagem cinematográfica e de mudar o Brasil cristalizava a tal unidade. A dedicação de David Neves ao projeto coletivo do Cinema Novo parece ser uma das causas que o levaram à direção tardiamente. Somente em 1968 dirigiu os seus primeiros curtas-metragens: Mauro, Humberto; Colagem; Jaguar e Vinicius de Moraes. São documentários de valor desigual, dos quais se destaca, sobretudo, o primeiro. Acerca do grande pioneiro Humberto Mauro, ele busca demonstrar que as raízes do Cinema Novo – e do próprio cinema brasileiro – se encontrariam na obra desse diretor. A proposta vincula-se claramente ao que buscou fazer Glauber Rocha no livro Revisão crítica do cinema brasileiro e, não por acaso, o realizador baiano presta um depoimento sobre a importância de Mauro, em um plano que tem como fundo o cartaz de Deus e o diabo na terra do sol (1964). Logo no ano seguinte, lançou o seu primeiro longa-metragem, desta feita um filme de ficção, Memória de Helena, corroteirizado por Paulo Emílio Salles Gomes. O filme teve reconhecimento de crítica e foi premiado como melhor filme no V Festival de Brasília e com os prêmios Golfinho de Prata – concedido pelo MIS do Rio de Janeiro – e Coruja de Ouro – concedido pelo Instituto

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Nacional de Cinema – de melhor diretor. Ambientado entre o Rio de Janeiro e Diamantina (MG), os créditos iniciais o anunciam como “um filme sentimental”, pois ele aborda a educação sentimental da personagem-título – interpretada por Rosa Maria Penna –, jovem tímida e indefinida sobre seus interesses amorosos. Com uma estrutura narrativa marcadamente moderna, a película é atravessada pelos “filmezinhos” feitos por Helena ou pelo seu tio. Há também citações de filmes brasileiros, em especial da obra de Humberto Mauro – que faz um pequeno papel, justamente como o tio de Helena. É a partir desse momento que o Cinema Novo, como movimento, começava a se dissolver. Se, como em outros setores da cultura brasileira, foi possível resistir ao golpe militar de 1964, com o AI-5, em 1968, a situação política e cultural deteriorou-se muito com o aumento da censura, dos exílios, das prisões e da tortura. O projeto coletivo do Cinema Novo encontra um beco sem saída e se tratava de cada diretor buscar, ao menos, continuar a sua obra. No início dos anos 1970, o movimento esvai-se, embora seus quadros continuem a se articular no âmbito da política cinematográfica. Desde o final dos anos 1960, David Neves passou a publicar apenas de forma esparsa textos críticos e deixou de lado o trabalho nas instituições culturais, concentrando-se na sua obra. Nesse estertor do Cinema Novo, dirigiu o longa Lúcia McCartney – Uma garota de programa (1970), adaptação de dois contos de Rubem Fonseca, com Adriana Prieto e Paulo Villaça no elenco. Neste filme, ambientado no Rio de Janeiro, novamente temos referências à história do cinema por meio de partes em preto e branco, com letreiros sobrepostos à imagem e sem diálogos na banda sonora. Em termos narrativos, o filme também experimenta, ao articular por meio da mesma atriz as duas histórias que o compõem. Paulo Antônio Paranaguá, no verbete citado, aponta a dificuldade de se estabelecer uma datação para o fim do Cinema Novo, mas menciona a “implosão do grupo”. Ela se configura entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970, tendo como filme mais tardio mencionado por esse autor Uirá, um índio em busca de Deus (Gustavo Dahl, 1973). A amizade de David Neves com diversos integrantes do Cinema Novo permaneceu, o que não havia mais era um movimento orgânico, e isso devido à brutal repressão promovida pela ditadura militar e ao sucessivo empobrecimento cultural do país. Por outro lado, com a abertura política lenta e gradual do governo Ernesto Geisel, que incluiu a tomada da Embrafilme por cineastas ligados ao Cinema Novo, os conflitos específicos da política cinematográfica

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tomaram vulto dentro do próprio grupo. Até mesmo o diplomático David Neves chegou a publicar, em 1981, texto sobre o que chamou “Cinema Novo-rico”, no qual critica os grandes orçamentos de alguns filmes de então e seus pressupostos industriais e de mercado7. Apesar das lutas no campo cinematográfico, a imagem de David Neves não foi maculada. Em Revolução do Cinema Novo, Glauber Rocha escreveu: A paixão de David por todos cinemanovistas e destes pelo suave, dedicado, inteligente e excitante crítico cineasta é a explicação do amor que a todos até hoje nos une na máxima varguista: “Só o Amor constrói pra [sic] Eternidade”.8 7 NEVES, David. Cinema-Novo rico, Cinema Novo-rico. In: Op. cit. P. 261-264. 8 ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra / Embrafilme, 1981. P. 378-379. 9 A produção de As meninas teve continuidade e o projeto foi dirigido por Emiliano Ribeiro. O filme foi lançado em 1995,

Símbolo desse amor entre os integrantes do Cinema Novo é a participação de David em uma ponta em um dos episódios de Veja esta canção (1994), filme realizado por Cacá Diegues no contexto da grande crise que o cinema brasileiro atravessou no início dos anos 1990 devido à política de terra arrasada para o campo da cultura do governo de Fernando Collor de Mello. Foi nesse momento difícil para o nosso cinema que David Neves adoeceu, vindo a falecer em 1994, sem chegar a dirigir a adaptação da obra de Lygia Fagundes Telles, As meninas9. A sua ligação umbilical com o Cinema Novo era tão forte que, quando da morte do cineasta, o diplomata Arnaldo Carrilho, seu amigo, publicou um texto intitulado “Morreu o Cinema Novo”.

O Cinema da Indução Hernani Heffner Chefe de Preservação da Cinemateca do MAM-RIO, Professor de Cinema da PUC-RIO e Curador do Festival CineMúsica de Conservatória.

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Integrante de primeira hora do grupo que viria a formar o Cinema Novo, David Neves assumiu muito rapidamente um múltiplo trabalho de bastidores, integrando equipes, promovendo e defendendo o movimento, incentivando literalmente todos os que quisessem filmar por um motivo qualquer. Tanta ação positiva, mesmo criando uma imagem simpática, acabaria por ser contraproducente. Mesmo escrevendo sobre cinema a partir de 1957, sua produção literária nunca teve o reconhecimento ou a repercussão reservada aos seus pares. Desde o tempo de O Metropolitano, “Davizinho”, como era conhecido, sempre fez um balanço de suas atividades, encontros, preferências, filmes e idéias. A escrita, porém, era rápida, episódica, um pouco ao sabor dos lançamentos e acontecimentos cinematográficos. Daí as caracterizações de “leve”, “solta”, “descompromissada”... Uma posição mais distintiva lhe foi atribuída por Paulo César Saraceni – “O Cinema Novo é Glauber em uma ponta e David Neves na outra” –, colocando-o como linha de frente da revolução estética em curso, mas a apreciação nunca foi interpretada devidamente, soando ora como retaguarda, ora como base, ora como pura práxis frente à torrente de reflexões glauberiana. O estilo literário, considerado assim “ligeiro” e sem afetação, minou a percepção da condição vanguardista, que incluía uma espécie de olhar crítico e dialético para com o próprio grupo, seus caminhos e descaminhos, e para consigo mesmo. Por outro lado, a eterna pecha de cineasta desleixado, relaxado, “porco”, pesou quase na mesma medida, senão até mesmo mais, dada a prolixidade e polivalência fílmica de David – vamos assumir a corriqueira intimidade com que todos o tratam, mesmo não o tendo encontrado mais do que duas vezes na vida. Embora o estilo “grosseiro” também fosse atribuído na mesma época, por exemplo, a um Pier Paolo Pasolini, aspecto que não escapou à consideração positiva de Glauber Rocha e do próprio David, o brasileiro parecia não exibir nem a gravidade dos temas, nem a formulação teórica exuberante (o “cinema de poesia” pasoliniano), necessários à reconsideração das supostas incipiência e incompetência expressivas. Contudo, no seu ritmo hiperativo (para os outros) e ao mesmo tempo lento (para si), foi tecendo aspectos de uma hermenêutica do cinema brasileiro, ou ainda de uma teoria do novo cinema, e até mesmo aspirou a uma ontologia da arte cinematográfica. No início muitas de suas idéias são debitárias do pensamento de Paulo Emílio Sales Gomes, sobretudo a famosa “incompetência criativa de copiar”, e de Humberto Mauro, de onde retira o modelo “artesanal” de produção e referências para a proposição pauloemiliana de uma “poética das coisas”. Mas já aqui não parece

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exatamente filiado a vertentes emanadas de um ou do outro. Suas indicações quanto a retomar o Alex Viany e o Nelson Pereira dos Santos dos anos 50 fornecem um lugar, o Rio de Janeiro, e um tempo, um momento sempre ligeiramente anterior do qual procura intuir o prosseguimento – a permanência ou não do já-foi no presente. Mas não o inserem no realismo crítico e nacionalista praticado pelos dois, ou como queria o Viany historiador, dentro do “programa estético e temático para um futuro cinema popular-brasileiro”. David parece tangenciar essas armadilhas ideológicas, embora venha a denunciá-las mais à frente com lucidez. São ferramentas táticas e políticas, utilizadas vez por outra, mas submetidas a outra lógica, ou mais concretamente a um ponto de partida específico. É possível encontrar cada uma dessas e de outras facetas na maioria dos textos críticos e teóricos, assim como nos filmes, mas mitigadas por um ponto de vista que se considerava sempre “subjetivo”. “Sempre me chama a atenção as atividades de engenharia topográfica onde haja teodolitos ou outros instrumentos óticos montados sobre tripé. É que em tudo elas dão a impressão de uma equipe cinematográfica que procura objetivar com nitidez e equilíbrio algum projeto subjetivo” (Jornal do Brasil, 15/03/1970).

Esta posição, longe de ser mais uma metáfora passageira para o dispositivo cinema, traz embutida um importante deslocamento, recusando uma suposta força natural do lado documental do cinema. Considerado o “ponto de equilíbrio”, o “articulador dos bastidores” e o “pau-pra-toda-obra” do Cinema Novo, a revisão de suas reflexões aponta uma lúcida e surpreendente avaliação das opções estéticas em jogo. Além disso, em vez de assumir a imagem de narrador triunfante dos feitos do grupo, posiciona-se como um “irmão mais velho” que comenta, critica, esbraveja, se distancia, sempre com carinho, generosidade e firmeza. Uma espécie de super-ego que não quer corrigir os desvios, pecados, perversões, historicamente inevitáveis, apenas registrá-los e elocubrá-los em sua dialética irrupção. Em rápida olhada, era basicamente um trabalho em torno dos estereótipos midiáticos que iam se formando com a consagração dos filmes, dos cineastas, do Cinema Novo. De forma mais aguda, um repensar constante de posições artísticas, pessoais e coletivas, em meio ao turbilhão da história. É difícil seguir o pensamento de David Neves em sua profusão textual ainda não de todo recolhida e sistematizada, em que pese as coletâneas “Telégrafo Visual: crítica amável de cinema” e “Cartas do meu bar”. Nos limites deste

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pequeno texto serão considerados cinco artigos e duas entrevistas do realizador de Memória de Helena: “Guimarães Rosa e o cinema” (O Estado de São Paulo, 27/01/1968), “Memória de Davi – Entrevista a Miriam Alencar” (Jornal do Brasil, 15/03/1970), “Prêmio para o ‘Cinema Novo’” (Correrio da Manhã, 09/01/1971), “Um novo gênero à vista: o ‘disaster film’” (Ganga bruta, fevereiro 1979), “Vista para o mar” (O Pasquim, 22/01/1980), “A lua vista da Terra” (O Dia, 13/04/1980) e “Cinema-Novo Rico Cinema Novo-Rico” (Luz e Ação, junho 1981). O que se delineia neste pequeno conjunto é uma “teoria da história do cinema brasileiro”, que é ao mesmo tempo a crítica do presente histórico e a tentativa de formulação de novos caminhos, cruzada com uma ontologia e uma teoria estética do cinema, postas a serviço de um modelo de cinema que se queria “meio marginal”, “meio documental”, “meio casual”. De fato, desde o início David se considerava um “teórico”, isto é, um homem do pensamento e não da realização. Somente em meados dos anos 1960, tal caracterização começará a ceder vez às imprecisas “ensaista” e “cronista”, postas em segundo plano frente à posição agora dominante de cineasta, ainda que a reflexão mais empenhada não saia de cena, em um campo ou outro. Nas palavras rememorativas da entrevista de 1970: “Minha concepção de cinema brasileiro, desde que me filiei a êle em 1958, permaneceu em linhas gerais, inalterada. Talvez ela possa ser resumida numa frase: uma necessidade obsessiva de autenticidade. Não posso negar que ela vem sendo, de uma forma ou de outra, satisfeita através dêsses anos, apesar de alguns renitentes abusos no campo da gratuidade e do artificialismo”.

Essa “autenticidade” admite várias aproximações na medida em que se reveste, por exemplo, da dimensão “nacional”. O elogio do ponto de vista local perpassa vários de seus textos mais antigos, como no comentário sobre as relações entre Guimarães Rosa e o Cinema Novo: “A impressão que me vinha parecia ser a de gratidão do escritor para aquêle [Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol] que, sem basear-se diretamente nos seus escritos, buscara profundamente no seu estilo sincopado um modo de ver brasileiro para problemas exclusivamente brasileiros”.

Ou na recordação de seu primeiro mestre: “Humberto Mauro é meu patrono porque tirou tudo de uma soberba intuição e

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sobretudo porque criou um sistema brasileiro de produção, esnobando conceitos e condicionamentos vindos do exterior”.

Não que David assumisse uma perspectiva nacionalista estrita, ao contrário. Ainda que entendesse a função política e pragmática dessa corrente, sempre denunciou a “mitologia do nacional”, preterindo-a ao machadiano “sentimento nacional”, perspectiva sobejamente mais complexa e dialética. Isto lhe permitia colocar lado a lado Joaquim Pedro de Andrade e Luis Buñuel, Humberto Mauro e Robert Bresson, Júlio Bressane e Alfred Hitchcock, os cineastas de predileção. Uma outra forma de ver a autenticidade passava por uma espécie de vocação original do cinema, resumida no cinema dos Irmãos Lumière, cuja “ânsia artística [deles e de seus seguidores] de retratar a realidade ultrapassava de muito os simples conceitos realizados para se cristalizarem no delírio do Registro”. Para David, filmar por si só já implicava uma ultrapassagem ou deslocamento do real que, no entanto, eram contidos por essa aspiração regressiva, grifada por ele. Ainda assim, havia virtudes nessa ideologia de “fascínio pela realidade adjacente”, como a designava Joaquim Pedro, de acordo com a indicação davidiana. Ela construíra a vertente mais significativa da história do cinema e vivificara até mesmo entre nós. Dos Lumière ao Neo-realismo Italiano havia como que uma linha evolutiva, transplantada para solo local, na sua visão, por Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos. Até mesmo o Cinema Novo, responsável pela “re-renovação” do cinema brasileiro, teria tido uma “fase Lumière” em seus primeiros tempos, em mais uma caracterização de Joaquim Pedro. A periodização, segundo David, envolveria ainda uma fase ficcional do Cinema Novo e um “cinema-um-pouco-sem-nome-de-hoje” (anos 1970 e 80), por vezes também denominado “novo cinema ‘envernizado’”, que englobava “superpornochachadas” e “disasters films”, ou seja, um cinema de mercado ou de grande espetáculo (fadado ao fracasso, na avaliação davidiana), quase sempre de forte apelo erótico. O Realismo, portanto, tinha a força do próprio cinema e em solo brasileiro conseguira engendrar um caminho significativo. Para David, em relação ao cinema brasileiro, isto se traduzia em que a “grande constante tem sido a visão de conjunto, o mural”. Filmes como Rio, Zona Norte, Cinco Vezes Favela e Vidas Secas expressavam esse compromisso ideológico e esse retrato estético. O envolvimento inicial na realização documental (“[onde] aprendi a trabalhar praticamente sòzinho”) provavelmente reforçou este credo, mas pouco de-

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pois de publicar Cinema Novo no Brasil (1966), reviu suas posições no artigo sobre Guimarães Rosa. O conselho do escritor – “Diga ao Glauber que Deus está nos detalhes” – e a recomendação do guru Paulo Emílio – fazer filmes sobre “coisas e não sôbre idéias” – se tornaram um “leit-motiv” e uma “luz” “de todas as minhas considerações acerca do cinema brasileiro”. Mais do que isso, se tornaram a base de sua ruptura com o passado (histórico, ideológico, estético), agora revisto deste lugar peculiar que é o presente imediato e sob uma perspectiva por assim dizer “espiritual”. Em síntese: “O cinema sendo (sic) o ponto de contato entre a realidade e a magia, [uma] arte não codificada onde tudo é permitido, inclusive a presença mágica do mundo”. Dito de forma menos conceitual, “Quando passei à realização, em 1966, depois de alguns anos de relutância, descobri ao vivo que não é pela teoria, não é na ideologia, não é na riqueza de produção que se extrai de uma história essa almejada autenticidade. Mas é um terrível corpo-a-corpo com êsse fugidio meio de expressão. O cinema é uma permanente aferição da realidade com nosso estado de espírito. (...) e êsse corpo-a-corpo só começa no momento de rodar a primeira cena, quando o roteiro e tôda a literatura começam a parecer obsoletos ou pertencentes a uma outra realidade” (grifos do texto).

Intui-se aqui todo um novo programa estético cuja elaboração solicita novas categorias e novas referências, para as quais surpreendentemente David já tem a resposta na entrevista de 1970: “É preciso, portanto, conceber uma nova teoria da criação cinematográfica que surja do relacionamento realizador-realidade a partir do seu contato direto na primeira locação e se prolongue até o dia da mixagem. As primeiras imagens condicionarão forçosamente todo o resto do filme (...) Não se trata de improvisação, porque não há nada mais trabalhado. Talvez isso tenha alguma coisa a ver com uma hipersensibildiade visual (ou espiritual) e é inegável que deva estar vinculada a uma cultura cinematográfica subjacente. Devia falar de mim, neste depoimento, mas estou falando da pessoa que no momento mais admiro e procuro àrduamente seguir: Júlio Bressane, cujo Matou a Família e Foi ao Cinema é tudo isso e é a obra mais coerente, densa e completa do cinema nos últimos anos” (grifos do texto).

Caminho definido mas não trilhado de todo. Apesar da incursão por um novo território temático nos três longas iniciais (Memória de Helena, Lúcia Mc-

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Cartney e Um amor de mulher, este filmado, montado, mas não finalizado): a condição feminina reprimida, explorada e libertada, respectivamente. Apesar da caracterização estética desses filmes como “meio marginais” e não obras cinemanovistas. E apesar do rompimento conceitual com o próprio cinema moderno brasileiro e internacional, as sendas abertas não progridem e uma crise se instala na sua criação. A propensão em ser a versão erudita de um cinema inocente esbarra em uma barreira invisível e instransponível, elaborada desta maneira obscura ainda ao tempo do lançamento de Memória de Helena: “O meu cinema só almeja esta perfeição [bressaniana]. Sou entretanto muito tenso para não tomar certas precauções, que me bloqueiam a liberdade procurada. O lado cultura cinematográfica, por sua vez, me faz sempre homenagear ou reverenciar alguém (é uma tendência que não renego) e surgem então os compromissos que definiriam meu estilo como nostálgico, apesar de achar vaga essa palavra. Geralmente (sempre quando estou em dúvida) adoto uma linha de ação que poderia ser resumida na frase a retomada oportuna do convencional e fico, por isso mesmo, beirando perigosamente o simples” (grifos do texto).

Embora o “passado” o atraísse, David lutaria contra o conservadorismo estético embutido na acomodação cinemanovista e se tornaria um crítico “amável” dos descaminhos do movimento, seus desdobramentos, e da industrialização de estado que se seguiu com a Embrafilme, fustigando o que chamou de “cinema novo-rico”. A crítica aos novos tempos foi dura. Percebendo uma crescente asfixia – “O ‘desempenho industrial’ passou a ser arte” e “A boa arte passou a ser indústria” –, lança imagens como “desmatamento cultural”, “anacronismo”, “corrida dos cineastas por status”. A produção cinematográfica teria se igualado à incorporação imobiliária, em sua destrutividade do passado, busca incessante pelo lucro e pasteurização estética. Na avaliação metafórica davidiana,

juntos arquitetônicos, as áreas virgens como o caminho do mar na direção sul1. São pretextos materiais que os movem, sempre: compra e venda; e a despersonalização, com raras exceções, faz parte de sua estrutura íntima. O velho e charmoso cinema artesanal acabou, pelo menos nessa faixa. O status decorre desse dado e varia diretamente com o aumento do preço da ‘incorporação’”

1 David associa e ironiza a voracidade do mercado imobiliário pela zona sul do Rio de Janeiro, particularmente a orla dos bairros de Copacabana, Ipanema e Leblon, e o interesse dos cineastas novos-ricos em morar nesse locais e ostentar o status oriundo do locus da elite.

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“Para começar estamos às voltas com os grandes empreendimentos, os con-

Superproduções, grandes sucessos de bilheteria, fórmulas repetitivas – sobretudo, o apelo ao erotismo –, todo um novo e desastroso sistema punha para fora das páginas de história, por exemplo, a transgressão encarnada em uma Luz del Fuego, incluindo aí seu projeto político, utilizado no filme homônimo como alegoria do próprio esgotamento do libertarismo cinemanovista original. E impedia a experimentação estética pela selvagem hierarquização da classe em castas, umas com acesso aos polpudos recursos, outras alienadas deles. A triste conclusão não poderia ser diferente: “Talvez o projeto [de conquista progressiva do mercado], alcançado um momento impossível [por conta de filmes como Dona Flor e seus dois maridos e Xica da Silva], seja todo ele hoje baseado num esquema reacionário, se comparado a cinematografias similares”.

A batalha por um cinema industrial de qualidade era uma das premissas do projeto cinemanovista, pelo menos na vertente abraçada por David Neves. Para ele, no entanto, havia “cada vez mais despersonalização”, pois o “que acresce o ‘peso’ de um filme é a sua personalidade e não o seu preço”. O diagnóstico constata que os “acidentes do passado” acabaram (a fórmula paulemiliana da “incompetência criativa de copiar” está esgotada) e que a fórmula do espetáculo contemporâneo é “antidialética”, abriu mão do “nacional’ em qualquer medida, padrão, característica mais saliente e íntegra. Nesse entroncamento da história, se interroga se sua opinião é meramente derrogatória ou se o enriquecimento é mesmo a saída para o Cinema Brasileiro, e neste caso, como criar dentro de padrões em princípio rígidos e pouco inspirados. Cobra da crítica o fim das discussões sobre gêneros, necessidade de argumentos originais, e boas adaptações literárias, que “não podem mais impedir a livre criação de bons filmes” como na era clássica, lembrando ainda que “o fator preço deve ser sempre abstraído dessa equação”. Por seu turno, como cineasta, aposta no conhecimento das regras do mercado (“a retomada oportuna do convencional”), que quando são dominadas, permitem “certo tipo de contravenção (artística)”, uma lição que orientaria a famosa “trilogia carioca”. O delicado equilíbrio entre fazer parte do jogo e subvertê-lo ao mesmo tempo o desloca para a posição de observador mais do que a de pensador – as ideias pelas coisas, ou em seus termos, a dedução pela indução. Curiosa expressão, “cinema de indução”, que aparece de tempos em tempos ao longo de três décadas em seus textos, sem nunca merecer uma conceituação mais

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direta, como que reforçando um sentido denotativo de método de coleta de informações, saberes, conhecimentos, coisas, emoções e, de forma mais profunda, sentimentos, ou afetos. Percepções para com lugares, espaços, sítios, pontos – nada mais belo do que o plano da árvore que inicia Fulaninha –, ou idades – o que se foi, o que se é, e o que se será, partindo-se na trilogia da premissa do que seriam os meninos de Rio 40º no final dos anos 1970, como estariam de fato em meados dos anos 1980 e no que se transformariam ao final desta década. O retrato ecológico de uma nova sociedade, um tanto mais arrivista, um tanto mais melancólica, formada agora também por homens e mulheres de média idade, por integrantes de uma classe média baixa, ou por uma alta classe média, expõe um ponto de vista desiludido e ao mesmo tempo interessado para com o processo de aburguesamento do Rio de Janeiro. A realidade se ficcionalizou em sua violência destituída de brutalidade, como nas antigas comédias românticas em que todos encontram seus lugares no mundo, confraternizando ao final, mas não para esconder algo e sim para revelar o que sobreviveu por baixo de todas essas transformações. Praticar a indução, mesmo que voltada para essa zona sul decadente e amada, surge assim como a base de uma pesquisa conteudística e formal que atravessa o necessário contrabando que faz a ponte entre gerações, entre épocas, entre expressões cinematográficas distintas.

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ENTREVISTAS 46

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Jom Tob Azulay *foi fotógrafo do longa-metragem Muito Prazer (1979).

1 Famoso bar na Rua Álvaro Ramos, em Botafogo, onde o grupo que se transformou no Cinema Novo se encontrava para conversar sobre Cinema. (N.T.E) 2 Famoso concerto em que a Bossa Nova se consagrou definitivamente nos Estados Unidos.

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DN: Como você conheceu o David? JT: Eu o conheci através do Edgard Telles Ribeiro. Eu era diplomata. E o David foi o cineasta brasileiro – e eu estou falando do David “político de cinema” - que anteviu as possibilidades de interação entre a política externa e o Cinema. E ele foi representante, creio que em 1962, indicado pelas entidades cinematográficas da época, talvez até mesmo pelo povo que se encontrava no bar da líder na época1, como representante do Cinema junto ao Itamaraty. E, então, o David começou a fazer expediente no Itamaraty, na divisão cultural do Itamaraty. O David fez várias amizades com pessoas como o Vinícius de Moraes, etc. Até mesmo com os chefes de cúpula do departamento Cultural, no mesmo período em que o Itamaraty realiza o famoso concerto do Carnegie Hall2. E, como eu me tornei diplomata e servia no Itamaraty, tornamo-nos amigos. O David era extremamente querido dentro do Itamaraty; conseguia promoções, conseguia ajudar as pessoas, etc. E foi lá também que ele conheceu o Arnaldo Carrilho, também diplomata, que se tornaria uma pessoa muito próxima. Era um homem que também muito dedicado que acabou se transformando em um militante do Cinema. Isto é importante, por que o David Neves contribuiu muito para que o Arnaldo Carrilho desempenhasse o papel, a militância e auxílio ao cinema nacional que teve sua presença no exterior. O David tinha este lado de articulador político, que foi o que o levou ao Itamaraty. E um dos maiores esforços dos dois, principalmente a partir de 64, era não permitir que os filmes do Cinema Novo fossem censurados pelo regime militar. Então, para este fim, criou-se uma rede entre os cineastas do Cinema Novo e determinadas figuras do Itamaraty. Inclusive com pessoas do exterior, que promoviam nosso cinema em lugares como o Festival de Cannes. Isto criou uma base de defensores externos que possibilitou que o Cinema Brasileiro se abrisse para o Cinema Mundial. E o David se dava com todo mundo, conhecia todo mundo, era grande amigo do Truffaut, do Bertolucci, etc. Nós tínhamos, então, esta relação. E aí, eu fui ser Consul em Los Angeles, um ponto estratégico para uma pessoa como o David, por conta dos contatos que conseguira estabelecer lá. Nós marcamos e ele foi para lá, junto com o Fernando Duarte e o Fernando Sabino. Saíamos muito juntos e foi aí que ficamos amigos de verdade.

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DN: Isto foi mais ou menos no início da década de 70? JT: Exatamente. Em 1971. Eu fiquei lá até 1974. Fiz alguns cursos de cinema por lá. Eu percebi o negócio do Cinema Direto. E o David, que era uma pessoa que enxergava na frente – e, neste sentido, ele via na frente de seus contemporâneos – percebeu que a bitola em 35mm, com som dublado, era um atraso, um passo atrás. Com este sistema de equipamento, não dava para fazer filmes como se faziam na Nouvelle Vague, ou algo do gênero. Ele notou isto. Então, comecei a estudar cinema e fotografia, e me tornei um interlocutor dele em questões importantes: que tipo de tecnologia criar para aquele momento do Cinema Brasileiro? Até que idealizamos um sistema juntos. Um sistema em câmera 16mm, com motor regulado a cristal, e o Nagra 4. Pela primeira vez era possível se gravar a imagem e o som independente um do outro. Isto foi o divisor de águas que criou o Cinema Direto, e toda a escola norte-americana à qual a gente se filiava indiscutivelmente. O que contribuía para uma captação sem intermediação tecnológica. Foi quando apareceu uma pessoa muito importante para as nossas vidas: o Alberto Cavalcanti. O Alberto Cavalcanti foi a Los Angeles, e logo me tornei amigo dele. O David, é claro, também era amigo dele. Então, quando eu saio do Itamaraty, por questões políticas óbvias, e volto ao Brasil, em 1975, o Alberto Cavalcanti também estava no Brasil e o David o aconselha a me procurar para produzir seu novo filme, “O Homem e o Cinema”. O David foi quem coordenou isto tudo, ligando pro Alberto, falando que eu tinha que fazer, etc. O que para nós foi muito bom, por que era um filme de antologia da obra do Cavalcanti, ficamos imersos naquilo. DN: E depois que você produziu o filme do Cavalcanti, como foi que o David se aproximou para te convidar para o “Muito Prazer”? JT: Isto caiu do céu. Literalmente. Eu morava ali em um apartamento em Ipanema. Um dia, o David me chega lá com o Carlos Moletta e o Joaquim Carvalho. Dizem que estão produzindo um filme e que querem que eu o fotografe. Porra, eu já havia feito a fotografia de alguns curtas e tal, mas nunca tinha feito a fotografia de um longa-metragem. Mas eu pensei: “vambora então!”. Foi uma produção em 16mm, por que eu mesmo só filmava em 16mm. O primeiro filme que eu fotografei foi no esquema mais tradicional possível, em 35mm. Mas, como eu tinha saído dos Estados Unidos e, por influência do Cinema Direto, eu estava convencido que a bitola do momento era 16mm, com som direto.

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DN: E o David já tinha filmado com som direto? JT: Não, não. Ele começou a filmar com som direto comigo. Eu tinha uma câmera 16mm, de telejornalismo, na qual o som era gravado na banda sonora dentro da câmera. Mas com o motor regulado a cristal. Nós adaptamos esta câmera, fizemos inclusive um desenho para um visor, já que ela não foi feita para trabalhar no tripé, foi feita para ser trabalhada apenas no ombro. Nós tivemos que fazer um desenho de visor novo, encomendar de uma ótica, tudo isto para poder utilizar a câmera no tripé, utilizar carrinho e tudo mais. A gente adaptou aquela câmera para filmagens de um longa-metragem. DN: E vocês fizeram esta adaptação do visor pela primeira vez para o “Muito Prazer”? JT: Não, não. Eu já havia feito isto para o “Os Doces Bárbaros”. E o David já sabia disto e por isto me chamou. Por que orçamento que ele tinha não dava para fazer em 35mm. O que ele me pedia era uma imagem na tela melhor do que a imagem em 35mm. Uma expressão cinematográfica melhor, inclusive utilizando a espontaneidade do som direto. Isto foi importante para tudo. O Octávio Augusto, a Ittala Nandi, grandes atores de cinema... Nunca foram potencializados da forma como o David fez. E plasticamente, a gente faz a importação de um filme que ninguém nunca mais o fez: o 7252 Ektachrome Comercial da Kodak. Era um filme com 15 ASA. Quer dizer, quando se colocava o filtro, na luz do dia, ele caia para 15 ASA. Então eu filmava na praia, com uma luz intensa, com um diafragma 5.6. Além do mais, esta película era reversível. Ou seja, era seu próprio positivo. O que era comum, em realidade: toda produção em 16mm foi basicamente feita assim e o processo continuou até o filme colorido. Mas, o que isto nos permitiu? Isto permitiu que nós fizéssemos uma ampliação, já que o negativo original, que era 16mm, era já um positivo. Já que, de positivo, só sai negativo, a gente ampliou para um negativo em 35mm. Ou seja, era uma ampliação direta, sem perda. E a cor? No que bateu na tela do Festival de Brasília, todos ficaram impressionados, já que ninguém tinha visto uma cor destas. O David ficava rindo, dizendo que era Technicolor! O filme tinha uma latitude que me permitia filmar na lagoa de tarde, com sol forte, e o céu ficava roxo. Ninguém tinha visto, ou reproduzido, aquilo. Enfim, deram o prêmio de Melhor Fotografia para “Muito Prazer”, em 79. Melhor filme, fotografia e ator. Pra gente, foi uma consagração. E, para mim, até hoje, o que eu tenho como modelo de cinema é o “Muito Prazer”. Um modelo de produção.

