O Cinema e o Olhar Historiador

June 1, 2017 | Autor: L. Silva | Categoria: Cinema, Historia, Audiovisual, Cinema e História
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ISSN 2179-5037

O CINEMA E O OLHAR DO HISTORIADOR Luiz Gustavo Soares Silva1 César Henrique de Queiroz Porto2 Resumo: Neste trabalho procuramos evidenciar as mudanças ocorridas no que diz respeito à mentalidade do historiador sobre o universo cinematográfico e apontamos as principais críticas desses profissionais em relação aos filmes épicos. Tendo em vista que muitos historiadores ainda resistem à utilização do audiovisual em suas pesquisas, pretendemos oferecer por meio de um rápido levantamento bibliográfico subsídios para que eles possam manusear com mais segurança esse tipo de fonte. Afinal, os filmes não só atestam sobre o momento em que foram produzidos, como também favorecem a construção de interpretações sobre o passado que, em muitos casos, precisam ser mais bem esclarecidas pelo historiador. Palavras-chave: cinema; História; audiovisual. Cinema and the historian’s look

Abstract: In this paper, we seek to demonstrate the changes regarding the mentality of the historian on movie universe and point out the main criticisms of these professionals on the epic films. Considering that many historians still resist the use of audiovisual in their research, we intend to offer, through a quick literature, subsidies so they can handle more safely this type of source. After all, the films not only testify about the time they were produced, but also favor the construction of interpretations of the past, that, in many cases, need to be better informed by the historian. Keywords: Cine; History; audiovisual.

Durante muito tempo o universo cinematográfico foi desprezado pelos historiadores e tido por eles como uma mera distração popular. Segundo o historiador Marc Ferro1, “[...] quando se cogitou, no início da década de 1960, a ideia de estudar os filmes como documentos, e de se proceder, assim, uma contra-análise 1

Graduado em História pela Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. [email protected] 2 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em História - PPGH/Unimontes (Mestrado). [email protected]

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da sociedade, o mundo universitário se agitou” (FERRO, 2010, p. 09). Até esse período, o cinema não gozava de “direito à cidadania”2, entre àqueles mais diretamente relacionados à disciplina histórica. Foi somente a partir da “revolução dos Annales”3, iniciada na França, em 1930, que o filme passou a ser visto como um autêntico testemunho de seu tempo. Antes dessa data, “[...] tudo o que possuía a imagem era uma legitimidade contestada; apenas sua alta aristocracia – a pintura, os museus, as coleções – podiam adentrar as portas do mundo da cultura ou do poder” (FERRO, 2010, p. 09). Segundo a historiadora Mônica Kornis, “o filme era considerado como uma espécie de “atração de feira”, de cujas imagens não se reconhecia nem mesmo o autor” (KORNIS, 1992, p. 237). Hoje, as imagens parecem estar suplantando a cultura livresca e se tornando a força dominante de socialização entre as pessoas. A cultura da mídia tem adotado estratégias de comunicação cada vez mais atraentes, e, assim, facilitado que nossa percepção sobre o mundo seja moldada conforme os interesses de grandes grupos empresariais.4 Estamos submetidos a um fluxo contínuo de informações que, aos poucos, vão reordenando nossa percepção de espaço e de tempo e condicionando nosso raciocínio, para que as zonas de fronteira entre a realidade e a ficção se tornem cada vez mais tênues. Histórias já tipicamente conhecidas têm ganhado nova roupagem e se tornado verdadeiros espetáculos, de acordo com os interesses comerciais de Hollywood. O cinema é um terreno fértil para a disseminação de temáticas históricas e ele parece ter descoberto a história, antes mesmo que ela o percebesse como fonte de aprendizagem.

