O Cinema e Seu Olhar - CAMINHANDO NA TRANSDICIPLINARIDADE

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O CINEMA E SEU OLHAR... DIGO, NOSSO OLHAR.

CAMINHANDO NA TRANSDICIPLINARIDADE



Autoria: Wanessa do Bomfim Machado


Orientadores: Prof. Roberto Novaes e Prof. João Luiz Vieira



Introdução
Diálogos do Cinema com outras áreas têm sido constantes. Mas
procuramos aqui um caminho alternativo, sem a servidão disciplinar tão
comum. Cinema e Filosofia mais que lado a lado; queremos um caminho
transdiciplinar, "capaz de circular, afetando e sendo afetado por outros
saberes".[1]
Muito se fala hoje na academia sobre a superação do platonismo,
rechaçar esse mundo metafísico e todos os pressupostos que ele coloca para
nosso pensamento moderno e ocidental. Mas nosso olhar, ávido por essências
e representações, ainda se faz presente nas mínimas coisas.
Pensar o olhar sobre o cinema, é uma forma de pensar nosso olhar sobre
a vida, e vice-versa. Adentrar a história do cinema enquanto representação
da realidade (postura que ao longo do tempo tem se colocado inúmeras vezes)
é adentrar as bases do olhar moderno, enquanto produtos da mesma sociedade
que "criou" o cinema.
Buscando escapar ao modo de investigação tipicamente metafísico, que
"subordina-se aos seus instrumentos e técnicas operacionais, sob a falsa
suposição de que eles lhe garantem o encontro daquilo que se busca
saber"[2], não partiremos das teorias, mas do lugar de acontecimento disso
que buscamos saber: de um filme.
Primeiramente porque o cinema é local privilegiado para a questão do
olhar sobre a realidade. Inserido desde suas origens na disputa realismo x
idealismo[3], é de uma forma ou de outra, visto como representação da
realidade; visão esta, obviamente, fundamentada nos paradigmas metafísicos.
Em segundo lugar porque o cinema nos permite de modo singular tanto a
possibilidade de identificação quanto a de afastamento, jogo que torna
possível um maior reconhecimento do quanto estamos aprisionados (ou não)
nesses pressupostos que orientam a modernidade. O terceiro fator deve-se ao
filme escolhido: Rashomon (1950).
Rashomon, de Akira Kurosawa, se por um lado, nos oferece, tal como
todo filme, o realismo e o idealismo; por outro lado, coloca suas próprias
bases em xeque.
Exposto o panorama geral dessa discussão, nos voltaremos ao pensamento
que primeiro propôs esse xeque: a fenomenologia, mais especificamente a
hermenêutica em Heidegger. Mais que um novo olhar sobre a obra de arte, sua
filosofia propõe um novo olhar sobre o mundo, colocando-se assim como
relevante contribuição ao nosso refletir.
Rashomom e o Cinema
Seja a nível estrutural, seja por pequenos detalhes, podemos encontrar
elementos clássicos, realistas, lado a lado com elementos de escolas
surrealista e expressionista, considerados idealistas. Ainda que realismo e
idealismo não se encontrem rigidamente delimitados (somente) pelo Cinema
Clássico Narrativo e pelas escolas surrealista e expressionista
respectivamente, tomaremos a princípio essas linhas como referencial.
A primeira, realista/CCN, caracterizar-se-ia pela restrição do cinema
à instância narrativa, à representação realista e transparente do mundo,
cujo significado encontra-se nele próprio. A segunda, idealista/escolas de
vanguarda, caracterizar-se-ia pela produção de sentidos, afetos, onde a
significação da realidade é dada pelo realizador. E será esse eixo a
linha-guia para nossa análise.
O filme relata 4 diferentes versões sobre um mesmo episódio (a morte
de um homem e o estupro de sua mulher) e sua divisão em diferentes
movimentos nos facilita a compreensão de sua estrutura narrativa. Assim,
temos:
1o Mov.: Introdução do assunto. Criação de Suspense .(5'55'')
2o Mov.: Lenhador, Padre e Homem que encontrou bandido caído testemunham
(18'31'')
3o Mov.: Relato do bandido (25'12'')
4o Mov.: Introdução à Mulher em Rashomon e seu relato (12'08'')
5o Mov.: Introdução ao Homem em Rashomon e seu relato (via médium) (11'45")
6o Mov.: Introdução ao Lenhador e seu relato (18'08")
7o Mov.: Desconfiança e Esperança na Humanidade.(8'02")