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DN: E como foi o trabalho de finalização? JT: Ah, eles fizeram uma coisa impensável, absolutamente herética até aquele momento. Eles ampliaram o filme de 16mm para 35mm na Líder! Nunca isto tinha sido feito antes! Pela simples razão de que a Líder não tinha equipamentos para fazer o processo de ampliação de 16mm para 35mm. DN: Como conseguiram então? JT: O David era esperto. O David conhecia das coisas. Ele deve ter chegado ao Victor Bergman e, eu não me lembro desta conversa, mas, se ela tivesse acontecido, o que é absolutamente possível, seria algo como: “Seu Victor, eu não tenho dinheiro para ampliar, meu filme não tem dinheiro para mandar para Los Angeles, como o Jom Tob quer...” Eu já tinha ampliado o “Doces Bárbaros” lá antes. Então, o Victor retrucou que não tinha máquina para isto. “Mas eu estou com um negativo original positivo”, argumentou o David. Isto facilitava, por que a Líder tinha uma máquina redutora para fazer comerciais de TV. Então, o que se fez foi: virar a lente ao contrário e a máquina, de redutora, passa a ser ampliadora! Eles fizeram isto e ganhamos Brasília. O que é uma coisa extraordinária. Isto não existe! Só no Brasil mesmo... É a tecnologia do cinema brasileiro. DN: Mas o que você acha que este estilo de produção, de câmera e de filmagem possibilitou ao David? JT: Ah, isso para ele foi o paraíso. É o paraíso do cineasta poder trabalhar diretamente, sem aquela parafernália tecnológica enchendo a paciência, ditando o que pode e o que não pode ser feito. Ele podia filmar na hora. E o filme teve uma espontaneidade que nunca se viu no Cinema Brasileiro. O trabalho com os atores... Ele tinha uma relação de amor com os atores. Eles sacavam o David de cara. O set era silenciosíssimo. O David sussurrava as coisas para eles, gesticulava, quase não falava e eles se entendiam. Como se estivessem preparados, ensaiados, e as cenas iam saindo. Aquele plano-sequência da briga na cozinha, entre a Íttala e o Octávio... DN: ... Que tem um movimento de câmera curioso, cheio de vai-e-vêm.... JT: Justamente. É um plano-sequência fixo. Então, você vê, é toda uma linguagem, por que a utilização do zoom é quase imperceptível. Naquele tipo de filmagem, você faz o que dá. Você não tem tantas possibilidades de espaço, da luz, etc. A câmera tem que ficar onde tem que ficar. Você pode até ter três

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outros lugares, mas serão três piores do que este. Então, é tudo uma questão de conciliação. DN: E o David incentivava esta espontaneidade com algum mecanismo? JT: Ah, ele provocava. O que ele gostava era do inusitado. De algo que, de repente, acontecia (“aparecia”). DN: Você saberia lembrar de algum exemplo? JT: Ele queria a câmera sempre pronta para filmar, entende? Muitas vezes a gente demorava para dar início, e ele virava e dizia: liga a câmera. A coisa acontecia. Ele teve uma grande contribuição, que foi o Carlos Del Pino, seu assistente de direção, que o auxiliava bastante com estas questões de linguagem. DN: Mas ele ensaiava? JT: Não. Era tudo na hora. Ele não gostava de ensaiar. A gente chegava e fazia. O David tinha uma expressão que eu ouvi ele dizer muitas vezes na filmagem do “Muito Prazer”. Ele usava uma expressão mais ou menos “esta aí, como diria André Gide, é a la part de Dieu”. Ou seja, “a parte de Deus”. Que é a parte que ninguém controla. Ele citava em francês mesmo. DN: Tratando-se de David Neves, era assim quase o filme inteiro. JT: Ah! Ele era todo a parte de Deus. Ele era a parte de Deus.

Ittala Nandi *foi atriz protagonista em Muito Prazer (1979) e atriz coadjuvante em Luz del Fuego(1981). DN: Como você conheceu o David? Ittala Nandi: Não sei dizer precisamente como que eu o conheci ou quando, porque éramos todos muito amigos. A gente vivia sempre juntos. Eu acho que a gente se encontrou pela primeira vez foi num aniversário do Joaquim Pedro de Andrade. Eram todos Cinemanovistas. Morávamos todos na mesma rua, com a exceção do David. Mas o Joaquim, Tom Jobim, Raul Seixas, eu. Morávamos todos ali na Nascimento Silva e a gente sempre estava junto. A casa do Joaquim era um point onde iam todos. O David também frequentava lá. E como eu era uma atriz que fazia o filme de todos eles, foi inevitável acabar conhecendo o David. Ele era uma pessoa muito querida, muito doce. DN: Como foi o convite para você fazer o “Muito Prazer”? Ittala Nandi: O David não tinha encontrado ainda a atriz pra fazer o papel, e as filmagens já estavam próximas. Um dia, eu estava entrando no meu apartamento na Nascimento Silva e ouvi uma voz que eu conhecia. Olhei para cima, e o David estava na varanda do quarto andar. Ele olhou pra mim lá de cima e falou: “É você! É você que vai fazer o meu filme! É você!”. Eu estranhei e perguntei: “Que filme, David?” E daí ele gritou: “o Muito Prazer. Ainda não começou. É você!” Então ele desceu e me trouxe o roteiro. Lembro muito bem dessa ocasião, porque foi muito engraçado. Tem personagens que procuram o ator. Eu já tive prova concreta de que há personagens que buscam o ator. Alguém cria uma história... Ou seja, os personagens foram criados. E a partir daí, eles existem. Eles estão andando pelos ares. E tenho a impressão que eles se detém sobre alguém. E alguém chama você pra fazer porque é ele que está pedindo. Eu acredito nisso. Tive prova concreta de mais de um personagem que não era pra ser meu, mas acabou sendo. Tenho certeza que foi ideia do personagem querer que eu o corporalizasse. DN: Neste caso do “Muito Prazer”, acredita que foi isto que aconteceu? Ittala Nandi: Foi bem um caso de psicosincronicidade. O personagem é uma entidade que foi criada. O autor é meio Deus, né? Quando ele cria, ele é um Deus. E essa entidade busca uma corporalização também. Ela não é inativa.

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DN: Desse episódio do convite, até começarem as filmagens, passou quanto tempo? Ittala Nandi: Muito rápido. Comecei a gravar no dia seguinte já. O filme estava somente esperando a atriz. Como eu morava ali pertinho, na Nascimento Silva com Garcia D´Ávila, era só sair do meu apartamento e ir andando pra gravação. Era tudo perto. DN: Como era trabalhar com ele? Ittala Nandi: O “Muito Prazer” foi todo rodado aqui em Ipanema, perto da Garcia D´Ávila. Tudo foi feito nessa área. Gravamos em cima daquela estátua do José Martí. Subi com um guindaste dos bombeiros, foi muito divertido. Os filmes com ele eram muito simples de se fazer. A escolha principal dele eram os atores. E aí, ele deixava a gente praticamente construir a cena. Ele confiava nos seus atores. Costumava às vezes falar assim: “Bom, aqui é o lugar, e a cena é essa. Agora vocês podem filmar. Quando tiver pronto, me chamem”. E ele saia para descansar. Ele fazia essas coisas malucas. Era muito divertido. DN: Ele costumava ensaiar muito? Ittala Nandi: Não, não. Ele posicionava a câmera, definia o quadro, e o resto era por nossa conta. Eram os chamados atores-autores. Ele deixava por nossa conta. Era muito bom, muito interessante trabalhar assim. Pra mim não era problema, porque eu venho de uma escola do teatro oficina onde a gente sempre foi ator-autores. Nós sempre construímos os nossos personagens. Faziamos as próprias pesquisas. Então isso pra mim era muito simples. DN: E como foi a construção do seu personagem? Ittala Nandi: Houve uma coincidência enorme. O “Muito Prazer” é a história de um casal que está se separando. Por acaso, eu também estava me separando. Há toda uma emoção, uma memória emocional, que acontece nesses períodos. Uma dor misturada com uma visão nova de mundo que virá pela frente diante de uma separação. Eu estava vivenciando isso na vida real. E foi uma coincidência aparecer esse filme, no momento em que eu estava vivendo isso. As coincidências, segundo Jung, não existem. São psicosincronicidades. Eu vi que atraí esse tema em função do que eu estava vivendo.

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DN: Ele sabia que você estava vivendo isso? Ittala Nandi: Não, ele não sabia. DN: E quanto a “Luz del Fuego”? Ittala Nandi: O “Luz del Fuego” foi um filme mais burilado, mais complexo, que exigia mais produção. E mais atenção dele. E de fato, ele dava maior atenção às cenas. O meu personagem no “Luz del Fuego” não é um dos principais, mas com cenas bastante fortes com o Walmor . Foi muito bom de fazer, porque o Walmor era uma grande inspiração. Trabalhavamos muito bem juntos. DN: Você mencionou que o processo foi um pouco diferente... Ittala Nandi: Foi. Ele estava muito mais próximo do projeto, das gravações, das filmagens, de tudo. Porque era mais complexo. Não era um filme “meio Nouvelle Vague” como é o “Muito Prazer”, onde é o ator que comanda a história. O “Luz del Fuego” era um roteiro mais rígido, uma produção mais rígida. Exigia outro tipo de enfoque. DN: Onde foram gravadas as suas cenas? Ittala Nandi: Gravamos numa casa em Santa Teresa. DN: Em ambos os filmes, ele costumava intervir eventualmente na atuação de vocês? Ittala Nandi: Ele nunca fez nenhuma intervenção. Nunca fez. Ele devia estar satisfeito, acredito eu. E tem mais: a gente rodava uma vez só. E tchau. Para mim, que sempre faço melhor na primeira vez do que na segunda ou na terceira, era ótimo. DN: Era tudo em um único take então? Ittala Nandi: Em geral, sim. Haviam exceções, é claro. Quando tinha problemas técnicos ou coisas do tipo. Mas não me recordo jamais de algum problema ligado à interpretação. Não me lembro de termos sido obrigados a refazer nada. Claro que, às vezes esquecemos o texto, mas... Que eu me lembre, nunca... Porque ele tinha o prazer de fazer isso. De ter um elenco que grava no primeiro take. Para ele isso era o máximo. “Tudo feito no primeiro take, entendeu?” E eu também acho isso o máximo.

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DN: Ele demorava muito montando luz, armando a cena? Ittala Nandi: Não. Era tudo muito fluído. Muito simples, muito calmo. Era um ambiente calmo, descontraído. Isso é muito bom para o ator. É muito agradável para nós trabalharmos desse jeito. DN: Em relação ao roteiro, ele te dava liberdade pra criar nas falas? Ittala Nandi: Ele dava liberdade sim. Se a gente quisesse modificar, mudar alguma fala para soar melhor, ele permitia isso. Normalmente, os diretores permitem. Porque uma frase construída de repente não cai bem na forma temos de dizer. Daí, sugerimos: “Que tal se eu disser assim?”. É a mesma coisa, mas fica mais fluente. E todos eles concordam com isso, geralmente. DN: Vocês conversavam sobre o personagem? Ittala Nandi: Sim, a gente sempre conversava sobre como ela era, seu comportamento, como ela funcionava, etc... A cena em que eu e o Otávio estamos nos separando é uma cena muito difícil. É uma cena bem difícil. Precisamos ter uma concentração extra, uma emoção. DN: Havia alguma semelhança entre o David e o personagem principal de “Muito prazer”? Ittala Nandi: Não. Ele era muito diferente. O David era pacífico, uma pessoa solitária. Ele tinha uma solidão criativa. Ele era notívago. Andava de noite, e dormia de dia. Ele era o mais particular de todos os cinemanovistas... Para começar, ele era solteiro. Era o único solteiro de todos os rapazes da nossa família cinematográfica. O David era muito bonito. Todos eles eram muito bonitos. Eles eram todos muito bonitos, atraentes. Eu amava todos eles. E o David tinha hábitos bem peculiares. Ele vivia uma vida muito solitária. DN: Ele chegou a te chamar pra trabalhar depois? Ittala Nandi: Me chamou para fazer o “Memórias de Helena”, mas, na época, não me recordo porque, eu não podia.

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Joaquim Vaz de Carvalho *foi roteirista e produtor de Muito Prazer (1979), Luz del Fuego (1981) e Flamengo Paixão (1980). Joaquim Vaz de Carvalho foi letrista da trilha sonora original deMuito Prazer. DN: Gostariamos, primeiramente, de compreender sua relação com o David no periodo anterior ao Muito Prazer, este momento onde tornam-se amigos e desenvolvem o roteiro e o projeto do filme. Joaquim: A PUC, na década de 60, formou vários advogados, baixaréis, cineastas, e David era um deles. O Jabor, o Cacá, todos eles e eu fomos colegas de faculdade. O Jabor, por exemplo, foi meu colega de turma. Eu conhecia o David dessa época e, num determinado momento da minha vida, eu fui trabalhar em publicidade, na área de criação. Eu aproveitei, então, pra retomar a relação que eu tive com esses amigos meus cineastas, e comecei a chamá-los para dirigir filmes comerciais dessa agência. Por conta disso, eu retomei o contato com o David, que aliás de todos eles era o que eu era menos próximo, porque o David era mais velho que uns 4 anos mais ou menos e isso, numa determinada fase, faz diferença, depois não. Então, um dia, na minha casa, eu virei para o David e perguntei como andavam seus projetos de longa. Ele me disse que tinha um projeto, e me contou mais ou menos como era. O projeto era baseado em uns arquitetos do escritório do Oscar Niemeyer, que lá do alto viam alguns pivetes. Eu falei para o David que o escritório era muito alto, muito longe, que, com a altura do escritório, como é que eles iriam interagir com os pivetes? Eu achava melhor que fosse algo mais perto, algo mais próximo. Nessa época, eu tinha uns amigos meus que estavam vivendo um triângulo amoroso. Um triângulo amoroso muito intense, até meio traumático, e eles eram sócios num escritório de arquitetura. Com isso, eu tive essa ideia de botar os dois arquitetos tendo esse caso, esse caso de amor, com essa mulher, interpretada pela Ittala Nandi. Mas, ao mesmo tempo, achei que tinha que ter um terceiro arquiteto pra ser um contraponto meio crítico em relação a esses dois, e, então, criamos o personagem do Antonio Pedro. O David gostou da ideia, e me pediu que escrevesse o roteiro do filme, o que eu fiz. Como eu não conhecia nada, mecanismo nenhum de cinema, eu achei que, com o roteiro pronto, o filme sairia logo. O David havia me dito que tinha conseguido um produtor…

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DN: Vocês escreveram o roteiro em 1978, um ano antes de filmarem? Joaquim: Não, em 1977. Enfim, um ano se passou e nada tinha andado. Então, eu falei com o David, perguntei a ele por que ele não colocava o filme na Embrafilme. O David respondeu dizendo que não colocou por que achava que o Roberto Farias não aprovaria a ideia. Eu argumentei que não inscrevendo é que o filme não seria feito mesmo, que o melhor era tentar. “Ah, mas eu não sei fazer um projeto”. Pronto, eu fiz um para ele. DN: Foi então que o Carlos Moletta entrou na história? Joaquim: Não, não, ainda não tinha o Carlos nessa história. Passaram-se alguns alguns meses e, um belo dia, eu soube que tinha saído uma lista de filmes que tinham sido aprovados, mas que o Muito Prazer não estava na lista. Eu fiquei muito chateado com a história, mas eu não queria ser o carteiro a dar essa notícia pro David. Isto foi em uma sexta-feira. Quando foi na segunda feira, nós tinhamos um amigo que era diretor jurídico da Embrafilme e, quando foi mais ou menos duas horas da tarde, ele me ligou e me disse que houve uma reunião extra na Embrafilmes e que eles resolveram colocar mais dois filmes na lista de aprovados, incluindo o filme do David. Aí, eu saí atrás do David, mas o David tinha uma característica, uma época aí, que ele andava com uns problemas de grana, cheque sem fundo, essa coisa toda, em que você simplesmente não conseguia falar com ele, você não achava David. Eu comecei a ligar pro telefone dele, mandei alguém ir na casa dele, procurei por vários meios, e não consegui. Então, eu tive uma ideia e liguei pra casa do Mario Carneiro. Eu falei com a Marilia, com quem o Mario era casado na época, e eu senti uma certa… uma certa… uma certa hesitação no que a Marilia falou. Aí, eu falei «Marilia, deixa eu te dizer um negócio, o David de uns tempos pra cá só tem tido notícia ruim, eu tenho uma notícia boa pra ele, que o filme dele foi aprovado na Embrafilme». Ela respondeu correndo que era para eu ir na livraria Timbre, no Shopping da Gávea, onde estava tendo a noite de autógrafos do Alexrande Eulálio, primo do David. Então, eu fui lá. A primeira coisa que ele fez foi virar para mim e dizer: «olha, aquela grana que eu to te devendo, eu vou te pagar semana que vem…”. E eu respondi: “ mas, claro, teu filme saiu na Embrafilme». Ele ficou branco, saimos de lá e fomos para o Álvaro conversar. Ele estava todo feliz que depois de nove anos iria poder filmar novamente. E, então, ele de vira e diz que eu vou produzir. “Eu vou produzir o filme? Eu não sei nem o que significa produzir

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um filme! Além do que, David, eu to assim, no auge da forma como relator de publicidade. A DPZ já ta querendo me levar pra São Paulo». A DPZ era o top do top. Mas o David continuous dizendo que eu produziria. Aí eu fiquei com esse troço na cabeça, então, daí eu falei com o Carlos Moletta. Falei para ele o que estava acontecendo, e o Carlos achou a idéia ótima, querendo entrar, criar a produtora e seguir com o projeto. DN: O Carlos ainda não conhecia o David? Joaquim - Conhecia, mas pouco, muito pouco. Quem tinha relação mesmo com o David era eu. Nessa época, o Carlos era diretor da FEEMA, mas era época de eleição, ia mudar o governo e ele sabia que sambava na FEEMA, então foi uma oportunidade. Eu procurei outro amigo meu, que era president do clube de criação, e falei para ele sobre a oportunidade de fazer o filme. Ele falou: «Ah, tem que ir correndo!.” Eu respondi dizendo que não sabia nada de cinema. Ele: «Aqui, o negócio é o seguinte, se cinema for a maluquice que dizem, você vai lá um ano, produz esse filme, se não der certo, você volta, em um ano ninguém te esqueceu aqui». Eu comecei a produzir o Muito Prazer. Nessa época, o Festival de Brasília era o principal festival do Brasil. Corremos pra pegar a inscrição, quer dizer, o objetivo era aquele, e o filme foi selecionado entre os 6 participantes do Festival. Aquilo ali pra nós já foi a glória, o prêmio já tava dado, mas pra melhorar a situação, o filme vai e ganha o prêmio de melhor ator, para o Octávio Augusto, melhor filme, e fotografia com o Tom Job Azulay. Depois disto, eu produzi mais dois filmes com o David. O Flamengo Paixão, um documentário, foi uma coisa de oportunidade na época, pois era aquela época encantada do Flamengo, com Zico e companhia. E foi curioso, por que nós começamos a adquirir uns materiais e começamos a realizer umas filmagens, e o Flamengo, naquele ano, foi desclassificado, perdeu as quartas de final pro Palmeiras. Aí, poxa, material perdido, né? Mas o Campeonato brasileiro do ano seguinte, por algum motivo, foi no primeiro semester e não no Segundo. O Flamengo foi chegando, foi chegando, foi chegando até que chegou na final. Eu chamei alguns fotógrafos, como o Walter Carvalho e o Fernando Duarte e finalizamos o filme. Depois, partimos para o Luz del Fuego, que era um projeto mais ambicioso. Mas ocorreu uma circunstância interessante antes disto. Eu tinha terminado de escrever o roteiro para Muito Prazer, e eu era muito amigo do Miguel Faria. Ele leu o roteiro e adorou. Então, o Miguel se aproximou de mim e pediu que eu escrevesse o roteiro para o Luz del Fuego, o projeto original.

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DN: O David não ia dirigir à princípio? Joaquim; Não, era o Miguel que ia fazer. Eu escrevi uma primeira versão, ele leu e gostou. Depois, passaram-se alguns dias, ele veio até mim e pediu para mudar isto, aquilo. Eu, então, fiz um segundo tratamento. Então o Leopoldo Serran, quando ainda era vivo, me perguntou sobre o processo do roteiro com o Miguel Faria. Eu falei para ele que eu escrevia, ele gostava, mas que depois pedia para eu mudar as coisas. Foi quando o Leopoldo, que já havia trabalho com todo mundo, de Glauber a Alcino Diniz, me falou que não havia pessoa mais indecisa que o Miguel. Bem, o tempo passou. Então, eu por acaso me encontrei com o Joaquim Pedro e fomos tomar um café, conversar. Eu perguntei pelo Miguel Faria e o Joaquim Pedro me diz que ele está filmando, mas não era o Luz del Fuego. Fiquei sem entender nada e o Joaquim me diz que o Miguel disse que o projeto era agora meu. “Po, o que que eu vou fazer com um projeto, eu sou redator de publicidade, não sou produtor de cinema”. Então eu me lembrei desse negócio que o Joaquim tinha me dito que o projeto era meu e resolve procurar o David. Ele topou e foi para a minha casa ler o roteiro. Foi engraçado, porque ele tava em uma sala e eu tava na outra, eu só ouvia as gargalhadas do David lendo o roteiro. Então, nós demos entrada na Embrafilme com o projeto. Passado uns tempos, não é que o Miguel Faria me procura querendo inscrever o Luz del Fuego na Embrafilme? Foi um embróglio só. Conversamos todos e, no fim, o Miguel abriu mão do projeto e eu fui fazer com o David. O Luz del Fuego foi um grande sucesso, de audiência e de public. Mas o David, até essa época do Luz del Fuego, ainda era um cara muito arraigado numa coisa assim meio cult. Ele tinha um passado muito ligado ao Itamaraty, antes mesmo dele dirigir, ele era crítico, ia muito lá fora, tudo quanto era festival de cinema ele estava, era conhecido, sempre de gravata, um cara bem mais formal nessa época. Quer dizer, o primeiro filme do David era muito mineiro. DN- O Memória de Helena? Joaquim: É. O Lucia McCartney é um filme mais paulista, um filme mais puxado, Nouvelle Vague. Com o Muito Prazer, deu uma guinada pra uma coisa mais carioca. Mas mesmo assim era um filme pequeno, mais intimista, essa coisa toda bem do jeito dele.

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DN: Essa vontade de trabalhar com esse espírito extremamente carioca, isso veio de você, veio do David, ou veio sem querer? Joaquim: Não, isso era uma coisa do David mesmo. Coisas do David. No Luz del Fuego, eu me lembro do David falando para o montador, o Marco Antônio Cury, que o filme estava muito solar, muito limpo, que era necessário colocar algo no meio para sujar o filme. O Luz del Fuego foi uma proposta minha, a partir do roteiro que já existia e eu fiz muita força pro David mexer no roteiro, mas ele falou que queria filmar este roteiro. Este roteiro, que ele recebeu, era uma proposta de um filme que tinha o seu viéis artístico, evidentemente, mas era uma proposta de um filme de sucesso, de sucesso comercial. E o David, de uma certa forma, ele não vibrou muito com esse sucesso comercial. DN: Ele não entrou muito nessa. Joaquim: Tanto que ele fez questão de muito rapidamente, mas muito rapidamente mesmo, torrar todo o dinheiro que ele ganhou com o Luz del Fuego. E não foi pouco. Por que, naquela época, você tinha um sistema na Embrafilme, em que o diretor tinha 5% sobre a renda do filme. Na medida em que ultrapassasse determinado patamar, passava a 10%. Esse filme fez, sei lá, quase três milhões de espectadores, David ganhou uma boa grana, mas estourou tudo, tudo, tudo. Gastou rapidamente tudo e se perguntar “comprou um carro?”, nada, comprou nada, gastou mesmo, estourou a grana. DN: Você participava também dos sets como roteirista? Joaquim: Participava. DN: Como é que era isso? Os diálogos em Muito Prazer, eles foram improvisados ou já estavam estabelecidos no roteiro? Joaquim: Não, basicamente eram os mesmos. DN - Mas como que vocês criavam aqueles diálogos? Eles possuem uma autenticidade, uma vivacidade, impressionantes. Joaquim: Tem muitas coisas, mas muitas mesmo, tiradas de episódios reais que eu vivi. Eu ia anotando aqueles troços e, quando fui partir pra escrever o roteiro, eu peguei várias coisas que eu tinha anotado como interessantes e coloquei. Por exemplo, tem uma frase no filme que ficou famosa, que era uma frase, assim, recorrente nas agências de publicidade. Quando o Otavio diz: “Bom,

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quarta feira, três horas da tarde, semana praticamente encerrada”. Isso daí eu não inventei, não foi da minha cabeça. Eu cheguei a trabalhar em mercado de capitais também, antes de trabalhar em publicidade, e tinha um cara que era um agente de investimentos. O cara vendia pra burro, e foi ele que mandou essa daí um dia, ele tinha faturado a semana inteira, já tava satisfeito, “quarta feira, três horas da tarde, semana praticamente encerrada”. DN: “Jacaré que dorme vira bolsa” Joaquim: Isso daí também são frases comuns. Tem uma outra cena, assim, que o cara de bicicleta bate no carro do Fernando. Ele ta com um negócio na roupa, escrito “aspirante”. Aí o cara fala: «Você é aspirante, eu sou do primeiro time aqui do Lagoa, você é aspirante!» DN: Nós achamos impressionante como o filme consegue de fato retratar uma informalidade tipicamente carioca. Joaquim: É por que nessa época, particularmente nessa época, eu e o David estávamos vivendo uma boemia desenfreada. Eu solteiro, o David também, então, a noite era nossa. Eu trabalhava na agência de publicidade, mas todo dia saía de casa às 23h da noite. Isso é uma coisa impensável no Rio de hoje. Nessa época, tinha o Luna Bar, tinha o Álvaro, tinha aquele lá do sinal do Leblon, tinha o Guanabara, o Diagonal. Esses lugares ficavam lotados de gente até seis horas da manhã. DN: Todos os dias? Joaquim: Todo dia. Dia de semana, final de semana, direto. Então, o que que eu fazia? Eu chegava em casa umas seis e meia da tarde. Eu dormia até umas onze horas da noite, acordava, tomava banho e ia jantar fora. Nem marcava com ninguém, era certo você encontrar várias pessoas, amigos, em todos os lugares. Quando começou esse negócio de se pensar mesmo esse negócio do filme, eu passei a não só prestar mais atenção nessas coisas, dos diálogos das coisas interessantes, engraçadas, como também anotar. Muitas coisas, se eu não tivesse anotado, teriam ficado esquecidas. DN: Outra coisa que nos chama atenção é o fato que a equipe era basicamente de pessoas que estavam iniciando a fazer cinema. Joaquim: A nossa equipe era toda de pessoas que nunca tinham feito cinema na vida.

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DN: O David buscava isto, era uma vontade dele trabalhar com pessoas que estavam iniciando? Joaquim: Ele gostava das pessoas, mas aceitava sugestões. No Luz del Fuego, ele botou como cenógrafo o Fausto Baloni, que nunca tinha feito cenografia. Ele dirigiu um filme que foi para o Festival JB, de 1966, nunca mais tinha feito cinema, era arquiteto e fez a cenografia. Os figurinos foram feitos por uma amiga nossa que era produtora de moda da Vogue, que nunca tinha feito cinema também. O David gostava dessas coisas mais experimentais, mas ele também não deixava a coisa frouxa. Ele tava em cima de tudo. DN: Ele tinha alguma parte do processo cinematográfico em que ele se dedicava mais? Joaquim: Não, o David não tinha isto. Por que eu acho que o David escolhia bem as pessoas com quem ele queria trabalhar. DN: Ele confiava. Joaquim: É, então não tinha conflito. Os sets eram todos muito tranquilos, as pessoas muito harmônicas. E, quando eu fiz o Muito Prazer, eu confiava por que eu achava tanto o Memória de Helena quanto o Lúcia McCartney filmes muito bem dirigidos, muito bem conduzidos dentro da proposta de cada um. Então, eu também não tinha receios de estar naquela aventura. Além disto, eu já tinha compreendido que existia o roteiro e existia a direção. Eu só não tinha a percepção da montage ainda. Inclusive, aquela coisa do final, onde você tem os protagonistas de Muito Prazer agradecendo, aquele gesto teatral, isto foi coisa do David. Ele viu, gostou e falou que seria utilizado na montagem. Ele sempre estava preocupado em como o filme iria terminar. DN: Então aquilo não estava no roteiro. Joaquim: Não, aquilo, não. Não me lembro se foi o Otávio ou o Cécil que, na hora, disse que, como era o último dia dos quatro juntos contracenando, que o melhor era agradecer. E fizeram a cena. DN: Foi mais em um espírito de brincadeira? Joaquim; Não chegou a ser uma brincadeira, era uma coisa de despedida mesmo. O climea das filmagens foi muito gostoso. Muito legal. Eles gostaram muito de ter feito o filme e eu também. Foi, inclusive, após assistir a esta imagem deles revereciando e agradecendo ao público que tivemos a ideia para o título final do filme.

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Carlos Moletta *foi produtor de Muito Prazer (1979), Flamengo Paixão (1980), Luz del Fuego (1981), Fulaninha (1985) e Memória de Diamantina (1984). Carlos Moletta é autor das trilhas sonoras de Muito Prazer e Luz del Fuego. Carlos: O David conhecia o Joaquim Vaz de Carvalho da PUC, o que faz do Joaquim mais ou menos contemporâneo dele. E o Joaquim trabalhava em publicidade. Ele começou a escrever roteiros de publicidade e escreveu um roteiro que se chamava Sinal Fechado. Era o embrião do Muito Prazer. Ele tinha uma história verídica, sobre alguns amigos dele. Era aquela história lá dos dois arquitetos. E o David tinha uma história sobre uns pivetes que ficavam no sinal vendendo bala. Não existia isso. Por incrível que pareça, era uma novidade. Sociológica. DN: Realizar um filme com esta temática? Carlos: Sim. Esta palavra, “pivete”, era novidade na época. A música tema, “Coração Pivete”, com letra minha e do Joaquim, foi feita em 1976. Como “pivete” era uma palavra nova, o David queria saber o que pensavam aqueles pivetes da rua. Tanto é que aquela cena da entrevista dos pivetes não estava no roteiro. Estávamos realizando uma cena com o Cecil e a turma, com toda a estrutura montada, com Kombi e tudo. Então, o David vira para os meninos e começa a realizar aquela entrevista no ato. DN: Com os meninos comentando o próprio filme. Carlos: Exato. E isto foi genial por que eles realmente não sabiam, não tinham lido o roteiro. Eles acompanhavam vendo, por que eles viviam nas filmagens. Então, era a impressão imediata dos meninos do próprio filme que estavam fazendo. Isto se encaixava perfeitamente com a proposta do projeto. É sensacional. DN: Era comum o David propor filmar de forma espontânea, criar cenas que estivessem fora do roteiro? Carlos: Gatos. DN: Perdão? Carlos: Era como ele chamava estas filmagens. David preservava certas informações, certas coisas que ele queria filmar mas que não estavam no rotei-

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ro. Isto era muito complicado para o produtor, por que a gente não conseguia orçar. Ele dizia que estava faltando uma cena, mas ela não estava no roteiro. “Ah, mas isto é coisa rápida”, dizia. DN: Ele mantinha isto em segredo? Carlos: Sim, por que ele tinha medo que os produtores não deixassem ele fazer. Eram coisas fora do roteiro, tipo esta cena da entrevista com os pivetes em Muito Prazer. Ele defendia que os filmes se dividem em dois grandes gêneros: o filme de personagem e o filme de roteiro. E ele gostava de filme de personagem, onde o roteiro não interessa. Interessa o que o personagem faz. Então, dentro desta lógica, ele se permitia, na lógica do filme, a ter estes momentos, estas exceções. Por exemplo: tem um momento no Muito Prazer em que a personagem da Ittala está passando por um momento difícil. Está muito dividida, sem saber o que fazer. Então, ele inventou uma andada dela na beira da Lagoa, ali próximo ao Piraquê, no dia em que íamos filmar outra coisa. Do nada, ele pede para todos pararem e diz que vão filmar ali mesmo. Ele e a Ittala já sabiam o que queria fazer, já tinham combinado. O David colocou a câmera ali e a Ittala ficou caminhando pela beira da Lagoa, com o salto alto na mão. Tinha gente que adorava aquilo. Tinha uma americana que assistiu e disse que era um pregnant shot. Um plano grávido. Grávido por que dentro dele existia uma pulsão, algo em gestação. Por que a Ittala ficava pensando alí, e o espectador pensa o que quiser. Ela quer e não quer se separar, mas ela não aguentava mais aquele bêbado. DN: E como ele trilhava este caminho entre o roteiro e o improviso? Carlos: Ele basicamente tinha uma ideia e essa ideia ia sendo desenvolvida conforme a banda tocava. No Memória de Helena, foi o Paulo Emílio. No Muito Prazer, foi o Joaquim que tinha essa história dos arquitetos que juntou com a dele. Mas a história dele que era dos pivetes está lá. A história do Fulaninha está lá também mas tem uma elaboração de roteiro em volta. E, no meio disto, ele colocava grandes atores, mesmo para as pontas. Em, Fulaninha, o David colocou o Nelson Dantas para fazer um porteiro do prédio, e o Nelson está maravilhoso. Por isto, quando fui produzir o As Meninas, como uma homenagem ao David, eu coloquei o Otávio em um papel pequeno. Tem uma frase lapidar de David Neves: “Elenco é roteiro”. Se você acertar o elenco, metade dos problemas de roteiro estão resolvidos.

