O cinema como recurso para o ensino de História Antiga: monacato e ascetismo em \"Simón del Desierto\", de Luís Buñuel

June 3, 2017 | Autor: Gilvan Ventura | Categoria: Cinema, Monasticism, History Teaching, Luis Buñuel, Simón del desierto
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Revista Hélade ISSN: 1518-2541 www.helade.uff.br

Título: O cinema como recurso para o ensino da História Antiga: monacato e ascetismo em Simón del Desierto, de Buñuel Autores: Gilvan Ventura da Silva; Érica Cristhyane Morais da Silva Referência: SILVA, G. V.; SILVA, E. C. M.. O cinema como recurso para o ensino da História Antiga: monacato e ascetismo em Simón del Desierto, de Buñuel. Hélade, v. 1, n. 1, 2015, p. 7-15.

Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga

O CINEMA COMO RECURSO PARA O ENSINO DA HISTÓRIA ANTIGA: MONACATO E ASCETISMO EM SIMÓN DEL DESIERTO, DE BUÑUEL GILVAN VENTURA DA SILVA1 ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA2 Resumo: No presente artigo, temos por finalidade refletir sobre a maneira pela qual o filme de Buñuel acerca de Simeão Estilita (c. 390-459), um dos mais notáveis representantes do monacato sírio, pode nos trazer informações, não apenas a respeito das correntes religiosas próprias da Antiguidade Tardia, mas também do contexto histórico do diretor, o que constitui um exercício de interpretação capaz de elucidar, em alguma medida, o potencial pedagógico do cinema para o ensino da História Antiga. Trataremos, em primeiro lugar, das conexões entre História e cinema. Em seguida, traçaremos, em breves linhas, o percurso do monacato sírio desde os seus primórdios até o século V, época na qual viveu Simeão. Feito isso, nos dedicaremos à análise da obra, buscando compreender como a narrativa fílmica da vida e dos feitos do monge contribui para a compreensão de alguns aspectos da Antiguidade Tardia, em especial

Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de História Antiga da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista Produtividade 1-D do CNPq. No momento, executa o projeto de pesquisa intitulado A cidade e os usos do corpo no Império Romano: um olhar sobre a cristianização de Antioquia. 1

Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/Franca). Professora de História Antiga da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). No momento, executa o projeto de pesquisa intitulado Espaços do sagrado e do Direito no mundo antigo: topografia urbana, texto e cultura material. 2

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aqueles de natureza sociorreligiosa, mas sem perder de vista o contexto no qual o filme foi produzido, o que nos remete ao tempo e às preocupações de Buñuel. Palavras-chave: História Antiga; Ensino de História; Cinema; Monacato; Luís Buñuel

Palavras iniciais Dentre os recursos didáticos para o ensino da História merecem, sem dúvida, destaque as produções cinematográficas, capazes, em muitas circunstâncias, de possibilitar aos alunos/espectadores, em especial àqueles dos níveis fundamental e médio, a apreensão visual de acontecimentos pretéritos mediante a sua recriação cênica, produzindo-se assim uma operação cognitiva difícil de ser obtida apenas por meio da consulta à bibliografia especializada e às fontes disponíveis, boa parte delas constituída por textos. O emprego do cinema como estratégia pedagógica para o ensino da História parece se tornar mais eficaz à medida que retroagimos no tempo, para fases e períodos cujos usos, costumes e a própria configuração espacial, paisagística, se Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga distanciam sobremaneira da experiência vivida pelo aluno. Desse modo, o cinema revela-se um importante recurso didático para o ensino da História Antiga, que conserva em si mesma o traço da alteridade absoluta, pois, quando estudamos as culturas e sociedades antigas, somos obrigados a realizar um deslocamento espaço-temporal bastante acentuado. Cumpre observar, no entanto, que assim como ocorre com as narrativas historiográficas que, mesmo tratando do passado mais remoto, se enraízam no presente, traindo, nas entrelinhas do seu modus faciendi, a cumplicidade indissociável entre o tempo, as intenções, convicções e aspirações do historiador e os objetos que escolhe estudar, o cinema também exprime um olhar sobre a história saturado de contemporaneidade, sem mencionar a liberdade artística da qual gozam diretores, roteiristas, produtores, cinegrafistas e outros tantos envolvidos com a produção da sétima arte para desenvolver o seu enredo, condição em certa medida negada ao historiador por força dos cânones que regem o ofício. É preciso então estar atento para o fato de que, além dos conteúdos relativos ao passado propriamente dito, o cinema nos oferece, antes e acima de tudo, determinada representação desse passado, uma maneira particular de se contar uma história cujos propósitos muitas vezes se conectam menos com a “fidelidade” ao registro histórico do que com as inquietações do presente, incluindo as exigências do mercado, pois se é arte, o cinema também é indústria, razão pela qual talvez o veículo seja o mais ilustre exemplo da assim denominada “indústria do entretenimento”, variável que não pode, de modo algum, ser ignorada quando nos dispomos a introduzir o filme na sala de aula. Na interseção do contexto de produção do filme com o contexto histórico ao qual ele se refere, temos condições de problematizar sobre como o cinema retrata o passado, que modalidade de visão gera sobre este e como tal visão é transmitida a uma audiência numerosa e difusa. A seleção do tema passível de receber um tratamento cinematográfico não é, em absoluto, autônoma, na medida em que as visões do passado projetadas na tela encontram-se atreladas a valores, sentimentos e significados que se relacionam amiúde Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

com o contexto de produção da obra, incluindo os gostos do público, pelo que alguns temas costumam atrair mais a atenção dos cineastas e produtores do que outros. Quanto à Antiguidade, numa avaliação longe de ser exaustiva, é possível concluir que os temas relativos à História do Egito, da Grécia ̶ com destaque para as sociedades homérica e clássica ̶ , de Roma, dos hebreus e dos cristãos são predominantes em comparação, por exemplo, à História da Mesopotâmia ou da Pérsia. Pouco a pouco, no entanto, parece se delinear certa alteração no repertório de assuntos tratados pelo cinema, operando-se uma mutação temática ainda tímida, mas nem por isso desprezível. Talvez em função do aumento expressivo de interesse dos historiadores em investigar esse período histórico que convencionou-se designar como Antiguidade Tardia,3 decisivo na transição do mundo clássico para o medieval, o cinema, especialmente aquele que, na falta de um termo mais apropriado, costumamos nomear como “alternativo”, ou seja, colocado à margem dos mecanismos de financiamento (mas também de controle!) dos grandes estúdios norte-americanos e europeus, tem experimentado a abordagem de acontecimentos e personagens tardo-antigos amiúde esquecidos ou sequer conhecidos do grande público.4 No entanto, quando refletimos sobre o lugar ocupado pela Antiguidade Tardia no domínio da filmografia, é impossível não reconhecer a iniciativa pioneira de um diretor como o espanhol naturalizado mexicano, Luís Buñuel (1900-1983),5 que, em

A expressão Antiguidade Tardia refere-se à fase final do Império Romano e ao início da Idade Média (séc. III-VII), um amplo período de transição no qual as tradições romanas, germânicas e cristãs lentamente se fundem. 3

O filme intitulado, em português, Alexandria, de Alexandre Amenábar, lançado em 2009, conta a história de Hipácia, uma filósofa neoplatônica do século IV. Em 2014, um novo filme foi lançado, Katherine of Alexandria, dirigido por Michael Redwood. Ainda sem título em português, o filme tem como protagonista Catarina de Alexandria, uma nobre devota cristã que viveu em Alexandria, em fins do século III e início do IV. 4

Luis Buñuel nasceu na Espanha, tendo estudado em Madri. Após a graduação, seguiu para Paris e depois retornou, por dois anos, a Madri. Com a ditadura de Franco, optou pelo exílio, passando uma temporada nos Estados Unidos e se radicando no México em 1946, onde filmou Simón del Desierto (ACEVEDO‑MUÑOZ, 2003, p. 39‑49). 5