O cinema descobriu a história antes de a História descobri-lo como fonte de pesquisa e veículo de aprendizagem escolar. No início do século XX, os “filmes históricos” quase foram sinônimo da ideia de cinema, tantos foram os filmes que buscaram na história o argumento para seus enredos. (NAPOLITANO, 2006, p. 240)

Apesar de ter sido visto por seus contemporâneos, como mais uma forma de entretenimento burguês, os filmes exibidos pelos irmãos Lumière5 geralmente retratavam cenas clássicas do cotidiano dos homens daquela época. 6 As cenas produzidas, ainda em preto e branco e sem sons, eram exibidas em exposições

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itinerantes pela Europa, e, de acordo com Tom Gunning7, seu sucesso era devido, principalmente, ao fato dessas imagens representarem com tamanha lucidez a realidade. Este autor chega até mesmo a descrever, a partir de relatos deixados pelos homens daquele período, o impacto causado pelo novo invento naqueles que presenciaram sua demonstração. Inclusive, menciona a experiência de Máximo Gorki que, em 1896, após ter assistido a um desses filmes afirmou:

Esta vida muda e cinza finalmente começa a perturbar você, deprimi-lo. É como se ela carregasse uma advertência, carregada de um vago, mas sinistro significado que faz seu coração quase desfalecer. Você está esquecendo onde está. Estranhas visões invadem sua mente e sua consciência começa a diminuir e turvar-se. (GUNNING, 1996, p. 22)

É possível perceber, a partir desse relato, o quanto os filmes assistidos por Gorki o deixaram espantado. Entretanto, não só ele, mas diversos outros espectadores ficaram assombrados ao ver o mundo real ser reproduzido através de uma máquina como aquela. Embora essas projeções ainda não possuíssem recursos de áudio e cores tão sofisticados como as de hoje, ainda assim eram capazes de envolver quem as assistia e “dissolver a distinção entre o modelo e a cópia, ou até mesmo tornar a fonte original inferior à sua realização imagética” (GUNNING, 1996, p. 32). Nas palavras do historiador Roberto Catelli Junior, “os irmãos Lumière criaram a ilusão de se estar frente ao real. Isto é, a aparência de uma arte objetiva, neutra, na qual o homem não interferia, pois a máquina eliminava a intervenção humana e assegurava a objetividade” (CATELLI JUNIOR, 2009, p. 55). Os cineastas desde o início buscaram uma reprodução cada vez mais próxima da realidade, de forma que, os espectadores tivessem a sensação de que o olhar da câmera fosse o seu próprio. Vários recursos foram tentados no intuito de fazer com que o público se sentisse dentro da trama e experimentasse as sensações vividas pelos personagens principais.

Desde o início do cinema, buscou-se uma reprodução cada vez mais fiel e completa da realidade [...] a imagem fílmica suscita certamente um sentimento de realidade [...] é dotada de todas as aparências da realidade para o espectador. Mas o que aparece na tela não é a realidade suprema, resultado de inúmeros fatores ao mesmo tempo objetivos e subjetivos [...] é um simples aspecto (relativo e transitório) da realidade, de uma realidade estética que resulta da visão eminentemente subjetiva e pessoal do realizador. É notável como que esse realismo captado pela percepção [...] possa se misturar

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18 intimamente e de modo tão fecundo à magia, ao sonho, ao fantástico, à poesia. (BETTON, 1987, p. 09)

Dessa forma, o que é projetado não é a realidade, mas partes dela. O filme é fruto da visão de mundo presente entre seus realizadores, que se valendo de técnicas e recursos de edição, procuram imprimir-lhe elementos de verossimilhança. E, nesse caso, “o verossímil é simplesmente esse batalhão suspeito de procedimentos e truques que procura tornar o discurso natural e que se esforça em disfarçar a regra, mascarando-a para escondê-la do grande público” (Christian Metz apud NOVA. C.; COPQUE. H., 2009, p. 02). O verossímil diz respeito a tudo aquilo que é colocado em um filme e que, de alguma maneira, pretende conferir-lhe uma associação com o mundo real para torná-lo inteligível. Nessa perspectiva, “os textos populares da mídia constituem um acesso privilegiado às realidades sociais de sua era, assim, a sua interpretação possibilita a compreensão daquilo que está, de fato, acontecendo em determinada sociedade em dado momento” (KELLNER, 2001, p. 143). No caso específico do filme Cruzada8, lançado em maio de 2005 nos cinemas, o passado medieval é retomado para ambientar a trama, que começa em uma modesta aldeia francesa onde mora o personagem principal, que após aceitar o convite de ir para a Terra Santa, lutar pela paz em Jerusalém, é instigado a conhecer os lugares sagrados. Em meio a essa aventura, o espectador pode percorrer as ruas da Cidade Santa, entrar em castelos e sentir o clima que perfaz a convivência de cristãos, judeus e muçulmanos.

