O cinema de Lars Von Trier e os Paradoxos do Iluminismo

July 8, 2017 | Autor: Allan Oliveira | Categoria: Cinema Studies, Antropologia
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O cinema de Lars Von Trier e os paradoxos do Iluminismo. Allan de Paula Oliveira Curso de Ciências Sociais - Unioeste

Segundo filme da trilogia produzida por Lars Von Trier sobre a história da sociedade norte-americana (iniciada por Dogville, de 2003, e a ser finalizada com um longa-metragem intitulado Wasington, ainda não filmado), Manderlay poderia ser descrito como uma “adaptação cinematográfica” de um dos trabalhos mais importantes da história da antropologia: Homo Hierarchicus, de Louis Dumont, lançado originalmente em 1967. Não é o primeiro filme de Lars Von Trier que se aproxima de discussões centrais da disciplina – Dogville, por exemplo, pode ser visto como uma reflexão sobre a dádiva, a reciprocidade e a renúncia – mas em Manderlay tal aproximação se dá num momento politicamente muito útil para lembrarmos de certas propostas de Louis Dumont, sobretudo aquela que ele sugeriu ser a tarefa central da antropologia: uma perspectivação da sociedade moderna. E se há algo que os filmes de Lars Von Trier nos convidam é exatamente isto: uma reflexão, uma perspectivação e, conseqüentemente, um estranhamento da modernidade e seus valores. No filme, Manderlay é o nome de uma fazenda localizada no sul dos Estados Unidos, aonde chegam Grace, a personagem central do enredo, e seu pai, um mafioso que anda cercado por seus capangas. A estória se passa na década de 1930 e, ao chegar a Manderlay, Grace e seu pai descobrem que naquela fazenda a escravidão ainda não havia sido extinta. Grace, dotada de poder (pois filha de um mafioso) e de boa vontade para com o mundo (seu nome, nesse sentido, é significativo), convence seu pai a usar seus capangas para obrigar a família que administra a fazenda a libertar os escravos – ou seja, uma liberdade imposta – e é neste ponto que a narrativa começa. Grace resolve ficar na fazenda com os capangas de seu pai para vigiar a nova ordem e descobre aos poucos que a liberdade e, sobretudo, a igualdade, não são bem vistas por muitos dos exescravos. Grace se depara então com aquilo que Dumont apontou, para a Índia, como as funções positivas (enquanto articuladora, e não no sentido moral) da hierarquia no seio de uma estrutura social e é este ponto que faz de Manderlay provocativo, à medida que coloca o público moderno diante de um valor que lhe é estranho.

Em várias entrevistas, Lars Von Trier deixou claro que seu objetivo com Manderlay e os demais filmes da trilogia é uma reflexão sobre a sociedade norteamericana em particular, sobretudo em relação a sua auto-imagem de defensora da liberdade e da igualdade. Em Manderlay questiona-se o ponto central sobre a qual se ergue esta auto-consciência norte-americana: a imposição da liberdade, a idéia de que “somos obrigados a ser livres”. Tal ponto é altamente relevante seja no entendimento de muitos aspectos da vida estadunidense (como o discurso dos direitos civis que ganha força a partir do final dos anos 50), seja na política externa daquele país pós-1945, quando os EUA se arvoraram em guardiões da liberdade mundial. Ironicamente, no filme, a liberdade é imposta pelas armas da máfia, uma metáfora muito interessante para nos lembrar que a liberdade propalada pelos EUA relaciona-se, antes de tudo, aos seus interesses. E mais: tais interesses são definidos por um grupo muito específico de pessoas. Lembremos dos lugares ocupados por pessoas como Donald Rumsfeld e Condoleeza Rice na condução da política externa do governo Bush. Relacionado à história norte-americana, Manderlay, de fato, leva o espectador a refletir sobre a natureza da liberdade na sociedade dos EUA, lembrando o seu caráter compulsório. Além disso, o filme ainda tangencia outro assunto bastante complexo: o lugar desta liberdade numa sociedade marcada por um componente de segregação racial. É curioso observar como, no filme, é uma branca, filha da máfia (ou seja, de raízes européias), quem concede a liberdade aos negros – exatamente o tipo de discurso combatido pelo movimento anti-apartheid dos Estados Unidos. A estas questões somase ainda o retrato da fracassada tentativa de Grace de impor um modelo de cooperação mútua entre todos os habitantes da fazenda, brancos e negros – o que poderia ser visto como uma crítica às políticas de integração racial adotadas naquele país. De qualquer forma, este ponto fecha a tríade de valores abordada e questionada pelo filme: liberdade, igualdade e fraternidade (entendida aqui como um espírito de cooperação em grupo). De repente, o espectador é convidado a estranhar como tais valores se constituem numa sociedade que se pretende o mais puro reduto deles. Ora, afirmar que Manderlay produz um estranhamento da forma como liberdade, igualdade e fraternidade são vivenciadas na sociedade norte-americana, equivale a pensar o filme também como um estranhamento da própria idéia de modernidade, ou