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Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga 1964, rodou Simón del Desierto, uma película em preto e branco na qual narra a comovente história de Simeão Estilita, talvez a figura mais emblemática do monacato sírio, lançando assim alguma luz sobre um dos aspectos mais característicos da sociedade tardo-antiga, ou seja, o movimento monástico, que, em seus primórdios, foi dominado pela figura dos anacoretas, monges que observavam um ascetismo estrito na solidão das montanhas, dos desertos, dos pântanos e das florestas, submetendo-se aos rigores das intempéries e a toda sorte de privações em prol da elevação espiritual, assunto absolutamente periférico do ponto de vista cinematográfico. Em termos do ensino de História Antiga, julgamos que a análise de Simón del Desierto possa constituir um recurso valioso para o estudo da sensibilidade religiosa própria da Antiguidade Tardia, período no qual, em virtude da ascensão do cristianismo e de todo o reordenamento espiritual que tal acontecimento implicou, os indivíduos manifestavam um forte desejo de união com o divino, o que os levava, em muitos casos, a abraçar a vida monástica em busca de um contato mais próximo com Deus, dando ensejo assim ao surgimento de uma experiência que Liebeschuetz (2011, p. 33) classifica como “cristianismo em tempo integral”. No presente artigo, pretendemos refletir sobre como o filme de Buñuel acerca de Simeão Estilita, um dos mais notáveis representantes do monacato antigo, pode nos trazer informações, não apenas a respeito das correntes religiosas próprias da Antiguidade Tardia, mas também do contexto histórico do diretor, o que constitui um exercício de interpretação capaz de elucidar, em alguma medida, o potencial pedagógico do cinema para o ensino da História Antiga. Nesse sentido, discutiremos, em primeiro lugar, as conexões entre História e cinema. Em seguida, traçaremos, em breves linhas, o percurso do monacato sírio desde os seus primórdios até o século V, época na qual viveu Simeão. Feito isso, nos dedicaremos à análise do filme, buscando compreender como a biografia fílmica do monge contribui para a compreensão de alguns aspectos da Antiguidade Tardia, notadamente os de natureza sociorreligiosa, mas

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sem perder de vista o contexto no qual o filme foi produzido, o que nos remete ao tempo e às preocupações de Buñuel.

O cinema e suas visões do passado Segundo Napolitano (2011, p. 240-241), o cinema descobriu a História muito antes de a História descobrir o cinema, uma vez que, no início do século XX, os filmes ditos “históricos”, ou seja, aqueles que buscavam, na História, inspiração para os seus enredos, constituíam uma parcela expressiva da filmografia. No entanto, em virtude do paradigma historiográfico então vigente, que valorizava os documentos escritos, em especial aqueles ditos “oficiais”, na construção do conhecimento histórico, o cinema não era ainda tido pelos historiadores como uma fonte de informação “confiável”, de maneira que nem mesmo os documentários, gênero fílmico que, a princípio, seria mais “objetivo” do que os filmes cujos roteiros proporiam uma livre recriação cinematográfica do passado ̶ não a captura de processos históricos “reais” ̶ eram incluídos na agenda de pesquisa. Quanto a isso, nem mesmo os célebres filmes etnográficos, que buscavam registrar o cotidiano, as práticas e os ritos das sociedades tradicionais, como a balinesa, bastante populares entre os antropólogos a partir da década de 1920 e que tinham como “diretores” figuras de proa como Franz Boas e Margaret Mead, foram capazes de suscitar de imediato o interesse pelo cinema como fonte histórica, inércia que replicava, a bem da verdade, o desprezo dos historiadores da época para com as imagens, mantidas sempre em segundo plano diante dos textos (BURKE, 2004, p. 194). Não que o potencial dessa nova e complexa forma de linguagem, como é o cinema, para legar à posteridade uma memória ao mesmo tempo visual, escrita e sonora acerca da realidade não tivesse desde cedo despertado a atenção, pois, em 1916, já temos, na Inglaterra, a edição da obra The Camera as Historian (A câmara historiadora), um manual sobre como utilizar corretamente a câmara na captação dos acontecimentos (GOWER; JAST; TOPLEY, 1916). Todavia, uma inflexão na maneira como os Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga historiadores lidavam com a produção cinematográfica, em particular aquela que tinha por finalidade registrar fatos e acontecimentos, como vemos nos filmes produzidos à semelhança de um jornal filmado, somente terá lugar na segunda metade do século XX, no bojo do amplo movimento de renovação pelo qual passava a historiografia, em boa parte devido aos “combates pela História” travados por Lucien Fébvre e seus epígonos desde pelo menos o Entre Guerras. Um passo importante nessa longa trajetória rumo ao reconhecimento do cinema como uma fonte histórica autorizada para o trabalho do historiador foi a publicação, em 1961, de uma coletânea francesa sobre os métodos da História organizada por Charles Samaran, na qual figuravam dois capítulos dedicados às fontes visuais, ambas da lavra de Georges Sadoul: Photographie et cinématographie e Témoignages photographiques et cinématographiques (CARDOSO; MAUAD, 1997, p. 412). No entanto, o marco decisivo para a inclusão definitiva do cinema no repertório de fontes à disposição do historiador foi, sem dúvida, o trabalho de Marc Ferro, autor que, em 1973, publica, na prestigiosa revista Annales, um artigo intitulado Le film, une contra-analyse de la societé?, mais tarde incorporado ao terceiro volume da coleção Faire l’Histoire, dirigida por Jacques Le Goff e Pierre Nora. Nele, Ferro se dedica a tecer algumas considerações de método sobre a exploração do cinema como documento histórico, num momento em que os filmes não faziam parte do “universo mental dos historiadores”. Deixando de lado o tratamento do cinema como arte, ou seja, abrindo mão de analisá-lo sob uma perspectiva estética e semiológica, Ferro se concentra no valor do cinema como testemunha, na sua capacidade de revelar o passado por meio das lentes seletivas do cinegrafista, o que não pressupõe, todavia, uma relação de transparência entre a câmara e a realidade, pois o filme é um artefato altamente complexo, congregando elementos que poderíamos denominar intrafílmicos ̶ a modalidade de narrativa, o cenário, o texto, a luz, o som ̶ e elementos extrafílmicos, ou seja, “o autor, a produção, o público, a crítica, o regime” (FERRO, 1989, p. 203). Aplicando seu método de trabalho a um conjunto de produções das primeiras décadas do século XX, dentre as quais gravações da Rússia revolucionária, o autor, por assim dizer, institui um Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

método de trabalho que será mais tarde retomado com a publicação de Cinéma et histoire, obra de 1977 na qual Ferro sistematiza, no capítulo inicial, não por acaso intitulado Coordenadas para uma pesquisa, algumas recomendações importantes para todos aqueles que pretendam tomar o cinema como fonte histórica, defendendo a existência de uma “linguagem cinematográfica” específica que deve ser apreendida por ela mesma e não em comparação com o texto escrito. Além disso, segundo Ferro (1992), os filmes não reproduzem de modo passivo e com maior ou menor “objetividade”, aquilo que porventura faz/fez parte da realidade, mas, em face da sua capacidade sinergética, interferem diretamente nos mecanismos de percepção e nas práticas sociais, contribuindo à sua maneira para a construção desta realidade da qual se nutrem e da qual, mesmo nos casos das tramas passadas nas galáxias mais longínquas, não podem se desvencilhar. Como argumenta Valim (2012, p. 2985), parafraseando Michèle Lagny, “o cinema não é apenas uma prática social, mas gerador de práticas sociais, ou seja, o cinema, além de ser um testemunho das formas de agir, sentir e pensar de uma sociedade, é também um agente que suscita certas transformações, veicula representações ou propõe modelos”. De fato, qualquer filme, seja aquele que tenha por função documentar determinado acontecimento, muitas vezes com o propósito de alertar a população para algum risco iminente (à saúde, ao meio ambiente), a exemplo de Super Size Me (2004), de Morgan Spurlock, ou de denunciar os mecanismos de opressão e as injustiças sociais, como vemos em Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho, seja o que promove o entretenimento puro e simples, quase sempre acompanhado pelo enriquecimento dos estúdios, é uma fonte legítima para o historiador, pois, independente do gênero adotado, todo filme constitui uma representação da realidade presente, passada ou futura de acordo com os valores e os propósitos daqueles que os realizam (BURKE, 2004, p. 200), já que os filmes nos contam sempre uma versão de fatos da vida enquadrados por múltiplos condicionantes (políticos, econômicos, religiosos, culturais, psicológicos, tecnológicos). Mesmo em se tratando dos documentários ou de depoimentos filmados, o diretor, o produtor ou mesmo o mais amador dos cinegrafistas opera uma seleção daquilo que deseja reter com sua câmara,