Em um filme como esse, a tarefa maior para nós, através da mixagem, é tentar transportar a plateia para um lugar e época diferentes. Isso envolve pequenos detalhes que talvez só nós percebamos. Você pensa como seria Jerusalém naquele tempo. Era uma cidade com pessoas de toda parte, de toda a Europa. Havia judeus e muçulmanos lá. Andavam pelas ruas, e você tem de criar isso de modo a não deixar dúvidas de que você passou a sensação. O público não percebe isso, não pensa que estamos manipulando tudo, mas tem de ser preciso e real.9

Para que um filme de ambientação histórica cumpra sua missão, cineastas e produtores precisam esforçar-se ao máximo para que ele pareça o mais próximo possível com a realidade e seus espectadores sintam-se transportados de uma época para outra. Todavia, o que é projetado não é a Jerusalém do período

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medieval, mas uma ideia que se faz dela. Segundo Elias Thomé Saliba (1999), essas produções tendem a reproduzir aspectos ligados a conceitos-chave de nossa vida social e intelectual. Ícones canônicos que podem ser entendidos como imagenspadrão, com as quais nos acostumamos tanto que nem sequer imaginamos outra possibilidade para elas. É o caso, por exemplo, da:

[...] imagem de Tiradentes sem barba, veiculada em alguns raros quadros que tentam quebrar um pouco da imagem do mártir – ou em filmes como Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, de 1972 – já é desmistificadora, pois sabemos que a barba de Tiradentes foi uma criação bem mais tardia, da república brasileira, na época de sua fundação. (SALIBA, 1999, p. 88)

Nesse sentido, mesmo a escolha dos atores não foi aleatória, pois a imagem que eles encarnaram, devido a outros filmes que fizeram, ajuda o público a perceber não só a aparência física, mas também os aspectos subjetivos de cada personagem.10 “Tais imagens constituem pontos de referência inconscientes, sendo, portanto, decisivas em seus efeitos subliminares de identificação coletiva. São imagens de tal forma incorporadas em nosso imaginário coletivo, que as identificamos rapidamente” (SALIBA, 1999, p. 88). A principal crítica em relação à Cruzada existe pelo fato do filme ter sido produzido em meio a um contexto histórico de conflito real entre cristãos e muçulmanos, no Oriente Médio. Vários jornais procuraram relacioná-lo à ideia de “guerra ao terrorismo”, expressa pelo Presidente George Bush, que após os atentados de 11 de setembro de 2001, convocou os americanos para uma nova “cruzada”. As palavras “árabe”, “muçulmano” e “terrorista”, quase se tornaram sinônimos. Boa parte do filme foi rodada na Espanha e também em Marrocos. Segundo Arthur Max, desenhista de produção, foi inevitável ter de construir tudo, pois seria muito difícil encontrar, por exemplo, uma banheira do século XII. Tudo foi desenhado, discutido e primorosamente construído por vários artesãos em Marrocos e outras partes do mundo.11

Construir o maior e mais rápido possível até que o tempo e o dinheiro acabassem foi nossa estratégia. Alguns dos cenários feitos aqui [em Marrocos] foram baseados em vilas existentes, estruturas existentes, ruínas encontradas e perto das quais fizemos os cenários. Na Espanha, criamos uma grande aldeia baseada no Castelo de Loarre, no norte do país, nos Pirineus. Aqui, construímos Revista UNIABEU Belford Roxo V.8 Número 19 maio-agosto de 2015