A narrativa como critério de segmentação nos coloca diante de um
desenrolar mais fluido da estória, de modo a permitir uma continuidade
maior, mesmo através de tantos flash backs e flash fowards dentro de um
mesmo relato.
Aliás, a continuidade, pedra angular do CCN, do realismo no cinema,
pode ser percebida em vários momentos: respeito às continuidades de
iluminação, conteúdo, de movimento, etc, sendo suficiente para a clareza da
estória, para o encadeamento lógico e suave dos planos, envolvendo o
público como se fosse realidade. Um outro elemento importante à
linearidade, enfatizado por Andre Bazin, defensor de um realismo ainda mais
realista que o do CCN, é do raccord. Podemos perceber vários raccords
sobre um olhar (plano/contraplanos e plano ponto de vista), sobre
movimento, sobre gesto, e raccord no eixo. A interpretação, naturalista
para a época também reforça a ilusão clássica. Temos a música que se
apresenta como consubstancial à trilha da imagem. E ainda o "ar misterioso"
dado à Mulher, cujo véu, se abrindo, desvela o rosto; cujos tornozelos
estão à mostra, e cujo leit-motif já é em si cheio de encanto, relacionado
ao processo de voyerurismo e seu par identificação, onde a mulher é
responsável pela excitação expressa, por exemplo, na espada que sobe ou
ainda na sombra que cobre o rosto do bandido, este identificado ao
espectador.

Enquanto que estruturalmente o filme se coloca como realista, é nos
pequenos detalhes que encontramos os aspectos idealistas. No primeiro
relato, o do lenhador, temos uma distensão do tempo entre o plano em câmera
alta das árvores e o Lenhador andando por entre elas, além de um plano
ponto de vista do morto, quando Lenhador o vê.

No segundo, percebemos um simbolismo, por exemplo, pela montagem por
analogia de conteúdo quando, após o beijo forçado do Bandido a adaga da
Mulher cai fincada, de pé na terra, uma possível analogia com o estupro,
tido como ocorrido no filme, mas não mostrado de fato. Temos ainda nessa
cena, um mundo que roda no céu e fica embaçado quando a Mulher se entrega
ao beijo do Bandido. Já a triangulação formada quando a Mulher encontra
seu marido amarrado, nos colocando diante da confusão da cena.
O relato do morto, através da medium, por si só já é idealista. Haja
vista que o sobrenatural, o gosto pelo macabro, segundo Betton, é uma das
características dessa vertente do cinema. A ambientação, muito bem cuidada,
é composta por poeira, pelo vento que sopra somente sobre a médium, e os
véus.
Na versão da Mulher, o paroxismo dos sentimentos, também
característico à vertente idealista nos é bastante claro.
E em constraste com a forma bem realista da última versão, até por não
conter os offs dos relatos anteriores, temos uma luta ridícula, nada real
entre o Homem e o Bandido.
Finalmente, temos na última cena uma rima cinematográfica, ou seja,
uma semelhança na forma/conteúdo entre duas imagens subseqüentes, no caso
explorado pela fusão dos homens (Lenhador e Padre) parados com as colunas.

Podemos perceber assim, a dicotomia realismo/idealismo também quanto
ao uso funcional duplo da montagem em Rashomon. A primeira é aquela
responsável pela seqüência lógica e cronológica na apresentação do enredo,
que faz avançar a história (montagem-enredo), a segunda, muito explicitada
nas montagens por analogia, servem não como meio, mas como diria Marcel
Martin "como um fim que visa exprimir por si mesma, pelo choque de duas
imagens, um sentimento ou uma idéia" (montagem expressiva).