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Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga sem mencionar o trabalho posterior de edição que, ao recortar, reunir, separar, inverter e suprimir as cenas termina por conferir uma lógica outra àquilo que foi filmado, a ponto de causar estranhamento aos participantes do filme. Em se tratando do filme histórico, essa discussão é da maior relevância em função das concepções pós-moderna que, nas últimas décadas, têm contestado não apenas o pressuposto de veracidade do conhecimento histórico, mas também o monopólio dos historiadores sobre o passado. O que autores como Hayden White e Robert Rosenstone têm defendido é que outras narrativas, como a fílmica, são aptas a falar do passado tanto quanto a narrativa historiográfica, adquirindo os cineastas, por intermédio de dramatizações dos eventos históricos, chancela para contestar e mesmo revisar os argumentos dos historiadores (VALIM, 2012, p. 286). No limite, seria como se o ofício de cineasta e o de historiador fossem equivalentes, o que nos parece um contrassenso, pois mesmo os filmes que buscam construir um relato o mais fidedigno possível acerca dos acontecimentos históricos, como Luís XIV toma o poder (1966), de Roberto Rossellini, não são capazes de substituir a escrita da história, mais não fosse pelas exigências de síntese impostas ao próprio meio, sem mencionar o aumento considerável das possibilidades de anacronismo à medida que remontamos no tempo, motivo pelo qual, segundo Burke (2004, 202-3), os filmes ambientados no passado recente tendem a ser muito mais precisos, ao passo que dificilmente os cineastas que tratam de períodos mais recuados mostram-se propensos a resguardar a alteridade cultural de uma época pretérita, sob pena de tornar o produto enfadonho ou irreconhecível para a maioria dos espectadores. Feitas essas observações, não resta dúvida que os filmes têm uma importante contribuição a dar ao conhecimento histórico, tanto na condição de fontes de investigação quanto na de recursos pedagógicos para o ensino da História, não havendo motivo para o historiador e/ou professor os ignorar ou estabelecer com eles uma relação de certa desconfiança. O importante é reconhecer que, como toda fonte histórica, o cinema comporta limites e potencialidades, não substituindo nem podendo ser substituído por nenhum outro suporte ou linguagem. Posto isto, caberiam algumas palavras adicionais acerca do “filme histórico”, gênero que se

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propõe a retratar acontecimentos e fases do passado, em geral aqueles tidos como emblemáticos, a exemplo do Êxodo, da Paixão de Cristo, da Revolução Francesa, da Independência do Brasil e outros tantos, filmes estes que, ao trazerem o aporte da imagem, exercem grande fascínio sobre os alunos da Educação Básica. Segundo Napolitano (2011, p. 246), do ponto de vista teórico, o filme histórico, não importando o quanto ele se mantenha fiel às fontes de informação autorizadas (textos antigos, moedas, mosaicos, inscrições), não deve ser interpretado como uma reprodução do passado per se, mas antes como “[...] veículo de disseminação de uma cultura histórica, com todas as implicações ideológicas e culturais que isso representa”. Com base nas reflexões de Pierre Sorlin, o autor estrutura a relação entre filme histórico e conhecimento histórico em três eixos: a) os filmes históricos, embora tendo como matéria o passado, ancoram-se no presente, sendo, portanto, influenciados pelo contexto de seus criadores e pelo circuito produção/ distribuição/exibição; b) os filmes históricos são formas peculiares de um “saber histórico de base”. Embora não criem o saber histórico propriamente dito, eles o reproduzem e reforçam, o que converte o cinema num poderoso agente de difusão de lugares de memória; c) os filmes históricos apresentam uma tensão permanente entre os níveis ficcional e real, constituindo uma narrativa que, a despeito do inevitável aporte da imaginação, pretende criar um efeito de verdade (NAPOLITANO, 2011, p. 246). Muito embora o emprego de filmes como recurso pedagógico para o ensino de História pareça uma tendência contemporânea, estimulada a partir da década de 1980 mediante a popularização dos reprodutores domésticos de fitas VHS, logo depois substituídos pelos leitores óticos de DVD e, mais recentemente, pela tecnologia Blu-Ray, é preciso destacar que já em 1912, Jonathas Serrano, professor do Colégio Pedro II, defendia o uso de filmes de ficção e documentários pelos professores de História, o que lhes permitiria abandonar o método tradicional de memorização, levando os alunos a aprender não apenas pelos ouvidos, mas também pelos olhos. Todavia, Serrano, fiel aos pressupostos da Escola Metódica, acreditava à época que os filmes seriam capazes de recriar, na tela, a realidade tal como ela ocorreu, crença que investigações posteriores cuidaram de refutar (BITTENCOURT, 2004, p. 371-2). Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga Cientes da impossibilidade de reproduzir, por meio da narrativa fílmica, o passado tal como ele aconteceu (algo de resto impossível para qualquer outro veículo), restaria nos interrogarmos sobre como os professores podem recorrer ao cinema a fim de enriquecer as aulas que ministram. A respeito do assunto, Circe Bittencourt (2004, p. 375 e ss.) faz algumas recomendações bastante úteis. Em primeiro lugar, o professor, ao escolher um filme para analisar, deve considerar as preferências e o grau de maturidade dos alunos. Filmes muito complexos ou muito lentos podem não surtir o efeito desejado numa classe do Ensino Fundamental, mas ser bem recebidos pelos espectadores do Ensino Médio. Em segundo lugar, é preciso não confundir uma aula de História centrada na análise crítica de um filme com uma sessão de cineclube, ou seja, com uma atividade lúdica no decorrer da qual o professor não raro se ausenta da sala de aula, procedimento que, infelizmente, parece se impor em muitas escolas de nosso país. Pelo contrário, é preciso preparar os alunos para a atividade, discutindo com eles a complexidade da linguagem cinematográfica e informando-os sobre os aspectos técnicos do filme em questão (diretor, roteirista, ano de produção, enredo, atores principais, locação, eventuais prêmios que recebeu, distribuição). Em seguida, opera-se a análise do filme propriamente dita, com destaque para os quesitos que permitam aos alunos compreender os motivos pelos quais o roteirista e o diretor optaram por contar determinados acontecimentos da forma como o fizeram. Quanto a isso, uma estratégia producente é detectar os possíveis anacronismos, não para condenar a obra por imperfeição, mas para perceber como o presente, às vezes de modo absolutamente involuntário, é projetado no passado. No emprego de um filme em sala de aula, é possível, naturalmente, assisti-lo do princípio ao fim, respeitando-se assim a sequência das cenas estabelecida pelo diretor. No entanto, há outra opção menos óbvia e um pouco mais complexa que pode render excelentes resultados. Trata-se da operação que Vesentini (2002, p. 165) denomina “desmontagem”: a subdivisão do filme em vários blocos, constituídos por cenas curtas, de acordo com o programa de curso, o que possibilita uma abordagem intensiva da obra. Por último, resta assinalar que, dependendo do conteúdo, a utilização de filmes históricos em sala de aula pode favorecer bastante Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

o aprendizado da disciplina, principalmente quando lidamos com sociedades muito distantes no tempo e no espaço, como no caso da História Antiga. Para os alunos do Ensino Fundamental e Médio, a oportunidade de ver recriada na tela, mesmo com todos os filtros que temos discutido ao longo deste texto, uma paisagem e um estilo de vida pode constituir, em muitos aspectos, um notável ganho cognitivo, fazendo com que tais alunos se tornem mais receptivos à abordagem de assuntos por vezes completamente estranhos à sua realidade, como é o caso do monacato sírio, fenômeno religioso marcado por um profundo rigorismo.

Os anjos sírios O monacato foi uma das mais notáveis expressões do ascetismo cristão, tendo se expandido por todo o Império Romano a partir de meados do século III. O epicentro do movimento monástico foi, de início, a região setentrional do Egito, que viu florescer a anacorese, modalidade particular de ascetismo na qual o indivíduo, rompendo com os laços ordinários de sociabilidade, buscava refúgio em locais inóspitos e distantes a fim de experimentar, na solidão, um contato direto com a divindade.6 Como patriarca dos anacoretas, a tradição cristã transmitida por Jerônimo, em sua Vita Pauli, registra o nome de Paulo de Tebas, um aristocrata da Tebaida que, fugindo da perseguição de Décio, em 249, retira-se para uma caverna, onde permanece recolhido por longo tempo, morrendo aos 113 anos de idade (BERARDINO, 2002, p. 1117). Todavia, o nome mais importante associado ao monacato egípcio é o de Antônio ou Antão, habitante de uma aldeia nas imediações de Heracleópolis Magna, no Médio Egito, que, por volta de 270, decide repartir seus bens e abraçar a vida ascética, arregimentando uma legião de seguidores, que ocupam as paisagens montanhosas e desérticas do Delta, como nos revela Atanásio, em sua obra Vida de Santo Antão (MARAVAL, 1995, p. 723-724). Outra figura emblemática é Pacômio,