20 uma vila baseada em um casbá existente. Dispensamos nossas técnicas usuais e construímos de modo tradicional, quase que totalmente natural, pedra, barro, usando árvores de verdade, em vez de madeira comprada em lojas, e usamos artesãos locais para construir a seu modo tradicional para que correspondesse o máximo possível, à realidade. 12

Logicamente, efeitos de computação gráfica não foram dispensados. Apesar disso, podemos notar a preocupação da equipe que fez o filme de tentar ser o mais fiel possível à realidade imaginada pelo Ocidente acerca do Oriente no período medieval das cruzadas. “É um local vivo. Tentamos passar essa variedade em que a vida acontece em Jerusalém como aconteceu na época do filme”, ainda disse Arthur Max. De acordo a historiadora Michèle Lagny: A utilização do filme pelo historiador, por longo tempo inconcebível e em seguida admitido formalmente, parece constituir doravante o objeto de uma tendência cujo sucesso é crescente, visto que, mais do que nunca, todos os cineastas na frente, mas também sociólogos, etnólogos, filósofos e historiadores, afirmam a estreita relação entre o cinema e a história. Imediatamente, por causa da correspondência que parece evidente, à primeira vista, entre a imagem animada e o real. [...] Em seguida, por causa do efeito marcante da imagem sobre a memória como consequência daquilo que ela solicita afetivamente [...]. (LAGNY, 2009, p. 99)

Nesse sentido, o cinema pode ser considerado um dos mais poderosos instrumentos de perpetuação e divulgação do passado, “na medida em que, pode fazer dele um espetáculo em si mesmo, com eventos, personagens e processos encenados de maneira valorativa, laudatória e melodramática” (NAPOLITANO, 2006, p. 276). Não obstante, devido à especificidade de sua linguagem técnico-estética, para muitos historiadores, o filme tenderia muitas vezes a diluir as tensões, polêmicas e incertezas que permeiam os eventos históricos, além de desvalorizar o encadeamento cronológico dos fatos em detrimento do ponto de vista adotado por seus realizadores. Robert Rosenstone, um partidário da utilização do filme pelo historiador, comenta em seu texto História em imagens, história em palavras13 o posicionamento de dois outros profissionais em relação ao universo cinematográfico. Um deles é o historiador R. J.

Raack

(1993), um

defensor convicto

da utilização

videodocumentários para a produção do conhecimento histórico.

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de

21 Segundo seu ponto de vista, as imagens são mais apropriadas para explicar a história do que as palavras. A história escrita convencional é, segundo ele, tão linear e limitada que é incapaz de mostrar o complexo e multidimensional mundo dos seres humanos. Apenas as películas — capazes de incorporar imagens e sons, de acelerar e reduzir o tempo e de criar elipses — podem aproximar-nos da vida real, da experiência cotidiana das "ideias, palavras, imagens, preocupações, distrações, ilusões, motivações conscientes e inconscientes e emoções". Somente o cinema nos proporciona uma adequada "reconstrução de como as pessoas do passado viram, entenderam e viveram suas vidas". Somente os filmes podem "recuperar as vivências do passado". (ROSENSTONE, 1998, p. 03)