pelo menos, do repertório político desta. O pressuposto deste pensamento é que os Estados Unidos sintetizam os principais valores políticos modernos. Lars Von Trier, nas entrevistas que deu sobre o filme, não vai tão longe nesta equação, mas há uma tradição do pensamento europeu que o faz: quando Jean Baudrillard, em 1986, pretende criticar a modernidade, ele o faz a partir de uma descrição dos Estados Unidos (lançada em livro na sua obra América). Tal tradição que vê os EUA como síntese da modernidade, nos seus aspectos positivos e negativos, tem em Alexis de Tocqueville seu ponto de origem. Daí, pode-se afirmar que Manderlay retoma o projeto de “A Democracia na América”: observar a sociedade norte-americana e pensar as contradições criadas pelos próprios valores aplicados ali. É Tocqueville quem faz esta síntese entre os EUA e os valores que emergem com a Revolução Francesa. Sua crítica, portanto, dirige-se menos ao país americano do que aos valores em si. Aristocrata, incomodava-o não a instituição da liberdade como valor social supremo, mas o preço a ser pago por isto, na forma da instituição da igualdade entre as pessoas. Uma igualdade imposta pela lei e que, para Tocqueville, não se ajustava nem à natureza humana, nem às condições históricas. É exatamente o que ocorre em Manderlay. No auge da trama, Grace tem um diálogo com um dos exescravos libertados por ela, que reclama do fato de que a ausência de um superior lhe impedia de imputar a este as suas mazelas. Em suma, a hierarquia anterior lhe permitia, ironicamente, uma liberdade maior, já que podia eximir-se das responsabilidades consigo mesmo. O que este personagem aponta criticamente é a possibilidade de que o exercício da liberdade não necessariamente passe pela instituição da igualdade social, algo impensável nas fórmulas políticas do Iluminismo – o que coincide exatamente com a grande questão apontada por Tocqueville, o qual aceita a liberdade dada aos cidadãos, mas questionava a igualdade implantada à força. Além disso, Grace percebe sua ingenuidade diante de uma hierarquia que estava fora da escravidão e se enraizava na própria história dos escravos. Entre eles, havia superiores e inferiores, reis e súditos. Enfim, uma crítica do modelo social implantado nos EUA conduz, como bem percebeu Tocqueville no início do século XIX, a uma crítica dos valores consagrados pelo Iluminismo e elevados, no Ocidente, à condição de cânones. Ao retratar os dilemas da fazenda Manderlay, Lars Von Trier leva o espectador a pensar os dilemas da