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DN: É extremamente impressionante a performance dos atores em seus filmes. Carlos: Tem aquela cena da cozinha, em Muito Prazer. Aquela com a briga entre os personagens do Otávio e da Ittala Nandi. Eu considero aquela cena uma obra-prima dentro do Cinema Brasileiro. Para se ter a noção da ótima relação entre os atores e o David Neves, aquela cena, com toda a sua complexidade, foi filmada em take único. DN: Ele tinha este hábito, não? Carlos: Eu mesmo pedia para ele fazer mais um, só para garantir. Mas ele não deixava. Só se trocasse o chassis, se colocasse outro negativo. DN: E por que ele dizia isto? Carlos: Por que ele não queria. Na verdade, por que não precisava mesmo. O fotógrafo garantia. Ele perguntava: “Imprimiu?”. O Jom Tob Azulay confirmava e pronto, valeu. Eu ficava nervoso. Argumentava que podia dar problema. “Não vai dar problema. Eles não vão fazer melhor”, dizia o David. E, realmente, os atores rendiam muito mais no primeiro take. DN: Mas como você acabou entrando no Muito Prazer? Carlos: Bom... nos bares. A gente saía muito. Ao contrário de hoje em dia, não existia Lei Seca. A noite do Rio de Janeiro bombava, a gente era super jovem e gostava de beber. Creio que o Joaquim e o David tenham se conhecido no Antônio’s. Papo vai, papo vem, eles resolveram juntar as duas histórias num roteiro só, colocando a história dos arquitetos com a dos pivetes. Mas muito do que ligou a história foi feito na montagem, já que não existe nenhum plano que defina a relação geográfica. Tem os arquitetos olhando da janela, tem os pivetes no sinal. Na época, o roteiro se chamava Sinal Fechado. DN: E foi no bar que o David te aproximou com a ideia do Muito Prazer? Carlos: Não. O papo com o David foi à parte. Não foi junto com o Joaquim. A conversa do Joaquim com o David foi um papo criativo. Eles escreveram o roteiro, entraram na Embrafilme, acho que em 1978. Depois, quando o filme virou realidade, aí então o Joaquim conversou comigo. Já éramos amigos, por conta de nossa relação com a música. E já éramos parceiros: ele fazia a letra, eu fazia a música. Eu era engenheiro. E por isso, um bom administrador. Eu trabalhava na FE-

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EMA, que era um negócio ligado ao meio-ambiente no Rio de Janeiro. Hoje já mudou de nome. Em 1979, estava me sentindo muito inseguro, por que eu saí da FEEMA, que era uma coisa do Estado e o governo tinha mudado. Então, eu era meio funcionário público, mas eu não era concursado. O Joaquim, então, me convidou para fazer o filme. Fizemos uma sociedade e produzimos o filme. Arrumamos dinheiro. Tinha dinheiro da Embrafilme. E, assim, nasceu o Morena Produções de Arte. Criamos a empresa juntos, e, da administração, eu passei a fazer a produção executiva, assinando todos os cheques. E, como eu fazia música, passei a fazer a trilha também. Era uma aventura. Muito Prazer foi filmado em Janeiro de 79. Ganhou o Festival de Brasília. Na época eu estava basicamente desempregado, mas com o prêmio, tive certeza do que eu queria. O David confiava muito em mim. Ele tinha este jeito dele de confiar. Embora ele já fosse um diretor do Cinema Novo, e eu e o Joaquim, novatos. DN: O David tinha este negócio de confiar nas pessoas, não? Carlos: Sim. E às vezes até demais. DN: Como? Carlos: Por exemplo, tem um erro de continuidade no Fulaninha que eu acho imperdoável. A Kátia D’Angelo sai com um óculos numa cena, e chega com um óculos de outra cor na outra. É claro que a plateia reparou. Isto aconteceu por que ele adorava uma montadora, que foi também a primeira montadora de Luz del Fuego. E ele queria colocar ela na equipe de Fulaninha. Então, a colocou para fazer continuidade. Mas ela não fazia continuidade. Nunca tinha feito. Enfim, acabou acontecendo isto. Ele confiava muito nas pessoas e tentava se cercar dos melhores. E, com isto, os filmes ficavam organizados. Fulaninha é um dos filmes mais organizados dele. Por que o roteiro foi muito trabalhado, por que o Paulo Thiago sabia que ele não dava tanta importância ao roteiro e, então, chamou o Haroldo Marinho Barbosa para ajudar. O Haroldo era um grande roteirista, e eles desenvolveram a primeira versão do Fulaninha, que tinha a ideia central do argumento do David sobre a menina que passa na rua e os bêbados do bar querendo saber quem é ela. DN: Depois que Muito Prazer deu certo, como foi a elaboração de Flamengo Paixão e Luz del Fuego? Carlos: Bem, o Flamengo Paixão foi um relativo improviso. O dinheiro do Luz

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del Fuego demorou dois anos para sair. E, enquanto atrasava, o Joaquim era muito bem relacionado no Flamengo. É até hoje. O pai dele era benemérito. O David Neves era vascaíno. Mas resolvemos fazer o Flamengo Paixão como um filme de passagem, enquanto o dinheiro de Luz del Fuego não saia. Foi um filme que fizemos sem dinheiro algum. E que também não deu dinheiro nenhum. Por que, como era filme de futebol, as mulheres não iam. A sessão das seis era boa, por que as pessoas saíam do trabalho e iam ver. O dinheiro para fazer Luz del Fuego só saiu em 1981. O filme deu dois milhões de espectadores. Ganhei dinheiro, o Joaquim foi para Cannes, eu fui para a Europa pela primeira vez com minha atual esposa. Por conta do sucesso do Luz del Fuego, a minha carreira como produtor cinematográfico se estabeleceu de vez, e, então, continuei. Muita gente diz que Luz del Fuego não é um filme do David. Eu acho que é. Se você olhar bem, é um filme mais sobre uma mulher do que sobre “Luz del Fuego”. É a mesma personagem meio excêntrica, diferente, “marginal”. Eu não gosto de usar a palavra “marginal”, mas era a palavra certa a ser usado na época. É algo da Prado Júnior. E o David adorava este conceito de “marginal”. Não o marginal ou traficante, mas o “marginal” que está à margem. À margem da sociedade organizada. Então, se você pensar bem: é a Helena, é a Ittala Nandi, é a Lúcia McCartney. DN: Luz del Fuego foi o filme de maior orçamento que o David filmou, não? Carlos: Não sei. Maior que Fulaninha? O Fulaninha, embora fosse tudo próximo, nas redondezas da Prado Júnior, possuía uma estrutura de produção, tinha grua, gravava-se na rua, etc. Luz del Fuego foi mais caro do que Muito Prazer, já que a equipe era maior, mas o que importa mesmo é o que a gente conseguiu fazer com o que dispúnhamos. Este foi o grande pulo do gato. DN: Por que? Carlos: A Embrafilme dava o dinheiro em parcelas. Isto era padrão. Sete parcelas. Então, quando você assinava o contrato, eles te davam uma parcela, que era de dez por cento do filme. Depois que você filmava sei mil pés, mais ou menos. Aí, você voltava e recebia outra parcela, outros dez por cento. Depois, você tinha que apresentar o primeiro copião, e, enfim, recebia outra parcela. Enfim, era complicado. Mas era bem feito. Nenhum absurdo. Na época, eu já era um cara safo, da Engenharia e da Administração. Eu e o Joaquim conversamos com a Embrafilme, e combinamos deles darem o dinheiro de uma só vez, na condição de apresentarmos uma garantia para eles. O Joaquim era

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casado com uma moça de família rica, e ele conseguiu uma garantia, um aval. A Embrafilme, à princípio, estava contrariada, por que não queria criar um precedente. Mas, no final, não me lembro como, nós conseguimos o dinheiro todo de uma vez. E foi aquilo, se a gente não entregasse o filme, a Embrafilme executava a garantia. Com este dinheiro na mão, eu fazia negócios. Eu ligava para a Líder e perguntava o orçamento dos processos de laboratório: “Quero fazer o serviço todo, quanto fica?”. “Cem”. “Se eu pagar só em 30 dias depois de realizar o serviço, quanto fica?”. “Ah, aí já dá pra fazer um desconto de vinte por cento”. “Mas, e se eu pagar à vista”. “Ah, aí já podemos dar um desconto maior”. Isto nunca acontecia, por que ninguém tinha dinheiro. Então, eu consegui fazer tudo à metade do preço. Por isto, o filme conseguiu ter uma produção mais presente, por que nós conseguimos fazer por onde. E não por causa de um orçamento exorbitante. DN: E como o David se comportou dentro desta lógica de set do Luz del Fuego? Carlos: Ele ficava ansioso para filmar. Detestava o ritual do set. A fotografia demorava. O Luz del Fuego foi muito filmado em Paquetá e no inverno, por que era a época que tínhamos para filmar. Então, acordava-se cedo e a Baia da Guanabara ainda estaria coberta de névoa. Com isto, não se podia filmar, não imprimia. Então, ele ficava ansiosíssimo. O Fernando Duarte, o diretor de fotografia, que também ganhou um prêmio, era super detalhista. E o David ficava apressando o Fernando. E o Fernando calmo, lento. David ficava muito ansioso com isto, ele queria filmar logo. DN: E o caso As Meninas? Carlos: O David tinha os direitos de adaptação do livro desde que ele foi lançado, em 1972. A Lygia pessoalmente tinha dado a ele, através, é claro, do Paulo Emílio Salles Gomes, com quem a Lygia era casada na época. É um projeto absolutamente autoral do David, mas que ele não teve tempo para fazer. Quando saiu o primeiro dinheiro deste filme, que foi um dinheiro dado pela FINEP, em 94, o David já estava doente. O dinheiro não era muito. Era algo remanescente do que havia sobrado da Embrafilme depois que a empresa foi liquidada. Era um dinheiro para começar a produção, mas não para filmar. E ele falava: “100 mil reais? tá na lata”. O plano real tinha acabado de sair. “200 mil reais, David? Não dá pra filmar!”. “Não, tá na lata!”. Esta era uma expressão que a gente usava, que não existe mais. Isto foi em setembro de 1994. Ele morreu em novembro, dois meses depois.

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Mariana de Moraes DN: Mas ele deixou algumas indicações do filme que queria fazer, alguma decupagem? Carlos: Decupagem não, por que ele não fazia isto. Em 94, ele já estava na cadeira de rodas e eu preocupado com isto. Por que, como é que eu ia fazer um filme com um diretor que não podia nem se levantar da cadeira? E o Emiliano Ribeiro era um grande assistente de direção. Tinha sido assistente de direção no “Dona Flor”, por exemplo. Ele estava trabalhando no Ministério da Cultura, na Secretaria do Audiovisual e eu o convidei para ser assistente de direção, de modo a ajudar o David a fazer o filme. Ele era muito qualificado, teve três encontros com o David e, antes de morrer, o David disse: “O Emiliano dirige”. As Meninas é um filme do David Neves.

* é a protagonista de Fulaninha (1985). DN: Você ficou próxima de David Neves ainda muito jovem... Mariana de Moraes: A gente se aproximou por uma afinidade de sensibilidade. David era um cara muito doce. Muito sensível. Um modo de ser muito polido. Um gentleman, um cara carinhoso, um cara capaz de conversar com uma criança, por exemplo. E acho que ele se encantou comigo. Quando eu era muito pequena eu queria, eu já sabia que eu queria cantar. E que eu queria tá no palco. Era um sonho com a música que eu tinha. E o David ficava encantado com isso porque o David também tinha um lado de artista plástico... Tinha aquarelas belíssimas. Também tinha um trabalho fotográfico de polaroids... Ele vivia aqui nessa zona de Copacabana, que era mais ainda ligado à prostituição, e tinha umas polaroids das putas e dos travestis. Umas fotos muito bonitas... Fortes. Eu era encantada de alguma forma, com aquilo. Fui criada num ambiente múltiplo, onde tinham cineastas, artistas plásticos, músicos e poetas. Eu fui esse lado do sonho do David, da conversa calma do David, acho que ele gostava de conversar comigo sobre música, sobre cinema... A gente não era da mesma idade, e acho que ele gostava de mim justamente por isso. De ter esses papos mais filosóficos, mais culturais. Ele ficava encantado por como eu cantava, como eu tocava piano e como eu interessava por Cinema e por Artes Plásticas. Ele ia pra casa da minha mãe e ficava conversando comigo. DN: Como ele te convidou para trabalhar com ele no Luz del Fuego? Mariana de Moraes: Quando ele fez o “Luz del Fuego”, eu tinha onze anos e tava voltando da França. Minha mãe se auto-exilou lá por uns três anos, mais ou menos dos meus sete até os meus onze anos. Eu me lembro do David dessa fase, de dez anos... Ele me convidou pra fazer um pequeno papel. Foi uma cena que depois até foi cortada, acabou que não apareço no filme. Mas eu tenho a minha primeiro foto de equipe. E a gente foi pra Paquetá filmar. Foi incrível. Foi uma experiência bem bonita. DN: Como é que era essa cena que não entrou no Luz del Fuego? Mariana de Moraes: Tem um delegado no filme que resolve implicar com a Luz del Fuego. E então era uma cena em que a filha do delegado vinha falar bem da Luz del Fuego, e o delegado ficava fora de si. “Essa mulher é uma pecaminosa, está contaminando...”. Hoje em dia, talvez o personagem fosse um

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delegado fosse um evangélico. Então tinha uma confusão familiar que ficou um pouco exagerada. Alguma coisa estourou. Não sei se foi a atuação, não sei se foi o som... Estourou e eu tinha uma fala. Eu falava: “Pai, olha que linda essa mulher aqui no jornal”. Foi incrível. Eu lembro das serpentes na filmagem. Tinha aquele balde com aquelas serpentes. Eu peguei nas serpentes. E a Lucélia Santos tinha umas unhas imensas... DN: E como foi o convite para Fulaninha? Mariana de Moraes: Ele me convidou pra fazer “Luz del Fuego”, e quando ele me convidou pra fazer “Luz del Fuego”, ele também me convidou pra fazer o próximo projeto dele. Eu tinha alguma intimidade com a câmera. Vivi minha primeira infância até os sete anos em sets de filmagem: do Neville de Almeida, do Julio Bressane, do Rogério Sganzerla, do próprio Joaquim Pedro. Eu fiz o “Anchieta”, do Paulo Cesar Saraceni. Não era uma pessoa que a primeira vez ia tomar um susto com a câmera. Acho que isso tudo foi uma percepção bem lógica do David, que assim como o Vinicius de Moraes, meu avô, era considerado um porra louca. Na verdade, ele sabia muito bem. Ele tava chamando uma criança pra fazer o papel de uma criança. Mas uma criança que, por acaso, era acostumada com set de filmagem. Era filha de artistas. Do convite para a filmagem, demoraram uns quatro anos. Na época do convite, eu tinha 11 anos. Mas até aquele dinheiro sair e levantar toda a estrutura, eu já tinha 14 pra 15 anos. Era uma personagem que não tinha nem nome. “A Fulaninha”, simplesmente um mistério total. No roteiro original, não se saberia nada sobre a vida dela.. DN: Ele te apresentou um roteiro? Mariana de Moraes: Eu tinha onze anos. Não me lembro bem. Mas me lembro que, na concepção original do filme, eu era simplesmente a “Fulaninha”. Você não sabia quem era o pai ou a mãe, e nem onde ela morava. Por sinal, ela não teria um namorado. Era uma menina de 11 a 12 anos, né? O David escolheu uma criança pra fazer esse filme. Só que quando ele foi filmar essa criança, ela já não era mais uma criança. Era uma adolescente. Eu já tinha um namorado. Já tinha transado, já não era mais virgem. Estava com espinhas na cara. Estava mais inibida. Foi então que ele mudou todo o roteiro pra fazer comigo. Ele inventou o personagem do namorado, que não existia. Até a mãe, interpretada pela Kátia D’Angelo, acho que não existia. No argumento original, eram apenas esses homens. E a Zaira Zambelli,

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que fazia a namorada de um deles. Mas a fulaninha era um mistério. Era literalmente um mistério. Acredito que ele fosse me filmar passando, me vendo conversar, na esquina. De longe. Acho que no argumento original, não se sabia absolutamente nada sobre ela. Todos aqueles personagens foram inventados em função da minha idade. Ele mudou o roteiro. Tem uma cena que alguém fala: “ela tá na farmácia, deve tá vendo remédio pra espinha”. Eu, nua, na cama com o namorado. Aquilo não existia. Todo esse roteiro foi inventado por causa da minha vida real. DN: E ele te perguntou sobre a sua vida para fazer estas mudanças? Mariana de Moraes: Não. Mas ele sabia. Ele frequentava a minha casa. Durante o período em que estava tentando arrumar o dinheiro, ele continuava frequentando a minha casa. A minha casa era muito frequentada. Minha mãe era uma pessoa acolhedora. Ele viu: “Ih, a Mariana arrumou um namorado!”, “Ih, agora a Mariana não tá mais... Tá começando a tocar flauta doce”, “Ih, a Mariana tá com espinha”, “Ih, Mariana, nasceu sua primeira espinha!”. Ele acompanhou as coisas assim, era um amigo próximo. DN: E como foi para você fazer esse filme? Mariana de Moraes: Um dia, ele veio pra mim e disse: “Mariana, o filme vai ser feito, finalmente! Eu continuo querendo que seja você. Só que você mudou muito e eu não sei se você ainda gostaria de fazer”. Na época eu estava virando uma ostra. Totalmente problemática. Eu não queria ser atriz, e já não queria aparecer tanto assim. Lembro do que passou na minha cabeça: “Puxa, talvez trabalhar com isso seja uma maneira de eu sair pra fora”. Aceitei fazer. Na verdade, eu acho “Fulaninha” um filme maravilhoso. É um filme que têm vários defeitos técnicos de continuidade. Uma hora apareço com o cabelo curto, outra com cabelo comprido. Tem uns erros bárbaros. Mas ele é tão bem feito, não é verdade? Numa época em que não estavam se fazendo filmes maravilhosos, e não se tinham bilheterias maravilhosas, nós tivemos um sucesso estrondoso. Eu tinha um recorte de jornal que mostrava que ficamos uns dois meses em cartaz no Cinema Leblon. Com o bonequinho aplaudindo. Houve uma enorme sacada de marketing do David. Além dele gostar de mim, ele achou que minha participação poderia dar certo. Assim que me escolheu, imediatamente, muitos atacaram ele: “Você é um porra louca! Como é que você vai botar essa menina, essa menina não é atriz...”. Eu era, de fato, uma ninfeta. Mas ele não lançou uma ninfeta, ele

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lançou a ninfeta neta do Vinicius de Moraes. Entende? Eu fui a grande jogada comercial do filme, digamos assim, entre aspas. Foi a grande sacada de marketing do momento. Eu sei que ele não me chamou por isso, mas... Ele teve a grande sacada. Naturalmente, queriam chamar uma menina da TV Globo, que já tivesse fazendo sucesso na televisão. Isso era uma coisa comum na época. Foi um resultado estrondoso, apresentar para o Brasil a neta do Vinicius de Moraes. Nem que tivessem pago mil outdoors e um milhão de publicidade, teriam o mesmo resultado. Foi uma sacada brilhante do David. Todos os personagens, a escolha dos atores, o roteiro, a intimidade que o diretor tinha com esse universo, com esses personagens. O fato de ser filmado tudo na esquina da casa dele... a gente não saiu realmente daqui. Ele é um filme tão... Ele é maravilhoso. É um filme maravilhoso, né? DN: Como foi o processo de filmagem do Fulaninha? Mariana de Moraes: A casa do David ficou sendo o lugar onde se guardavam as câmeras, e o equipamento de som, e o que mais de pesado tivesse. E onde a gente trocava de roupa, e se maquiava. Era o nosso camarim e uma espécie de depósito de equipamento. Não tinham deslocamentos monstruosos. Tudo que a gente fez foi na Prado Junior. E foi muito divertido. Os homens faziam papéis de uns caras que bebem à beça, então eles ficavam bebendo aqui mesmo, nesses bares. O Claudio Marzo estava um pouco fazendo um papel que ele conhecia. O personagem do Claudio é o David. Tem muita verdade no filme, né? Eu me lembro que o primeiro Festival que o filme passou foi em Gramado. E teve um debate. Foi o meu primeiro debate de Cinema na vida. E tinha umas pessoas na plateia que começaram a falar assim: “Mas eles falam muito palavrão”, “palavrão demais, muito palavrão”. E o David ficou todo orgulhoso porque eu respondi: “Mas, meu amor, é um filme com personagens que trabalham, que vivem no baixo meretrício de Copacabana, são cafajestes, você queria que cafajestes dissessem o quê? Poemas? Por favor, obrigada, meu bem... Que tarde encantandora, não? Eles falam “Porra”, “Caralho”, é o linguajar deles”.

encontravam no bar, né? Então enquanto se esperava, neguinho ficava aqui, bebendo e comendo e esperando. DN: Havia muito estímulo para o improviso? Mariana de Moraes: Total. Mas um improviso muito dentro da história. Ele sabia o que estava querendo fazer. Tinha um roteiro, e eram todos atores excelentes, muito bem preparados, muito experientes. Haviam falas escritas. O David escrevia muito bem. E não eram muitos takes. E ele quase não ensaiava. Não tinha muito o que inventar, né? Estavam todos muito bem no clima. Ele quis fazer tudo em um único lugar. Então, esteticamente esse lugar é esse lugar. A portaria do prédio dele. Há ângulos que se repetem, né? Eu passava na banca. O ângulo do ponto de vista deles era basicamente esse bar, ou aquele outro bar do lado do Cinema, que aliás foi onde foi a primeira projeção do “Fulaninha”. Foi naquele Cinema, que eu não me lembro mais o nome, na Prado Junior. Tinha um Cinema ali, entre essa farmácia aqui da esquina e a Barata Ribeiro, tinha um Cinema. Foi um filme barato. Tivemos deslocamento zero de carro. Carregava-se a câmera muito poucas distâncias. Era um filme bem barato. As filmagens dentro de apartamento demoraram um pouco mais, pois tinha que iluminar. Mas a maioria eram externas, né?

DN: O David dava esse tipo de instrução pros atores? Mariana de Moraes: Não. Eu acho que ele fez tudo de um jeito quase que teatral. Ele trouxe todo mundo pra cá e fez um laboratório. Só que durante a filmagem, que já era um laboratório, entende? Ele era amigo de todo mundo aqui, dos porteiros e das putas. Naquela época não se ensaiava. De uma certa forma ele convidou amigos. Eram todos atores amigos. Esses amigos se

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PAULO THIAGO *foi produtor de Fulaninha (1986) e codiretor de Museu de Ouro (1974) DN: Primeiramente, gostaríamos de entender como você entrou em contato com o David Neves. PT: Existe um certo folclore em torno do David Neves. As pessoas costumam dizer: “o David Neves é incrível, o David Neves era muito legal, etc.”. O David Neves era integrante do Cinema Novo. Era do núcleo duro do Cinema Novo. Basta dizer que o David Neves morava em frente à Rua da Matriz, onde morou o Cacá Diegues. E foi lá que começaram os encontros do Cinema Novo do Rio de Janeiro. O primeiro filme do Carlos Diegues, o Domingo, foi fotografado pelo David. Então, eles criaram uma irmandade, uma amizade forte, antes mesmo da chegada do Glauber Rocha. No entanto, o David nunca se enquadrou dentro do esquema político/social maior do Cinema Novo. O gosto cinematográfico do David sempre foi mais intimista. Era um rapaz que admirava Bresson, um pouco do Antonioni. Truffaut, por exemplo, se tornaria um grande amigo e David adorava seus filmes. Me lembro de conversarmos muito sobre Bresson, o David adorava Pickpocket, adorava Nicholas Ray e seu Johnny Guitar, adorava Resnais. Este cinema da emoção, da delicadeza, da feminilidade. Eu acredito que, dentro do Cinema Novo, o cineasta que o David mais admirava era o Joaquim Pedro de Andrade, por causa da estética intimista do O Padre e a Moça. DN: E como foi a sua relação inicial com o David e o Cinema Novo? PT: A patota do Cinema Novo era uma patota muito forte, extremamente unida. O que significa que era difícil se relacionar com eles. Especialmente para a minha geração. Nós éramos cinemanovistas. Começamos a gostar de cinema junto deles, mas eles eram muito fechados entre si; eram pessoas que se gostavam, que se autovalorizavam e se autopromoviam. O David Neves era um crítico, um propagador, talvez até mesmo um lobbista, já que tinha uma relação com o Itamaraty. Quando eu conheci o David, ele andava de terno e gravata, com uma pastinha estilo james bond na mão... Daí, o David fazia todo um lobby internacional promovendo o Cinema Novo no mundo. Mas ele tinha uma característica dentro desta conjuntura do Cinema Novo que era bastante diferente. Era uma pessoa muito generosa. Por isto, ele se aproximou muito da geração mais nova.

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DN: Mas ele foi o único a procurar esta aproximação? PT: Foi um pouco sim. Ele e, de alguma maneira, o Gustavo Dahl. Ambos eram pessoas muito abertas. Apesar de eu ter conhecido a todos do Cinema Novo, e ter, inclusive, trabalhado como assistente em Capitu, do Saraceni, O David tinha esta coisa de buscar se relacionar com as pessoas mais novas. Foi então que, nos anos sessenta, aconteceu o “Festival Jornal do Brasil de Cinema”, o famoso Festival JB. Nós éramos uma turma: eu, Haroldo Marinho Barbosa, Sérgio Santeiro, Antônio Calmon e o Eduardo Escorel - embora o Calmon e o Escorel tenham encontrado, desde cedo, relações mais profundas com o pessoal do Cinema Novo através do Glauber Rocha. O David Neves participou do Festival JB: ia a todas as sessões e, acabou se transformando em uma ponte entre nós e a organização do Festival. Ele começou a nos auxiliar e incentivar internamente; fazia a intermediação com o Alex Viany, defendia filmes, trazia informações sigilosas pra gente: “o júri lá gostou mais deste filme, deste” e coisas do tipo. Ele ligava para nós. Nos procurava. Assim, mantinha uma relação muito legal. Para se ter noção da troca entre o David e a nova geração, ele entrou como co-produtor do primeiro curta-metragem que eu realizei, chamado A Criação Literária de Guimarães Rosa. DN: E como isto aconteceu? PT: Eu nunca vou me esquecer. Estava na passeata dos Cem Mil. E ele apareceu. Chegou perto de mim e disse: “Escuta, Paulo, você gosta muito do Guimarães Rosa, não é? Eu tenho como arrumar algumas latas de filme no Itamaraty e, com isto, você faz o filme”. DN: Então foi ele que puxou isto para você? PT: Ah, sim. Ele foi o produtor do filme. Foi ele quem me indicou o fotografo, um cara que ele conhecia lá de Belo Horizonte. Tinha um padre em Belo Horizonte ligado ao cinema, o Padre Massote, fundador da Escola de Cinema da Comunicação. Ele indicou o fotógrafo ao David, e o David o indicou a mim. Enfim, ele já sabia deste meu desejo de realizar algo sobre o Guimarães Rosa. Nós conversávamos muito sobre isto, principalmente depois do Festival JB, onde passou o meu curta Memória e Ódio, que ele adorava. DN: E depois desta experiência? PT: Um belo dia, o David bateu na minha porta. Falou que eu gostava de literatura e de escrever roteiros. Então, me apresentou o roteiro de Memória de

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Helena, escrito pelo Paulo Emílio Salles Gomes a partir de um argumento dele. O David me pediu para fazer uma revisão do roteiro; que eu visse e dissesse o que eu gostava. Fiz este trabalho para ele, e nos demos bem. Após isto, houve um concurso do Ministério da Cultura para desenvolver um curta-metragem que ganhei. O projeto se chamava Museu do Ouro. Não me lembro como, mas o David se envolveu com aquilo. Ele chamou um poeta, que acabou escrevendo o texto deste documentário. Fui então filmar meu longa-metragem, o Duelo, e acabei deixando o curta-metragem na mão dele. Foi ele que finalizou o curta-metragem. Com o passar dos anos, continuamos muito amigos, se encontrando e conversando frequentemente. O David tinha uma visão cinematográfica muito rica. Era um cineasta bastante rígido. Ele assistia o que eu estava fazendo, e comentava criticamente. Depois que ele foi morar lá na Prado Júnior, começou a ter um período de mais esbórnia. DN: Parece-nos que este período difere bastante do anterior. PT: Muito. O David Neves que eu conheci não era um frequentador de bar. Era um cara de terno e gravata. Quer dizer, este período de esbórnia e bar foi posterior. Se você olhar o Memória de Helena, você percebe que é bastante diferente dos outros filmes que ele realizou. É um cinema rigoroso, orgânico, até bressoniano. O que é bem diferente do que ele irá realizar depois, quando começa um novo ciclo a partir do Muito Prazer. O Muito Prazer ainda preserva um pouco do intimismo dele, mas Luz del Fuego já é outra coisa. Foi nesta época que o Moletta se aproximou de mim, e me falou sobre A Fulaninha. Ou melhor, chegou até mim um recado do Moletta me convidando para produzir o filme. Eu estava trabalhando com produção naquele momento. Tinha produzido um filme do Haroldo Marinho Barbosa, o Engraçadinha. Alias, o David Neves aparecia nas sessões de montagem de Engraçadinha. Ele era quase um irmão mais velho da gente. Eu acho que minha geração deve muito à generosidade do David. Quando ele me procurou para falar do Memória de Helena, eu tinha vinte anos. DN: E Fulaninha? PT: Assim como no Memória de Helena, o David Neves apareceu na minha casa. Disse que queria fazer Fulaninha e trouxe o argumento base, que eu acho que foi escrito pelo mesmo cara que depois fez com ele o Jardim de Alah. Ele perguntou se eu não gostaria de entrar e participar. Eu aceitei, peguei um ca-

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derno e fui bater na casa dele, na Viveiros de Castro. Eu falei: “David, vem cá. Vamos em todos os lugares que você bolou esta história, onde você viu esta menina, por que este filme é a sua cara”. Então fomos de locação a locação. Anotei tudo e fiz um roteiro. Ele adorou. Mas, depois, fiquei inseguro de produzir alguma coisa em cima de algo que eu mesmo havia escrito. Então, na hora de produzir, chamei o Haroldo Marinho Barbosa, que também assina como roteirista, para fazer a versão final do roteiro. Eu nunca me esqueço de como o David criava. Me lembro, caminhando com ele pelas locações, de já estar vendo esta filme já na minha frente. Nós fomos juntos e contratamos a Mariana de Moraes para fazer a Fulaninha. Foi uma ideia dele. E ele sorria, feliz, dizendo que este filme era muito barato, que este filme “não tinha Kombi”. Eu perguntei como é que não havia Kombi. E ele dizendo que ele morava logo ali, que as cenas eram na esquina da casa dele. DN: Nós fizemos o caminho das locações com a Mariana. E, realmente, era tudo muito próximo. PT: Era, mas não era. Acabaram que tiveram Kombi, como também quase não teve portaria. Por que você vai filmar em uma portaria e é sempre difícil, as pessoas precisam ir e vir, dificulta muito o fluir da filmagem. Resultado da história: ali na Prado Júnior, existiam umas lojas de automóvel, que não sei se ainda existem, e nós fomos obrigados a alugar este espaço e fazer portarias, construir portarias! Nós fizemos umas três portarias, tivemos de misturar portarias reais com portarias construídas nestes espaços. Como o David estava passando por um período relativamente anárquico, pós-Luz del Fuego, eu pedi auxílio ao Marco Antonio Cury, assistente de direção e montador, que se tornou uma figura fundamental no Fulaninha. Ele auxiliou na decupagem, na construção dos movimentos de câmera. Tem uma história muito engraçada: o Moletta um dia me ligou desesperado. Ele disse: “Paulo, esta filmagem do David está uma loucura. O pessoal fica o dia inteiro no bar, está uma bagunça. Você vai lá por que você vai impor uma moral em cima do David...”. Eu não entendi direito mas eu fui lá. Chego lá e, bom, estava tudo funcionando maravilhosamente! O David, o Marco Antônio... tudo indo bem! Eu cai na gargalhada. O David estava brincando com o Moletta. Eu falei: “Te enrolou...”. E ainda tinha a questão das homenagens... DN: Que homenagens? PT: Ah, o filme era repleto de homenagens. Homenagem ao Joaquim Pe-

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dro, homenagem ao Glauber, homenagem ao Alexandre Eulálio, etc. E ele fazia sessões privadas para estas pessoas, para poder mostrar o filme e a homenagem. Então, o Marco Antônio Cury chegou para mim um dia e me disse que eu tinha que conversar com o David. Por que o Marco Antônio não conseguia chegar ao corte final, já que as homenagens estavam empacando o ritmo. Era homenagem até dizer chega. Eu era sempre chamado para dar uma conversa pessoal com o David, por que eu entendia de onde ele estava vindo. Então, eu falei com ele sobre estas homenagens. À princípio, ele não queria tirar, e eu entendia. Mas, então, eu falei para ele que, de certo modo, ele já tinha mostrado a homenagem para todos os homenageados nas sessões privadas. Ele concordou na hora, virou e mandou o Marco Antônio mudar o filme! Enfim, eu adoro o filme. Aquele plano inicial... DN: Sim, é um plano impressionante, realmente marcante. Como ele foi realizado? PT: Aquele plano foi feito com uma grua no meio da Prado Júnior. Foi ideia do David, ele queria começar o filme daquela maneira. Ele dizia: “vou começar o filme com o plano daquelas árvores que é uma coisa, depois a câmera abre e mostra outra, completamente diferente, que é este mundo da Prado Júnior”. Não parece Copacabana. Parece outro lugar. Era um pouco esta a visão poética do David. Eu considero Fulaninha uma fábula, e não um filme realista. Não existe esta coisa crua, documental, este desejo de mostrar a “realidade” brasileira. Ele não estava nesta. É um filme lírico. A fulaninha realmente existiu... DN: Existiu? PT: Sim. Ele me levou exatamente nos locais onde eles viam a Fulaninha. Os bares onde eles a viam passar. Nós fomos atrás da fulaninha. Era uma menina bonita que passava, e todos comentavam. Uma espécie de “Garota de Ipanema”. É um filme biográfico, entende? O filme é a cara do David Neves. O David era um cineasta diferente. Era alguém que trabalhava a partir do afeto, da aproximação, da intimidade. E falava constantemente do universo feminino; o que é raro dentro do cinema brasileiro, principalmente na época. A maneira como ele falava, a delicadeza. E ele também foi um formador da gerações. Ele participava, indo nos sets, nas salas de montagem. É muito importante que se lembre disto.