O substantivo anachoresis que designa uma das modalidades possíveis de ascetismo monástico significava, originalmente, a fuga ou retirada dos insolventes para as regiões desérticas, ou seja, a anacorese foi, durante muito tempo, uma estratégia visando a iludir o fisco ou evitar o recrutamento forçado (MARAVAL, 1995, p. 719-745). 6

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Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga o fundador do ramo cenobítico (comunitário) do monacato. Nascido numa família pagã do extremo sul do Egito, Pacômio se converte ao cristianismo em 313. Em seguida, é iniciado no ascetismo sob a orientação de um eremita denominado Palamão. Insatisfeito com a maneira pela qual o eremitismo era então praticado, decide fundar, em Tabenisi e Pabau, associações monásticas sediadas em mosteiros, impondo aos ditos monachoi uma regra estrita de conduta.7 À época da sua morte, em 346, Pacômio respondia pela criação de nove mosteiros masculinos e dois femininos (CROSS; LIVINGSTONE, 2005, p. 1215). Não obstante a iniciativa pioneira dos monges do Egito, o movimento monástico sírio-palestino e mesopotâmio não surge por derivação do monacato egípcio, mas apresenta uma linha própria de desenvolvimento, constatação que o sucesso alcançado por Antônio e Pacômio tende a eclipsar. Na Síria, a emergência do monacato parece conectada com um amplo movimento rigorista conhecido como encratismo (de enkrateia, continência), do qual o expoente foi Taciano. Recusando o matrimônio e a ingestão de vinho e carne, os encratitas investiam na exaltação do celibato e da virgindade (BERARDINO, 2002, p. 474). Conquanto não pareça ter existido uma seita encratista propriamente dita, as concepções que sustentavam o movimento revelaram-se, nos círculos orientais, bastante influentes, como vemos ocorrer entre os “Filhos e Filhas do Pacto”, associações de homens e mulheres que se difundem pela Síria e Mesopotâmia a partir de Nísibis e Edessa. Celibatários assim como Jesus, os Filhos e Filhas do Pacto (i. é, do batismo) devotavam todo o seu tempo ao serviço das congregações locais, acompanhando a liturgia e assistindo os bispos, presbíteros e diáconos como um clero de segundo escalão. No século IV, o florescimento do monacato tende a absorver estas associações pré-monásticas (MARAVAL, 1995, p. 733), quando os territórios da Síria-Palestina e Mesopotâmia são ocupados sistematicamente por uma multidão de monges. As

O emprego mais antigo do termo monachos (“aquele que vive sozinho”) provém de um papiro egípcio da cidade egípcia de Karanis. Datado de 6 de junho de 324, o papiro contém uma petição na qual certo Isaque, um monachos, é citado como alguém que interveio a favor de um diácono da congregação local na disputa por uma rês (CANER, 2012, p. 593). 7

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montanhas a norte e a leste de Antioquia, o deserto de Cálcis, os arredores de Ciro, Edessa e Nísibis logo passam a abrigar um expressivo contingente de ascetas cujo denominador comum era o extremo rigor que praticavam. Os monges sírios impunham a si mesmos penas as mais severas, portando correntes de ferro, recusando toda e qualquer higiene corporal, consumindo as noites em vigília e outras tantas mortificações. Suas vestes, quando possuíam alguma, eram feitas de palha ou de folhas trançadas (LIEBESCHUETZ, 2011, p. 98). Alguns deles, ditos sarabaítas, praticavam um ascetismo nômade, dependendo da caridade alheia para sobreviver, o que os tornava malvistos pelas autoridades civis e eclesiásticas e, ao menos em certos casos, inspirava temor na população pelo modo errante de vida que levavam, característica compartilhada pelos salteadores e bandoleiros. Dentre os sedentários, havia aqueles que viviam reclusos em uma caverna ou cela e os que viviam ao ar livre, expostos aos rigores do clima, como os dendritas, que habitavam a copa das árvores, e os estilitas, instalados sobre uma coluna. O mais célebre dos estilitas foi Simeão, um pastor semiletrado que, ao estabelecer-se no topo de uma coluna visando ao isolamento diante do afluxo contínuo de peregrinos ao seu local de refúgio, inaugurou essa modalidade de ascese, logo imitada por outros (BERARDINO, 2002, p. 1292). Os ascetas sírios, em particular os anacoretas, eram reputados como autênticos homens divinos, como indivíduos que gozavam de um estatuto especial obtido por meio de um rigoroso treinamento destinado a rebaixar o corpo ao mesmo tempo em que os aproximava cada vez mais de Deus, fazendo deles anjos habitando a Terra. Venerados pela população como líderes carismáticos, sua irrupção no cenário urbano, em geral com o fito de interceder por alguém ou alguma causa, era um fato extraordinário, gerando burburinho na cidade. No entanto, tais aparições não eram frequentes. A regra era a de que a população se deslocasse em peregrinação para visitar estes homens em busca de aconselhamento espiritual ou socorro médico, incluindo os exorcismos, pois aos anacoretas atribuía-se uma dynamis sobrenatural que os habilitava a realizar toda sorte de prodígios e maravilhas (LIEBESCHUETZ, 2011, p. 106-7). Segundo Peter Brown (1971, p. 87), o homem divino, na Síria, assumia por vezes o papel de um patrono rural, uma figura de poder que Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga intervinha no cotidiano da comunidade como um agente regulador de conflitos, de maneira que sua atuação não se restringia ao âmbito religioso, englobando também o sociojurídico. Um traço distintivo do monacato sírio, ao menos nos séculos IV e V, parece ter sido a relativa independência dos monges com relação à hierarquia eclesiástica, pois temos notícia de que os ascetas sírios envolviam-se amiúde em disputas com os bispos sobre questões as mais diversas, como o direito de pregar. De acordo com Rubenson (2008, p. 645), a independência desses monges diante do clero local, combinada com a prática de um ascetismo radical que por vezes resvalava em posições qualificadas como heréticas, a exemplo da rejeição ao matrimônio, e com um estilo de vida errático, interpretado pelas autoridades como sinal de indolência e vagabundagem, os tornou alvos de permanentes denúncias nos concílios da época tardia.

Um ateu e sua improvável homenagem a um santo Simón del Desierto é uma produção mexicana filmada em 1964 e lançada em 1965, sob a direção de Luis Buñuel. A filmografia do cineasta é famosa entre os europeus, mas pouco conhecida no continente americano, excetuando-se o público mexicano e, talvez, o norte‑americano. Buñuel nasceu em Calanda, na Espanha, em 1900, e faleceu no México, em 1983. Sua formação educacional foi iniciada no Colégio Jesuítico de Salvador, em Zaragoza. Já em Madri, na Residência Estudantil, Buñuel teve como companheiros Salvador Dalí e Federico García Lorca. Estes formaram “um triângulo fascinante, pois estavam conectados de uma forma única que explicaria, em parte, a natureza e a direção do trabalho criativo de cada um deles” (EDWARDS, 2005, p. 1‑2). Um episódio ocorrido entre Lorca e Buñuel, no tempo em que habitavam a Residência, indica a origem precoce do interesse do diretor por Simeão Estilita, o que resultou, anos mais tarde, na realização do filme. Como narra o próprio Buñuel (2013, p. 83), em sua autobiografia, intitulada Meu último suspiro:

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Federico García Lorca só chegou à Residência [Estudantil] dois anos depois de mim. Vinha de Granada, recomendado por seu professor de sociologia, don Fernando de los Ríos, e já publicara um livro em prosa, Impresiones y paisajes [1918], onde contava suas viagens com don Fernando e outros estudantes andaluzes. [...] Nossa amizade, que foi profunda, data do nosso primeiro encontro. Embora tudo opusesse o aragonês tosco e o andaluz requintado – ou talvez em virtude desse contraste –, estávamos quase sempre juntos. À noite, ele me levava para um descampado atrás da Residência, sentávamos no capim (as pradarias e terrenos baldios estendiam-se então até o horizonte) e ele lia poemas para mim. Lia maravilhosamente. Ao seu contato, fui lentamente me transformando, via um mundo novo se abrindo, que ele me revelava diariamente [...]. Passamos juntos, sozinhos ou com amigos, horas inesquecíveis. Lorca me fez descobrir a poesia, sobretudo a espanhola, que conhecia admiravelmente, e também outros livros. Por exemplo, me fez ler a Legenda Áurea, onde pela primeira vez encontrei algumas linhas sobre a vida de São Simeão Estilita, que devia mais tarde se tornar Simão do deserto [Simón del Desierto, 1965]. Federico não acreditava em Deus, mas conservava e cultivava um grande senso artístico da religião.