O outro,

O filósofo Jan Jarvie, autor de dois ensaios sobre cinema e sociedade, defende uma postura totalmente oposta. As imagens só podem transmitir "muito pouca informação" e padecem de tal "debilidade discursiva" que é impossível transpor algum tema histórico na tela. A história, explica, não consiste em "uma narração escrita daquilo que se sucedeu", mas nas "controvérsias entre historiadores sobre o que se passou, os motivos pelos quais sucedeu e seu significado". Ainda que seja correto que "um historiador possa explicar seu ponto de vista por meio de uma película ou de um romance, como poderia defendê-lo, introduzir notas de pé de página e refutar a seus críticos"? (ROSENSTONE, 1998, p. 03) Como é possível perceber através das citações acima, os dois autores defendem pontos de vista completamente diferentes sobre a utilização do filme para a promoção do conhecimento histórico. O primeiro deles, R. J. Raack parece radicalizar quanto à capacidade do filme de transmitir, ou melhor, de permitir que o espectador encarne o universo vivido pelos personagens principais, a ponto de demonstrar certo desprezo pelo texto elaborado pelos historiadores. De fato, o texto escrito, não oferece para o leitor imagens prontas acompanhadas de trilha sonora, mas insiste em querer testar a imaginação dele em face do assunto estudado. Além disso, não se pode deixar de levar em conta que antes do cinema se estabelecer como veículo de informação ou entretenimento a história já existia e é através dos estudos elaborados por estes profissionais que muitos cineastas produzirão vários vídeodocumentários. “É sob a luz do saber oriundo da tradição escrita que o cinema será interpretado e feito prisioneiro” (MORETTIN, 2003, p. 36). Já o posicionamento do filósofo Jan Jarvie tende a desvalorizar demais o filme em relação às fontes escritas, pois, se o filme não comporta em si mesmo toda a verdade sobre os eventos do passado, reproduz ao menos aquilo que já foi Revista UNIABEU Belford Roxo V.8 Número 19 maio-agosto de 2015

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amplamente discutido pelos historiadores e se tornou senso comum entre as pessoas. Em 1978, época em que o texto elaborado por Jarvie foi publicado, talvez os vídeos mais populares não gozassem de meios alternativos para explicar as histórias encenadas. Hoje, devido à evolução da tecnologia vários recursos foram inseridos nos filmes com o intuito de aproximar o espectador daquilo que está sendo retratado pela película. Henry Jenkins14 comenta, em seu livro Cultura da Convergência, que o modo como as pessoas têm consumido as mídias mudou. As novas tecnologias midiáticas permitiram que o conteúdo fluísse por canais diferentes e assumisse formas distintas no ponto de recepção (JENKINS, 2008). Em Cruzada, por exemplo, foi inserida uma faixa interativa, intitulada Guia do Peregrino, para que o espectador pudesse aprender ao longo da história um pouco mais a respeito de quem foram os personagens e os lugares demonstrados.15 Além disso, foi criado um ambiente virtual para que os expectadores pudessem acompanhar curiosidades sobre a produção e estreia do filme. “As indústrias comerciais desenvolveram infraestruturas poderosas para garantir que suas mensagens atingiriam toda a população americana que não vive numa caverna” (JENKINS, 2008, p. 185). Logicamente é impossível que um filme consiga agregar toda uma história, cujo intervalo de tempo seja maior que algumas horas, sem cometer supressões em seu conteúdo. Diferente do texto escrito pelos historiadores, no qual é imperativo que se esclareça sobre os métodos adotados na pesquisa para a reconstrução de um determinado momento histórico, o filme não carrega a obrigação de prestar contas ao espectador sobre os critérios escolhidos pelo diretor e sua equipe para a criação do roteiro. Devido ao seu caráter ficcional e linguagem explicitamente artística, assim como acontece em livros de romance, ele não precisa obedecer à sequência cronológica dos fatos e nem ser completamente fiel à realidade, pois, antes de querer informar a respeito da história, busca nela inspiração para criar tramas e personagens que consigam entreter o público. O primeiro grande trabalho a respeito do cinema e a sua relação com a história foi empreendido por Siegfried Kracauer, jornalista judeu alemão, que ficou exilado nos Estados Unidos durante o período da Primeira Guerra Mundial. Ele escreveu: De Caligari a Hitler: Uma história psicológica do cinema alemão. Nessa obra, o autor procura destacar na filmografia produzida até a década de 1930,