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JOEL BARCELlOS * foi ator coadjuvante em Memória de Helena (1968), Luz del Fuego (1981) e Jardim de Alah (1988) JB: Creio ter sido no bar da Líder. Na rua Álvaro Ramos. Era lá que todos nós nos reuniamos. Depois, quando eu fui à Europa, trabalhar no cinema europeu, eu o reencontrei lá em Roma. Os italianos diziam que ele era il critico. Ele, il critico, o Antônio Carrilho era il consul e o Glauber era il regista. Os três viviam juntos por lá. Foi então ele me veio me tirar do pau de arar para fazer um romance, o Memória de Helena. DN: Por que diz isto? JB: Por conta de Os Fuzis. O Glauber dizia que eu nasci para fazer o papel de nordestino. Cangaço. E o David Neves veio e me dá um papel de galã em Memória de Helena. Minha aparição é pequena, mas muito importante, já que causa uma mudança profunda dentro da personagem principal, a Helena. Por coincidência, alias, a pessoa que faz a Helena Morley, a Rosa Maria Penna, era, na época, namorada do Glauber Rocha. Me lembro que eu li todo o romance1, eu era um ator super caxias, sabe? Eu fui para Diamantina, eu adorei lá, que locação bonita. O David confiava muito em mim e eu sou muito grato a isto. Ele não tinha muitas exigências comigo. DN: Mas ele te dava muitas indicações? JB: Sim, claro. Mas ele não era um diretor de ficar pegando no nosso pé, compreende? Ele, quando repetia, ia no máximo duas ou três vezes. Ele confiava por que eu tinha muita experiência já. Na época, eu fazia dois filmes por ano. Eu trabalho desde 1964, então já tinha passado por O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965), A Falecida (Leon Hirszman, 1965), Copacabana me Engana (Antônio Carlos Fontoura, 1968). Além disso, eu era um ator muito exigente, não fazia mais do que dois filmes ao ano, de modo a me dedicar. Mas, ao mesmo tempo, era já um ritmo que eu conhecia, que era o jeito do Cinema Novo. A gente sentava, botava o roteiro na mesa, os atores discutiam com o diretor, dávamos palpites. O diretor acatava ou não, mantendo o conteúdo geral da obra. DN: Memória de Helena foi realizado em 1967. Depois, você e David só trabalharam juntos novamente em Luz del Fuego, já na década de oitenta.

1 Memória de Helena foi livremente inspirado no livro Minha vida de Menina, de Helena Morley, publicado pela primeira vez em 1942. O livro foi muito bem recebido e criticamente aclamado por literatos como Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa. O livro recebeu análises profundas do crítico Alexandre Eulálio, primo de David e razão pela qual o diretor travou contato com a obra de Morley. (N.E)

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Como foi a reaproximação? JB: Luz del Fuego tinha muito mais gente. Mas, eu mesmo, apareço mais para o final, assim como em Memória de Helena, após o momento que Luz abandona o teatro e resolve morar na ilha. É na ilha, ou através da ilha, que ela conhece o Canário. Eu tinha a maior admiração pela Luz del Fuego. Ela era uma mulher fantástica, revolucionária. Eu fiquei muito, muito feliz em ser selecionado para fazer o papel do derradeiro amor de sua vida. Eu a seguro no colo como uma filha. A Lucélia era pequenina. Na verdade, não era para ela fazer a Luz del Fuego, já que a Luz era cadeiruda, mulherona. Mas a Lucélia fez questão de fazer o filme, por que, como eu, era também louca pela Luz del Fuego. Quer dizer, ela ligava para o David, implorou para fazer o papel. Ela foi maravilhosa. DN: E como foi a construção do personagem do Canário? JB: Eu mesmo, como se pode ver, moro em uma vila de pescadores. Eu tenho muito trato com o mar, com puxar um barco, com o modo de agir. Me lembro da parte final, quando eu canto a música Juizo Final. A vitória do bem sobre o mal. Eu grito lá em Paquetá, e foi um grito tão forte que ecoou lá em Mauá, eu atravessei a Baia de Guanabara. Por que ele vai preso, entende? Ele está até hoje na cadeia, o assassino. Mas o David discordava disso, não acreditava que o Canário era o assassino, e sim os pescadores que a Luz del Fuego denunciou por pesca cativa, pesca nociva, de jogar dinamite para pescar peixe. DN: Isto foi um dos pontos centrais do personagem, do David querer que ele seja inocentado? JB: Sim, ele falou, ele sabia que não era o Canário. Ele discorda da versão oficial. Na oficial, é o Canário, foi ele quem pagou o pato. DN: Em nossas pesquisas, descobrimos no CTAV um programa de televisão realizado através da Embrafilme, dirigido pelo David Neves. O programa chama-se Cinema e Futebol. JB: Vocês conhecem isto? Nossa. Foi logo depois do Luz del Fuego. Isto ocorreu por conta de um filme que eu havia feito com o Gianni Amico, que era muito amigo do David Neves. O nome do filme era O Inquerito, e o roteiro era do Bernardo Bertolucci. Nele, tinha uma sequência em que eu apareço fazendo uma mímica, jogando futebol. Eu brincando com uma bola imaginária, travando no peito, colocando no chão, dando drible da vaca na cadeira, na mesa. Meu

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personagem era meio alucinado, de um brasileiro que conquista a mulher de um milionário italiano e é internado, o milionário manda interna-lo. O David adorou a cena. Em lembro que, no filme, o Gianni colocava a música “País Tropical”, do Jorge Ben, para acompanhar. DN: O David faz a mesma coisa. JB: É mesmo!? Então, é isto! É uma homenagem ao Gianni Amico. Eles se adoravam. O David apareceu um dia e filmou de forma livre. “Faz uma embaixada”. Deve ter, depois, encaixado isto no programa como forma de homenagem secreta ao amigo. Ele fazia estas coisas. DN: Jardim de Alah? JB: Me lembro que ele me fez andar de motocicleta. Imaginem, eu não sei dirigir motocicleta. Ele filmou dentro de um caminhão, colocando a câmera baixa. Então, eu apareço dirigindo, fazendo tráfico de drogas. Aquela brincadeira do “Michael Caine” do filme. Eu tenho muita gratidão a ele neste filme. Por que o David vivia naquele bar, o Santo Expedito, que até hoje existe na Prado Júnior. Eu, um dia, fui lá de manhã e me encontrei com eles, o David e seus amigos. Todos estavam bebendo e eu resolvi acompanhar, enchendo a cara. Eu acho que fiquei três dias bêbado com o David naquele bar. Então, meus deus, foi o único filme que eu fiz embriagado. Quando eu fui ver o copião, eu não aguentei. Por que tudo o que eu conseguia olhar era aquela minha cara amassada, de bêbado, horrível. Eu pedi ao David que tirasse aquela minha cena, que era uma cena de cama com a Françoise Forton. O David, muito delicado, me disse que não, que eles iriam era refazer a cena. Imagina, chamar cenário, figurino, atriz. Foi uma grande delicadeza por parte do David. Uma coisa boa foi quando eu fiz a cena novamente com a Françoise Forton e ela disse: “Mas é um outro homem!”. Sóbrio, é diferente. Não dá pra trabalhar embriagado, não dá. DN: Você chegou a conviver de forma cotidiana com o David? JB: Como eu disse, eu ia muito ao Santo Expedito. O David era um diplomata, educadíssimo, incapaz de falar alto, um piadista fantástico, cheio de piadas mineiras engraçadas. Ele era muito engraçado. Tinha um humor sutil, muito sutil. Acho que se percebe isto nos filmes, a sua delicadeza. Quer dizer, ele não mata a Luz del Fuego, não tem coragem de mata-la.

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DN: Quase todos os seus filmes são sobre personagens femininos. JB: Ele era apaixonado pelo universo feminino. Pelo mundo feminino. E as mulheres também eram apaixonadas por ele. Ele era muito querido. Me lembro do Jacaré, por exemplo. O David tinha muitos amigos e o Jacaré era um deles. O Jacaré era um mendigo que dormia debaixo de uma marquise na Nossa Senhora de Copacabana. E o Jacaré almoçava com o David, o David pagava o almoço dele. Mas, o que é mais interessante é que o David era amigo também de um ex-governador de Brasília, que era um político mineiro, da turma do Stanislaw Ponte Preta e do Antônio Maria. E este meu amigo, com sua limusine, ia lá com seu motorista falar com o David Neves no Santo Expedito. E o David falava com ele, enquanto almoçava com o Jacaré. De um lado, o político. Do outro, o lupen, o mendigo. DN: O David parece ter esta rara especialidade de se dar com que encontrasse, de se adaptar e transformar os espaços onde convivia. JB: Sim. Mas existia o lado “B”, também. Como a história do Pudim.

2 Curta-metragem de Glauber Rocha, rodado em 1977.

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DN: Qual história do Pudim? JB: Não conhecem a história? Bem, o Pudim2 ganhou certa de 700 mil dólares da Petrobrás. Então, ele alugou uma cobertura, uma suíte presidencial do Hotel Ouroverde. Mas o Pudim não alugou para ele, ele alugou para todo mundo. O David resolveu basicamente morar lá. Então, o Tininho, que era diretor de produção do Nelson Pereira dos Santos, me ligou pedindo auxílio, por que as pessoas estavam lá dentro em uma esbórnia total, ninguém querendo sair. Tinha de tudo: pó, maconha, bebida, e, ainda, basicamente todo o prostíbulo do Leme. Quer dizer, todas as meninas que faziam programa no Leme foram ao apartamento. Imagina, era uma suíte presidencial toda paga. Como eu sempre fui mais caxias e não usava nada, o Tininho acreditou que eu pudesse entrar lá e conversar com eles, de modo a tirar todos de lá. Bem, eu fui. Quando eu entrei, eu senti um ambiente cinza, um ambiente pesado, mulheres dormindo na cama e eles cheirando e bebendo. Uma esbórnia. Então, eu falei com o Pudim, que foi produtor do Nelson Pereira dos Santos e do Di-Glauber. Tentei dissuadi-los, acorda-los, sabe? Eu vire uma noite com eles lá, conversando, buscando convence-los a abandonar aquela loucura. Enfim, eu não consegui. Me lembro que logo antes de eu sair, eu virei para o

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Pudim e disse que eu estava duro, precisando de uma ajuda. Ele me deu 1500 dólares. Fez um cheque e me deu. Depois, quando eu estava trabalhando na Globo, ele já tinha estourado o dinheiro todo. Eu o encontrei no Santo Expedito, bebendo cachaça, triste. Cheguei perto e perguntei o que houve. Ele estava sem dinheiro algum. Então, eu puxei um cheque e lhe devolvi 1500 dólares. DN: Mas você sabe quanto tempo eles ficaram presos naquela suíte presidencial? JB: Até, mais ou menos, 700 mil dólares. Quer dizer, imagina, era 1989/1990. Era o fim da ditadura, o fim da repressão. Mas as coisas estavam difíceis. Difícil fazer filme. Tudo parado, parando. Fim de uma era. Era difícil para eles. Muito. Talvez fizeram pela esbórnia, talvez fizeram como um ato de desespero. Eles eram bastante ou é tudo, ou é nada. DN: E a fase final da vida do David? Você, por acaso, foi visita-lo, acompanhou este momento? JB: Sim. Eu o acompanhei durante a doença, depois que ele pegou, bem, a peste3. Eu sempre ia visita-lo, conversava com ele, lia os jornais da manhã. Me lembro que, quando piorou muito, foi morar novamente na casa da mãe, na São Clemente. O Fernando Sabino foi, também, um grande amigo e um grande apoio para o David. Foi o Fernando que pegou o David e o levou para fazer uma transfusão geral de sangue, como um último recurso, entende? Para ver se conseguia salvar o David. O Fernando se esforçou demais, gostava muito do David. Eu sinto muito as duras perdas que eu tive em minha vida, e o David Neves foi uma das mais importantes. Pela amizade, pelo carinho. Imagina, nunca tivemos uma única discussão. Política, então, nunca. Não discuta política, não fique discutindo política. “Por grandes ideologias, se perde grandes amigos. Por grandes amigos, se perde grandes ideologias”. Ele que dizia isto. E Hoje, eu penso: que frase profunda.

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3 David Neves morreu em decorrência de complicações através do virus da Aids. (N.E)

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Duas peças de Bach Uma coisa suave que existe ainda neste mundo de rispidez e desconforto é este coral sublime de J. S. Bach: “Jesus alegria dos homens”. E outra, o “Siciliano”, da Segunda sonata para cravo e flauta. Aliás, Bach prima pela suavidade (mais do que Mozart, outro apaziguador nosso) fluente que lhe jorra das composições tanto explícita como implicitamente. A primeira peça traz-nos uma estabilidade interna tão grande que nos leva às mais variadas meditações, podendo também nos conduzir a maravilhosas transformações. A segunda, além desta estabilidade – em intensidade menor -, faz-nos meditar sobre o gênio do compositor de Eisenach. Ambas são estreitas variações sobre o pequeno tema, o que, se não evita a redundância, causa um efeito imprevisível, resultante direto dessa mesma redundância. Mas o principal sintoma, causado pela primeira peça, é o do sentimento de fraternidade a que ele nos incita. Este é o ponto de partida para outros, nele refletidos, que do ponto de vista cristão é mais útil do que uma verdadeira catequese. O coral “Jesus alegria dos homens” é de uma pureza que nos toca os sentidos. Sua melodia comove e exalta, recoloca-nos dentro de nós mesmos. Seu tema nos induz à caridade, ao amor; nos rememora a mesma infância cuja simplicidade vai até o exagero. Outra característica essencial é a celestialidade que ele proclama. O “Siciliano”, por sua vez, restringe-se mais ao terreno (no sentido em que não é celestial) do que ao metafísico. Apesar do andamento ser acelerado, é dolente o desenrolar da melodia. É então que nos comove a genialidade de Bach. Parece-nos mais um pranto do compositor. Ele nos força à introspecção pela tristeza evocada e assim ficamos concentrados até que, de volta em volta, um acorde diferente, mas típico, nos adverte que despertemos; porque realmente, daí a pouco, esvai-se a última sílaba musical. Se acordamos de uma letargia triste e comovente, quase chegada às lágrimas, se nos havíamos recolhido o mais possível para captar esta mensagem invisível, mas tão bela, ficamos chocados com a realidade. Há agora um silêncio material, seco e ríspido. Não como havia antes, aquela profundidade silenciosa de Bach. 1 Em inglês: “Depois do silêncio, o que mais chega perto de expresser o inexprimível é a música. (E, significativamente, o silêncio é parte integral de toda boa música…)”.

dois exemplos aludidos, ver a que ponto lhe era sincero e franco, simples e cordial este “inexpressível”. Nosso espírito faz o possível (e o impossível) para adaptar-se à música ouvida. Ao fim do coral bachiano, voltamos ao mundo ensurdecedor, vindos como que de um outro universo. Bach nos enleva e nos conduz à mais profunda experiência interna. Temos a intuição, desde o início, do seu convite à meditação.

“After silence, that which comes nearest to expressing the inexpressible is music. (And, significantly, silence is an integral part of all good music...)”1, nos ensina Aldous Huxley no ensaio (que eu chamaria artigo) “The rest is silence”. A própria música é uma experiência interna, auxiliada, naturalmente, pelo exterior. Sendo, então, a música “expressão do inexpressível”, em Bach podemos, nos

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Relações Internas Embora surjam, invariável e intermitentemente, processos que visam à tridimensionalização do cinema, seu período vital é insignificante porque, conhecida a novidade, o interesse geral retorna aos moldes clássicos e constantes da tela plana. De todas as tentativas modernizadoras, o cinemascope foi o único que manteve (e, ao que parece, não mais perderá) um atrativo mais intenso (talvez pela facilidade de adaptação ao grande público). Tudo isto se explica por uma razão muito simples: o cinema já é, em si próprio, uma arte tridimensional. E estas frequentes investidas nada mais desejam do que inserir-lhe uma nova (e acessória) dimensão – a da sensação palpável de profundidade. Tal tridimensionalidade inerente ao cinema, de que falamos, refere-se, claro está, às três medidas geralmente difundidas e, na última idéia de profundidade, agrupam-se ainda inúmeras outras que, não fora a síntese proposta, trariam à sétima arte um caráter polidimensional. Incluem-se, portanto, nesta noção, inicialmente sua principal característica, aquela de proporcionar o cinema ao espectador uma verdadeira universalidade de lugares, que varia unicamente de acordo com a vontade do realizador, ou com as necessidades da obra filmada. Semelhante latência espacial é importantíssima e, através dela, o cinema cria as mais diversas atmosferas, no mais exíguo dos ambientes. À guisa de exemplo, lembramos os efeitos magistrais obtidos por Bresson e Hitchcock em Un condamné à mort s’est échappé e The wrong man, respectivamente. A noção típica de profundidade faz parte também do grupo principal dos acessórios desta latência. O efeito acarretado pelas objetivas de foco curto requer, para sua definição mais adequada, certa largueza espacial (sua difusão provém, como já vimos, de Orson Welles e William Wyler). Há, igualmente, atrás da variabilidade das extensões cinematográficas, um profundo desentendimento com o real. Mesmo nos filmes ditos realistas, a relação espacial através de uma ordem de planos é produto direto dessa capacidade cinematográfica. Não se tem nunca, nem mesmo nos planos gerais, a noção fiel das diversas relações espaciais. A intenção do cinema funda-se na fixação a um determinado local. A correlação entre dois ou mais ambientes corre por conta da imaginação (nossa percepção fica determinada pelas normas da lógica tout court) do espectador. Por exemplo: nada haveria de anormal

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(para os desconhecedores) se, num filme, um indivíduo subisse à torre Eiffel e de lá vislumbrasse o Pão de Açúcar e todo o contorno da baía de Guanabara. A funcionalidade cinematográfica neste ponto realiza-se, não objetivamente na tela, mas na pessoa do assistente.1 O cinema realista começa, portanto, de um pressuposto falso de realidade. Porque, de um modo geral, o seu realismo espacial não é verdadeiro e tem caracteres de virtualidade. Para haver comprovação de uma ordem legítima e lógica de lugares, durante a movimentação dos personagens numa película, seria necessária minuciosa sequência elucidativa de planos gerais e de grandes planos que nos dessem, dela, uma ideia segura. Mas isto é quase impossível. A montagem influi na questão, pois facilita o reconhecimento mais completo (e até repetido) através da sucessão de planos. Vai ser, porém, pelos movimentos de câmera que mais nos aproximaremos de uma tomada de consciência da realidade. Acreditamos sinceramente nesta capacidade dos travellings e panorâmicas, por meio da qual um lugar é reconhecido em relação a outros, quando a verificação se faz meticulosa. Mesmo neste setor, porém, estamos reduzidos à constatação de gênero particular. Quase todos os filmes de Max Ophuls exemplificam nossas palavras. Nos casos em que a descrição espacial torna-se necessária, apela-se então para os planos fixos e curtos. No cinemascope, a atração do processo ainda reside na amplidão longitudinal da tela. Desde o seu primeiro êxito – Bad day at black rock de John Sturges – este fascínio tem-se mostrado cada vez mais sensível. A overture do filme, à qual se sobrepõe os títulos, é o prenúncio do predomínio da envergadura cinemascópica.2 As primeiras utilizações em profundidade, válidas, do sistema anamórfico, deram-se com Sait-on jamais e Lola Montès, havendo também, a rigor, certo virtuosismo em Forty guns e House of bamboo, de Samuel Fuller3. Este último filme é menos um policial (o tema é banal e “organiza-se” com o transporte das ações para Tóquio) do que interessante advertissement turístico. A tela ampla favorece, por outro lado, sintetizações espaciais que evitam a presençaa constante e obrigatória da elipse. O insignificante Cette sacrée gamine, de Michel Boisrond, apresenta nos momentos finais, em que são convocados diversos amigos para exterminarem uma quadrilha de ladrões, todos os chamados telefônicos subsequentes no mesmo plano, com a progressiva iluminação de diversas partes do écran4. O enquadramento colabora amiúde para uma transcendência do mero valor estético da imagem, dando-lhe funções outras, como a psicológica. Em decorrência, veremos que geralmente a câmera em

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1 Seria interessante lembrar aqui a relação que o exemplo mantém com os resultados da famosa experiência de Kuleshov. 2 Tomada do alto, em plano afastado, a cena de um trem correndo pelo deserto. A câmera acompanha o avanço da composição. A linha férrea corta a tela de um lado a outro. 3 Outros filmes nos quais revelase a utilidade do cinemascope: Oh! For a man e The girl can’t help it, de Frank Tashlin, Bonjour tristesse, de Otto Preminger, East of Eden, de Elia Kazan, etc. 4 Feuillade já havia feito, em 1912, com Le Nain, repartição semelhante da tela, por ocasião de um chamado telefônico.

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5 Tratamos, no momento, de relacionar o suspense ao espaço cinematográfico. Há outros elementos, que não nos interessam aqui, colaboradores para o acréscimo do efeito suspensivo angustiante: obstáculos, imprevistos etc. 6 O uso disseminado da solução temporal através das fusões causou alguma discussão na época em que God’s little acre foi exibido. No filme de Anthony Mann há uma passage em que a investida do personagem (Aldo Ray) sobre uma das filhas (Tina Louise) do proprietário do rincão (Robert Ryan) é levada a cabo por meio de sucessivas fusões, cujo efeito não confere com o que se deduz após a complementação da sequência. Sobre o emprego extra-temporal das fusões, vale lembrar os nomes Orson Welles e Citizen Kane.

plongée pode fazer uma subjetivação evocadora de superioridade (de maneira inversa, a posição de contre-plongés significa subserviência etc.). É muito comum a identificação dos dois conceitos bastante diferentes que são tempo e espaço. (Ouve-se aqui e ali a expressão espaço de tempo, e esta talvez seja a prova “popular” de sua permanente confusão). No cinema ela existe e se subordina a certos fatores cuja essência lhe necessita a presença invariável. Em filmes de suspense não se pode distinguir um do outro. Voltemos outra vez a Un condamné. É incontestevel o fato de contarmos, no íntimo, em termos de espaço (aquele que o separa do último muro), os minutos de que necessita para libertar-se. E vice-versa. Disto, deduzimos que o suspense cresce na razão direta do acréscimo espacial. Mas esta variação é simplesmente quantitativa.5 De toda descrição minuciosa de um lugar decorre sua integração no conteúdo da trama. Filmes típicos de introspecção podem ser realizados por meio de um apoio na funcionalidade da influência do espaço. Sua utilização mais poderosa está neste paradigma superior de filme intimista que é La Passion de Jeanne d’Arc, de Carl Dreyer, onde todo o caráter de extensão se encontra fundido no de intensidade. (Espacialidade facial significa a temporalidade do espírito). As fusões ou sobre-impressões são processos com os quais também se visa à exploração dos âmagos anímicos e, por isso, temporais. Um fundido encadeado precede sempre a manifestação da memória, nas evocações do passado. Memória, para nós, não passa de um meio de realização indireta da (porque certas rememorações nos produzem em primeiro lugar, efeitos afetivos) recherche do tempo. Existem porém fusões que não têm este valor retroativo e se constituem em meros processos retóricos para a passagem de um plano a outro.6

Diário de Luz Del Fuego I I Pânico em Paquetá Meu deus, tem um bicho rodando em cima da minha cabeça, tenho medo que ele me morda, mas ele não vai se o Paquetá não permitir. Ele também tem medo, muito medo, mais que eu – *** 14.6.81 A escolha da Ilha do Sol foi uma das primeiras odisseias da preparação de Luz del Fuego. A possibilidade com que nos brindou Lucélia Santos unindo o papel título com garra e empenho deixou para um plano muito longínquo a preocupação que me assaltava anteriormente. Fiz algumas incursões à legítima ilha e confesso não ter podido ocultar meu deslumbramento documental. Aquelas minhas eternas preocupações ficcionais e a intenção prévia de glamourizar este filme com intuitos de comunicação foram por água abaixo nas visitas àquela ilhazinha compacta, homogênea e, sobretudo, confortável. A casa original de Luz, na sua arquitetura niemeyeriana, sua claridade interior, sua permanente circulação de ar, seu duplo aspecto de conservação e decadência (necessário na sequência 55), tudo isso trazia um sintoma de concentração que foi por água abaixo com o abandonar da locação, em virtude do preço exorbitante e incompreensível cobrado pelo novo concessionário. *** 14.6.81 Visita de Marco Antônio Cury, Neville e Liége O Homem das cobras, Noel de ------ tem acompanhado a Virgínia, Jiboia de estimação da nossa Lux (Lucélia Santos). Noel é correspondente corresponde ao ator Marco Antônio Soares (Agildo) por sua(s) permanente(s) intromissão(ões) nas filmagens, nos ensaios, etc. A comparação é excelente, é até pérfida mas é o que acontece – ninguém é perfeito! Noel é um grande curioso especialista – Marcos um ator enciumado (no bom sentido da emulação). Este último guarda grandes cargas de histórias,

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mesmo conservadoras seguramente prum filme s/ Luz Del Fuego que ele concebeu e conservou na cabeça o Glamour que quero adicionar, como ficção, ao documentário que estou finalizando. Luz Del Fuego está longe da concepção perceptiva que me propõe os atores (e outros) – mas que serão orquestrados na montagem final, à minha revelia – ou à revelia deles, os atores. Noel e Lourival são gurus de um filme que de um certo ponto de vista é considerado MÍSTICO e, de outro, AMBÍGUO. Para mim, o ferve-a-ferra se transfigura no brilho do sol reminiscente das tardes da Ilha das Flores* e nos highlights em contraluz de LIMITE de Mário Peixoto – Mar e Sol (sem trocadilho) me fazem recordar a infância na inesquecível Hospedaria de Imigrantes (I.dasF) do antigo MT.IC (Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio), onde meu avô, D.E.S exerceu a profissão de farmacêutico durante 43 anos – (foto – casa mamãe) * Explicar.

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O Primeiro Passo Já faz algum tempo que assistimos a Caminhos, mas a impressão agradável que sentimos permanece até hoje. O bom lado desta impressão foi significativa e despertou-nos o desejo de revê-lo. Paradoxalmente, aquilo que mais nos agradou no filme de Paulo Saraceni foi o seu lado amadorista: as experiências devem ser tomadas sempre como buscas, jamais como descobertas consumadas. O C.E.C. [Centro de Estudos Cinematográficos] talvez venha a exibi-lo e então os interessados poderão conhecer a atração cinematográfica animadora de grupos isolados, em nossa capital. Outro mérito de Caminhos reside no fato de ser uma realização baseada numa história fictícia. Como os iniciados em literatura fundam seus primeiros alicerces na poesia, no cinema é o documentário o gênero dos principiantes. Talvez nos enganemos, mas acreditamos ser falha esta orientação, pois o filme de documentação restringe em muito a capacidade imaginativa do realizador. O progresso alcançado por cineastas franceses da “velha guarda” se deve à excelente sedimentação que tiveram através dos exercícios vanguardistas, os quais primavam pelas estranhas incursões ao irreal... Outra vantagem das experiências de cinema puro reside na familiarização no manejo da câmera e da montagem. A objetiva permite ao iniciado uma série de assuntos de estudo. A técnica do corte age como elemento introdutor à verdadeira linguagem do cinema. A rigidez do documentário apresenta-se avessa a essas facilidades. Quando muito o gênero permite aprofundamentos na noção de ritmo e aguça o espírito observador dos que se apegam à arte cinematográfica. Poderá haver um documentário com uma dinâmica mais desenvolvida, porém o arcabouço de tal filme nunca ultrapassará certa norma predeterminada. De tudo o que dissemos (aguardamos uma segunda visão para completar nossas idéias), Caminhos é um exemplo cabal.

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Diário de Luz Del Fuego II

O MESTRE E O POETA1

II 15.6.81 As filmagens no Rio (diversas locações) trouxeram certa dose de aflição. Este é o primeiro filme que faço com um número maior de personagens (em cena). Esse “tamanho” exige, por sua vez, uma equipe mais concentrada. Não chegou a criar tumulto, mas, as conversas simultâneas, as reinvindicações de prioridade (luz, som, câmera, intérprete) sem nenhuma dúvida perturbavam. A harmonia, o silêncio e a concentração só chegavam a muito custo. Mas eram suficientes e compensadoras. Estou em busca de um reflexo de sol no mar reminiscente do ortocromático dos filmes de Flaherty, Epstein ou mesmo e mais ainda do Mário Peixoto (Limite). Na sequência 56, por exemplo, dois barcos à deriva, um ligado ao outro, são respectivamente bastidor e palco de uma bucólica cena de amor entre Luz e Cenário. Este sol, este reflexo, são basicamente para esse momento (envolvimento?) do filme. Frases: 1. Luz. 2. abre as pernas, devagarinho 3. agora, por favor, será que eu posso...? 4. Você gozou meu amor? 5. Fica encharcadinha para mostrar que você gosta de mim, tá bem? 6. Tá gostoso? Eu tô fazendo gostoso? 7. O que é que você quer agora? 8. Deixa assim, deixa...por favor. 9. Chegou a pouco d/fora e estalou de raiva. 10. Está emagrecendo tá passando a ver dura 11. E lê o jornal “A tocha porque, o que os outros jornais não trazem ATOXA ATRÁS. *** 15.6.81 56: Lux: Eu não sei o que está em mim é você ou é a cobra?

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O C.E.C. [Centro de Estudos Cinematográficos] encerro na quinta-feira dia 17 as atividades cinematográficas que manteve ininterruptamente durante 1959. Este encerramento, porém, não tem caráter definitivo, e assim provavelmente em fevereiro do próximo ano retorne às suas projeções semanais. O programa de encerramento contou com Twelve angry men, de Sidney Lumet, e com um complemento brasileiro que se constituiu, a nosso ver, o coroamento da sessão de despedida. Trata-se do documentário de Joaquim Pedro de Andrade: O mestre de Apipucos e o poeta do Castelo2, que se refere respectivamente a Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. O título deste curta-metragem realizado sob os auspícios do Instituto do Livro dá a entender a existência de dois e não de um só filme, mas na verdade o aspecto “dois-em-um” é meramente superficial, existindo mesmo, no seu ponto de intersecção um plano intermediário, um traço de união que o transforma em filme composto. Apesar de a verdadeira definição cinematográfica do filme dar-se somente na parte dedicada ao poeta de “Pasárgada”, o quinhão do sociólogo de Casa-Grande & Senzala não desmerece, num cômputo definitivo, e em última análise acabamos por assistir, emocionados, a um sincero paradigma de quebra da rigidez do documentário cinematográfico. O mestre de Apipucos e o poeta do Castelo foi, para nossos olhos desiludidos com o atual panorama do cinema brasileiro, outro marco entre o escasso alinhamento destes pontos pelos quais aparece-nos o desejo de olhar para o futuro. O roteiro já se apresenta, ele próprio, eivado de certa originalidade. De início, como já foi dito, vamos ao Recife, ao sítio de Gilberto Freyre. Como num diário ou numa biografia, tomamos conhecimento de alguns fatos rotineiros de um dia em Apipucos. A clareza fotográfica fornece uma documentação genuína – impressão que talvez se deva ao processo não habitual utilizado que emprega, na trilha sonora, a narração do próprio biografado, outra trouvaille3 colaborando, pela enfática extra-temporalidade das palavras, para a magnífica repercussão final da fita. O fascínio das minúcias caracteriza, em parte, o estilo do realizador. Entre outras migalhas de vida, que o cinema sabe tão bem explorar, salientamos ainda no primeiro episódio o paralelismo de algumas reações do sociólogo, da cozinheira e, finalmente, do gato que se encontra depois de um pulo no tempo, postado na rede do repouso vespertino.

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1 Originalmente publicado em O Metropolitano (RJ), 03 de Janeiro de 1960. 2 Ficha técnica: O mestre de Apipucos e o poeta do Castelo. Realização e apresentação: Saga Filmes; Produtor: Sérgio Montagna; Roteiro e direção: Joaquim Pedro de Andrade; Fotografia: Afrodísio de Castro; Câmera: Jorge G. Veras; Assistente de direção: Domingos de Oliveira; Montagem: Carla Civelli e Giuseppe Baldaconi; Música escolhida por Zito Batista e Carlos Sussekind; Letreiros de Bianco; Produzido para o Instituto Nacional do Livro, em 1959, por encomenda de seu diretor José Renato Santos Pereira. 3 Em francês: achado.

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A transição para o segundo episódio, então, se faz naturalmente, pelo close-up de um livro de Manuel Bandeira. “Não me interessa a paisagem; a Glória, a baía, a linha do horizonte. - O que eu vejo é o beco”.