Outro acontecimento importante na vida de Buñuel e que contribui para a compreensão de Simón del Desierto é a relação contraditória do cineasta com o catolicismo. Mesmo sendo a religião católica um dos temas mais presentes na obra de Buñuel, este não “fazia segredo da sua ausência de fé” (STROM, 2003, p. 10). Sobre o assunto, costumava declarar: “Sou ateu, graças a Deus”. Ainda segundo ele: Imaginemos que o acaso não exista e que toda a história do mundo, tornada bruscamente lógica e previsível, possa ser resolvida com algumas equações matemáticas. Nesse caso, seria necessário acreditar em Deus, supor como inevitável a existência atuante de um grande relojoeiro, de um ser supremo organizador. Mas Deus, que pode tudo, não poderia ter criado, por capricho, um mundo entregue ao acaso? Não, respondem os filósofos. O acaso não pode ser uma criação de Deus, uma vez que é a negação de Deus. Esses dois termos são antinômicos, mutuamente excludentes. Não tendo fé (e persuadido de que a fé,

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Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga como todas as coisas, nasce frequentemente do acaso), não vejo como sair desse círculo. Eis por que não entro nele. A consequência que deduzo disso, pessoalmente, é muito simples: crer e não crer é a mesma coisa. Se me provassem agora mesmo a luminosa existência de Deus, isso não mudaria rigorosamente nada no meu comportamento. Não posso acreditar que Deus me vigie incessantemente, que se preocupe com minha saúde, meus desejos, meus erros. Não posso acreditar e, de toda forma, não aceito que ele possa me castigar por toda a eternidade. Que sou eu para ele? Nada, uma sombra de barro. Minha passagem é tão rápida que não deixa nenhum vestígio. Sou um pobre mortal, não conto nem no espaço nem no tempo. Deus não se ocupa de nós. Se existe, é como se não existisse. Raciocínio que resumi outrora nesta fórmula: “Sou ateu graças a Deus”. Uma fórmula contraditória apenas na aparência.

Tais contradições, mesmo que aparentes, revelam as particularidades que se impõem na análise de Simón del Desierto. A centralidade da religião no pensamento de Buñuel emerge em Simón de forma intricada, por meio de símbolos complexos e detalhes plenos de significado que tornam esse filme historicamente valioso. Em quase cinquenta anos como cineasta, Buñuel contabilizou trinta e duas produções cinematográficas, tendo trabalhado na Espanha, França, Itália, México e Estados Unidos.8 Reproduzimos aqui a filmografia de Buñuel: Um cão andaluz (Un chien andalou, França, 1929); A idade de ouro (L’age d’or, França, 1930); As Hurdes/Terra sem pão (Las Hurdes/Tierra sin pan, Espanha, 1933); Dom Quintín, o amargo (Don Quintín el amargao, Espanha, 1935); Sentinela, alerta! (Centinela, alerta!, Espanha, 1936); Grande Cassino (Gran Casino, México, 1947); O grande caveira (El gran calavera, México, 1949); Os esquecidos (Los olvidados, México, 1950); Susana (Susana, México, 1950); A filha do engano/Don Quintín o amargo (La hija del engaño/Don Quintín el amargao, México, 1951); Uma mulher sem amor/Quando os filhos nos julgam (Una mujer sin amor/Cuando los hijos nos juzgan, México, 1951); Subida ao céu (Subida al cielo, México, 1951); Robinson Crusoé (Robinson Crusoe, México, 1952); O bruto (El bruto, México, 1953); O alucinado (Él, México, 1953); Escravos do rancor (Abismos de pasión, México, 1953); A ilusão viaja de trem (La ilusión viaja em tranvía, México, 1954); O rio e a morte (El río y la muerte, México, 1954); Ensaio de um crime/A vida criminosa de Archibaldo da Cruz (Ensayo de um crimen/La vida criminal de Archivaldo de la Cruz, México, 1955); Assim é a aurora (Cela s’appelle l’aurore, França/Itália, 1955); A morte no jardim (La mort en ce jardin, França/México, 1956); Nazarín (Nazarín, México, 1959); Os ambiciosos (Los ambiciosos, França/México, 1959); A adolescente (The young one, México/Estados Unidos, 1960); Viridiana (Viridiana, Espanha, 1961); O anjo exter8

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No âmbito dessa extensa filmografia, Simón del Desierto se destaca como um filme singular, a começar pela opção em se contar a vida de uma personagem histórica, aspecto ausente em suas demais obras. Além disso, o filme prefigura um momento determinante na carreira do diretor. Em 2014, Simón del Desierto completou 50 anos de produção, ocasião em que as celebrações realizadas na Cidade do México destacariam uma vez mais a importância e a influência do filme que, paradoxalmente, é um dos menos conhecidos da filmografia de Buñuel. Simón del Desierto foi uma obra que sofreu com problemas de orçamento à época da filmagem. Nela, todavia, o cineasta conseguiu delinear uma imagem surrealista e densa da Antiguidade Tardia, em intenso diálogo com a contemporaneidade. Simón del Desierto é, em certo sentido, um filme alegórico em virtude da própria trajetória do diretor pelo “deserto” devido à sua condição de exilado no México (FUENTES, 2004, p. 165), conectando-se ainda às convicções ideológicas e às preferências temáticas de Buñuel, a exemplo da relação entre sexualidade e moral católica (STROM, 2003, p. 1‑11; SALVADOR VENTURA, 2007a, p. 330). Não obstante, Simón del Desierto não se restringe a essas possibilidades de interpretação, pois o filme apresenta também um forte conteúdo histórico. Antes de refletirmos sobre a imagem do monacato e do ascetismo sírio contida no filme, convém, no entanto, expormos as características do roteiro e do enredo.9

minador (Él ángel exterminador, México, 1962); O diário de uma camareira (Le journal d’une femme de chambre, França, 1964); Simão de deserto (Simón del Desierto, México, 1965); A bela da tarde (Belle de jour, França, 1966); A via Láctea (La voie lactée, França, 1969); Tristana (Tristana, França, 1970); O discreto charme da burguesia (Le charme discret de la bourgeoisie, França/Itália/Espanha, 1970); O fantasma da liberdade (Le Fantôme de la liberté, França/Itália, 1974); Esse obscuro objeto do desejo (Cet obscur objet du désir, França/Espanha, 1977) (ACEVEDO‑MUÑOZ, 2003, p. 153‑158; BUÑUEL, 2013, p. 316‑17). Na composição da ficha técnica e nas observações sobre o enredo e o roteiro do filme, seguimos o modelo proposto por Norma Musco Mendes e Regina Bustamante (1998, p. 97‑113). Quanto à análise dos fotogramas, nos baseamos no modelo proposto por Jullier & Michel Marie (2009, p. 18‑71). 9

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Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga

Título Original Nacionalidade Produção Direção Roteiro Música Fotografia Atores

Ano de Produção Duração Premiações

Ficha Técnica do Filme Simón del Desierto Mexicana Gustavo Alatriste Luis Buñuel Luis Buñuel e Julio Alejandro Raúl Lavista (Himno de los peregrinos; tambores de Calanda; rock&roll) Gabriel Figueroa Claudio Brook (Simão Estilita); Silvia Pinal (O diabo); Hortensia Santoveña (a mãe de Simão); Jesús Fernández (o pastor anão); Luis Aceves Castañeda (Trifon); Enrique Álvarez Félix (Irmão Matias); Eduardo Mac Gregor (Irmão Daniel); Enrique García Álvarez (Irmão Zenón); Francisco Reiguera (um monge); Antonio Bravo (um monge); Enrique del Castillo (o maneta); Arnando Coen (o dançarino). 1964 42 min. Prêmio da Fédération Internationale de la Presse Cinématographique (FIPESCI) e Prêmio Especial do Jurado, Festival de Filmes de Veneza, 1965; Medalha de Ouro André Bazin, VIII Resenha Mundial do Festival Cinematográfico de Acapulco, em 1965, México. Prêmio Passinetti, Sindicado dos Jornalistas Cinematográficos Italiano; Placa de Ouro da Federação Italiana de Cineclubes; Prêmio da Revista “Cinema 60”; Prêmio Único da União Mundial de Cine‑Museus, Rio de Janeiro; Prêmio da Associação Brasileira de Autores de Filmes, 1966; Prêmio Seltznick, São Francisco, 1969; Prêmio Cineteca Milano (referedum pubblico).