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aspectos psicológicos que fossem de encontro ao ideário nazista, que seria expresso poucos anos mais tarde naquele país. Para ele, “o que os filmes refletem não são credos explícitos, mas dispositivos psicológicos, profundas camadas da mentalidade coletiva que se situam abaixo da consciência” (KRACAUER, 1988, p. 18). Ele realizou uma importante reflexão para a compreensão do cinema enquanto mecanismo de propaganda. O filme passou a ser percebido “enquanto portador de aspectos psicológicos, muitas vezes inconscientes, de questões essenciais para a construção identitária de uma população” (FERREIRA, 2009, p. 187). Sua análise é de grande importância para a compreensão das potencialidades do universo cinematográfico e exerce grande influência em outros textos produzidos por historiadores ao longo dos anos. Já na década de 1970, o debate sobre os elementos contidos na produção fílmica recebeu a atenção de outros pesquisadores, dentre eles, Marc Ferro, historiador francês que é considerado o primeiro a teorizar e aplicar o estudo da chamada relação cinema-história. Ele analisa filmes soviéticos e americanos com a intenção de desvendar as motivações da indústria cinematográfica no século XX. Para este autor, não apenas o filme documentário ou épico serve para a ciência histórica como testemunho das tensões sociais pertinentes ao momento em que foi produzido, mas também os de ficção ou de qualquer outro gênero, pois vários aspectos agregados à película são inseridos nessas produções, até mesmo de forma inconsciente por sua equipe.16 Desse modo, independentemente de ter sido encomendado para funcionar como propaganda de um determinado sistema de ideias, como de governos, fará críticas implícitas ao regime a que está submetido e revelará os bastidores da realidade encenada. O filme, aqui, não está sendo considerado do ponto de vista semiológico. Também não se trata da estética ou de história do cinema. Ele está sendo observado, não como uma obra de arte, mas, sim, como um produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas. (FERRO, 2010, p.32)

Cristiane Nova, pesquisadora da Universidade Federal da Bahia, inspirada pelas ideias de Marc Ferro, comenta que existem duas possibilidades básicas para que o historiador analise o mundo do cinema. A primeira delas diz respeito ao filme enquanto documento primário, ou seja, um testemunho direto da sociedade em que foi produzido. E, a segunda, enquanto documento secundário, quando o foco da Revista UNIABEU Belford Roxo V.8 Número 19 maio-agosto de 2015

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pesquisa está mais voltado para descobrir que tipo de discurso sobre o passado o filme evoca. “Dessa forma, pode-se dizer que os “filmes históricos” são duplamente documentos e podem ser utilizados como tais a depender do enfoque dado pelo sujeito que o investiga” (NOVA, 1996, p. 02). Pesquisadores como Eduardo Morettin, no entanto, analisando a obra de Ferro, criticam-no dizendo que, embora os filmes articulem a realidade social do momento em que foram produzidos, não a revelam de forma explícita.

Para

percebê-la, é preciso tentar desvendar a lógica discursiva, presente nesses textos, e estar atento aos detalhes presentes na trama. Antes de querer fazer com que o filme confesse seu sentido inconsciente, é preciso “refazer o caminho trilhado pela narrativa e reconhecer a área a ser percorrida a fim de compreender as opções que foram feitas e as que foram deixadas de lado no decorrer de seu trajeto” (MORETTIN, 2003, pp. 38-39). Por fim, para Leutrat, analisar um filme é:

Delimitar um terreno, medi-lo, esquadrinhá-lo muito precisamente [...]. Uma vez recortado e batizado o terreno, devemos nele, e em conformidade com a sua natureza, efetuar seus próprios movimentos de pensamento. Para este périplo é imperativo dispor de várias cartas, ou seja, de instrumentos trazidos de uma a outra, estabelecer passagens, as trocas e as transposições [...]. A descoberta de tais signos depende das questões postas às obras, cada obra necessitando de questões particulares. Como diz Gérard Granel, “não há migalhas numa obra, nem ‘triagem’ possível entre o que seria importante, revelador ou insignificante”. [...] Afinal de contas, tudo pode ser levado em conta, dado que é disto que o sentido advém. (Leutrar apud MORETTIN, 2003, p. 39)