4 A cópia exibida na sessão do C.E.C não continha esta sequência, que foi suprimida por motivos alheios ao nosso conhecimento. 5 Por que não classificar de antológica, em nossas plagas, essa tal cena do telefonema em que, após a silenciosa mas eufórica gargalhada de reconhecimento do interlocutor íntimo, vemos os movimentos faciais do poeta, as idas e vindas da cabeça, que provocam aquelas desfocalizações propositais?

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Os versos epigrafados talvez sejam uma das chaves do filme. A primeira oração sendo lida subitamente pelo poeta e as equipolentes seguintes tendo as palavras substituídas pela imagem em panorâmicas seguidas de cortes bruscos e com duração, ao que parece, proporcional à sua mera menção ou pronúncia. De tal modo que, em lugar da presença, na trilha sonora, da continuação do verso, temos uma visão repentina do outeiro. Adiante vemos a baía, e assim sucessivamente. No verso seguinte é o som coincidindo com a imagem e, no momento em que o poeta o pronuncia, há um movimento de cima para baixo, no fim do qual damos com o tão decantado beco.4 Não serão necessárias maiores explicações para o leitor compreender que já nos estamos adiantando na segunda parte. E caminhamos para a sequência final, onde teremos, então, o coroamento, o clímax de toda a película. A qualidade da narrativa oral do poeta traz ao conjunto mais um elemento acessório colaborador dos estupendos efeitos de ritmo cinematográfico. Neste particular, pode-se adiantar, existem dois esteios nos quais se apoia a imagem: a narração e o fundo musical. A marcação do compasso tem certos pontos fixos na atualidade da ação (ruídos, chamados telefônicos etc.), cujo efeito muito se acentua através da insólita tática de contraste (a maior parte dos sons do presente é afastada). Pois bem, o duplo acompanhamento permite uma variação do sistema de contraponto utilizado e o efeito, dos mais expressivos, pode ser medido com um estudo minucioso das derradeiras passagens. Desde o momento em que Bandeira, após o feliz contato telefônico,5 decide sair, passando pelo outro feliz paralelismo (uma constante?) da mão no bolso – em casa, no jornaleiro -, já estamos indo para Pasárgada a todo vapor, como já estávamos, minutos antes, em espírito, enquanto nosso guia ainda mudava a roupa discretamente, apertava a gravata, sob a brisa fresca que sopra a cortina ao lado da vitrola por duas vezes, a que refresca os bibelôs do quarto do bardo, o qual, por fim, resolve desprezá-los. E em pleno movimento citadino, eis-nos a acompanha-lo em busca da imortalidade, a violar os cânones da montagem (propositadamente), namorando à distância o prédio da Academia. Atravessando a rua para dele se aconchegar ainda mais, tendo na mente e

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deixando-nos conhecer o amor pelos alcaloides, pelas prostitutas, orgulhoso de sua conivência com o rei... O dinamismo dos cortes na aparentemente ininterrupta caminhada de Manuel Bandeira confirma as tendências tipicamente cinematográficas de Joaquim Pedro. O emprego comedido dos grandes planos e sua harmônica reunião durante uma passagem, a utilização válida da subjetivação, os enquadramentos pouco rebuscados, ensinam a arte da clareza que é o cinema. O gênio poético de Bandeira se extravasa desde os planos iniciais, quando a tosse (silenciosa, também) ou uma simples reunião de detritos que observa apresentam-se sob aspecto afetivo bastante ampliado. E a máscara com que surgem durante todo o tempo é irrepreensível.6

6 Aos focalizados queríamos pedir que nos permitissem a exaltação da simpatia emanada nos lugares e nos momentos em que estiveram presentes. (Desde o ato singelo com que o sociólogo faz escorrer as gotas d’água acumuladas em uma folha à maneira meticulosa do poeta acabar de acender um fogão à gás.) A Bandeira, dirigirnos-emos através de suas próprias palavras a respeito de Wallace Reid: “O seu encanto era indefinível como as elegâncias do espírito. Nada de possessing como Clark [Gable], nem de lúbrico, como John Gilbert, nem de cínico, como Robert Montgomery” (cf. “Manuel Bandeira, cronista de cinema” – artigos de Joaquim Pedro no Suplemento Literário do Correio da Manhã). Mas a atração que exerce agrupa-se entre as de um Kerniano (ao lado de Greta Garbo), quase Dantas.

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Diário de Luz Del Fuego III III 19.6.81 Alguns transtornos na produção. Tormenta depois da bonança de uma longa e impecável projeção dos últimos copiões. (A palavra impecável, aqui, corre por conta da impressão geral – a minha também – mas é só remotamente vinculável/relacionável ao filme a ser acabado (vamos ver). Mal-estar se deve à saída de dois elementos de equipe “pesada” o que vem desfalcar bastante o trabalho no plateau até a chegada dos substitutos. Na projeção do dia 17-6-81 veio à tona primeiro uma ideia de coisa passada a limpo, quase sempre ausente em meus trabalhos anteriores. Muito sol, muito hiper-realismo, digamos assim. A noção de erro, que é um pouco a chave do meu “específico fílmico” apareceu, porém, em alguns momentos, para minha satisfação íntima e fora um trabalho silencioso de recompilação das imagens recém-vistas sob o prisma daquele aneurisma que costumo chamar de “oportuna retomada do convencional”. Luz-Lucélia, estátua com a jiboia, à espera petrificada do seu Canário, é sem dúvida uma imagem arcaica, de étos e portanto sincrética e suculenta. Irá bem com toda a sequência (em preto e branco) do hino à bandeira. O erro: para não ser “teatral”, isto é humano, isto é, realista, ou seja acadêmico, melhor dizendo, nos padrões normais de temperatura; pressão, exposição, tiragem e sonorização, é necessário certo tempero de deficiência, de dúvidas, do imprevisível, do acidente, de novidade, de erro, de cinema, enfim. Organizar a imperfeição é um trabalho árduo que se aproxima da música, da composição, da harmonia. Mas não é dentro de um esoterismo e da acronologia da linguagem cinematográfica em estado bruto, que esse erro se resolve, mas, na expectativa das etapas pelas quais passará o filme, do momento de filmagem até a confirmação definitiva que o retake não é necessário. *** 19.6.81 (tarde) A troca de parte da equipe técnica atrasa a volta a Paquetá na 3a semana de Ilha do Sol. Veio à lembrança um anúncio de TV sobre o financiamento da casa própria pelo Banco Itaú onde a agência bancaria vai pouco a pouco se trans-

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formando numa casa própria, usando recursos de cenografia e de locação. A linha direta entre o detalhe e o plano geral é didaticamente explorado neste pequeno comercial de 1 minuto aproximadamente. No geral está provado e demonstrado a mentira que o cinema utiliza como veículo de verdade. Estas preocupações são precedentes nestes breves depoimentos de filmagem por que a verdadeira Ilha do Sol (que será inserida na realidade como elemento mentiroso) nos foi negado pelo Concessionário. Na ausência do Banco (indispensável no processo de economia cinematográfica), as diversas ilhas que circundam Paquetá vão pouco a pouco reformulando a ilha original (vista volta e meia do luar) que parece glosar o jingle mencionado. 20.6.81 LUZ Salve cordão da Bonança Oh! Que falta e que bem que me faz! Só lembrar e a simples lembrança Me excita e a força me traz. Aceita o afeto que te entrego No meu peito tão febril. CANÁRIO Só penso nas curvas dessas serras Adoradas serras do Brasil! Amanhecemos hoje outra vez com o tempo nublado. Ótimo, penso aqui com meus botões (que aumentaram, com a queda da temperatura). O filme, já disse isso aí atrás, tem estado muito ensolarado. Sorte ou azar, hoje (e, espero, amanhã também) filmaremos com um cinza que trará às cores uma tristeza ou densidade complementar. Estou, bem ou mal, em busca da alma da Luz e esta, até agora tem estado escorregadia ou retraída como um caramujo invernil que se recolheu no seu musgo para evitar o sol. Lucélia não filma. Filmou ontem e amanhã, domingo, com Paquetá regurgitando de gente, começaremos a acabar nossa estada na ilha. E a famosa festa da Ilha do Sol vai finalmente acontecer. ***

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24.6.81 Último dia de Paquetá (1a parte). Paira no ar certo descontentamento. Primeiro por que ficaram algumas sequências pendentes. Segundo pelo bem que esta ilha proporciona, sem falar daquilo que se poderia chamar de “geographie du rôle” – há uma verdade nessas queixas mas, depois de uma reunião conjunta Produção – equipe, aceitou-se um retorno ao Rio com a finalidade de apressar as 26 sequências restantes. (Entre estas, pelo menos 5 serão na volta a Paquetá). O episódio da substituição de Sônia Dias por Maria Sibóia também causou certos transtornos profissionais – inevitáveis e justificáveis (do nosso lado) porque a ex senhora Deodoro Dias estendeu sua permanência nos EUA onde foi a convite da Embrafilme para uma conferência do C. Bras. Coisas de Cinema. Não posso deixar Paquetá (corro o risco de me esquecer na segunda etapa) sem mencionar a semelhança geográfica entre esta ilha e a ilha das Flores, recanto onde passei metade de minha infância e com grandes recordações difíceis de serem apagadas.

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Concessão é Conformismo Nunca tivemos, no Brasil, um filme tão polêmico. Mesmo a discussão que cercou o Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, não alcançou repercussão tão vibrante e espetacular. Violentamente combatido, Os Cafajestes é um filme predestinado a significar, para nós brasileiros, mais do que as interpretações superficiais do impacto que trouxe e que ainda mantém na atmosfera carioca. Já se disse e já se negou muita coisa a respeito da fita. Falou-se inclusive que se empregam métodos desonestos de publicidade, enganando o povo, induzindo-o a ver coisas que não passavam de ampliações ilícitas do sistema publicitário. Protesto veementemente contra o rancor súbito e mal fundamentado que nasceu no espectador carioca nesta perplexidade a que se submete ao se deparar com um exemplo típico de ousadia (em oposição ao brasileiríssimo complexo de inferioridade) e de autoconfiança. Tudo que foi anunciado está sendo exibido nos cinemas do Rio. Mas, é preciso que se acrescente, quem o apresenta é um homem que se dispõe a fazer do cinema um instrumento de transmissão de suas ideias mais íntimas sobre os homens e as coisas. Uma espécie de telégrafo visual. Cabe aos interessados aprender o Código. O filme foi, na verdade, um pouco cruel com o espectador, pois não lhe fez concessão alguma. Mas a culpa só pode ser dirigida a uma entidade ainda nebulosa e que apenas começa a tomar consistência, o cinema nacional, cuja única função, até hoje, foi a de levar o público para uma região deplorável onde os conceitos têm valor diametralmente oposto à realidade. É por isso que um grupo ligado à produção da fita resolveu, pela tesoura, “facilitar” a sua compreensão, dar mais uma oportunidade aos ociosos. Contra isso levanto novo grito de protesto. Na situação revolucionária em que nos encontramos, qualquer concessão significa conformismo e retorno à estagnação anterior. Não há argumentação que valide afronta semelhante, mesmo os de ordem estética. Os cortes em Os cafajestes indicam pusilanimidade. E, neste momento decisivo, significam recuo e retraimento. A produção deve viver sob o espírito de luta que o público, inimigo em potencial, exige. As rendições (em todos os setores da vida) deixam sempre marcas inapagáveis.

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União e Censura Cultural1

1 Originalmente publicado em O Metropolitano (RJ) em 28 de Abril de 1962.

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O público de cinema, no Brasil, ao que parece nunca atingirá a maioridade. O fato é, em si, deplorável, porque está fadado a marcar eternamente o passo. Digo isso por vários motivos. Se antes me preocupava muito a relação que se estabelece entre um público impróprio e uma cinematografia incipiente e buscava incessantemente um elemento comum que ao menos ajudasse a resolver essa equação insolúvel, hoje, quase me certifico de que, entre nós, o analfabetismo das massas reflete suas influências às diversas classes e estas se encarregam de dar-lhe, sempre negativamente, os aspectos mais desesperadores. Chego hoje como que a um labirinto kafkiano numa situação ainda mais dramática do que a dos personagens do diabólico autor, isto é, tenho perfeita consciência da situação em que me encontro e para a qual desejo uma solução. Ela (a solução) está em mim enquanto célula de um organismo superior e depende da colaboração das células adjacentes. E isso não se dá na medida necessária para que se rebata e conserve afastadas a ignorância e a burocracia, que hoje se unem, para se opor ao possível renascimento de uma cinematografia quase nula. Não se pode lutar só e não me parece, neste momento, haver o sentido de união que a oportunidade tanto requer. Vi grandes manifestações de solidariedade na reunião organizada a fim de se procurar a saída de uma armadilha de cunho eminentemente reacionário e despeitado. Vi uma classe totalmente congregada em prol de um ideal perene e fiquei achando pouco, sobretudo se penso em palavras como perene e ideal, cuja grafia me vem agora ao espírito de forma difusa e distante. O ato que se combate é um ato de força, de prepotência, e me faz pensar através de certo princípio físico, fora do qual não vislumbro nenhuma possibilidade de êxito, opinião pessimista sobre a qual não me quero deter. Infelizmente, a censura cinematográfica no Brasil é também do público. E público de cinema brasileiro. Porque, em se tratando de produção nacional, ele não sabe distinguir a água do vinho e concede a mesma cotação (“boa qualidade”) tanto a algumas produções de nível artístico acima do normal e sinceras na intenção, como Mandacaru Vermelho, de Nelson Pereira dos Santos, quanto às conhecidas subproduções dirigidas ao grosso da freguesia cinematográfica. Em outras palavras, pode-se entender o que foi dito, qualificando-se a ambos, público e censura, de conformistas. O público cinematográfico brasileiro, como se sabe, possui capacidade inferior de percepção, fator condicionado por diversos elementos dos

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quais o mais importante é o coeficiente de analfabetismo de nossa população. A censura cinematográfica concorda e acata passivamente esse fato através de uma postura que tem muito (paradoxalmente) de mimetismo. Ela, ao invés de procurar resolver o que talvez venha a ser o problema básico da nossa indústria cinematográfica, concorda com a sua existência e, em concordando, o propaga. E mais, a censura brasileira, enquanto público, não possui um ponto de apoio artístico, não o tem, tanto em referencia a concepções estéticas (por se tratar de uma forma rudimentar de censura policial) como em relação ao seu funcionamento orgânico (até hoje discute-se a sua verdadeira competência), sendo constantes os conflitos a respeito. No affaire Os cafajestes verificou-se mais um destes conflitos, aumentados desta vez por intromissões bastante reveladoras do flagrante desnorteamento burocrático desse órgão fundamental a uma democracia. Por outro lado, o seu lado público colaborou efetivamente para a concretização de uma série de represálias que os espectadores-mercadoria vinham fazendo durante as sessões em que se pode ver a fita do Ruy Guerra. Felizmente o lado policial da censura se fez logo à mostra. Sempre defendi o ponto de vista de uma censura de fundo cultural e continuo convencido da impraticabilidade desta enquanto permanecer sob o jugo de um departamento de segurança pública. Se um filme ultrapassa de longe os conceitos éticos e estéticos de uma fiscalização inepta, que os tem catalogados através de fichas elaboradas nos moldes de um puritanismo démodé, se pelo menos um filme ético como é Os cafajestes mostra como num espelho esses conceitos, através de um processo catártico de didática, no qual a saturação tem função precípua, como é que uma polícia, instigada por elementos alheios ao problema e ao mister, uma polícia que nunca ouviu falar em filmologia ou desconhece as noções mais rudimentares de narração cinematográfica, pode querer intervir e interditar de maneira irritante uma obra de alto gabarito? Falei, mais acima, em união e espírito de solidariedade. E referi-me à reunião que foi levada a cabo com o intuito de congregar esforços em favor da liberdade de expressão artística, em nosso país. Não acho que se obteve uma verdadeira comunhão de espíritos. Para um cinema nascente e inerme é preciso muito mais; se possível, que se chegue politicamente à convocação dos inimigos e dos neutros. Em todo caso, a luta que acompanha o renascimento de uma arte, num país, não é coisa de espantar, nem é novidade. Seu valor é quantitativamente igual ao dos esforços que adotam para a arte propriamente dita e, dentro de um subdesenvolvimento e um colonialismo persistentes, têm, ambos, o dever de serem de franca, violenta e contínua oposição ao status quo.

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O Testemunho de Marcoreles1

1 Originalmente publicado em O Metropolitano (RJ), em 09 de Junho de 1962 2 Não se pode esquecer a presença, também, da romancista Christiane de Rochefort, cujo romance Le Repos du guerrie está sendo levado à tela por Roger Vadim.

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A recente Semana do Cinema Francês, que a Unifrance fez realizar entre nós, trouxe aos cariocas contatos úteis com os mais recentes sucessos artísticos da Nouvelle Vague e com alguns dos responsáveis diretos desses mesmos sucessos. A coincidência da época com o fim das manifestações do Festival de Mar del Plata deu lugar a que a delegação francesa enviada à Argentina, no percurso de volta, incluísse na sua agenda alguns dias de permanência no Rio e, durante quase duas semanas, nossa cidade hospedou artistas renomados como um Truffaut, um De Broca, um Albicocco e um sem-número de outros elementos importantes, entre produtores (Robert Dancinger, Marcel Berbert), vedettes (Pascale Petit, Jean-Paul Belmondo, Alexandra Stewart, Marie Laforêt), críticos (Louis Marcorelles, Marcel Martin) e jornalistas (René Goyonet, Raoul-Duval), sem contar com os patrocinadores e responsáveis diretos pelo certame (Robert Cravenne, Jerôme Brière e o já brasileiro Amy Courvoisier).2 O calor das relações mantidas com os franceses ainda repercute na crítica carioca. Nunca se havia chegado a um ambiente de tamanha franqueza e compreensão, tendo felizmente o evento se dado num ano de risonha expectativa para o nosso cinema. Mesmo as atitudes de oposição a Os cafajestes, por exemplo, não permitiram que se escondessem reações de espanto em relação aos problemas de orçamento e produção das fitas brasileiras. Como foi cena rara e alvissareira a de François Truffaut acotovelado na moviola da Líder Cinematográfica, assistindo, entre Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, a algumas cenas recém-sincronizadas de Barravento. Mas, de tudo, o que ficou mais patente e enraizado no espírito dos que acompanharam o incessante roteiro dos diversos membros da delegação, sobretudo, o que mais profundamente marcou o julgamento dos jovens do Cinema Novo, foi o interesse (sem desvirtuamentos) de Louis Marcorelles. Sem turismo, no Rio, não passou dos limites da rotina de homem integrado no meio cinematográfico, cuja função ele perfaz de maneira tão séria e irreprimível, que nos fez deixar a categoria de cicerones e nos transformou em assistentes, desses que lucram, passo a passo, com a vivencia do mestre. A experiência universal de Marcorelles permitiu-lhe um conhecimento profundo de nossos problemas. Seu retorno brusco não nos facultou o cálculo de até que ponto essa profundidade está alicerçada, mas, na pior das hipóteses, o crítico fordiano da equipe dos Cahiers du Cinéma elaborou uma teoria parti-

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cular dos nossos problemas cinematográficos e, dessa teoria, começou a desenvolver algumas teses, de modo ainda vago, no número 1.808 das Nouvelles Littéraires (26/4/62). O artigo versa sobre o Festival de Mar del Plata, mas dedica sua parte final (cuja tradução damos a seguir) ao cinema brasileiro. Chama-se “Cinema tropical”. REFAZER O BRASIL... Um filme argentino médio custa perto de 30 milhões de nossos antigos francos: é rodado com uma equipe totalmente sindicalizada. É preciso passar de Buenos Aires para o Rio, da Argentina amordaçada, policiada, ao Brasil explosivo, para reencontrar os mesmos problemas, a rotina dos veteranos, o desejo dos calouros em afirmar sua existência contra todos os colonialismos, econômicos, culturais... No Brasil, o Estado ignora tudo relativo ao cinema, a livre iniciativa reina sem limites: um filme custa 12 milhões de nossos francos antigos, como esse Os cafajestes, de Ruy Guerra, antigo aluno de IDHEC, do qual ele felizmente não reteve o sabor das idéias preconcebidas. Durante as noites, por volta de 24 horas, fica-se num pequeno restaurante de Copacabana, na orla marítima, onde se reúnem os jovens do cinema, do teatro e da crítica. Esse domingo de abril é uma data memorável para todos: em quatro dias, graças a um sucesso triunfal, o filme de Guerra recuperou o seu preço de produção. O que significa que toda uma corte de jovens, que eu reencontrarei amanhã nos laboratórios, poderão realizar seu primeiro filme, que os velhos senhores ricos não lhes fecharão mais as portas. Bem mais que em Buenos Aires ou Mar del Plata, encontro o entusiasmo no estado de pureza, sem traço de intelectualismo: vai-se realmente refazer o mundo, ou antes, o Brasil, e, através dele, o cinema. Três filmes estão em curso de filmagem na Bahia, a região mais bela do país, e, também, a mais deserdada. Aqui também, Rouch e Godard são modelos por sua tomada direta do real, Truffaut decepciona mais, pelas suas sutilezas literárias. Guerra em pessoa, “barbudo” do cinema e vencedor do dia, conduz a dança, fala como Castro, prepara-se a levantar montanhas. Pode-se sorrir desse entusiasmo intempestivo. Esses jovens, como mais discretamente seus vizinhos argentinos, têm a intenção de dizer coisas importantes sobre suas respectivas pátrias. Mesmo a recente interdição do cardeal do Rio relativamente a Os cafajestes não interromperá a marcha do tempo.

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Afinal, o realismo1

1 Originalmente publicado em O Metropolitano (RJ) em Junho de 1962.

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Talvez não se esteja diante de um filme, na acepção comum da palavra. Pelo menos deve ser esse o pensamento do público durante os primeiros quarenta e cinco minutos de projeção, se bem que, de vez em quando, a atenção seja atraída violentamente por um ou outro diálogo, por uma ou outra cena. Já se pressente tal comportamento, no início, quando parece não haver assunto. Deve existir mais propriamente uma idéia geral de certa amplitude a dificultar sua colocação no écran e seu desenvolvimento em hora e meia de projeção. A sequência inicial, aliás, tem todo o caráter cronológico de começo. Os autores parecem estar, inclusive, tomados de uma emoção que caracteriza os neófitos e lhes dá certo quê de instabilidade. O processo de realização só permite leve dose de fluência depois de diversos ensaios, através dos quais os obstáculos que a inexperiência gera vão sendo ultrapassados. É no próprio desenrolar de Chronique d’un été que essas inibições vão desaparecendo e que – fato inédito – novas idéias vão surgindo. Há certamente uma infraestrutura sociológica. Cabe agora esclarecer um conflito que naturalmente surge ante o lado espetáculo (finalidade do cinema tout court) e sua ausência ostensiva numa fita, como se dá no caso presente. Apesar de não estar reduzido a um realismo simplista como o de alguns documentários mais pretensiosos, Chronique d’un été situa-se mais próximo desse estágio. E, paradoxalmente, conseguindo, por implicações, pesquisas e enquetes, atingir o grau de interesse que o desenrolar dos filmes de enredo proporcionam. Sendo, enfim, fiel a toda uma tradição dramática, a fita, dentro dos limites do documento, ultrapassa seu conceito vulgar e fornece, à insaciável curiosidade do espectador, dados dos bastidores do quotidiano, constituindo-se desta forma (sob um estilo hiperdocumental) numa pesquisa de causas e na sua justaposição aos efeitos, estes últimos único objeto da escola documentarista em vigor até as primeiras experiências de Jean Rouch. Chronique d’un été�������������������������������������������������� é um filme que se pode chamar essencialmente realista, através de uma nova conceituação desse termo, relativamente às suas implicações com o cinema. Ele está, portanto, sob este aspecto, livre de qualquer influência dissipante, de qualquer obstáculo que a essência e a evolução industrial-artístico-comercial traz normalmente às produções comuns. Chronique d’un été pega o cinema de surpresa, o grifo servindo para chamar a atenção do leitor para o caráter de pureza objetiva que desejo dar ao cinema,

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representado, aqui, por um exemplo bem próximo do padrão ideal, tomado na sua forma absoluta, nascente. Um mínimo de corpos-estranhos-mas-especificamente-funcionais a se interpor entre os criadores e a obra acabada. É, em suma, uma arte em estado de graça. Expressões como cinema-vérité, realismo ou pris ou vif, podem vestir, agora, sua verdadeira roupagem. Sendo extremamente realista (e convém que se torne a abordar esta questão primordial), o filme, por vezes, eleva o grau de realismo a uma tal potência que transfigura a própria realidade. Transfigura a realidade exterior (matéria-prima) antes de captada pelas objetivas e microfones. É um movimento de dentro para fora, que provoca a metamorfose do próprio dado, diversa da que culmina com a transformação aparente ou virtual. Ao desejo extremado de realismo repugna a idéia de atores. Todos os elementos da fita são tomados diretamente do quotidiano. Mas, ao se defrontarem com a câmera (como é o caso de Marceline), esses elementos se acham sob forte e natural inibição e o que resulta é uma nova natureza inicial que se diferencia à medida em que o filme se desenvolve.2 A base do filme já é, portanto, uma realidade interpretada, condicionada e, até Chronique, tida como artificial: um indivíduo sendo entrevistado ante uma câmera e um microfone. Desde o início, Chronique d’un été é um filme-enquete que se dilui para transformar-se, ela (enquete) ou ele (filme) nessa própria realidade. O seu valor realista, portanto, varia na razão direta de sua identificação à vida, cujo resumo é, fora de dúvidas, o quotidiano. Ora, confundir-se totalmente (pensamos sobretudo no fator quantitativo) com o quotidiano é fato impraticável, e, por isso, o filme apresenta elementos que mantêm o equilíbrio da atenção do espectador. São imposições que não burlam de todo as vivencias que se presenciam, porque não vêm de fora, mas dos realizadores que constituem, eles mesmos, a realidade filmada. Dessa forma dirigem o assunto segundo proposições mais ou menos intrometidas. São sempre assuntos da atualidade, como o problema da Argélia, dos quais todos estão a par, com suas teses na ponta da língua. Finalmente, o filme acaba por criar uma nova comunidade que não deixa de ser, para o espectador comum, o enredo do filme. E a participação afetiva do público nesse plot e sua decorrente identificação com algum personagem é aqui bastante diversa da que se verifica na percepção de um filme comum. Talvez seja quase nula, porque, de certa forma, o público não pode identificar-se aos elementos entrevistados em decorrência do fato de ser, esse mesmo público, membro da comunidade apresentada (membro, no sentido existencial do ��������������������������������������� étranger������������������������������� ). São os que julgam apenas su-

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2 O processo de filmagem deve basear-se numa cronologia crescente e direta.

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3 Na vida, o clima de ficção a tudo preside e muitas vezes se dissipa, mais por incapacidade ou deficiência de assimilação (mimetismo) por parte do homem. Existem bons e maus “atores”. Cada “mau ator” vive como sabe. O “bom ator” vive a vida de seus antepassados ou contemporâneos. Vale a pena conferir a respeito alguns artigos de P. E. Salles Gomes para o Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, sobretudo “Cinema e prostituição” (25/11/1961) 4 Edgar Morin, Ed. Minuit (França), 1956. 5 Em francês: discurso natural.

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perficialmente as “aparências” ou os que apenas “conhecem de vista” e que, no máximo, podem nutrir leve simpatia pela gente que essa crônica revolucionária de Jean Rouch e Edgar Morin nos apresenta. Ao fim do filme, começam os debates e as perguntas na mente de cada espectador. Rouch e Morin se assemelham ao cinegrafista da charge esportiva, que, na ânsia de seguir a disputa das primeiras colocações, acompanha correndo toda a prova, cruzando a faixa antes dos próprios competidores. Assim, os realizadores, antes de darem o fecho à obra, levam ao público o resumo do que vai na mente de cada um, encaminhando, de modo mais racional, o processo particular de discussão crítica. Na tela, os personagens discutem a obra que acabaram de realizar e ver (sequência final, da sala de projeção), dentro da mesma dialética réel-irréel, tão cara às teorias cinematográficas de Edgar Morin. Esse momento de Chronique d’un été demonstra a tese que, num mesmo continuum espácio-temporal, a vida e o filme (drama, ficção, documento – qualificativos ou sinônimos, a escolher) se identificam ou se repelem.3 A teoria, nascida em Lé Cinéma ou l’homme imaginaire,4 vê-se, agora, comprovada na prática. Não se conformando em satisfazer o espectador, Morin e Rouch ainda vão mais adiante, dando, ambos, subsídios para a crítica, através de uma causerie descontraída (na verdade é a última etapa da fita e forçosamente a última sequência a ser filmada, pois funda-se em dados fílmicos e não na realidade filmada). A primeira discussão desculpa ou explicita o impacto do filme perante o espectador ainda perplexo. Tem a função específica de aumentar a universalidade de uma obra de arte e limpá-la de todo e qualquer resquício de subjetivismo. Não deve haver, para Chronique d’un été, interpretação alguma, particular ou intimista.

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A verdade do Nordeste1 O lançamento de Vidas secas no Rio serviu, entre outras coisas, para trazer à luz novas verdades a respeito do diálogo entre nosso público e nosso cinema. Não quero reproduzir as generalidades desse diálogo, mas creio ser interessante anotar a ampliação do valor do filme enquanto mensagem de cunho social. Sob esse aspecto, Vidas secas valeu mais do que valeria um documentário feito de encomenda. Não sei se houve diretamente intenção do realizador ou do produtor em prover uma tomada de consciência geral a respeito dos problemas brasileiros. Desacreditei também do fato de o escopo de Nelson Pereira dos Santos ter sido a adaptação fiel do romance de Graciliano Ramos: sentia no realizador atração maior por detalhes da obra literária (sua trama, sua singeleza) e não via na documentação social apresentada senão uma decorrência que, enfim, dava validade a todo o conjunto. O resultado, porém, foi outro. De início o filme era apresentado (através de publicidade natural) como “adaptação do romance de Graciliano Ramos”, isto é, a transcrição cinematográfica de uma obra literária e, aos poucos, sua origem ia sendo desprezada em favor de uma aguda e fulminante tomara de consciência da realidade brasileira. De todos os rumos de opiniões políticas sentia-se, em manifestações sobre Vidas secas, uma profunda intimidade com a miséria e ignorância, no sentido em que esta intimidade quer dizer revelação provocadora de asco e de revolta. Vidas secas despertava em cada um uma ideia de distância, de contraste, e trazia a vontade de ser útil. O próprio Graciliano Ramos nutria permanente preocupação pela ideia participante de utilidade.2 A exagerada característica de “veículo participante” de Vidas secas surgiu, portanto, quase que a posteriori, através de inúmeras sugestões publicitárias que trouxeram nova luz ao problema, sobretudo aos que encaram o cinema como método exclusivo de consciencialização. Houvesse, por exemplo, o produtor apelado para essa tecla durante a campanha de lançamento do filme e o resultado teria sido outro. Esse exemplo prova inúmeras verdades que se tornaram latentes com o andamento comercial incompleto de fitas como Cinco vezes favela, Gimba, etc, isto é, que a maneira de apresentação, a qualidade do veículo (como muitas vezes o rótulo de certos produtos alimentícios e farmacêuticos) suprem, de início, totalmente, as necessidades populares de satisfação, de lazer. A mensagem, a tese, a proposição, só se aceita se

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1 Originalmente publicado no Suplemento Literário do Estado de São Paulo, 07 de dezembro, 1963. 2 Segundo o depoimento da viúva de Graciliano Ramos, D. Heloísa Ramos, seu marido finalizou certa vez uma oração a uma turma de bacharelandos da qual era paraninfo fazendo a cada um votos não de felicidade, mas de utilidade.