modernidade. Trata-se de um exercício caro aos antropólogos: olhar para si a partir de categorias e valores que, a princípio, considera-se do outro. Talvez nenhum antropólogo tenha levado isto tão à sério quanto Louis Dumont. Ao apresentar Homo Hierarchicus, Dumont comenta que seu livro é intencionalmente um exercício de perspectivação de si a partir do outro, exercício que ele afirma já estar latente na obra de Tocqueville. Se no aristocrata francês o outro são os EUA, em Dumont este outro é o sistema de castas indiano, indicado pelo autor como a ideologia oposta à ideologia igualitária moderna. Olhar para a Índia, portanto, dá a Dumont a possibilidade de observar o seu próprio sistema social. Em Homo Hierarchicus há indicações a este respeito, seja na introdução, seja no final da obra, quando o autor cria um quadro comparativo sumário entre as ideologias hierárquica e igualitária (esta última seria ainda estudada a fundo pelo autor em duas obras posteriores: Homo Aequalis e O Individualismo). Contudo, o ponto que gostaria de me ater aqui é exatamente esta postura intelectual do autor: uma perspectivação da sociedade moderna a partir de uma forma social diferente, considerada em muitos momentos como uma aberração. Tal postura, que todos aprendemos nas primeiras aulas de antropologia, ainda na graduação, tende a cair numa frase de efeito, vazia e pouco levada a sério. O livro de Dumont, neste sentido, sempre me pareceu um bom lembrete para a idéia de que a antropologia não está na ida ao outro, mas na volta a nós mesmos. Ou ainda, que antropologia não se resume à prática da etnografia, sendo esta apenas o primeiro passo (indispensável, diga-se) para uma antropologia que se realiza depois, quando, a partir do outro, repensamo-nos a nós mesmos. Lévi-Strauss já afirmava isto em 1952, quando apresentou seu clássico “A Noção de Estrutura em Etnologia”, no qual separava etnografia/história (responsáveis pelos dados empíricos no espaço ou no tempo), sociologia/etnologia (resultantes de uma primeira generalização a partir dos dados empíricos) e, finalmente, um antropologia. Recentemente, Tim Ingold voltou a este ponto em um texto chamado “Anthropology is not ethnography” – e que pode muito bem ser lido como antípoda à famosa frase de Geertz de que “o que os antropólogos fazem é etnografia”. A obra de Dumont levou isto às últimas conseqüências, oferecendo uma análise perspectiva da modernidade e sua ideologia, desnaturalizando-as e

apontando seu caráter histórico e contextual. Este é um dos pontos onde Manderlay lhe é similar, já que o espectador percebe como determinados ideais, tais como liberdade e igualdade, são, antes de tudo, arranjos sociais, escolhas de um determinado grupo de pessoas e que há outras possibilidades – tão possíveis e tão humanas quanto – baseadas em outros valores. Chega-se, portanto, a partir do exercício intelectual citado acima, propiciado tanto pelo livro de Dumont quanto pelo filme de Lars Von Trier, a um alargamento da idéia de humanidade. O exercício de Dumont é justamente nos fazer duvidar daquilo que nos é mais caro e de mostrar como o que está fora disto, o que nos parece aberrante e moralmente absurdo, também é humano. Gostemos ou não. Escrevi no início do texto que este exercício presente tanto na obra de Dumont quanto no filme de Lars Von Trier é extremamente útil em face da conjuntura política da atualidade, onde se observa uma naturalização do discurso político relativo à democracia, como se este discurso não fosse um entre outros possíveis. Neste sentido, Dumont e Von Trier parecem fazer, cada um em seu respectivo lugar, o “trabalho sujo” de nos lembrar a arbitrariedade e a natureza histórica de nossas escolhas políticas. Por isso mesmo, ambos foram muito criticados em seus meios. Assim, assistir a Manderlay ou ler Homo Hierarchicus nos conduz a um salutar descentramento do nosso próprio discurso, revelado como apenas mais um entre outros e nos obrigando a olhar de frente a estas outras possibilidades que, mesmo não desejáveis, são tão humanas quanto as nossas. Tal descentramento é essencial na construção de um espaço possível de convivência das diferenças humanas – ou ainda, lembrando Roberto Cardoso do Oliveira, na construção de um “horizonte semântico comum” no seio da alteridade humana – e, neste tempo do “politicamente correto”, onde são propalados discursos únicos a partir da naturalização de determinados valores ocidentais, ele parece mais do que premente.

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