As informações para compor esta ficha técnica foram retiradas de várias obras. Consultar Elena Cervera e Javier Espada (2008, p. 189); Maria Veronese (2012, p. 239, n. 2).

O roteiro e o enredo de Simón del Desierto O roteiro de Simón del Desierto foi escrito por Buñuel em parceria com Julio Alejandro. A história do roteiro é, em si mesma, um elemento fundamental para a compreensão da imagem sobre o passado construída no filme. Simón del Desierto foi um filme pensado, inicialmente, para ser um longa‑metragem, mas, devido a problemas financeiros, o roteiro teve de ser adaptado e o filme, reduzido à metade do tempo.10 O roteiro de Simón del Desierto pode ser encontrado em quatro publicações: uma em francês, uma em inglês e duas em italiano.11

O próprio Buñuel explicaria anos depois a situação: “Escrevi um roteiro completo para um filme de longa‑metragem. Por infortúnio, Alatriste [o produtor do filme] teve alguns problemas financeiros durante as filmagens, e eu tive que cortar pela metade a duração do filme. Eu havia previsto uma cena na neve, as peregrinações e até mesmo uma cena sobre a visita (histórica) do imperador de Bizâncio. Eu tive que suprimir todas essas cenas, o que explica o caráter abrupto do final” (SÁNCHEZ VIDAL, 2004, p. 80; SALVADOR VENTURA, 2007b, p. 38). 10

O roteiro em francês foi publicado em L’Avant‑Scène Cinema, n. 94‑95; a versão em inglês foi publicada pela Orion Press numa obra intitulada Three screenplays, que traz os roteiros 11

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Para a composição do roteiro original completo, ou seja, na condição de longa‑metragem, Buñuel recorreu a uma investigação detalhada sobre o protagonista. Segundo Salvador Ventura (2007a, p. 332), em uma passagem rápida por Nova York, Buñuel pesquisou em uma biblioteca pública, onde teve acesso às duas únicas obras existentes no acervo com condições de suprir suas necessidades: Les saints stylites, de H. Delehaye (1923) e Antioche païenne et chrétienne, de André J. Festugière (1959). Esse levantamento de informações sobre a composição da personagem é por si só uma característica que distingue Simón del Desierto dos demais filmes realizados por Buñuel, embora não se trate da tentativa, por parte do diretor, de realizar um filme histórico ou mesmo um documentário. A intenção de Buñuel era a de construir sua própria interpretação de Simeão à luz da biografia do monge, que tanto estranhamento lhe suscitara. Outra particularidade do filme diz respeito à escalação do elenco e à escolha das locações.12 Os atores não

de três filmes de Buñuel: Viridiana (1961); O anjo exterminador (1962) e Simão do Deserto (1965). Em italiano, os roteiros foram publicados na Cineforum, n. 51, de 1966, e na Sette film, em 1974. Strom (2003, p. 9) argumenta que “a escolha do elenco é também um processo cinematográfico específico que funcio12

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Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga eram desconhecidos do público que acompanhava a carreira de Buñuel. Todavia, Kirsten Strom (2003, p. 9) destaca que: Sylvia Pinal, em particular, era bem conhecida do público buñueliano em razão da personagem título do já renomado filme de Buñuel, Viridiana (1961), no qual ela interpretava o papel de uma jovem noviça que, como Simeão, se deparava com desafios espirituais no curso do filme. O reconhecimento potencial da escolha desta atriz para o papel de diabo parece o mais arbitrário e conspícuo, como uma escolha consciente, talvez ironicamente deliberada feita pelo autor desta narrativa histórica.

Assim, o elenco confere certa familiaridade ao filme por meio da atuação de atores conhecidos, mas, ao mesmo tempo, efetua uma ruptura devido ao papel inusitado que tais atores desempenham na nova produção. A maior parte das filmagens, por sua vez, foi realizada em Ixmiquilpan (Hidalgo), no México, local que reunia as condições paisagísticas ideais para contar a história de um asceta que, embora na vizinhança dos núcleos urbanos, buscava o refúgio do deserto, colocando-se numa posição distante do mundo ao instalar-se no topo de uma coluna, o que o separava da população. A outra locação, cuja escolha se devia à intenção do cineasta de operar o contraponto entre o deserto e a cidade, não poderia ser mais apropriada, pois Nova Iorque desde sempre se destacou por seu caráter cosmopolita, moderno, arrojado. Cumpre observar que Simón del Desierto, a despeito dos problemas financeiros que enfrentou, não parecia exigir muito em termos de locação, haja vista que seu protagonista, um representante dos monges estilitas, viveu a maior parte da vida sobre uma coluna, em pleno deserto. Talvez esse tenha sido o grande trunfo do filme, pois a simplicidade do cenário permitiu a Buñuel, mesmo em face da carência de recursos, filmar com dignidade a história que pretendeu contar. Os problemas seriam de outra ordem: a necessidade de reduzir as cenas inicialmente previstas. Buñuel tentava a

na tanto para sugerir um significado quanto para criticar o discurso da historiografia e suas expectativas”. A autora não evoca, contudo, a importância das locações, que também conferem sentido à narrativa fílmica.

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todo custo solucionar a falta de financiamento, cogitando lançar o filme apenas após sua finalização, conforme o roteiro original (SALVADOR VENTURA, 2007a), o que não foi possível. A inscrição do filme no Festival de Veneza efetuada pelo produtor, Gustavo Alatriste, a contragosto do diretor, marcou o lançamento de Simón del Desierto em sua versão adaptada, que, porém, se tornou definitiva. A história do filme gira em torno da vida de certo Simeão, interpretado por Claudio Brook, que, no deserto, instala-se no topo de uma coluna com propósitos ascéticos. À cena de abertura, contendo os créditos do filme, e à cena-título segue-se uma procissão de monges acompanhada por uma multidão entoando hinos que culminará em outra cena, na qual o protagonista desce de sua antiga coluna para se instalar em outra, mais alta e sofisticada que a anterior, ofertada por um rico patrono. No trajeto em direção à nova coluna, Simeão tem dois encontros: o primeiro com a mãe e o segundo com um sacerdote que deseja ordená-lo, embora sem êxito, pois Simeão se julga indigno da consagração. Em seguida, o monge ascende à nova coluna, cujo platô é protegido por cordas, onde permanece de pé. Devidamente instalado, o asceta exorta os monges e os leigos que o assistem a rezar. Em seguida, um peregrino maneta clama a Simeão para que suas mãos, amputadas, sejam restituídas. Após o milagre de restituição das mãos, ocorre a primeira cena da tentação. Ao som de um trovão, uma mulher (interpretada por Silvia Pinal) aparece em cena e, em seu deslocamento, se insinua perante os monges que, do solo, oravam junto com Simeão. A presença da mulher causa dissenso entre os monges, pois um deles, ao desviar a atenção para ela, é repreendido abertamente por Simeão, após o que os monges se retiram, deixando o asceta sozinho. O irmão Matias, um jovem monge, entra em cena portando alimento para Simeão, que o adverte por conta do seu excessivo asseio, já que traz as vestes limpas e não ostenta a barba característica dos ascetas. Após a saída de Matias, o Estilita passa a sonhar com uma vida de liberdade ao lado de sua mãe, correndo no deserto, quando, mais uma vez, uma mulher em Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga trajes de colegial interrompe seu sonho, configurando assim uma segunda tentação. Em seguida, há um close‑up na mãe de Simeão. Anoitece, Simeão reza e se alimenta. Ao amanhecer, prega a respeito das vicissitudes da vida mundana e monástica enquanto Trifon, um dos irmãos, chama a atenção dos outros para o recipiente que conduz os alimentos ao topo da coluna, visando a denunciar a contradição entre o que prega Simeão acerca do jejum e as provisões que recebe: queijo, pão e vinho, produtos incompatíveis com a frugalidade monástica, o que provoca questionamentos por parte dos demais monges. Confrontado, Simeão se recusa a se defender, sugerindo apenas que tratam-se de calúnias. Em busca de resposta para o dilema, todos se põem a orar. A revelação da verdade não tarda. Trifon prostra-se no chão, contorcendo‑se em possessão demoníaca e proferindo termos relacionados às querelas religiosas próprias da Antiguidade Tardia, tais como hipóstase, anástase e apocatátase. Um dos monges chega a gritar “Viva Nestório”, referindo-se ao bispo de Constantinopla deposto em 431, no Concílio de Éfeso, por sua rejeição do título de “mãe de Deus” atribuído a Maria. A cena termina com um conselho de Simeão ao líder da ordem monástica: o irmão Matias deveria ser dispensado de suas obrigações, regressando à companhia dos monges somente após ter deixado a barba crescer, conforme os preceitos da vida ascética. Os monges se retiram e anoitece. A mãe de Simeão permanece com o filho, em vigília. Pela manhã, durante as orações, Simeão percebe a presença de um indivíduo barbado, vestindo trajes clássicos e segurando uma ovelha, uma evocação da imagem de Cristo como o Bom Pastor, bastante difundida no Império Romano. Simeão acredita ser o próprio Jesus Cristo, mas apenas por alguns instantes, quando o diabo, revelando sua verdadeira identidade, novamente tenta persuadi-lo a renunciar à vida ascética, o que configura uma nova tentação. Simeão resiste e a cena termina com a partida do diabo, numa nuvem de poeira, após atingir o asceta com uma pedra atirada por meio de um estilingue e prometendo voltar. Em outro encontro entre Simeão e um pastor anão, este último pede que o asceta abençoe sua cabra prenhe, Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