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vier dissimulada, confundida, com este mesmo veículo. O valor de Vidas secas torna-se muito maior quando se comprova seu engajamento e a fidelidade à obra original. As opiniões relativas àquele prisma (positivas ou negativas) galgaram a escala de todas as classes sociais, independentemente da proveniência de seus responsáveis, do proletário ao burguês, do simples barbeiro ao presidente da República (e por causa de Vidas secas estendeu-se até Seara vermelha, obra que, por assimilação, pode, cinematograficamente, ser considerada pálido reflexo da de NPS). Se disse acima “independente da naturalidade” não foi por acaso. Os nordestinos, aliás, são os únicos que emitem sobre Vidas secas opiniões mais ou menos desconcertantes. Falta-lhes o recuo que lhes permita livrar-se da preocupação com a verossimilhança de pequenos detalhes. O que passa despercebido em tudo isso é o fato de que a forma de apresentação de Vidas secas é elemento primacial para ressaltar a pouca “aptidão para consciencializar” da realidade objetiva. Assim, é a visão pessoal do autor e do realizador que tornam mais real a realidade apresentada, tornando preparado o espectador para assimilá-la. O mérito é repartido entre ambos os autores, sendo que a fidelidade ao livro daria prioridade ao escritor, não fossem os achados da ordem do que se encontra na passagem de Fabiano vai acertar contas com o fazendeiro e se depara com o professor de violino, assustando-se ao fixar a jovem aluna absorta. É este um dos momentos culminantes da fita, e se deve à “estética do singelo” que NPS procura aperfeiçoar, no âmbito rural, a partir do “rascunho” que foi Mandacaru vermelho. A característica autoral de Vidas secas traz à imagem o drama que começa a faltar na atual encruzilhada do Cinema Novo. Falava de opiniões de nordestinos que pude anotar em breves pesquisas particulares e me enveredei por outro assunto: o da autoria. É que queria, por justaposição, assemelhar dois problemas básicos, o outro sendo, como ficou visto, o do realismo. A busca da verdade não é no cinema, como pode parecer para muitos, o mero “decalque” do mundo exterior, mas a síntese ou o conflito dessa mesma objetividade com a visão pessoal do artista. O comodismo do espectador brasileiro faz com que ele julgue os filmes amparado pelo primeiro ponto de referencia que encontra à sua disposição. No caso de Vidas secas, o livro, bastante difundido, foi favorável a tal disposição e mais favorável ainda à fita )mas um exemplo específico não suprirá as atuais carências do nosso mercado cinematográficos: há outros filmes que sofrem com essa situação). Faz-se necessária a denúncia dessa facilidade popular de aceitar “verdades”,

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de concluir definitivamente ao simples boato, e de fazer, de premissas insustentáveis, os pontos cardeais de sua existência. Até aqui as fitas brasileiras têm sido de mera esquematização da realidade. Seria, digamos, a “intenção” de aplicar o realismo crítico sob o disfarce dos processos ultrapassados do realismo “psico-sociológico”. A função de Vidas secas não para no simples “desglamourização” do Nordeste brasileiro; ela, muito pelo contrário, revela um Nordeste novo, com um cheio de terra que não poderá trazer desconfiança quanto à sua veracidade. O público, porém, conhece, dessas mesmas telas, outro Nordeste. A unanimidade das opiniões favoráveis ao filme, partidas das camadas mais bem dotadas e atingindo outras, menores, forçou um reconhecimento dessa veracidade. Por uma feliz convergência de opiniões deu-se a consagração de Vidas secas em termos de box-office e essa evolução dos acontecimentos pode ser verificada pelo excelente ardil publicitário usado pelos produtores. Resta apenas saber se tal apreciação popular agiu relativamente a um despertar deste público para certos conteúdos do cinema brasileiro. Vê o leitor, enfim, que não é da realidade de que se nutre, fingindo recebe-la, o público. É uma falsa ideia desse conceito, que poderia chamar de “re-informação”, elemento básico na cultura popular que não tem recebido, dos responsáveis diretos de seu aproveitamento, o merecido estudo e a correta canalização. A “re-informação” e seus danos foram incrivelmente ampliados pelo aumento de popularidade da televisão, do qual o exemplo típico reside no futebol, na ânsia dos telespectadores pelas resenhas esportivas e pelo sucesso popular (verdadeiramente incompreensível) do videoteipe (neste gênero de transmissão).3 Através desses elementos vão-se criando perigosas lacunas entre os fatores que concorrem para a definição do conceito de lazer. No cinema brasileiro a maior vítima dessa “automatização” das capacidade perceptivas parece ser Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade. Sobre a verdade, o realismo, a “re-informação” e o cinema, gostaria de tecer, ainda, mais considerações. Deixo, porém, para outra oportunidade.

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3 É incrível como se difunde o gosto comodista da repetição que, a meu ver, tem íntimos contatos com problemas pessoais de autoafirmação. Quem poderá negar a segurança que se tem de ver uma coisa “já vista”?

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Garrincha decalcado?1

1 Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo (Suplemento Literário) em 29 de novembro de 1963 2 Sobre o fenômeno da reinformação pedimos aos leitores que se reportem ao artigo “a verdade no Nordeste”. (N.T.E. presente neste catálogo)

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A meta dos produtores de Garrincha, alegria do povo era a reprodução cinematográfica do fenômeno Garrincha, fato que, desde o início do movimento publicitário, deve ter provocado forçosas previsões nos espectadores. A ânsia de re-informação2 certamente agiu de maneira violenta (a ponto de facilitar a delimitação de suas características). Queria o público a repetição tal qual as jogadas do ponta direita e não a sua interpretação cinematográfica; a fusão interminável de passivos videoteipes e não o aproveitamento das possibilidades, diria estéticas, do jogador. O espectador carioca não quis despir-se do pijama e do chinelo, armas com que, comodamente, assiste às resenhas esportivas ao fim de cada domingo de futebol. Preferiu continuar como sempre no seu comodismo inculto, na sua teimosa condição de assimilador, ou melhor, de pseudo-analista pela assimilação. No Rio, esse e outros fatores contribuíram contra a fita de Joaquim Pedro. Em São Paulo terá ocorrido o mesmo? Garrincha, alegria do povo também foi visto como obra menor (o problema da duração), mas, é, na verdade, uma das mais completas da história do nosso cinema. Joaquim Pedro fizera, antes de realizar Garrincha, alegria do povo, um estágio de dois anos no exterior, ora na França, ora na Inglaterra, ora nos EUA. Na fase final cursara um ciclo de aulas particulares com David e Albert Maysles, operadores da equipe de Richard Leacock, figura que se constitui atualmente numa das coqueluches dos que estão mais em dia com o cinema, no mundo. A chegada de JP ao Brasil coincidiu com os preparativos para a produção de Garrincha, alegria do povo. O esquema de um uniu-se à disponibilidade e à recente experiência do outro e, assim, quase por um fatalismo, veio JP a realizar o filme. A especificação de cinema-verdade ou de filme-verdade é precipitada para a fita, mas não é, absolutamente, contraditória. Se os conceitos e a formação do realizador tendiam para esse tipo de filme, certos problemas técnicos não permitiram a consolidação do apelido. Garrincha, alegria do povo é, antes de tudo, um filme híbrido que reúne elementos de cinema-verdade com os do já conhecido cinema de montagem: a atração primeira da fita se funda no fenômeno Garrincha enquanto evocação dos antigos sucessos de sua carreira. Abandonar a montagem em favor de uma verdade despojada num filme-de-montagem é fato inadmissível. Quando se fala, portanto, que a fita não é fiel à realidade, a afirmação deve ser arguida e refutada imediatamente.

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Essa queixa tem origem também no fenômeno da re-informação e provém dos que “não viram o que esperavam”, como se o cinema fosse fonte obrigatória de incentivo à auto-afirmação. (Triste a sina de nosso cineminha, vítima da prepotência de um público a manifestar sempre um sentimento de superioridade sobre ele) Trocasse Garrincha, alegria do povo a sua nacionalidade e eis que, certamente, outra seria a sua receptividade. Por outro lado, na Europa, as figuras mais abalizadas que se pronunciaram com pouco entusiasmo pelo filme, via-se, estavam saturadas pelo dinamismo e pelo progresso do cinema-vérité e não souberam distinguir o caráter híbrido de sua concepção. Devo acrescentar aqui um pequeno glossário de termos afins e importantes, em cinema: verdade, realismo e verossimilhança. Para o espectador é este último que quase sempre conta. O realismo ou a verdade (dos quais muitos fizeram questão, no Rio) em Garrincha, alegria do povo não se reduz aos particularismos da verossimilhança e se dirige ao “mito” no que ele tem de mais geral. É aqui que se verificam as aspirações da montagem, ela vai do particular ao geral, chegando a uma visão global tanto do jogador quanto do meio em que se insere. O cuidado de elaboração que sofreu, posso imaginar, e sua finalidade imediata, não serão percebidos pelo grosso do público; porém reduzido à função informativa, o filme se torna perfeitamente assimilável. O aparente intelectualismo tem como contraponto o espírito “radiofônico” do texto narrado. A crítica à forma da narração, de Novaes Teixeira, justifica-se sob muitos aspectos: primeiro, porque, visualmente, a forma de Garrincha, alegria do povo se aproxima à de um filme europeu (e entretanto as diferenças que lhe trazem a originalidade são inúmeras!) com que NT está bem familiarizado. Se a parte plástica é intelectualizante, sua explicação, seu complemento inseparável, a voz de Heron Domingues não o é, absolutamente. E o contraste, antes de trazer o choque, contribui com certa simpatia, estranha forma de acessibilidade. O que faz com que se critique a “facilidade do texto” é portanto o contraste com as imagens. Assisti a várias sessões públicas de Garrincha, alegria do povo e posso garantir que não é o elemento intelectualizante – confundido também por muitos com o domínio da linguagem e da estética cinematográficas – que frusta a percepção. Muito pelo contrário. Ao aceitar com entusiasmo certos momentos como o clímax dos dribles de Garrincha, o Mainá, o twist (hoje já não estará démodé?...) em Pau Grande, os rostos e as reações dos torcedores, o público está, antes de tudo, sob o efeito de uma transcendência, ou seja, de um veí-

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3 É muito curioso que no campo comum do futebol as opiniões populares muitas vezes encontrem as de intelectuais da mais alta estirpe e vice-versa. 4 Garrincha, alegria do povo, nessa sua terceira parte, apresenta, não sem certo ar irônico, duas teorias psicanalíticas acerca do futebol. Da segunda, “mais sensata” (sic). São as palavras alinhadas acima. A primeira diz que a bola disputada pelo jogador (e, por extensão, pelo torcedor) simboliza “o seio ou o ventre maternos”.

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culo magistralmente bem dominado – com imagem e drama combinados na justa medida – pelo realizador. As opiniões contrárias foram todas condicionadas pela re-informação: reclamações pela pouca duração do filme (faltam cenas de determinado jogo etc.), pela qualidade de certas “filmagens” (cenas de arquivo em estado deplorável, em contraste com a nitidez da TV) etc., e não devem ser imputadas ao intelectualismo. De certo, admito ser requintada a tendência formalista de aceitar estes defeitos como “funcionais” esteticamente (a imagem deteriorada realçaria o drama), mas, no caso, a crítica não se justifica porque tudo se encaixa naturalmente em favor da informação. Sente-se, entretanto, que o público quando não esteve à altura do filme procurou, pelo menos apoiado no texto, alçar-se até ele. O futebol pode ser considerado hoje, no Brasil, um dos elementos-chave para a conceituação de uma estética popular; se não, pelo menos constitui-se num correspondente daquelas fontes primitivas que eram o circo e as paradas marciais. De um modo geral os dados estéticos das camadas menos favorecidas intelectualmente baseiam-se num congraçamento harmonioso das sensações, coisa de que o futebol é especialmente pródigo. A gratificação estética não é a única do futebol, mas dela partem os vetores que compõe as demais gratificações. O lazer e sua noção mais ampla fundam-se na estesia que o futebol proporciona às mais variadas camadas da sociedade.3 “O povo usa o futebol para gastar o potencial emotivo que acumula por um processo de frustração na vida quotidiana”, diz o narrador em determinado momento para justificar a grande afluência aos estádios. “Uma partida é a representação de um combate e o universo lúdico do estádio é um terreno mais cômodo que o da vida para o exercício das emoções humanas.” Assim o futebol é como uma válvula de escape para nossas tensões, sendo muitas vezes através da estética que essa válvula se manifesta. O processo de participação do público durante uma partida de futebol é semelhante à que se verifica numa sessão de cinema. O jogo, porém, repetindo-se em esquemas semelhantes cada semana, favorece o nascimento de um simbolismo característico.4 Nossas manifestações mais inconscientes afloram à consciência no decorrer de uma partida; dessas, as mais características são justamente as mais reprimidas: satisfação pelo jogo violento (contra o nosso virtual adversário), indiferença para com a má arbitragem (sempre que nos favoreça) etc. Em Garrincha, alegria do povo esses dois momentos convergentes do futebol (estesia e, digamos, catarse) são apresentados. Na primeira parte do

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filme temos um tipo de montagem por justaposição das jogadas principais do ponta-direita, reunindo material filmado pela equipe e recolhido de velhos jornais de atualidades. Cada tema (jogadas pessoais, dribles, violência sobre Garrincha, arrancadas, gols etc.) é tratado a seu tempo, numa lógica crescente. A utilização da montagem dá ênfase à ritmia que se resolve no espectador (de futebol e, mais ainda, no de cinema) naquele “congraçamento harmonioso das sensações”. A terceira parte de Garrincha, alegria do povo sai um pouco do tema central (Garrincha) e parte para uma análise do fenômeno futebol. A partir das cenas da derrota do Brasil em 1950 não é mais a estesia a emoção visada, mas o complexo psicológico do qual ela é elemento indissolúvel, porém longínquo. O filme em determinados instantes (e sobretudo por causa de certo público que o procura) dá a impressão de ser feito do ponto de vista do espectador de futebol em busca de confirmações para suas teses pessoais. Da terceira parte em diante sentimos que é o próprio Garrincha que nos parece observar, talvez, com intuitos semelhantes. A parte central trata de Garrincha em sua vida privada. A exuberância criativa que preside as duas outras partes, necessariamente, se faz ausente aqui, revelando outra faceta do realizador e apresentando de forma bucólica o Garrincha desconhecido do grande público. Deixo aqui esta pequena crônica rogando ao leitor que, se tiver oportunidade, procure ver e encarar Garrincha, alegria do povo sem idéias preconcebidas ou preocupações futebolísticas. Que procure, sobretudo, a humanidade, a inocência, a alegria e a tristeza desse grande jogador (e do fenômeno que o engloba), cuja essência é apresentada não num decalque ocioso. Garrincha é sobretudo um personagem repleto de estímulos humanos verdadeiros. E é dessas verdades que trata o filme.

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Diário de Luz Del Fuego Iv IV 24.6.81 Na lancha Neves, da ex-STBE, de volta ao Rio, depois de 21 dias “al mare”. Esta mistura de temas e lugares, este filme que avança e amaça chegar ao fim só com problemas superficiais de produção. Minha displicência com a mise-en-scène não me traz agora, que enveredo pelo gênero “vale quanto pesa”, nenhuma preocupação suplementar. Este diário, ou hebdomadário, como queiram ou aceitem na sua irregular concepção é, digamos assim, no fundo, uma solene e vaidosa aspiração à posteridade. Mas, que fazer? Negar certa vaidade (talvez essa palavra seja uma corruptela ou uma maneira caipira – será, quem sabe? – de se pronunciar verdade). Seria muito autoflagelação para uma pessoa que acredita no que está fazendo e o faz com extremo prazer. Minhas mágoas até agora não são cinematográficas. Gosto muito mais do que desgosto (já disse isso antes). Não sou nenhum Messias do Cinema mas também não sou astro como queria o mestre P.E. gostava de classificar certas pessoas. Tampouco sou samaritano – curo o cinema, (o meu e o alheio) – logo existo. Silenciosamente, como num sussurro que Canário (J.B) fará seguramente à Luz Del Fuego, na nossa volta à Ilha do Sol (Última semana de filmagem – hélas!). “Por aqui me chamam de Canário”, disse ele a ela, numa forma particular, em prosa direta num lança-perfume oswaldiano. Um tete a tete anacrônico, de época, indispensável para a atividade fechada deste filme até agora geral como um outdoor, público como um jornal, livre como uma propaganda de TV. Como “censurar” na censura uma coisa tão acessível a todos? O primo afim do tio-avô do porteiro do prédio do meu pai teve um caso com essa tal de L.del F. Recebo constantemente estas e outras informações de forma fria, insensível, machista, desprezível. Luz, como o sol parece ter brilhado para todas, mas eu, ciumento, quero que ela reserve seus raios, exclusivamente para o

razão pela qual estou quase sempre alheio aos problemas nessa faixa. O diabo não é assim tão feio quanto é pintado. O monstrengo que é a ponte Rio-Niterói, vista à noite, numa volta de Paquetá, tem seu charme particular! Há alguns “finais suplementares” para o filme L. de F. entre os quais se enquadra um no qual a ponte - símbolo opressivo de um sci fi caboclo, símbolo de atualidade e até mesmo de estética visual. O rio fica como que emoldurado por ela. No filme “Memória de Helena” (1968) a velha barca da Cantareira surge ao som do Scheherazade de Rimsky Korsakoff, com dois marinheiros na proa, reminiscentes de On the Town (Um dia em N.Y), de St. Donen e G. Kelly. Minha matriz agora é o L’Atalante de Jean Vigo. A marítima de L. d. F com sua jiboia seminua, sincretiza-se na Ilha do Sol e adoça com as do [Soire]-[Sara] as poluídas águas da B. de Guanabara.

indecifrável e misterioso Canário. O clima de filmagem, com todos os prós e os contras, as trocas e as confusões, chegou a uma homogeneidade que os italianos chamariam de bíblico. Uma coisa periclitante sem perigo, a salvo. De certa forma, posso controlar, ao menos sistematicamente, a equipe pesada, mas isso eu considero função empresarial,

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Poética do Cinema Novo1 Não se pode negar que uma visão de conjunto de uma obra artística qualquer, mesmo a que não disponha de finalidades essenciais, faz sempre extravasar, bem ou mal, uma poética distinta. Assim, se fora do cinema novo tomamos a fase das chanchadas (ou das comédias musicais), elas, na sua grosseira insuficiência artística, nos apresentarão sempre um universo específico como pano de fundo, e diversas peculiaridades, todas dependentes de ou imanentes a esse mesmo universo. Indago-me que critério usar para abranger, com clareza, e, com brevidade, o problema. Uma divisão prática seria interessante no sentido de “visualizar” em detalhe essa poética ou esse universo específico em seus diversos setores. Digamos, adotando o método indutivo que, no cinema novo, as correntes principais são: a) a tradicional, que evoluiu do antigo cinema industrial; b) a híbrida que mantém pontos de contato com a anterior e com, c) a moderna, originada no espírito jovem de jovens apaixonados pelo cinema, teóricos, estudiosos, cineclubistas e, finalmente, autores de filmes.

Essas três correntes ou saídas do atual cinema brasileiro são absolutamente autênticas e cada uma comporta de  per si  uma característica própria que no entanto se liga com intimidade à sua congênere do outro grupo. Se poética e universo são a mesma coisa, não significarão, também, em última instância, estilo? E o cinema novo prima justamente por uma unidade dentro da diversificação estilística. As causas desse fenômeno residem de modo especial na formação independente de cada realizador e na emulação inconsciente que existe no meio. Na primeira corrente, fundam-se os princípios dessa poética. São, por assim dizer, os alicerces do universo cinematográfico brasileiro, a origem dos vetores que orientarão um determinismo cultural. Para começar,  Rio, Quarenta Graus,  de Nelson Pereira dos Santos. Como

1 Originalmente publicado no livro Cinema Novo no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes. 1966. Pg.20

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transformar em palavras sua concepção? Filme fragmentado em episódios que se interdependem entre si e se completam. Cada uma, célula de poesia, ora realista, ora de referência cinematográfica. Sublinhe-se e atente-se, no filme, a nostalgia relativamente à chanchada que ele tanto como produção quanto como realização parece querer

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condenar (v. g. o episódio do deputado nordestino, ridículo, grosseiro, destoante, verbalista, como se queria na festa primitiva). Defeituoso, maladroit, eis a chave-mestra para se classificar formalmente o. seu mundo e o que lhe seguirá. Esperar a perfeição, os ornatos, o rigor num filme brasileiro somente se se tivesse uma visão brasileira desses elementos. O Brasil e seu cinema para os brasileiros. Num determinado momento, a ousadia máxima para um filme de produção pobre e de conceitos pobres a respeito da produção: a grua improvisada que termina por trucagem numa maquete da visão-tipo do Rio: o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara. Nelson Pereira dos Santos, usando recursos de todo um Cinema que lhe antecedeu, traça as bases de uma nova escola: a da autenticidade. Rio, Zona Norte  confirma com mais secura a tese da unidade e da personalidade ou autoria. O compositor Espírito da Luz Soares é a “voz do povo” e sua vida a nossa vida. Eis o samba-na-caixa-de-fósforos, o despojamento, quase o cinema-verdade em 1957. Eis a coragem, a necessidade de utilização da inteligência, do amor ao cinema. Que tipo de universo é esse? A poesia do real, da crueza, do drama, da pobreza, da infelicidade. A poética do cinema novo, queiram ou não, é essa aparência, às vezes titubeante, ou a ilusão dessa aparência. Titubeante, na verdade, tem sido o espectador brasileiro que não se entrega facilmente, que reage, que perde a seiva de um mundo novo, em busca de contatos, de relações, de ressonância com uma concepção provinciana e alienada que traz consigo. Depois de Rio, Quarenta Graus, Rio, Zona Norte veio Mandacaru Vermelho e Nelson Pereira dos Santos já entrava pelas outras correntes, formando, pensando, ruminando Vidas Secas. Em outros planos, outros realizadores seguiram-lhe os passos: Glauber Rocha, Roberto Pires, Roberto Farias. Sobretudo Glauber. Os demais, assistiam, apreendiam, debatiam. preparavam-se. Cinema é antes prosa do que verso, mas que melhor poeta do que Guimarães Rosa?, devia pensar Glauber Rocha, digerindo o roteiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Que afinidade sutil entre o jovem baiano e o grande escritor. “... ele será tanto mais original quanto mais fundo baixar na pesquisa, trazendo como resultado um mundo e um homem diferentes, compostos de elementos que deformou a partir dos modelos reais, consciente ou inconscientemente propostos”. Falando da técnica criadora de Guimarães Rosa, Antônio Cândido não se refere também e com certa intimidade à elaboração de Deus e o Diabo na Terra do Sol, ou, mais particularmente, à técnica de Glauber Rocha? Antônio

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2 Cândido, Antônio, “Tese e Antitese”, Cia. Editora Nacional, 1964.

das Mortes, esse personagem fabuloso não seria, por exemplo, esse “homem diferente composto da deformação dos modelos reais?”2 Dessa poesia viril, faceta de um mundo, região, como uma região geográfica de um Brasil imenso, se pode passar a outras aparências. Cinema é crônica, pensaria Roberto Farias, seguindo a prosa narrativa de Nelson Pereira dos Santos quanto à despreocupação com o veículo e renovando o estilo em certos detalhes, fiel, porém, ao processo da découpage e dos vrais raccords. Cinema é tudo, pensava ainda Nelson, que começa a ser menos cronista do que cantador; dolente, rústico, singelo, despojado como Graciliano Ramos se revela, ele próprio, em S. Bernardo: “extraio dos acontecimentos algumas parcelas: o resto é bagaço”. Como escritor, Nelson passa a ser evasivo, seco e intransigente. Cinema é paixão, choraria Paulo Cézar Saraceni. Cinema é “música”, dirá, mais tarde, Sérgio Ricardo, completando a tempo: música popular. É ritmo e raciocínio, responderia Joaquim Pedro de Andrade. Cinema é intimidade, replicaria Carlos Diegues. À polêmica que não chega a ser está aí: porém todos concordam na aparente discordância. Todas essas manifestações que transtornam nosso espírito, no fundo, existem da forma a mais brasileira possível, isto é, displicente, balbuciante, tímida ainda. E não vão ser as tais correntes que para facilitar inventei, que as separarão em compartimentos estanques. Assim, Nelson Pereira dos Santos influencia Glauber Rocha que influencia Carlos Diegues que se exercita. O universo de Nelson, seus conceitos dramáticos agem sobre Joaquim Pedro que também se estimula com a retórica de Glauber. Paulo Cézar acha que quase tudo vem de Rossellini, mas, por exemplo, toma Viaggio in Italia como um meio e nunca corno um fim. Pelo realizador italiano, o mundo de Paulo Cézar encontra o de Glauber Rocha e ambos se entrechocam, numa dialética criadora. Eis aí resumida a poética do cinema novo. Falta, também, mencionar que os problemas técnicos que assaltam quase sempre a realização de um filme, agem de maneira a influir sobre a formação desses mesmos mundos. Aos poucos, porém, a consciência vem chegando e universo pessoal e condições materiais atingem uma fase quase familiar de concordância: são os casos de Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e o exemplo paulista de Noite Vazia. Ao final, entretanto, tudo é válido e conta como aquilo que Louis Marcorelles diz ser “a feitura concomitante da história de um povo e de um cinema”. O amor ao cinema chega ao extremo de se realizarem filmes com o conhecimento prévio de sua quase impossibilidade de recuperação financeira no mercado interno do Brasil e já hoje em dia o mercado externo é visto com certa desconfiança.

O tempo favoreceu a abolição do supérfluo. De  Boca de Ouro  a Vidas Secas, por exemplo, que incrível aumento de objetividade narrativa. Os estímulos se filtram, o cinema novo busca a universalidade através da análise, da consciência acerca de meios e fins, da autoria. Realiza-se, enfim, pelo amor ao homem brasileiro e pela concentração em objetos realmente autênticos. Finalmente, se me perguntassem, à queima-roupa quais as raízes e origens mais profundas do cinema novo, ou melhor, de sua poética, eu responderia de forma conclusiva: 1) a autossuficiência do brasileiro, fator perigoso que às vezes, como no caso presente, age de maneira positiva;  2) como causa material a influência direta, de um lado, da chanchada, o cinema industrial carioca decorrente da novela radiofônica; de outro lado, uma forma de aculturação brasileira mais elevada (escritores) e os curtas -metragens Caminhos, Cruz na Praça, Domingo, Arraial do Cabo, O Poeta do Castelo e Couro de Gato;  3) a coragem, o amor do cinema como forma de expressão e, em sentido não pejorativo, a lei do menor esforço.

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Diário de Luz Del Fuego V V

Cartas do Meu Bar I I “ Quando passei à realização, em 1966, depois de alguns anos de relutância, descobri “ao vivo” que não é pela teoria, não é na ideologia, não é na riqueza de produção que se extrai de uma história a almejada autenticidade. É num terrível corpo a corpo com esse fugidio meio de expressão. O cinema é uma permanente aferição da realidade com nosso estado de espírito. Sempre me chama a atenção as atividades de engenharia topográfica onde existem teodolitos ou outros instrumentos óticos montados sobre um tripé. É que, em tudo, elas dão a impressão de uma equipe cinematográfica que procura objetivas, com nitidez e equilíbrio, algum projeto subjetivo.”

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5.6.81 Luz Del Fuego, personalidade, personagem; o movimento e o cinema, como enquadrar a emoção? Os personagens através dos outros, as pessoas através dos olhos e do coração. Como desvincular o ato da forma? Como formalizar o ato de certas vivências? O movimento é para fora! Mas há certas partes escondidas. Como perceber quantos são verdadeiramente os personagens, ou como são eles? Como criança que brincam de cabra cega tocam as pessoas sem realmente vê-las, mas de fato, conseguem sentir. Tenho a impressão que é simplesmente como um jogo de arma, todas as peças tem que estar em quadro, não podendo haver falhas ou truques (bem que pode). Na verdade, é um grande jogo sem perdas nem danos...ou não? Tanto faz...o fascínio está em jogar luzes, câmera, ação… O que se descobre em cada fragmento...ou meramente em cada ação. Tantos rascunhos e nenhum compromisso. Acreditas - os impossíveis e os reais sem contradição… Ao ritmo do coração perceber sem susto e sem compromisso. Afinal, não há riscos; tudo pode ser indefinível ou não. É só uma questão de ponto de vista. Até o desgaste filosófico está incluído neste saco. Escrevo qualquer coisa só para não deixar espaços deste diário em branco./////// Estamos filmando na casa de Gaspar (Em Santa Tereza, mansão de Septimus Clark) - um senador que se envolve com Luz. Ele a ama? Acho que tudo faz parte de um grande jogo político-amoroso. O dia se abre distraidamente. O frio rebate qualquer clima. Paira no ar….o coração se apercebe e late aflito, um cobertor para o corpo e para a alma. O inverno em seus olhos a alma mais fria e não há memória…

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Guimarães Rosa e o Cinema1

1 Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo (Suplemento Literário), 27 de Janeiro de 1968.

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Tive a oportunidade de conhecer Guimarães Rosa antes de servir no setor de Cinema da Divisão de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores. Foi quase ao partir para a Itália, onde participaria, em Gênova, do Congresso sobre o Cinema Novo Brasileiro, organizado no quadro da V Resenha do Cinema Latino-Americano pelo Columbianum. Nossos contatos eram fortuitos, nos corredores do Itamaraty, e nossas conversas versavam sobre um ponto comum de nossas vivencias, ou seja, a cidade de Diamantina, em Minas Gerais. Naquela época era habitual minha presença na DDC. Ajudava no que podia o secretario Arnaldo Carrilho, na preparação da retrospectiva que seria apresentada no auditório da Fiera del Mare. Não chegou a se formar entre escritor e o visitante tímido uma amizade profunda, mas nossos contatos me bastavam para armar um quadro humano da personalidade que sempre me fascinara pelos seus escritos. Pouco tempo depois viajávamos os dois, rumo à Itália. Nosso destino era comum. As atividades do Columbianum estendiam-se a outros campos. Além das resenhas sobre os cinemas latino-americano e africano havia um congresso sobre a literatura em nosso continente, com a preparação de uma revista a ser chamada “América Latina” e, para essas duas últimas atividades, tinha Guimarães Rosa recebido um convite especial do Columbianum. Foi em Gênova que as relações do cinema com o escritor ficaram mais estreitas. Cerca de 15 brasileiros ligados ao movimento de renovação cinematográfica estavam presentes à Resenha, entre os quais Glauber Rocha, Carlos Diegues, Paulo Cezar Saraceni e Gustavo Dahl. Guimarães Rosa não era uma personalidade fácil. Sua mineirice elevava o que me pareceu ser desconfiança até um grau extremo. De modo geral, repetia-se em Gênova o contato rápido (mas sempre fértil) dos corredores itamaratianos. Houve, porém, dois ou três encontros fundamentais e me lembro bem da satisfação que nos foi trazida por eles. Alguém (Glauber, talvez) havia recomendado ao escritor a visão de O evangelho segundo São Mateus lançado há poucos dias num cinema da via XX di Settembre. Um desses encontros foi posterior, imediatamente posterior, a esse conselho. E foi deliberadamente provocado pelo escritor que nos procurou num tranquilo fim de jantar. Lembro-me que vinha decidido a prestar contas do que

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tinha sentido, ao ver o filme de Pasolini. Suas opiniões e o modo de tecê-las nunca mais saíram da memória. Posso recordar aqui que o que foi dito era de modo geral favorável ao filme, salvo no que respeita o episódio de Pilatos, que fora tratado “muito superficialmente”, sem levar em conta o fato de “Pilatos por sete vezes ter tentado salvar a vida de Jesus”. A conversa passou a enveredar por esse assunto específico até o ponto em que Guimarães Rosa nos revelou estar ele próprio preparando uma novela com transposição do tema em questão, coisa que me recordo ter provocado uma enorme curiosidade. As relações do escritor com Glauber Rocha pareciam nutrir-se de uma afinidade maior, a partir, naturalmente, da exibição de Deus e o Diabo na terra do sol, que provocou no seio da crítica especializada e nos meios culturais em geral um imediato esforço de aproximação com a obra do autor de Sagarana. A impressão que me vinha parecia ser a de gratidão do escritor para aquele que, sem basear-se diretamente nos seus escritos, buscara profundamente no seu estilo sincopado um modo de ver brasileiro para problemas exclusivamente brasileiros. Essa especial simpatia me foi provada algum tempo depois quando, já funcionário contratado da DDC (Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty), era sempre arguido a respeito das atividades do cineasta baiano. Na época da preparação de Terra em Transe lembro-me ter-lhe informado o título definitivo da fita e da sua desaprovação ao mesmo, seguida de um conselho ao cineasta que transmiti logo que me foi possível: “Diga a Glauber que Deus está no detalhe”. Esse conselho nunca mais me abandonou. Chegou mesmo a se tornar um leitmotiv de todas as minhas considerações acerca do cinema brasileiro, cuja grande constate tem sido a visão de conjunto, o mural. Partindo dele reconsiderei grande parte da própria obra de Guimarães Rosa, passando a revê-la sob o prisma novo e totalmente revelador. Recentemente tive nova luz a respeito, com a recomendação de P.E. Salles Gomes de se fazerem filmes sobre “coisas e não sobre ideias”. Glauber, apesar de pretender em Terra em Transe um levantamento da situação política do continente, ambição essa de difícil realização nas exíguas duas horas de um longa-metragem, parece ter sido fiel, em tese, ao conselho. Seu sistema criativo parece ser muito mais indutivo do que dedutivo e é justamente nesse processamento que se realiza o princípio do escritor. Afora essas considerações de ordem pessoal que me vêm à memória num momento de saudade, poderia dizer ainda que as relações de Guimarães Rosa com o Cinema não param aí. Há ainda um momento de tristeza no que se re-

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2 É provável que David Neves confundiu-se e quisera mencionar o conto A menina de lá, da coleção Novas Estórias. (N.E) 3 “O mundo é mágico”, frase do discurso de posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras 4 Antonio Candido em Tese e Antítese, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964, p. 122.

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fere à transposição para a tela de Grande Serão: Veredas levada a cabo pelos irmãos Geraldo e José Renato Santos Pereira, que transformaram a transcendência do sertão dos Gerais no mais reles estereótipo do western. E um outro momento de desafogo, em A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, que, se não chegou a definir exatamente a visão sincrética do mundo de Guimarães Rosa, pelo menos não deturpa a intenção final do autor. Na periferia dessas obras acabadas (embora no caso de Grande Sertão seja imperiosa a refilmagem) há um rebuliço em torno de algumas novelas, sendo que Buriti (da coleção Corpo de baile) é uma das mais perseguidas, já tendo passado pela cogitação de Joaquim Pedro de Andrade e, mais recentemente, de Leon Hirszman. (O realizador de O padre e a moça durante certo tempo ficou indeciso entre Buriti e a A estória de lélio e lina.) Dos exemplos mais recentes está o de Nelson Pereira dos Santos, que pensa em levar para a tela a Menininha2 da coleção Novas Estórias. Nada mais justo. Porque ninguém mais cinematográfico do que Guimarães Rosa (o leitor há de nos perdoar o lugar-comum). O cinema sendo o ponto de contato entre a realidade e a magia, arte não codificada onde tudo é permitido, inclusive a presença mágica do mundo3. Sigamos Antonio Candido e teremos a chave do caráter cinematográfico de Guimarães Rosa: “Parecia que, de fato, o aturo quis e conseguiu elaborar um universo autônomo, composto de realidades expressionais e humanas que se articulam em relações originais e harmoniosas, superando por milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma”.4 E, mais adiante: “...a paixão pela coisa e pelo nome da coisa [...] tudo se transformou em significado universal, graças à invenção...”. Estamos, afinal, diante da cristalização das teses expostas nas duas recomendações citadas acima: a do próprio Guimarães Rosa a Glauber Rocha e a de P.E. Salles Gomes aos novos cineastas. O recente passamento do escritor e diplomata João Guimarães Rosa veio trazer, a meu ver, uma lacuna no meio cinematográfico brasileiro. É paradoxal o fato, dado que ele não militasse entre os cineastas, mas, como pode ser visto, sua presença e seu élan, de alguma forma agiam sobre os processos criativos do Cinema Novo. Meu breve relacionamento com esta figura extraordinária não me permitiu deixar passar incólume esta oportunidade de registrar fatos que poderiam ser considerados apenas comezinhos pelos que tiveram a grande chance de conviver com o grande escritor. Sua lição nos foi inestimável: ele transformou o Sertão no próprio mundo. Cabe a nós promover a ampliação desta aventura original.