Certamente, “toda tentativa de análise de um filme implica em uma redução do seu sentido em consequência da impossibilidade de uma análise total e acabada (só alcançável como hipótese)” (NOVA, 1996, p. 04). Entretanto, como pudemos perceber até aqui, procurar entender o porquê das omissões e adaptações acerca da história presente na película, bem como as distorções mais radicais em seu enredo, embora trabalhoso, pode elucidar as expectativas, desejos e concepções de mundo de quem as produziram.

Considerações finais

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Como foi visto, para que o filme pudesse desfrutar de “direito à cidadania” entre os historiadores, um longo caminho precisou ser percorrido. Ainda hoje, devido principalmente à natureza do meio audiovisual, muitos profissionais têm optado por não utilizar essa ferramenta como fonte de pesquisa devido ao seu caráter mais dinâmico que o dos livros. Cremos que esse preconceito deve ser superado e que os profissionais da história devem procurar, cada vez mais, estar aptos para lidar com esse tipo de fonte. Afinal, essas tramas podem não só favorecer a disseminação do conhecimento histórico, mas também testemunhar sobre os conflitos e o estágio da cultura em que foram produzidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETTON, Gerard. Estética do Cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. CATELI JUNIOR, Roberto. Temas e Linguagens da História: Ferramentas para sala de aula no ensino médio. São Paulo: Scipione, 2009. CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens - Conceitos fundamentais para a interpretação da imagem fotográfica: a fotografia como fonte histórica. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002. CRUZADA (Kingdom of Heaven), Ridley Scott, 2005. CRUZADA (Kingdom of Heaven), Ridley Scott, 2012. Edição especial. Disco 1: O Guia do Peregrino; Comentário em Texto; Trailer de Titanic. Disco 2: Quadro Interativo de Produção; Documentários; Featurettes Para Internet; Material Publicitário. FERREIRA. Letícia S. O cinema como fonte da História: elementos para discussão. Métis: História & Cultura. v. 8, nº 15, jan/jun 2009. FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001. KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: Um debate metodológico. Revista Estudos Históricos, v. 05, nº 10, 1992. Revista UNIABEU Belford Roxo V.8 Número 19 maio-agosto de 2015

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KRACAUER, S. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. LAGNY, Michèle. O cinema como fonte de história. In: Jorge Nóvoa; Soleni Biscouto Fressato; Kristian Feigelson (Org.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. da UNESP, 2009. MORETTIN, Eduardo V. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História: Questões & Debates, nº 38, pp.11-42. Curitiba: Editora UFPR, 2003. NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In: Carla Bassanezi Pinsk (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. NOVA, Cristiane. O cinema e o conhecimento da História. In: O Olho da História: Revista de História contemporânea. UFBA, n. 3, 1996. Disponível em: . Acesso em 23/09/2010. NOVA, Cristiane; COPQUE, Helen. Processos psicológicos básicos à luz das teorias cinematográficas. (Inter) Subjetividades. Ano 1, v. 1, nº 1, Jul – dez. 2009. ROSENSTONE, Robert. História em imagens, História em palavras: reflexões sobre as possibilidades de plasmar a História em imagens. In: O Olho da História: revista de História contemporânea. UFBA, n. 5. Disponível em: , acesso em: 10 de outubro de 2010. SALIBA, Elias Thomé. As imagens canônicas e o ensino de História. In: III ENCONTRO: Perspectivas do ensino de História. Curitiba: UFPR, 1999.