no que é atendido. Na sequência, o anão entabula uma conversa com ele a fim de sanar sua curiosidade acerca da dieta e das necessidades fisiológicas do Estilita. Simeão responde que pouco necessita para sobreviver e que seus excrementos são secos como o das cabras do anão. A próxima visita é a do monge repreendido por ter olhado a mulher, no episódio da primeira tentação. O monge se desculpa e atualiza Simeão sobre as últimas notícias do Ocidente, declarando que “as forças do Anticristo avançam sobre Roma”. O monge tenta explicar-lhe as lutas fratricidas entre os homens e as disputas para possuir e dominar, embora sem sucesso, pois o asceta não consegue entender o sentido de “seu” e “meu”. O desapego de Simeão comove o monge pelo bem que isto faz à alma, mas este acrescenta que, infelizmente, o desapego parece ser pouco útil à humanidade. Em resposta, Simeão conclui: “não te entendo, parece que falamos idiomas diferentes, vá com Deus, irmão”. Nas cenas finais, o diabo, agora sob a forma de mulher, faz sua última investida, aproximando-se da coluna de Simeão dentro de um ataúde. O diálogo tem início. Simeão diz: “Me ampara Senhor” – já na expectativa de uma nova tentação. O diabo retruca: “Te disse que voltaria e talvez esta seja a última vez”. Num curto debate sobre rejeições e tentações, o diabo declara que Simeão o acompanhará numa viagem. A cena é interrompida por um ruído moderno seguido da imagem que o justifica: um avião corta os céus acima da coluna. De cima há o close-up do topo da coluna, que aparece vazia. A próxima cena, após técnicas de transição, transcorre numa cidade contemporânea, Nova Iorque, num ambiente fechado, um night club, no qual se ouve rock and roll enquanto pessoas dançam. Simeão e o diabo encontram-se sentados em uma mesa próxima à pista. Sua indumentária é contemporânea. Simeão e o diabo fumam e observam os dançarinos. O primeiro indaga: “Como se chama esse baile”? O diabo, por sua vez, responde: “Carne radioativa”. Sentindo-se deslocado, o monge deseja se retirar. O diabo, deixando a mesa em direção à pista de dança por solicitação de uma jovem, responde: “Não irás, terás que aguentar até o fim”, quando então o filme se encerra.

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Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga À primeira vista e levando em conta apenas as imagens e diálogos que contém, Simón del Desierto parece uma obra tosca, pouco elaborada, anacrônica, repleta de lugares comuns e de temáticas convencionais, constituída por diálogos simples e exibindo técnicas de montagem e de edição rudimentares. Essa impressão é, contudo, compartilhada apenas pelos observadores desatentos. A obra de Buñuel é estruturada segundo uma lógica complexa que apenas uma análise cuidadosa é capaz de desvelar, pois o filme veicula uma representação do passado reinterpretada e resignificada. Com o propósito de compreender as particularidades dessa representação acerca do ascetismo e do monacato, passaremos agora à interpretação de alguns fotogramas extraídos do filme, agrupados em quatro temas centrais: a mímesis entre Simeão e Cristo, o milagre da restituição das mãos do peregrino, o papel das mulheres e as práticas ascéticas.

“Lendo” as imagens do filme Além do texto dito pelos atores, os fotogramas de uma produção cinematográfica oferecem uma excelente oportunidade para compreendermos melhor a história que o diretor pretendeu narrar, permitindo-nos “desmontar o que resta da técnica a posteriori (ou seja, a produção), quando nada se sabe da maneira pela qual ela foi usada a priori (ou seja, na filmagem e na pós‑produção) (JULLIER; MARIE, 2012, p. 20). No caso de Simón del Desierto, realizamos a seleção de alguns fotogramas com o propósito de analisar o sentido das imagens de maneira mais detalhada. Quanto ao plano, os ângulos da câmera e os enquadramentos das cenas destacam a importância e o lugar do tema no conjunto dos demais. No filme, a perspectiva do alto da coluna se relaciona ao plano divino (fotograma 1) e a perspectiva ao rés do chão, ao plano terreno, humano (fotograma 2). Estas técnicas no manejo do plano sugerem, por exemplo, as distinções e oposições santo/homem, céu/terra. A única personagem que transcende esses dois universos é o diabo, ora situado no plano terreno ora no plano divino, como forma de evidenciar sua condição ambígua, pois desloca-se entre dois mundos distintos (fotogra-

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mas 13 a 17). Por outro lado, além de Simeão e do diabo, nenhuma outra personagem ocupa o espaço sagrado constituído pelo topo da coluna. De fato, numa cena posterior, o monge repreendido por ter cobiçado a mulher sedutora, como mencionamos, sobe a coluna para pedir perdão ao asceta, mas não ultrapassa os limites da escada (fotograma 3). No início do filme, quando da troca de colunas, Simeão é obrigado a circular pelo plano terreno, mas logo abandona o saeculum na busca de uma vida mais próxima dos céus e da santidade. Inclusive sua rejeição ao sacerdócio é, de certa maneira, uma evidência disso. Ao contrário da ascese proposta no filme, os sacerdotes mantêm, literalmente, os pés na terra, vinculando-se assim à cidade, à comunidade e à população. Na maior parte do filme, Simeão permanece solitário, no topo da coluna, o que acentua o caráter extraordinário da sua condição, bem como o caráter singular de sua ascese. Francisco Salvador Ventura (2007a, p. 338) sugere que a plataforma cercada de cordas, que poderia servir de proteção ao próprio santo, impedindo-o de despencar, funcionaria também como um ringue de luta onde o bem e o mal travariam combate (fotograma 4).

Fotograma 1 – cena inicial. Enquadramento de câmera, Plongée (5’24”).

Fotograma 2 – cena inicial. Enquadramento de câmera contra‑Plongée (6’27”).

Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga pois evoca a querela sobre a natureza de Cristo que tanto ocupava a Igreja à época.

Fotograma 3 – Encontro do monge repreendido com Simeão (35’00”). Fotograma 5 – Cena de Simeão com sua mãe (3’18”). Alusão à imagem da crucificação de Jesus e à vigília de Maria.

Fotograma 4 – Topo da coluna rodeado de cordas (39’09”).

No geral, os temas abordados no filme são os mais tradicionais possíveis (Jesus Cristo, os milagres associados à ascese, ao pecado, às mulheres, ao diabo), mas a esses temas associam-se novos elementos. Vejamos alguns deles por meio dos fotogramas selecionados.

Fotograma 6 – Cena do acampamento da mãe de Simeão, próximo à coluna (17’34”).

Simeão e a ‘mímesis’ de Cristo A analogia entre Simeão e Cristo se revela, inicialmente, pela presença constante da mãe do asceta ao pé da coluna, ali permanecendo acampada, o que evoca o comportamento de Maria, em vigília permanente junto ao filho no Calvário ou a caminho da crucificação (fotogramas 5 e 6; 12). Outra similaridade entre ambos são as feridas exibidas pelo asceta, que se assemelham às chagas do Crucificado (fotograma 7). A aparência de Simeão, com barba e cabelos compridos, remete-nos também à representação dos profetas, incluindo Cristo (fotograma 8). O Cristo transfigurado na pessoa de Simeão é, contudo, imperfeito, incompleto. A dualidade entre a natureza santa e pecadora do monge é um fator que torna a cena da “revelação da verdade”, na qual Simeão é acusado por Trifon, plena de significado, Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

Fotograma 7 – Cena das feridas de Simeão (26’59”).

Fotograma 8 – Simeão como profeta (13’27”).