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Rio, Zona Norte1 Rio Zona Norte é um marco estável na história do cinema novo brasileiro. Esta estabilidade tem pouco a ver com o ostracismo por que passou o filme no tempo em que vigorou seu certificado de censura, isto é, no período em que foi exibido no território nacional. No entanto é, ao meu ver, um dos filmes mais inspirados do cineasta que acaba de nos dar Tenda dos Milagres, uma obra definitivamente madura. A fita de estreia de Nelson, Rio Quarenta Graus tinha causado o devido impacto, mas, como um primeiro produto autoral egresso do caos cinematográfico do meio da década de 50, não podia deixar de refletir essa desordem artística que procurou, de um único golpe, suprir. Quando partiu para fazer Rio Zona Norte, o realizador não só estava consciente de suas potencialidades como sabia bem controla-las e concentrá-las. Do mural ambicioso que foi Rio Quarenta Graus passou a um filme com uma bela estrutura arredondada, fazendo uso expresso do flashback como recurso narrativo e, por outro lado, apto a se dedicar à sua personagem central o compositor Espírito de Luz Soares, extraordinariamente protagonizado por Grande Otelo. A filmagem na favela, na rua, no leito da ferrovia, substitui com a vantagem da verossimilhança os estúdios artificiais da chanchada e os atores novos recrutados desde o filme de estreia (Vargas Junior, Haroldo de Oliveira, Washington Fernandes etc.) trouxeram um ar de realidade que faltava em nosso cinema. A estória de Espírito é triste: para começar, sabemos que está moribundo. Caiu de um trem suburbano e aguarda socorro junto à linha da estrada de ferro, assistido apenas de duas ou três pessoas que presenciaram o acidente. Esta revelação é feita logo na sequência inicial, ao fim dos letreiros. Uma aproximação da câmera no rosto do acidentado e o espectador passa a participar de seu delírio retrospectivo.

1 Publicado originalmente em Filme Cultura #28 (Fevereiro de 1978), pg. 90-107

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O encadeamento dos diversos flash-backs se dá através de retornos ao local do acidente e essas passagens são feitas por meio de fusões, recurso aliás que o filme usa muito inteligentemente, na mesma linha ideológica de simplificação e de economia de tempo. O rigor pressentido, neste respeito pela estrutura pré-determinada, também é digno de nota. Na filmografia de Nelson

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Pereira dos Santos ele só encontra par no utilizado na feitura de Vidas Secas, algum tempo depois. Nos demais “grandes filmes” de sua carreira, Nelson, sem desprezar o resultado final, transferiu o sentimento de “rigor” puro e simples para o de “consciência crítica do métier”, o que, nas condições brasileiras de produção, permitiu resultados sempre novos e originais. A paixão que nutria pelos exemplos neorrealistas ainda vivos nas telas brasileiras dos anos cinquenta, só perdeu para a impregnação que a realidade brasileira provocava, e o resultado formal é menos transparente estilisticamente e, portanto, mais pessoal. O realizador se colocou expressamente, como havia feito no filme de estréia, entre a realidade e a obra para evitar deturpações provenientes de influências alienígenas. Rio Zona Norte resultou num canto de amor ao homem brasileiro e os ecos desse canto repercutem ainda hoje nos seus trabalhos subsequentes. A tônica de Rio Zona Norte é, entretanto, a leveza. Como protesto pela condição do sambista marginal, engolido pelas emissoras de rádio, televisão, ou pelas gravadoras, é um caso paradoxal de veemência pela suavidade. Nem mesmo os momentos de grand-quignol, como o roubo da tendinha de “seu” Figueiredo (Washington Fernandes), ou do assassinato do filho de Espírito (Norival: Haroldo de Oliveira), onde a fotografia de Hélio Silva apela para o claro-escuro dos dramas policiais, nem mesmo aí se consegue suspeitar da violência áspera do ser humano acuado. A leveza do tom se não é deliberada parece ainda uma opção de estilo, quase um trompe l’oeil para disfarçar certo encabulamento diante de uma condição humana insustentável (Na sequência da morte de Norival retoma-se, no filme, o uso da profundidade de campo. Como as condições de produção certamente não favoreciam o uso de um parque de luz necessário à plena possibilidade de aproveitamento desse método, o resultado foi híbrido: Espírito em primeiro plano, caído ao chão e visto com nitidez e, ao fundo, os pivetes quase desfocados, esfaqueando Norival). Se é essa a atmosfera dominante num momento de tensão dramática de Rio Zona Norte, podemos imaginar a inspiração irradiada nos momentos distendidos e alegres. Na verdade é a personalidade bonachona de Espírito, sempre enganada, mas sempre esperançosa que preside, por opção do realizador, grande parte do desenrolar do filme. No início, quando tomamos conhecimento dos personagens, através do primeiro flash-back (e há o recurso curioso de fundir o ruído de um trem suburbano com a batucada de uma Escola de Samba), Espírito canta na quadra da “Unidos da Laguna”, depois do incidente entre um marginal e uma sambista

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(Malu). A gratificação de Espírito alcança a plenitude quando as atenções dos espectadores convergem para ele e sua excepcional inspiração de compositor e, mais ainda, quando se vê correspondido pela sambista, que aceita sair da quadra sob sua proteção. Espírito e Adelaide iniciam uma vida em comum e, pelo menos mais dois momentos magistrais de Rio Zona Norte, encontram-se sob a influência dessa nova união. Um desses momentos inicia-se na passagem de um close up de Espírito na linha férrea em Silva Freire para um outro em seu barraco, no instante em que acorda, ainda sob o efeito dos bons fluídos da véspera. O ritual das abluções matinais que antecede a chegada de Adelaide com a “bagagem” (o filho no colo, um embrulho e uma fruteira) para estabelecer-se definitivamente ali é talvez um dos climaxes estéticos (em realismo e poesia) da aventura cinematográfica brasileira. O diálogo que segue, transcrito na íntegra, pontua a sequência: Adelaide (Malu): Dá licença prá dois? Espírito: Isso é que é a sua bagagem? Adelaide: Foi só isso que aquele bandido quis me devolver! Espírito: Boneco! Vem com o papai, vem! Vem, meu filho, vem com o papai... Tão bonito! Ó, que amor... Como ele é bonito, Adelaide... Seu boneco... Adelaide: Parece até que nunca viu um garoto! Espírito: Mas é que ele é muito lindo! Adelaide: Que é feito da tua família? Espírito: A mulher morreu... era uma boa companheira. Morreu quando Norival nasceu.... vinte anos que eu sou solteiro... quem mais sofreu com isso foi o Norival! O Juiz achou que eu não podia educar ele. Pensando bem, não podia mesmo não. Eu saía o dia todo, ele ficava largado no quintal. O quintal dele era o morro inteiro... Adelaide: Deve ser uma boa bisca. E esse aqui: o que não vai ser! Estou atrasada. A patroa deve estar fula! E eu ainda tenho que levar esse trambolho... Espírito: Não precisa não! Coitadinho... Como é o nome dele? Adelaide: Cláudio. Mas ainda não está batizado. Espírito: Ainda não? Nós vamos dar um jeito nisso. Vem cá... Está vendo?! Daqui a pouco eu vou estar de casa nova... O compadre vai morar em cima, e eu fico com a tendinha e os dois cômodos embaixo. Vai sobrar muito lugar. Se tu quiser, Adelaide...

Espírito, em seguida, acompanha Adelaide na descida do morro, exultante com a nova situação, apresentando a parceira aos vizinhos e amigos. O melhor momento da sequência, entretanto, ainda está por vir. Sem palavras, ao pé do morro, Adelaide guarda uma certa distância de Espírito e com uma meia

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flexão do corpo oferece cerimoniosamente o rosto para o beijo de despedida. O uso da estrutura que estabelece a prioridade dos fatos passados sobre os presentes favorece, em certa medida, a idéia da ascensão de Espírito; a volta ao presente “afere” essa falsa idéia com a “realidade”. Foi esse procedimento que, ao meu ver, fez de Rio Zona Norte um filme avançado para o seu tempo. Fui vê-lo pela primeira vez em 1965. Ora, nesse ano o show Opinião (Nara Leão, Zé Keti e João do Valle) já havia vulgarizado os sambas de Zé Keti que constituem o suporte musical da trilha sonora (aliás Zé Keti participa do filme, numa pequena ponta: a do cantor Alaor Costa). Minha apreciação conta portanto com esse handicap, mas a oportunidade de vê-lo nessa época não pode ser extendida ao público em geral, razão pela qual passei a considerar Rio Zona Norte como um filme refilmável. O instituto da refilmagem só com algumas exceções vigora no Brasil. Não é comum um filme ser refeito, seja por motivos artísticos seja em decorrência do sucesso comercial de sua versão original. Refilmar Rio Zona Norte hoje (com, praticamente, os mesmos atores) seria revelar a um público já acostumado com as coisas de nosso cinema uma obra que ficou no ostracismo por ter nascido antes do tempo: moderna e contida; social e intimista; crítica e romântica. A segunda metade de Rio Zona Norte começa praticamente com o reencontro de Espírito com o filho, fugido do Patronato. Essa nova preocupação é colocada junto às investidas do compositor para o lançamento dos seus sambas. Os dois problemas passarão a correr paralelamente aos subtemas da intromissão de Maurício (Jece Valadão), e da displicência de Moacir (Paulo Goulart). (Maurício usufrui a inocência de Espírito, fingindo trabalhar na promoção ou divulgação de suas músicas e Moacir, compositor frustrado e impotente, pretende sempre querer ajudar Espírito.) É curioso observar um detalhe que caracteriza as aparições de Moacir e pessoas ligadas a ele. Essas cenas são, em geral, filmadas em estúdios e isso as distancia das demais, no morro ou mesmo na rua. O refrão pronunciado por Moacir: “Precisamos conversar!”, enfático e demagógico, ajuda também a aproximar todos esses momentos do caricato sempre presente nas antigas comédias musicais, provocando aqui um pequeno desiquilíbrio estilístico. Outro problema cenográfico ocorre nas primeiras cenas do hospital quando Espírito é conduzido em maca para a sala de operações. O realizador esforça-se para fazer combinar o visual dessas passagens com a naturalidade das cenas filmadas em locação. Esse esforço é em parte recompensado e a experiência devidamente assimilada para a futura transfiguração no Boca de Ouro (1963).

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Os próximos momentos altos serão a morte do filho, a decisão de impedir novas interferências de Maurício na parceria de suas composições, o encontro com Angela Maria e a volta para casa, onde o fim e o princípio da estória se encontram. Já falei a respeito da morte de Norival e, antes do encontro final com Maurício, há uma breve passagem que descrevo aqui pela sua originalidade: Vemos na tela um plano aproximado de Espírito andando apreensivo. Sobre essa imagem, na trilha sonora, ouvimos um tom solente: “Como Norival devolvesse o dinheiro roubado a seu legítimo dono, o chefe do bando, não acreditando na boa ação do companheiro, agrediu-o, tendo sido repelido a golpes de canivete. Daí nasceu o desejo de vingança que se consumou à noite, quando o bando inteiro liquidou Norival com facadas e pedradas diante dos olhos do próprio pai.” Tem-se quase a impressão de um jornal radiofônico (ou cine-jornal). A câmera corrige sua posição e, atrás de Espírito podem ser vistos Honório (Vargas Junior) e “seu” Figueiredo, o primeiro jornal na mão lê para o segundo a notícia sensacionalista do dia. O encontro com Maurício se dá a seguir, na tendinha de “seu” Figueiredo. Faz parte de uma decisão de Espírito, tomada no íntimo, de não mais aceitar a espoliação de seus direitos. A cena é provocada por uma nova tentativa de conciliação do intermediário sem escrúpulos. Há bastante violência na reação de Espírito, e a mise-en-scène simples, mas eficiente, é soberana: Maurício: Meus pêsames... Isso acontece, parceiro! Mas não há de ser nada. Eu precisava falar com você. É pra você falar com o diretor da gravadora, sabe? Você precisava assinar outro documento. Formalidade, sabe?... Esse é pro meio do ano? (vendo um papel na mão de Espírito). Deixa eu ver... Deve ser um tiro, hein? Vamos entrar com essa bomba logo depois da Quaresma. Deixa eu ver! Espírito: (Com um safanão evita que Maurício peque a letra do samba.) Não, Maurício... Este não! Este samba é meu! Só meu!... Eu vou gravar ele sozinho, e há de ser com Ângela Maria!

Os jogos estão feitos; as demais sequências, até o desenlace, acompanharã. Espírito e lhe trarão um sopro de esperança. Assim é o encontro com Ângela Maria que encerra alta dose de sentimentalismo, na medida, entretanto, para contrabalançar os infortúnios anteriores. A desventura de Rio Zona Norte, como já disse acima, vem do fato de ter surgido antes do tempo. Cada vez mais me convenço da importância do momento histórico na relação obra cinematográfica-platéia. O cinema evoluiu artística

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e tecnicamente de 1958 até esta parte, mas a simplicidade e a pobreza de recursos de Rio Zona Norte são hoje vistos como elementos altamente positivos na reconstrução realista do drama de um sambista carioca. Na época, porém, o neo-realismo italiano começava a dar lugar a filmes mais elaborados, alguns mesmo dentro do espírito do star-system americano. Por outro lado estávamos apenas iniciando a longa jornada que culminaria com a eclosão do cinema novo. Não havia a televisão nem as novelas. Os filmes dialogando em português ainda eram vítimas da falta de hábito do espectador, hipnotizado pelas legendas dos produtos estrangeiro Tudo isso contribuiu para que até espíritos lúcidos como o do saudoso P. E. Salles Gomes não tivessem meios de interpretar devidamente o filme de Nelson Pereira dos Santos na época do seu lançamento. Entre outras coisas, dizia ele em seu artigo: “Rascunhos e Exercícios” publicado no Suplemento Literário do Estado de São Paulo #86 (21 de junho de 1958): “... a fraqueza mais evidente da fita reside na confiança excessiva depositada pelo realizador na virtualidade artística dos materiais a serem cinematografados.” (...) “Ele simplesmente dispôs numa certa ordem os materiais, quase em estado bruto, de uma realidade pouco trabalhada, na esperança de que a poesia e a beleza nela contidas se comunicassem espontaneamente ao espectador pelo milagre da fotogenia e da sonogenia.” Tenho certeza que o despreparo para referenciar um filme brasileiro a dados estéticos próprios e definitivos foi o culpado por grande parte das opiniões a respeito dos filmes dessa fase árdua de estabelecimento de uma indústria cinematográfica entre nós. Um estudioso como P. E. Salles Gomes, o mesmo que algum tempo depois passou a alinhar os dados mencionados acima e a promover um estudo orgânico de nossa cinematografia, foi vítima aqui dessa armadilha inevitável. Ele pressentia em Rio Zona Norte os gérmens dessa autenticidade artística mas limitou-se, quando muito, a uma suposição tímida: “Apesar de tudo isso, é um exercício válido.” (...) “Penso sobretudo na sequência em que o personagem interpretado por Grande Otelo acorda, levanta-se, faz a ‘toilette’ e recebe a noiva. Gostaria de saber se esses minutos de fita foram obtidos por acaso (o grifo é meu) ou se o diretor agiu conscientemente. De qualquer maneira, os movimentos do ator, as palavras que troca com a noiva, o comportamento com a criança e sobretudo a extraordinária presença táctil dos objetos de uso corrente ou da ornamentação humilde do barracão, criam uma harmonia interior e comunicam uma doçura que conferem a essa sequência modesta uma consistência artística e humana rara no cinema brasileiro.”

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Depois do seu encontro com Ângela Maria e a decisão desta de gravar “Fechou o Paletó”, Espírito ainda tenta, sem sucesso, o auxílio de Moacir para conseguir uma partitura do samba. Volta para casa como que refeito dos reveses pelo encontro com a cantora. Seu refrão, agora, é “Samba meu, que é do Brasil também...” O trem atravessa os subúrbios levando Espírito, um pingente iluminado. Dá-se o acidente... A obra posterior de Nelson Pereira dos Santos confirmou seu talento e suas intenções. Há um ano, ou pouco mais, exibi Rio Zona Norte no auditório da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro, para uma delegação de diretores de Festivais Internacionais de Cinema (Los Angeles, New Orleans e Berlim). A cópia apresentada não tinha legendas e eu me esforçava em promover uma compreensão geral do filme, durante a projeção, sem interferir nas condições ideais de percepção. O filme, que eu revia depois de algum tempo, revelava força nova, uma perenidade que, acredito, não se esvairá mais. Os visitantes saíram entusiasmados.

Diário de Luz Del Fuego VI VI 5.7.81 De Belo Horizonte, Geraldo Magalhães em a convite da Estrutural, a agência que assegura um output anual de notícias sobre o filme. Geraldo, velho conhecido do embaixador do Brasil em Roma onde viveu e estudou cinema é desses mineiros eternos que não negam a raça nem na cidade idem. Parcimonioso, modesto, cavaleiro, generoso, não abre mão de certas ideias, ideias estas que sua mineirice não nos dá a honra de conhecer. Sobre Luz del Fuego, por exemplo, insistiu todo o tempo de nosso périplo – Santa Tereza – Botafogo (Sky Light) – sobre a inconveniência de Lucélia Santos1 para o papel principal para um divulgador contratado sugeri que abandonasse suas dúvidas críticas e que se desfizesse daqueles pruridos documentais que assolaram e assolam o cinema brasileiro até hoje e dos quais ele ainda não conseguiu desembaraçar-se. Adiante tratarei com mais minúcias, deste assunto que chegou a me atormentar com insistência – a do physique du rôle. 17.7.81 Joana d’Arc na fogueira, Lola Montès, Luz del Fuego, Lucélia Santos.1 Estou chegando ao fim da primeira parte de uma aventura artística. Sentimental de alta intensidade e os reflexos nas diversos espelhos d’alma (conhecidos ou não) começam a faiscar neste inicio de montagem. A variedade do material filmado - sou tentado a dizer: a genialidade - é tão grande, que o filme, sem ser disforme, nem uniforme, transforma-se numa cinebiografia, digamos assim, com notas de pé de página, com referências de vida e de cinema, mudo, falado e, para minha surpresa, até cantado: “Estolas com Vision, Cadillac com Chauffeur… Viagens a Paris Ô lá lá!!! Preciso urgentemente de um coronel Para minha vida enfeitar!”

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1 Por ser branca, muito acreditavam que Lucélia Santos não se parecia com a morena Luz del Fuego, e isto foi visto como inverossímil, comprometedor. Em determinado momento da produção, nomes como de Sônia Braga estavam entre os cotados. Foi a própria Lucélia, por determinação, que lutou pelo papel-título. (N.E)

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Tudo qual uma festa de formatura de colégio interno, da mesma maneira como a Martine Carol rejuvenesceu pela maquilage no início de Lola Montès, de Max Ophuls, as luzes alaranjadas de Fernando Duarte, revelam uma jovem e irreverente showgirl de corpo e alma, (in) experiente, disponível, linda, e sobretudo, com a cabeça sendo progressivamente feita. Fica difícil dizer que imagem de Luz del Fuego seduz mais. Se esta, arcaica, longínqua ou se as subsequentes, da autossuficiência, do apogeu, ou, da certeza. Caráter caprichoso, personagem sedutora, atriz determinada e simpática, o filme Luz del Fuego persegue uma intriga jornalística, semi-policialesca, anímica, sobre a qual não tenho mais, hoje, temor de levantar impressões nem revelar alguns segredos. Adoro este material bruto pronto para a lapidação. A capacidade de recordar sendo débil, o filme vai-se recriando no meu espírito dia a dia, para a procurar, mas ignoro absolutamente qual será sua organização final. Dela tenho apenas uma ideia longínqua de vida e de amor. Na verdade, apesar de ter tido alguma antipatia pela matriz, sou apaixonado por minha Luz Del Fuego. Amo de paixão, amo sem perdição esta criatura porra louca e generosa, agridoce grosseira e suave - inesquecível na sua verdade e na sua virtualidade. *** 17.7.81 (Paquetá) O mar quando brilha no horizonte “Limite” é por questão no mínimo inesperado! O que é o que é por cima de ti eu trepo no seu vai e vem o gozo contigo fica e o leite comigo vem S.A A técnica do erro cobras, paus, indústria, personalidade, arte FPessoa, Iglesias etc Sotaque dos atores Do roteiro ao sanguíneo Época? 1950 {?} A preocupação com o começo e o fim de cada plano. Figuras em cena - no centro do quadro? Repetição do padrão inicial de cada sequência etc.

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Uma Aventura Malgaxe1 Uma crônica publicada (ao que tudo indica) numa revista de cinema neozelandesa dá conta de um fato curioso acontecido há algum tempo na costa oeste de Madagascar, a uma distância considerável de Tananarive, portanto. Não fica especificado na referida crônica o local exato, mas supõe-se, pela descrição geográfica, tratar-se de um ponto vizinho a Androka, no litoral sudoeste da ilha. Essa aventura cinematográfica Malgaxe (nome atual da República constituída na antiga ilha de Madagascar) pode servir como padrão relativo da significação do cinema nos dias de hoje. Tudo leva a crer que os acontecimentos foram resultado de uma coincidência histórica. A arca ou espécie de arca que veio àquela praia sul-equatorial continha uma quantidade considerável de latas de filmes impressos e sua descoberta provocou uma sequência de eventos que vem finalmente provar que o cinema tornou-se fenômeno que supera o conceito do nacional e reforça o vínculo indissolúvel entre arte e indústria. Mas, também, e paradoxalmente, demonstra o contrário. Consta que, entre latas e imagens não identificadas, faziam parte desse estranho acervo cenas de Aconteceu em Veneza, filme colorido e em cinemascope, de Roger Vadim, duas partes iguais de Quatro noites de um sonhador, de Robert Bresson, uma das quais acompanhada de um maço de anotações ao que parece do próprio cineasta. Em versão integral, Pett & Pott, de Alberto Cavalcanti, sendo que ainda deste cineasta havia uma espécie de trailer de O canto do mar dublado em swahili, língua falada em toda a ilha. Este detalhe reforça a tese de alguns de que a arca fora deliberadamente lançada ao mar para ir ter à costa malgaxe. Outras especulações, sobretudo devidas ao exame do material excedente, como a cena da dança de Rita Hayworth em Gilda, de Charles Vidor, ou uma visão da lua através do Corcovado, provavelmente filmada de algum ponto da Baía da Guanabara, deduzem que o referido material cinematográfico teria alguma relação com o fim dado pela Desilu (subsidiária da Paramount) ao filme inacabado de Orson Welles, It’s all true. Além de cenas de filmes totalmente desconhecidos tanto em idioma quanto no estilo cinematográfico, outras, como o desfile de uma escola de samba na Quinta Avenida, em Nova York, produziram conjecturas, a respeito da filmagem clandestina de O rei do Rio, projeto do jovem cineasta brasileiro Bruno

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1 Originalmente publicado no livro Cartas do meu bar, Rio de Janeiro: Editora 34. 1993, pg. 60.

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Barreto. Em outras latas, curiosas “experiências” de montagem foram encontradas, assim como tentativa de levar o espectador a crer que o povo esbaforido e atordoado que fugia dos disparos dos cossacos na escadaria de Odessa dirigia-se pura e simplesmente para um Fla x Flu decisivo no Maracanã! Ou que Fabiano, personagem exemplar de Vidas secas, era visto nítida e deliberadamente a se intrometer na vida dos personagens femininos de As Deusas, do paulista Walter Hugo Khouri. Ou ainda, que, no momento em que Pedro Arcanjo invoca os deuses para proteger seu grupo contra a intromissão da polícia em Tenda dos milagres, associa-se a essas imagens à de Ney Sant’Anna surgindo das águas em Amuleto de Ogum numa estranha tentativa de “sincretizar” a obra de um mesmo autor, no caso, Nélson Pereira dos Santos. Ignora-se até hoje de que maneira foi parar naquele ponto do Oceano Índico essa preciosidade cinematográfica, bem como que trajeto, que correntes marítimas a teriam levado até lá. Casto tenha ela partido do continente americano, concebe-se até mesmo a possibilidade de um percurso contornando o Cabo da Boa Esperança. E as inscrições diligentemente pintadas na sua parte externa propõem outro dilema histórico: mencionam igualmente, sem distinção, através das palavras cinéma e cinématographe o conteúdo da arca (usa o francês como idioma universal, fornecendo assim uma pista concreta sobre a prioridade dos irmãos Lumière sobre Thomas E. Edison na “fundação” da sétima arte). Um único filme, ou melho, uma única parte de filme foi descoberta na arca em vários formatos (bitolas), até mesmo no fora de uso 9,5mm. Tratava-se de Bang-bang, longa-metragem de André Tonacci. A rigor, o trecho repetido não passa de uma sequência e ela se encontra na primeira parte do filme. As referências desse trecho que apresenta um quarto semelhante ao de um hotel, onde um mágico vestido a rigor faz sumir e aparecer a seu bel-prazer alguns dos outros personagens com feições de marginais típicos. Um dos estudos na supracitada revista procura explicar a insistência na referida passagem Bang-bang, apelidando-a de “carta aberta aos roteiristas de todo mundo”, como se o poder sobrenatural do mágico em tela (sic) devesse ser absorvido por aqueles que escrevem filmes e não possuem a correspondente naturalidade com o veículo. A arca parece ter permanecido um longo período na praia vizinha a Androka. Quando foi encontrada conservava grande quantidade de calor solar (isso danificou alguns filmes no seu interior, tornando-os inclassificáveis). Foram nativos os que primeiro a descobriram. O rumor da descoberta cor-

reu célere e a arca acabou desembarcando em Tananarive depois de uma sofrida viagem de caminhão. Nessa viagem, ainda perplexos com o achado, esses nativos perdulários fizeram que se desenrolassem pela estrada alguns rolos de filme, não sem certo deslumbramento. Uma página, ao menos, dos escritos de Robert Bresson foi levada pelo vento. Um caixeiro-viajante que a encontrou dias depois leu várias vezes em voz alta a frase A Força Ejaculadora do Olhar, tentando entender o que ela poderia significar tanto ao pé da letra como metaforicamente.

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Cartas do Meu Bar II II “Se ela ficasse de viés, ou melhor, para, só olhando... A ideia de cinema me veio assim, vendo o mundo de lado, sem ser notado... “eavesdrooping”. O presente livro tem todos os vícios dos livros de coletânea crítica, que terminam em estantes, como livros de referencia. Ficção, para o espectador brasileiro, é o filme estrangeiro. Eu amo meu bar. Ele é meu segundo lar. Já tive outros lares e bares. Lar é como pai e mãe em geral: um bar é feito à sua imagem e semelhança – substituindo carinho e afeto por uma solidão a sós ou mal acompanhada. O bar fica bom quando todos, numa união silenciosa, parecem entrar num uníssono espiritual”.

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A Vida como Rascunho1 Não é fácil explicar como a gente chega a certos estágios da vida, sobretudo quando eles são diametralmente opostos àquilo que se planejou. Minha “vocação cinematográfica”, por exemplo, surgiu da maneira mais acidental, mais improvisada que se possa imaginar. Leve-se em conta, também, certa “disponibilidade” vocacional de alguém que ingressa na Faculdade de Direito totalmente desprovido do Esprit de corps e se vê subitamente envolvido numa coluna semanal de um jornal universitário. Cinema, felizmente, tem muito a vez com a vida e a busca de ficção faz parte dela: reorganizar a vida a nosso bel-prazer, acrescentando música, ordenando o caos, retocando esse ou aquele defeitinho incômodo, para todo o sempre. Nem o teatro pode ser tão perfeito nesse sentido porque ele depende do mood desse ou daquele ator num determinado dia. P.E Salles Gomes colocou bem essa definição (por via de comparação com o teatro) do que vem a ser o cinema: “A aflitiva tranquilidade das coisas definitivamente organizadas”. Cá estou eu entre a realidade e a ficção, preferindo o xerox ao original, o rascunho ao passado a limpo, o esboço ao trabalho acabado, a aquarela ao bronze, a Polaroid à Kodak. A fotografia sempre me fascinou: essa possibilidade de descartar para fora do quadro os objetos ou as pessoas incômodas, essa recriação do mundo. Edgar Morin comenta com sabedoria: o Gênio da fotografia é para começar “químico”. Gênio, palavra que para nós hoje tem significado especial, quase de interjeição, é usado ali num sentido metafísico bastante procedente. O processo químico da fotografia, de redução da prata, maior em minha cabeça do que todo e qualquer valor artístico ou autoral. Tenho uma tese especial sobre a sensibilidade da película (variável para cada tipo) sendo modificada pela vontade do fotógrafo, condicionada por sua vez pela maior ou menor inspiração provocada pela pessoa ou objeto fotografado. A vantagem da Polaroid é que o gênio químico é visível a olho nu. Pode-se recomeçar em seguida. Um rascunho infalível, automático (às vezes, você trabalha contra o computador, o olho elétrico, como é chamado só de pirraça – e ganha dele!). Você descobre que fotografar bem é olhar bem, saber escolher hora e local, ter paciência. Ninguém ilumina melhor do que a natureza ( ia falar Deus, mas não ousei: é muito gênio junto). Depois, vem as cantoneiras. Hoje, até os álbuns de fotografias são de plástico e cheiram mal. A Polaroid acata a cantoneira e ambas combinam às mil maravilhas. Elas juntas restituem à fotografia sua dignidade mítica de magia e simplicidade.

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1 Manuscrito encontrado no arquivo da Cinemateca do MAM-RJ. Artigo publicado originalmente na revista Homem Vogue, n. 28-B, na edição de setembro, 1977.

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Diário de Luz Del Fuego VII VII 16.9.81 Depois do 1o corte, visto e ao que parece aprovado, começam a se deliberar os contornos de Luz del Fuego. [As protuberâncias, as saliências, não devem ser amenizadas [sob] nenhum pretexto] Surpreendente (ou, há muito esperado) efeito de incessante bom humor preside o compasso de Luz del Fuego. Tenho rido bastante com a verve dos personagens que se não engendrei, in totum, deles assumirei total e irrestrita responsabilidade. Eles atravessam e desfrutam a tragédia o drama ou mais simplesmente o sofrimento de maneira a fazer inveja a observadores intrometidos como Rosenkrantz ou ……. Ainda estou longe do término desta empreitada. Ainda ficaram,, no material filmado, brechas para inserções de novas cenas (quem sabe mais criativas, para amenizar a acidez ou o sarcasmo?), mas estou diante de 4hs e 5 minutos de um material pré-lapidado que continua a me instigar. Mudei muito ou não mudei nada: quero que a simplicidade de todos meus outros filmes (Ave! Humberto Mauro) se defina e se aprimore aqui. 1a sequência na Delegacia anotação após 1o corte: Passar do bar Paladino para jantar com Ítala e Walmor (traduzir em personagens) para subir de Luz nas escadas de Ivan Cândido (idem) [(escada+ escada)] começo fim Continuar com o que já foi apresentado no 2o corte. Justificativa desta proposta: alongar os tempos destas sequências (tri)-gêmeas, reforçar, na sua quarta aparição, a personalidade de Luz del Fuego (isto agora sob certa histeria, sobretudo com o contraste família oferecido por dois excelentes figurantes a mãe e a filha atordoadas na entrada da 5a D.P).