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Marc Ferro é historiador da terceira geração da Escola dos Annales. Lecionou na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). Realizou estudos sobre a Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundial, mas se tornou mundialmente conhecido devido às suas reflexões sobre o cinema e a História. 2 Termo utilizado por Marc Ferro para indicar que o filme era desprezado pelos historiadores como objeto de pesquisa histórica. 3 Esse termo é utilizado pelo historiador Peter Burke para indicar a dimensão do impacto causado pela renovação historiográfica, trazida pelos Annales na França. (BURKE, 1991) Segundo a filósofa Maria Ciavatta, essa “revolução operou-se em dois sentidos fundamentais: na concepção do que se considera documento na produção historiográfica, e na análise dos documentos em relação a outras fontes documentais”. (CIAVATTA, 2002, p. 38) 4 Embora isso não signifique que os consumidores dos meios de comunicação sejam passivos. De alguma maneira eles resistem a essa tentativa de manipulação propagandística. 5 Os irmãos Louis e August Lumière são considerados os inventores do cinematógrafo. A patente deste invento foi registrada no ano de 1895. 6 Veja o que diz a historiadora Michèle Lagny a respeito das primeiras filmagens feitas pelos pais do cinema: “Filmar a vida: eis o que fizeram os operadores Lumière, cujas primeiras tomadas de cena testemunham a saída de trabalhadores da usina que possuíam (que pode também ser lida como ancestrais da publicidade empresarial), a refeição deles com seus filhos (modelo do filme de família) assim como manifestações públicas da vida política ou de acontecimentos jornalísticos que rapidamente nutrirão os jornais de atualidades”. (LAGNY, 2009, p. 99).

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Tom Gunning leciona nos departamentos de “História da Arte” e “Cinema e Estudos de Mídia” na Universidade de Chicago. É especialista em História do Cinema e Cultura Cinematográfica. (Fonte: Acesso em 24 de maio de 2012). 8 CRUZADA (Kingdom of Heaven), Ridley Scott, 2005. 9 Fala de Per Hallberg, supervisor da edição sonora de Cruzada. Este trecho foi extraído do “Quadro Interativo de Produção” da edição especial do filme, lançada pela FOX, em 2012 (Disco 2). 10 Orlando Bloom, por exemplo, é conhecido entre o público devido a sua participação em diversos filmes de ambientação histórica como Troia (2004), ou filmes criados em um suposto contexto temporal relativo ao medievo, como é o caso de O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (2001). Recebeu várias críticas por sua atuação em Cruzada devido a sua “pouca expressividade” no filme. Apesar disso, cremos que a escolha desse ator, por Ridley Scott, não foi casual, pois este pretendia imprimir na trama um sentido de afirmação interior ao personagem. Além disso, Bloom já havia trabalhado com Ridley Scott, em 2001, quando interpretou o personagem Todd Blackburn, em Falcão Negro em Perigo. 11 A partir das falas da Equipe de Produção do filme presentes no “Quadro Interativo de Produção” da edição especial lançada pela FOX, em 2012, é possível perceber a dimensão mercadológica agregada ao filme. Parte do figurino foi feita na Tailândia e na China, as bandeiras e estandartes usados nas cenas de batalha, na Espanha e Marrocos. “Tivemos de agir globalmente para conseguirmos tudo a tempo e por um preço competitivo”, disse Sonja Klaus figurinista do filme. 12 Fala de Arthur Max, desenhista de produção de Cruzada. Este trecho foi extraído do “Quadro Interativo de Produção” da edição especial do filme lançada pela FOX, em 2012 (Disco 2). 13 Texto publicado pela revista O Olho da História da Universidade Federal da Bahia número 5, setembro de 1998. 14 Pesquisador do programa de estudos de mídia comparada do Massachusetts Institute of Tecnology. 15 Uma crítica a esse recurso é que na versão publicada no Brasil o Guia do Peregrino está em inglês. Isso limita o acesso às informações veiculadas por parte do público menos escolarizado. 16 “Analisar tais lapsos, bem como suas discordâncias ou concordâncias com a ideologia, ajuda a descobrir o que está latente por trás do aparente, o não visível através do visível”. (FERRO, 2010, p. 33) Recebido em 17/01/2015. Aceito em 26/04/2015.

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