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Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga O milagre das mãos restituídas

As mulheres

Na cena do milagre das mãos restituídas (fotogramas 9 a 11), o peregrino maneta se junta à esposa e aos dois filhos, em súplica. Simeão indaga o peregrino sobre o que lhe teria ocorrido e o homem esclarece “[...] me cortaram as mãos”. Simeão insiste: “Mas por que?” A esposa completa, “Senhor, por roubar”. Arrependido, o homem e a esposa rogam para que o asceta realize um milagre, que de fato se consuma, pois, as mãos do homem são restituídas. Em close‑up, o milagre cresce em dramaticidade (fotograma 10). Em seguida, num movimento da câmara, o diretor sugere que a vida segue em frente e que o milagre não constitui nada de extraordinário, pois é algo que faz parte da rotina dos anacoretas, reputados como hábeis taumaturgos e exorcistas. De acordo com Salvador Ventura (2007a, p. 337‑8), na medida em que os monges sírios detinham poderes taumatúrgicos, a expectativa era a de que o milagre de fato acontecesse, razão pela qual um dos camponeses chega a declarar: “espero que vejamos um milagre de Simeão”. Uma vez operado o milagre e confirmada a autoridade divina de Simeão, a normalidade é restabelecida.

As mulheres, no filme, aparecem sob três formas: a camponesa humilde (fotograma 11), a mãe devotada ao filho que sofre (fotogramas 5, 6 e 12) e o diabo, uma das personagens mais importantes (fotogramas 13 a 18).

Fotograma 11 – Cena do milagre das mãos (o peregrino e a esposa) (5’53”).

Fotograma 12 – A mãe de Simeão em vigília ao pé da coluna (9’44”). Fotograma 9 – (Plano médio). Cena do milagre da restituição das mãos (antes) (5’59”).

Fotograma 10 – Cena do milagre da restituição das mãos (depois) (7’08”).

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À época, a representação feminina do diabo, no filme de Buñuel, operava uma ruptura com o esquema simbólico do cristianismo, no qual, tradicionalmente, o diabo é tido como um homem. A ruptura desse paradigma torna plausível o argumento de Kirtsen Strom (2003, p. 9) segundo o qual Simón del Desierto romperia com a concepção de uma história linear, sugerindo uma reflexão surrealista dos processos históricos. A autora acrescenta que os anacronismos do filme (as cenas do diabo vestido com roupas de colegial, como vemos nos fotogramas 14 e 15; a cena do avião e a cena final, na boate novaiorquina) são empregados para produzir Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga uma cisão com o encadeamento convencional do discurso historiográfico, questionando as obviedades desse tipo de discurso. Sobre o diabo travestido como Bom Pastor, Strom sugere que a crítica à conformidade visual, que não impede a audiência de reconhecer o disfarce, mas não Simeão, convicto de ser Jesus, é mais um ataque de Buñuel à visão positivista da verdade, além de exprimir o dilema existencial vivido pelo cineasta, um ateu que investiu grande parte de seu tempo em produzir obras nas quais abundam as alusões ao cristianismo. As mulheres, dessa maneira, são um aspecto do filme que auxilia a composição da imagem do protagonista, que resiste com tenacidade às tentações dos tempos modernos (dos novos paradigmas, das novas concepções, da nova dinâmica na relação entre os sexos que então se institui), mas que, no fim, cede, embora ainda observe o mundo sob uma perspectiva de estranhamento e afastamento.

Fotograma 15 – Segunda cena da tentação. O diabo, como mulher, veste um traje de colegial, no topo da coluna com Simeão (17’02”).

Fotograma 16 – Terceira cena da tentação. O diabo, sob a forma feminina, apresenta-se vestido como o Bom Pastor (27’42”).

Fotograma 13 – Cena da primeira aparição do diabo (8’23”) Fotograma 17 – Quarta cena da tentação. O diabo, novamente como mulher, aproxima-se da coluna num ataúde (37’23”).

Fotograma 14 - Segunda cena da tentação. O diabo, como mulher, veste um traje de colegial da Belle Époque (16’05”)

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Fotograma 18 – Quarta cena da tentação. O diabo e Simeão no topo da coluna (38’39”).

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Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga A ascese monástica No filme, a ascese de Simeão é bastante rigorosa. As restrições mais evocadas se referem a uma dieta à base de água e alface, à sobriedade, sugerida pelo uso de uma indumentária despojada, e à ausência de asseio asseio corporal (fotogramas 20 e 21), fatores que traduzem sofrimento, renúncia e um débil engajamento com o saeculum, optando o monge por residir no topo de uma coluna, exposto à chuva, ao frio, ao calor, às aves e aos insetos (fotograma 19). Submetendo-se a essas privações, o estilita era tido como superior na hierarquia espiritual, destacando-se assim dos demais monges, como demonstram duas cenas do filme. Na primeira, os monges estão unidos em oração com Simeão, quando Trifon decide calunear o asceta, acusando-o de não praticar o que pregava ao consumir queijo, pão e vinho. Um dos monges, irritado, retruca: “Viemos em busca de edificação e vemos escândalos”. Conforme tal alegação, Simeão seria visto como exemplo de zelo espiritual para os irmãos, detendo uma autoridade inconteste. Em outra cena, Simeão solicita que o monge Matias, repreendido por sua boa higiene, seja suspenso do convívio monástico, devendo retornar apenas quando possuísse uma barba, assim como a de seus companheiros. Zenon, o monge encarregado por Simeão de transmitir esta ordem, a acata prontamente, o que confirma uma vez mais a liderança exercida pelo estilita.

Fotograma 19 – Simeão no alto da coluna. O distanciamento da Terra e a aproximação com os céus (9’49”).

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Fotograma 20 – A comunidade monástica. Todos os membros portam barba (19’28”).

Fotograma 21 – O monge advertido por Simeão devido ao asseio corporal (13’19”).

Considerações finais O filme de Buñuel, embora se proponha a narrar a vida e os milagres de Simeão Estilita, não é, a rigor, uma biografia histórica, uma reconstrução fílmica da trajetória do asceta do nascimento à morte, mas uma representação de fatos e cenas que remetem à personagem tardo‑antiga. Por essa razão, o filme se intitula Simeão do Deserto e não Simeão Estilita, como seria de se esperar (SALVADOR VENTURA, 2007a, p. 335), muito embora as personagens do filme chamem o monge de Simeão Estilita, numa clara alusão ao asceta sírio. No filme, as imagens que remetem à simbologia cristã tardo-antiga se relacionam a um contexto contemporâneo, de mudança e inovação, um tempo outro que provoca surpresa e desconforto àqueles que esperam ver, na tela, a vida do santo contada de modo didático. Simón del Desierto é uma produção complexa na qual a edição produziu um resultado que, embora Hélade - Volume 1, Número 1 (Julho de 2015)

Dossiê: Hélade, uma nova História Antiga despido de maiores pretensões históricas, exprime uma historicidade ímpar. Do ponto de vista do ensino de História Antiga, em geral, e da História do Cristianismo na Antiguidade Tardia, em particular, a contribuição do filme é valiosa, pois por seu intermédio podemos aceder ao contexto do ascetismo sírio entre os séculos IV e V, mas também explorar os contrapontos entre o passado e o presente, entre a mudança e a permanência, a transformação e a ruptura, operações que constituem a própria tessitura dos processos históricos.

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Movies as an educational resource to Ancient History teaching: monasticism and asceticism in Simon of the Desert, by Luis Buñuel Abstract: In this article, our main purpose is to reflect on how the Luís Buñuel’s movie regarding St. Simeon Stylites (c. 390-459), one of the most famous exponents of the ancient monasticism, can provide us with some pieces of information, not only about the religious movement in Late Antiquity, but about the historical context of the director too. In this manner we try to draw some conclusions which can cast light on the importance of the cinema as an educative means capable of helping us in teaching Ancient History. Firstly, we deal with the rapport between History and Cinema. After that, we trace a brief account about the Syrian monasticism since the beginning to the Fifth Century. Then we analyze the plot of the Buñuel’s film in order to clarify how the filmic biography of the monk can contribute to the study of some characteristics of Late Antiquity, namely the social and religious ones, but without discarding the context in which the movie was shot, what eventually leads us to understand the Buñuel’s concerns and aspirations. Key-words: Ancient History; History Teaching; Cinema; Monasticism; Luís Buñuel.

Referências Documentação primária ALATRISTE, Gustavo; BUÑUEL, Luis. Simón del desierto. [Filme‑vídeo]. Produção de Gustavo Alatriste, direção de Luis Buñuel. México, Producciones Alatriste, 1965. DVD. 42 min. preto e branco. Som.

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