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Feu Follet Receptáculo oculto na caatinga, o material filmado de Cabra marcado para morrer levou, mais ou menos, trinta anos no seu processo de vir à tona como filme pronto, acabado desde sua primeira concepção. Neste período, o Cinema Novo ia-se desenvolvendo na superfície. A sua história é variada e supera o cálculo previsto de nascimento, vida (e morte?) do movimento. Trinta anos, data redonda que engloba o conteúdo de seus filmes e personagens. Para mim, então, a classificação é perfeita. 1963 foi o ano de Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade. Eu havia finalmente deixado a crítica cinematográfica (a que voltaria esporadicamente) e descoberto uma fonte de sobrevivência mais concreta, sempre ao lado de Joaquim Pedro, com quem havia “trabalhado” cinco anos antes em Couro de gato. Joaquim e Mario Carneiro sempre “olharam” para mim de uma forma especial, talvez pelo pistolão de que disponho: o primo Alexandre Eulalio, amigo de ambos. Mas 1963 não foi um ano só meu. Era a chegada de Glauber Rocha da Bahia, era a efervescência da amizade do grupo, eram as reuniões no bar da Líder, o laboratório preto-e-branco, da rua Álvaro Ramos, em Botafogo. Nelson Pereira prepara Vidas Secas. E a Europa começava a pensar em nós. Cinema passou a ser coisa diferente de nossas concepções de críticos ou intelectuais. As pessoas passaram de colegas de faculdade ou de colégio para participar de um mutirão numa atividade meio mágica considerada inacessível algum tempo antes. Ainda não era fácil fazer cinema, mas chegávamos a ele com um desplante de gente poderosa. O mundo não era adverso até 1964. O golpe militar paradoxalmente trouxe apenas uma complicação suplementar. Foi nessa época que, depois das primeiras experiências práticas pessoais (Memória de Helena, Mauro, Humberto e Lúcia McCartney), passei a me dedicar aos estrangeiros. Viajei 13 anos, participando de Festivais, Debates e Palestras, saboreando o êxtase com que eles desfrutavam nossos filmes. Retrospectivamente, hoje, é difícil imaginar que uma precariedade de recursos pudesse gerar uma quantidade tão farta de produtos notoriamente valiosos. Tinha do que pensar e falar. Mas, temporariamente, abdiquei da fatura.

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1 Durante os anos da ditadura militar, o material de Cabra Marcado para Morrer foi guardado na casa do general Luiz Neves, pai de David Neves.

É rebarbativo falar da evolução de nomes e títulos, contar uma história várias vezes já contada. Eduardo Coutinho, sempre esquecido, vítima escolhida do golpe, pode servir aqui de exemplo sintético, como foi levantado no início deste artigo. Seu filme, como dei a entender, não durou trinta anos. Mas sua luta, sim. Teve as filmagens interrompidas, sofrendo ininterrupta perseguição policial, denunciado como subversivo. Parte do material foi confiscado, mas o principal devidamente escondido nas vizinhanças das locações.1 E tudo só resgatado um bom tempo depois. Desta maratona, em que se destacam também os nomes de Marcos Farias, Antônio Carlos Fontoura e Fernando Duarte, para apenas citar três, resultou um filme-símbolo, refeito com requintes arqueológicos nos primórdios da década de 1980: Cabra marcado para morrer. O cineasta francês Louis Malle era um dos fanáticos pela novidade sul-americana, na época de minhas viagens. Ficou conhecido por um filme “de arte”, chamado Trinta anos esta noite. Dei a este artigo o título original do filme, cuja tradução literal é “Fogo-fátuo”. Às vezes, das cavernas da cidade – os cinemas – saía um fogo assim: um filme brasileiro.

Diário de Luz Del Fuego VIII VIII 21/11/81 Ilha das Flores Luz del Fuego eu Minha alma, se isso é o amor, eu acho que estou feliz. Ultimo dia de filmagem, depois de longa pausa. Estou muito emocionada. Na verdade, sempre estive muito emocionada. Durante todo o tempo. Só que só agora sinto como uma despedida. Engraçado, não havia ainda tido despedida. Agora está havendo. Luz del Fuego, eu, Paquetá, ilha do sol Minha alma, se isso é amor, eu acho que estou feliz. ------Eu procuro ou espero a inspiração com certa aflição. Diário Lux 1 - Chave do tamanho 2 - Atlântida + M. de Helena 3 - Material 4 - “Produção” 5 - Lucélia (sonho meu) 6 - Policial 7 - Lorival 8 - “Sem Pressa” ------Salve lindo cordão da bonança É que falta e que bem que me faz! Só lembrar e a simples lembrança Me excita e a força me traz

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Vista para o Mar1

Aceita o afeto que te entrego no meu peito tão febril Só penso nas curvas dessas serras adoradas serras do Brasil! Salve lindo cordão da bonança Só lembrar e a simples lembrança Aceita o afeto que te entrego Só penso nas curvas dessas serras Ó que falta e que bem que me faz Me excita e a força me traz. no meu peito tão febril Adoradas serras do Brasil!

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O título de um curta-metragem de Ney Costa Santos, Vista para o mar, provocou em mim, num momento descompromissado, uma série de divagações sobre o cinema brasileiro. Não é difícil achar afinidades cada dia maiores entre a produção de um filme e uma incorporação imobiliária. Depois do sucesso financeiro de Dona Flor e seus dois maridos, a produção (entidade abstrata e, no caso presente, restrita a certa faixa entre Rio e São Paulo) começou a vislumbrar e mesmo adotar novos sistemas, talvez numa tentativa de provar o limite da elasticidade do mercado para os filmes brasileiros. E é esse inflacionamento orçamentário dos novos filmes que nos traz de volta à comparação inicial. O desmatamento cultural que a subida de preço dos filmes provocou é nocivamente proporcional à criação de um novo tipo de status entre os cineastas. A desvalorização do cruzeiro provocaria (ou provocou) uma alta do custo das produções, mas esse aumento já havia sido estabelecido como condição sine qua non para a existência de um filme, antes da subida do dólar, como num ato profético. Mercado imobiliário, produção cinematográfica e status são três elementos reunidos como um jogo de bilhar francês, onde a carambola é fator indispensável. Voltemos ao mercado imobiliário. Essa ideia, vinculada ao cinema nacional, ainda necessita de um aprofundamento maior. Para começar, estamos às voltas com grandes empreendimentos, os conjuntos arquitetônicos, as áreas virgens como o caminho do mar na direção sul. São pretextos materiais que os movem, sempre: compra e venda; e a despersonalização, com raras exceções, faz parte de sua estrutura íntima. O velho e charmoso cinema artesanal acabou, pelo menos nessa faixa. O status decorre desse dado e varia diretamente com o aumento do preço da “incorporação”. Há tráfego direto entre as sedes desses empreendimentos, carteiras ou credenciais estritamente personalizadas, além de certo prestígio sócio-cultural. Resta saber se a aplicação financeira é recuperável, se o investimento vale a pena. Se toda essa comparação é derrogatória ou só ela é a saída para nosso cinema.

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1 Originalmente publicado no livro Cartas do meu Bar. Rio de janeiro: Editora 34. 1993. Pg. 26

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Quando se sabe que um filme tem de render três vezes mais do que seu custo de produção para que o produtor recupere o dinheiro aplicado, começa-se (ou se deveria começar a pensar mais seriamente na questão, sobretudo quando o governo, através da Embrafilme, pode vir a ser envolvido no negócio. Este texto alicerça-se sobre exemplos mais ou menos alheios à faixa da Embrafilme. O fenômeno dos “filmes de status” ( e seu preço é, na maioria das vezes, o agente no 1 dessa classificação) tem-se circunscrito quase que geralmente à área particular. O tom crítico que pode transparecer é, até mesmo, um pouco exagerado porque esses filmes não representam, ainda, saídas definitivas para o futuro cinema brasileiro. Não passam de experiências, algumas das quais de alto nível artístico. Defender, por outro lado, o filme de baixo orçamento seria meio anacrônico, apesar de a História provar que tivemos, ou que alcançamos status com uma boa dezena de filmes bon marché. Mantendo o paralelo, não chegam a ser eles “quarto e sala”, mas eram bem acabados e sobre eles soprava certa brisa marítima. Respiravam, sobretudo, personalidade. O impasse, se é que existe impasse aqui, resolve-se através da televisão. Foi ela quem deu vida progressiva à venda de imóveis; transformou-a de negócios em prova viva de ascensão social, e impregnou-a com o “estrelismo” (star system) que vem a ser a peça nova ausente até agora desse novo “quebra-cabeça cultural”. Uma construção, reta ou sinuosa, pode hoje ser comparada à Sonia Braga (quem não gostaria de morar nela? De frente ou de fundo? Duplex ou tríplex? Mas...e as chaves? E o maldito habite-se?...) Há pontos de contato enormes entre living, carpetes, copas, cozinhas, corredores, espelhos, decoração, enfim, com a tradução cinematográfica. O cinema americano mais vulgar não apresenta um letreiro sequer, sobre fundo branco, sem a sombra esvoaçante de uma ramagem, com o acréscimo de um tema musical delirante. Entro no nosso último departamento. Juro. O cinema americano é que é a meta, o gol, o alvo, a mira, o objetivo, o termo, o limite, o fim deste artigo. Do concreto às estruturas metálicas, de Oscar Niemeyer, do nordestino Joaquim Cardoso e Mies Van der Rohe, estamos americanizando nossas construções e tentando (des) nacionalizar nosso cinema. Depois do neo-realismo, para chegar ao estado atual, o cinema italiano deve ter atravessado a mesma via sacra que é, etimologicamente, sinônimo de sofrimento. Estamos trilhando percurso semelhante. A Itália sempre foi nosso

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exemplo preferido. Nelson Pereira dos Santos “fundou” o cinema novo com Rio, quarenta graus, um filme neo-realista? Trata-se de uma evolução irreversível, algo catastrófico, mas o tamanho territorial do Brasil, sua distância de Hollywood e a falta de toda técnica cinematográfica desenvolvida em favor de uma perfeição anônima e insossa permitiram-nos, como os italianos, viver um interregno mais ou menos imune à contaminação. O “filme de status” é hoje o primeiro no sentido de um cinema apátrida entre nós: é como Veneza artificial da Côte d’Azur, Port Grimaud. Na verdade, esses filmes ainda não são construções idelogicamente deliberadas como esse paraíso turístico francês, mas favorecem-se das facilidades e do charme de um trânsito financeiro artificial, isto é, originado fora do mercado cinematográfico propriamente dito. Na última safra de filmes brasileiros desponta, sem dúvida alguma, Bye Bye, Brasil, de Carlos Diegues, trabalho primoroso sobre nosso sincretismo cultural, mas com um título sintomático demais para deixar de fazer parte desse artigo. Mesmo que venha a saber o dia e a hora da partida não irei ao bota-fora. Ficarei em casa curtindo nostalgicamente os velhos tempos.

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Cartas do Meu Bar III

David Neves e Rubem Fonsêca falam de Lúcia McCartney

III “As pessoas originariamente vinham do rádio para o cinema. Eu estou querendo ir do cinema para a rádio com todas as implicações que isso possa ter. Minha voz analítica não permite! Fulaninha trabalha sobre o real, sobre o realismo, sem trapaças nem esnobismos para competir, ficcionalmente, com ficção industrializada. Foi lançado de pijama, contra os filmes feitos de smoking ou black-tie, para ganhar o mercado brasileiro, sem ônus excessivos para a Embrafilme. Não confundir voyeur com visionário. A novela da tevê é dirigida para suprir climas de outros programas: sentimento, crime, humor, etc. A ondas hertzianas parecem influir no comportamento dos personagens das novelas”.

Cartas do Meu Bar IV IV “A Cada filme ou evento cultural, as paredes se cobrem de pôsteres e cartazes, tudo discreto e útil. Nascimento da idéia de filmar “As Meninas”, de Lygia Fagundes Telles, tem, sem falar da relação quase familiar que persegue inexoravelmente meus filmes desde Memória de Helena até hoje, seu fundamento numa pressão de fora para dentro, tanto da parte das pessoas, como do elenco propriamente dito. Elenco é roteiro.”

Entrevista dirigida por João Carlos Horta O problema da transposição de uma obra literária para o cinema e as dificuldades de adaptação de dois contos do livro “Lúcia McCartney” foram tema de um insólito diálogo entre o cineasta David Neves (Memória de Helena) e o escritor Rubem Fonsêca (“Coleira do cão”), registrado para FILME CULTURA pelo fotografo João Carlos Horta (Pecado Mortal). O cineasta deve ou não ser fiel ao original literário ao transportá-lo para a tela? Em que ponto coincidem linguagem cinematográfica e linguagem literária? O cinema pode subsistir no futuro sem recorrer à novelística? Discutindo essas (ainda polêmicas) questões, o contista e o cineasta propõe novas maneiras de ver a tradicional e discutida relação cinema & literatura. Ao mesmo tempo, discorrem sobre seus métodos de trabalho e sua posição dentro de seus respectivos domínios artísticos. JCH: Até que ponto a vivacidade do diálogo de Rubem Fonseca, e em particular a de “Lúcia McCartney” (livro), teria relações afins com a linguagem cinematográfica? DN: Pessoalmente, acho que o estilo de narração de Rubem Fonsêca é um estilo cinematográfico, embora não tenha sido isso a primeira coisa que me atraiu para fazer o filme Lúcia McCartney. Foi mais a temática, o que realmente me atraiu. RF: A linguagem escrita, que é a linguagem da cultura industrial, é uma coisa, e a futura linguagem da cultura tecnológica será outra. A linguagem cinematográfica me parece ser, não sei se você também concorda com isso, David, uma linguagem de transição entre a cultura industrial e a cultura tecnológica. A linguagem escrita é linear. Se você verificar bem, ela exige um tipo de pensamento necessariamente diferente da nova linguagem. DN: Nesse caso, você se considera entre uma coisa e outra? RF: Sou um escritor que também gostaria de fazer cinema se tivesse tempo. Mas acho que o cinema não deve ser a reprodução de uma coisa que foi escrita. Alguém disse que “Moby Dick” ficou melhor no cinema. Pode ter ficado

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melhor ou não, mas certamente foi outra coisa. Lúcia McCartney de David Neves será uma coisa diferente da “Lúcia McCartney” de Rubem Fonsêca. DN: A linguagem cinematográfica não será assim o fim de uma transição. RF: Acho que estamos debatendo o seguinte: qual será a linguagem que prevalecerá na cultura tecnológica? Não será a linguagem escrita. DN: Será uma linguagem mais direta. RF: Que também não será o cinema. DN: Isso eu também acho. O que você estava dizendo me lembra um negócio em que tenho pensado muito ultimamente, devido aos filmes do Júlio Bressane. Vi recentemente O Anjo Nasceu, que é um filme de linguagem, quer dizer, não tem nada por trás dele, e verifiquei que o Júlio não elaborou coisa alguma: se escreveu alguma coisa, foi como um índice, que não influiu diretamente no resultado. Isso revela uma concepção maciçamente cinematográfica, uma linguagem totalmente autônoma, sem nenhuma vinculação com um texto preexistente. JCH: Voltando ao problema da linguagem escrita: acho que ela é analítica, tem que ser analítica, enquanto que a cinematográfica é diferente. Que pensam vocês disso? DN: Acho que ela é diferente porque não tem antecedente literário. O que se sente vendo o filme do Júlio é que ele partiu de uma concepção visual, não especificamente visual porque o filme é muito falado, mas mista de imagem e som em bloco. Não era, em suma, vinculada a um roteiro. Em Lúcia McCartney, por exemplo, fui muito fiel ao livro dentro dos limites permitidos pela própria autonomia do cinema. A primeira cena filmada foi a do boliche onde Zé Roberto encontra Aliete. Essa cena condicionou todo o resto e eu gastei mais negativo nela, procurando um ritmo certo, do que em qualquer outra sequência do filme. O boliche faz parte de uma carta que, no filme, vai ser ilustrada com imagens.

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RF: Você fez essa observação sobre o boliche por causa da dificuldade de transcrição? DN: Não. Foi porque era a primeira coisa que filmei, e eu não tinha o compasso ainda. Então descompassei, passei a filmar menos, de acordo com o ritmo da narrativa da história que, inclusive, é sincopado. Resumindo, acho que na transcrição talvez tenha feito uma “redução”. Há um artigo de Paulo Emílio Salles Gomes sobre o personagem cinematográfico, onde ele diz que os olhos de Capitu, no romance de Machado de Assis, assumem uma posição de primeiríssimo plano, enquanto que todo background é desprezado. Diz ele que no cinema – o artigo foi escrito antes de Paulo César Saraceni filmar o romance – a Capitu seria, além dos olhos, cabelos, corpo, mão, decote, tudo. Quer dizer, o cinema, de uma certa forma, “reduz” o sentido afetivo, a valorização psicológica dos olhos de Capitu. Com cinema, por ser muito generalizante, tende a “vulgarizar” muitas coisas. Em Lúcia McCartney essa “vulgarização” foi proporcionalmente fiel aos elementos da obra original. O problema que encontrei foi ao tentar fazer do conto “O caso de F.A.” uma continuação do “Lúcia McCartney”. Este é uma história sobre prostituição, e “O Caso de F.A.” fala de uma forma expressa de prostituição. Esse elo me levou a justapor os dois contos, a transformar um em prolongamento do outro, através das personagens de Lúcia, Miriam, Elizabeth e Laura. Apesar de transcrever os dois contos “quase ao pé da letra”, tive de fazer uma “redução”. Essa “redução” foi motivada pela realidade tout court. As implicações pessoais de duas histórias foram ligeiramente modificadas, pois meu objetivo fundamental era o da fidelidade. Muitas vezes sacrifiquei um conceito tradicional de mise-en-scene pelo da transcrição literária (Fui quase documental, sobretudo nas cenas de telefonemas do conto “O Caso de F.A.”). RF: Confesso que, no princípio, resisti muito a essa idéia de fundir os dois contos. Ambos são diferentes, do ponto de vista formal. Enquanto em “O Caso de F.A.” procurei dar um ritmo sincopado, à base de diálogos e com um mínimo de descrições, em “Lúcia McCartney” ocorre o contrário: a história está cheia de cenas subjetivas, coisas que poderiam ter acontecido mas não aconteceram, coisas que aconteceriam mas que não são contadas.

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DN: Essa diferença foi justamente o que me desafiou e que, em certo sentido, equilibrou um pouco o nível do filme. Realmente “Lúcia McCartney” é uma história intimista, narrada do ponto de vista subjetivo, com diálogos mais descritivos do que qualquer outra coisa. “O Caso de F.A.” é sincopado, com personagens se movimentando bastante em um curto período de tempo. Foi esse contraste, e a possibilidade de representá-lo numa progressão dramática, que aumentou meu interesse em relação ao problema de justaposição dos dois pontos. JCH: Seu processo de narrar se definiria como uma pesquisa de linguagem ou como uma pesquisa sobre o tema? RF: Você está querendo estabelecer diferença entre forma e conteúdo, e isso não existe. Eu estava interessado em forma porque a linguagem escrita é linear, e não queria ver o leitor fazendo para a direita a fim de ler “Lúcia McCartney”. Há histórias que escrevi num bloco só. “Matéria de Sonho”, por exemplo, só tem um parágrafo. Quis que ele fosse denso, sem parada, sem ar. Sobretudo que o leitor não pudesse respirar, que fosse obrigado a ler com dificuldade. Em “Lúcia McCartney”, para evitar a linearidade, forcei a leitura de cima para baixo, em alguns momentos. Você vai dizer: “Mas isso é formal”. Não é formal. Ao mesmo tempo em que fazia essa disposição gráfica do texto, eu também procurava contar uma história que estava acontecendo dentro da cabeça dela. Embora, na realidade, também não fosse verdade que estava dentro da cabeça dela. Entendeu?

DN: Acho que meus filmes não têm, de fato, ligações com nenhum outro. O cineasta de quem mais me aproximo é Joaquim Pedro de Andrade. Mas Memória de Helena não tem muita coisa a ver com os filmes de Joaquim. Meu estilo se caracteriza mais pela sugestão, pela procura do sintético. Em Lúcia McCartney, acho que me afastei um pouco dessa linha de sugerir mais do que mostrar. Na verdade, sou meio marginal. Eu gostaria de fazer um tipo de cinema até mais convencional. Graças a você, Rubem, acho que consegui ser mais universal, quer dizer, acho que consegui generalizar um pouco mais. Felizmente, as pessoas se interessam pelo tipo de experiências que faço. Embora haja algumas que consideram Memória de Helena um filme anormal. No entanto, meu cinema tem vínculos com o passado, e Memória de Helena é apenas isso: uma retomada cinematográfica do convencional. RF: Eu não sou tão marginal quanto você, mas acho que não sou ligado a nenhum tipo de literatura anterior. Os críticos quando falam de meus livros chegam inclusive a inventar coisas tremendas. A maior parte da literatura brasileira é regional, mas escrevo sobre o que sei e conheço: a cidade. Meus valores são urbanos. DN: Bem, me chamam de marginal, mas é preciso distinguir “marginal” de “maldito”. Eu me esforço por me aproximar das coisas que existem não com um sentido de destruição, mas de compreensão. Por isso é que Memória de Helena parece um filme anormal: ele faz um esforço sobre-humano para compreender as coisas. E para ser normal.

DN: Esse estilo de narração que você adotou, procurando fazer com que o leitor não se condicione a um tipo padronizado de leitura, não é também um meio de quebrar um pouco seu sentimentalismo em relação aos personagens? RF: Não. Eu não fiquei preocupado em tirar isso do conto. O tema é sobre uma call-girl, e eu não podia fazer uma história muito seca, como um texto sociológico: seria chatíssimo. Você vê Vivre sa Vie, de Jean-Luc Godard: o tempo inteiro ele fica botando estatística acolá, para no fim dizer que o filme não é sobre a prostituição. Eu não quis fazer isso. Não me interessou colocar em “Lúcia McCartney” informações sobre as call-girls cariocas. A sociologia dos personagens, no caso, não é mais importante que o insight psicológico. Falando nisso: como você se situaria no cinema brasileiro, com a sua maneira diferente de narrar?

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David Neves, Sem título

Diário Jardim de Alah1 Dias finais de Jardim de Alah. Filme pretensioso de equipe, orçamento, mas com cenário (scenario) na linha dos antecedentes. Este diário pretende desculpar fatos decorrentes do meu estado de espírito, surpreendentemente responsável, mesmo diante as crises de depressão das quais só fui tomar consciência depois de análise. Acho eu ser coisa orgânica, mais grave até, decorrente de minhas “aventuras” post-mortem Gal.Neves. Elas, as crises, vão e vem num ritmo não doloroso, mas assim mesmo não agradáveis. Nas filmagens, guardava as forças para os momentos cruciais. Del Pino, Liloye, Jaime Schwartz, estes baluartes seguraram a barra todo o tempo, a ponto de esquecerem tanto a minha presença quanto a minha doentia displicência. Meus pavores de encarar Raul Cortez e Imara Reis, ambos complicados, mas fraternos cúmplices, evidencia o que eu disse acima. Falta pouco mas chegaremos lá. A montagem, acredito, será outra história.

Quando a “Introdução ao Cinema Brasileiro” foi escrita e publicada, eu estava cursando o 2 ano de Direito da Pontifície Universidade Católica. Foi mais ou menos ao mesmo tempo que Paulo Alberto Monteiro de Barros me chamou para escrever sobre cinema n’O Metropolitano”. José Renato Santos Pereira tinha realizado com seu irmão gêmeo, Geraldo, ‘’Rebelião em Vila Rica” no qual Joaquim Pedro de Andrade exercia as funções de Assistente de Dire������������������������������������������������������������ ção��������������������������������������������������������� . (Ele, Joaquim, encaminhar-me-ia na prática cinematográfica logo depois: “Couro de Gato”). O mesmo José Renato era então diretor do Instituto Nacional do Livro e meu primo Alexandre Eulálio seu assistente editorial. Essa intrincada teia editorial mostra como o Cinema Novo sempre se nutriu dos laços “lispectorianos” de família. Tirante o exemplar comprado ali mesmo na pequena livraria que existia na entrada dos fundos da Biblioteca Nacional (Rua México) e logo emprestado ���������������������������������������������������������������� a terceiros (leia-se: devidamente “surrupiado”), passou o livro a ser peça de Museu: raro e de conhecimento indispensável. Só muitos anos depois consegui (comprei logo mais 3) localizar uma boa partida num sebo do Rio. Em boa hora a Embrafilme decide reeditar este livro que pelas resenhas até de pessoas muito competentes pareceu incompreendido na época. Tão incompreendido como o próprio cinema brasileiro. É que, como sempre, uma coisa leva à outra (umas coisas levam às outras) e era difícil “introduzir” quem quer que seja num maravilhoso e promissor “vazio” audio-visual. Alex Viany, lembro-me bem, fascinou-me porque recém-chegado de Hollywood, não se deixou contaminar pela “mosca azul” da tecnologia “yankes” nem pelo fascinante “glamour” do “star- system”. Mas elaborou um livro de pesquisa e referência, usando um estilo literário delicioso (até hoje inédito em livros subsequentes (suscitados mais tarde pela regularidade e consistência do Cinema Novo). Relido hoje, então, é ainda mais rico. Capítulos sintéticos se sucedem quase como histórias de ficção tratando de pessoas, coisas (filmes) e lugares em envolventes descrições que nos remetem a uma espécie de estado de graça cinematográfico-textual. O cinema brasileiro readquire hoje, nesta reedição, uma aura nostálgica de pureza que os avanços tecnológicos e temáticos nos fizeram esquecer. David Neves

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*Segundo a pesquisadora Silvia Oroz, este foi o último texto escrito por David Neves.

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1 Manuscrito encontrado durante nossas pesquisas no arquivo da Cinemateca do MAM-RJ.

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FILMOGRAFIA 1958 PERSEGUIÇÃO de Paulo Perdigão (CM 16mm) fotografia. 1960 FUGA de Carlos Diegues (CM 16mm) fotografia. 1960 DOMINGO, de Carlos Diegues (CM 16mm) fotografia. 1960 COURO DE GATO de Joaquim Pedro de Andrade (CM 35mm) assistente de fotografia (incluído em 1962 na coletânea CINCO VEZES FAVELA). 1963 GARRINCHA, ALEGRIA DO POVO de Joaquim Pedro de Andrade (LM 35mm) assistente de direção. 1963 A NAVE DE SÃO BENTO de Mário Carneiro (CM 35mm) assistente de direção, montagem 1964 MAIORIA ABSOLUTA de Leon Hirszman (CM 35mm) coordenação de produção. 1964 INTEGRAÇÃO RACIAL de Paulo César Saraceni (MM 35mm) fotografia. 1965 ESPORTES NO BRASIL de Maurice Capovilla (CM 35mm) fotografia. 1966 BETHANIA BEM DE PERTO de Julio Bressane & Eduardo Escorel (MM 35mm) coprodução. 1967 LIMA BARRETO: TRAJETÓRIA de Julio Bressane (CM 35mm) coprodução. 1967 OITO UNIVERSITARIOS de Carlos Diegues (CM 35mm) fotografia, montagem. 1967 LAPA 67 de Renato Neumann (CM 35mm) fotografia da 2a unidade.

Cartas do Meu Bar V V “O Brasil é o que ele é e não o que ele deve ser. Não façam ideias erradas de mim”.

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1968 MAURO, HUMBERTO (CM 35mm) direção, produção, fotografia. 1968 COLAGEM (CM 35mm) direção, produção. 1968 JAGUAR (CM 35mm) direção, roteiro, fotografia, coprodução. 1968 VINICIUS DE MORAES (CM 35mm) direção, roteiro. 1968 CRISTO FLAGELADO de Fernando Coni Campos (CM 35mm) fotografia, coprodução.

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1968 O GUESA de Sérgio Santeiro (CM 35mm) produção.

1974 MUSEU DO OURO (CM 35mm) codireção (com Paulo Thiago) fotografia.

1969 UM MUSEU (CM 35mm) direção, roteiro.

1969 TARSILA DO AMARAL (CM 35mm) codireção (com Fernando Campos).

1974-1976 Dez documentários em curta-metragem sobre escritores brasileiros: O FAZENDEIRO DO AR (Carlos Drummond de Andrade); UM CONTADOR DE HISTÓRIAS (Érico Veríssimo); EM TEMPO DE NAVA (Pedro Nava); NA CASA DO RIO VERMELHO (Jorge Amado); O HABITANTE DE PASÁRGADA (Manuel Bandeira); O CURSO DO POETA (João Cabral de Melo Neto); O ESCRITOR NA VIDA PÚBLICA (Affonso Arrinos); ROMANCISTA AO NORTE (José Américo de Almeida); VEREDAS DE MINAS (João Guimarães Rosa); POESIA E AMOR (Vinícius de Moraes).

1970 A CRIAÇÃO LITERARIA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA de Paulo Thiago (CM 35mm) coprodução.

1976 O BRASIL EM CANNES de Moisés Kendler (CM 35mm) coordenação de produção.

1970 TOSTÃO, A FERA DE OURO de Paulo Laender & Ricardo Gomes Leite (CM 35mm) câmera.

1977 JORGE BEN de Paulo Veríssimo (CM 35mm) coprodução.

1969 TARZAN (CM 35mm) codireção (com Michel do Espirito Santo),coprodução, coroteiro, fotografia. 1969 MEMÓRIA DE HELENA (LM 35mm) direção, produção, roteiro.

1977 OS DOCES BARBAROS de Jom Tob Azulay (LM 35mm) câmera.

1970 EU SOU VIDA, EU NÃO SOU MORTE de Haroldo Marinho Barbosa (CM 35mm) coprodução.

1977 VIVA A PENHA! de José Mariani (CM 35mm) fotografia,montagem.

1970 GAL de Antonio Carlos Fontoura (CM 35mm) coprodução 1970.

1977 MAXIXE, A DANÇA PROIBIDA de Alex Viany (MM 16mm) fotografia.

1970 MUTANTES de Antonio Carlos Fontoura(CM 35mm) coprodução

1978 A NOIVA DA CIDADE de Alex Viany (LM 35mm) fotografia, coprodução.

1971 LÚCIA McCARTNEY, UMA GAROTA DE PROGRAMA (LM 35mm) direção, produção, roteiro.

1979 MUITO PRAZER (LM 35mm) direção, roteiro, produção.

1971 UM AMOR DE MULHER (LM 35mm) direção, produção,roteiro (inacabado). 1971 CARTAS DO BRASIL (CM 35mm) direção, roteiro, fotografia. 1971 BIENAl - MÃO DO POVO (35mm) codireção (CM com Gilberto Santeiro), coprodução, coroteiro. 1971 O PALACIO DOS ARCOS (35mm) codireção (CM com Gilberto Santeiro), coprodução, coroteiro. 1971 DESENHO INDUSTRIAL de Harry Roitman (CM 35mm) fotografia. 1971 PARATÍ, IMPRESSÕES de Harry Roitman (CM 35mm) fotografia. 1972 CARLOS LEÃO de Suzana de Moraes (CM 35mm) coprodução.

1980 FLAMENGO PAIXÃO (LM 35mm) direção, roteiro, coprodução. 1981 LUZ DEL FUEGO (LM 35mm) direção, roteiro, coprodução. 1984 MEMÓRIA DE DIAMANTINA (CM 35mm) direção, roteiro. 1985 FULANINHA (LM 35mm) direção, roteiro, coprodução. 1988 JARDIM DE AlAH (LM 35mm) direção, roteiro, coprodução.

*Legenda CM: Curta-metragem MM: Média-metragem LM: Longa-metragem

1972 VIDA DE ARTISTA de Haroldo Marinho Barbosa (LM 35mm) coprodução. 1974 MUSEU DO OURO de Paulo Thiago (CM 35mm) fotografia

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*Todas as ilustrações e fotografias apresentadas são do arquivo pessoal de David Neves.

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Realização e Produção Dilúvio Produções Apoio Arquivo Nacional Cinemateca Brasileira Cinemateca do MAM - RJ CTAv - Centro Técnico Audiovisual Curadoria Pedro Henrique Ferreira Thiago Brito Produção Executiva Eduardo Cantarino Produção Eduardo Cantarino Isabella Raposo Identidade Visual Flávia Trizotto Website Gabriel Calderon Thais Gallart Assessoria de Imprensa Rômulo Pereira Debatedores Carlos Moletta Felipe Bragança Hernani Heffner Joaquim Vaz de Carvalho Luís Alberto Rocha Melo Revisão de Cópias Caroline Nascimento Cópias dos Acervos Arquivo Nacional; Cinemateca Brasileira; Cinemateca do MAM - RJ; CTAv - Centro Técnico Audiovisual.

CATÁLOGO Coordenação Editorial Pedro Henrique Ferreira Thiago Brito Produção Eduardo Cantarino Isabella Raposo Identidade Visual Flávia Trizotto Textos Arthur Autran David Neves Lila Foster Luís Alberto Rocha Melo Hernani Heffner Entrevistas Carlos Moletta Ittala Nandi Joaquim Vaz de Carvalho Joel Barcellos Jom Tob Azulay Mariana de Moraes Paulo Thiago Revisão e Padronização Natália Francis Transcrição das Entrevistas Marina Garcez Carolina Aleixo Editora Dilúvio Produções

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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS Carlos Moletta Egídio Eulálio Hernani Heffner Joaquim Vaz de Carvalho Milton Eulálio Rosângela Sodré

AGRADECIMENTOS Ana Beatriz Vasconcelos Ana Pessoa Antonio de Andrade Antonio Laurindo Bernardo Sabino Carolina Lavigne Centro Universitário Moacyr Bastos Daniel Pech Diogo Cavour Eduardo Toledo El Cid Eugênio Puppo Fabian Cantieri Fabrício Felice Fernanda Coelho Flávio Penner Gilberto Santeiro Gui Tostes Heloisa Rezende Ittala Nandi Ivo Raposo Jr. Joel Barcellos Joel Pizzini Jom Tob Azulay Júlia Souza Karla Alves

Katia D’Angelo Leandro Neves Leandro Pardi Liana Cavalcanti Lucélia Santos Maria de Andrade Maria Hirszman Mariana de Moraes Mariana Menezes Mario Cascardo Martha Carvana Mary Ribeiro Moema da Cunha Paula Barreto Paulo Gil Ferreira Paulo Thiago Pedro Sabino Pedro Thomé Rafael Saar Regina Coeli Mourão Revista Contracampo Ricardo Withers Rodrigo Castello Branco Sabrina Magalhães Sergio Pedrosa Walter Goulart Yol Zelito Viana

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