Cinema Realista e Idealista
Toda a constituição do cinema possui como pedra angular esta relação
com a Realidade: uma obsessão em ser a representação ("re-presentação")[4]
da Re-a-li-da-de. Segundo F. Millingham em seu Por qué nació el cine, a
busca do homem de fornecer o duplo da natureza encontra-se presente desde
os tempos primitivos, manifesta em suas representações pictográficas em
pedra de animais parados e utensílios inanimados. A perspectiva, o estudo
esboçado nos séculos XVII e XVIII da persistência retínica, a fotografia,
cada qual contribui ao mito do cinema total, permanecente ainda hoje:
Graças ao desenvolvimento da eletrofisiologia, da química e da
biônica, espera-se transmitir (...) tudo o que concerne aos outros
sentidos que não a visão e a audição: os odores, os perfumes, o
gosto, as sensações táteis" (André Breton apud Beton, 1987, p. 9)


Tal realismo, apesar de desde o começo ter sido contestado[5], vem
sendo buscado pelos mais diversos autores, movimentos e épocas.
Enquanto o Cinema Clássico Narrativo, busca através de um realismo
fabricado, cujos alicerces são a unidade e a identificação, parecer real; o
Neo-realismo de De Sica (Ladrões de Bicicleta, 1948) e Rosselini (Roma,
Cidade Aberta, 1946) quer ser real. Para usar uma expressão de André
Bazin, busca-se aqui a filtragem do real, o olhar paciente sobre o
fragmento que revela a essência do todo real. Temos também uma aproximação
com o Realismo Crítico, de 1960, melhor representado por Kracauer. Para
ele, a ciência trouxera um mundo de abstrações e a missão do cinema seria a
de trazer-nos de volta à "terra", ao confronto com a realidade.
Posteriormente, temos na França, nos meados dos anos 70 o "le nouveau
naturel", um projeto realista que segundo Jacques Doillon, um de seus
representantes, "não quer um distanciamento entre aquilo que filmam e
aquilo que encontram diariamente nas ruas". No cinema "underground" nos
EUA, uma de suas cláusulas, colocada pelo crítico Carlos Armando[6] em 1969
num jornal literário, é a de (...) filmar sempre a realidade, as idéias e
as dimensões morais do homem. Seus ícones: Andy Warhol e John Cassavete .
Um exemplo bem recente de que a questão do realismo ainda pulsa é o
Dogma 95. Projeto extremamente realista que pretende colocar o diretor como
alguém isento, neutro. A busca pela neutralidade, por sinal, costuma ser
uma das conseqüências da vertente realista.
E o Cinema Documentário, tradicionalmente também busca essa
neutralidade. Ele ainda é visto e feito (na maioria dos casos) como sendo
uma leitura científica e verídica do real. Esse modelo foi instituído por
Flaherty e John Grierson nas décadas de 20 e 30. Um dos princípios básicos
que Grierson coloca para o documentário é a "crença que os materiais e
estória tiradas do cru podem ser mais purificados[7] (mais reais no sentido
filosófico) que o material[8] interpretado." (Lovell e Hillier, 1972, p.
24).
O realismo também sofreu influência de Alberto Cavalcanti, do viés
documentarista do cinema soviético e das experiências também soviéticas de
Vertov com seu olho-verdade.
Até bem pouco tempo, esse foi o sistema "canônico". Atualmente, porém,
o campo de discussão sobre a representação da realidade no documentário tem
sido bastante profícuo.
Como pudemos perceber pela nossa análise de Rashomon, o idealismo,
diferentemente do realismo, não concebe a "essência" da realidade na
própria realidade, o significado agora passa pelo sujeito. Tal como o
realismo, seu conceito é amplo e vago, havendo também uma grande
diversidade de representantes. Basicamente, o filme idealista:
...caracteriza-se pela escolha de assuntos fantásticos, pelo
gosto do mórbido ou do macabro, pelos sentimentos levados ao
paroxismo: há uma transfiguração da realidade. Essa transmutação do
real em imagens que refletem a sensibilidade, a personalidade ou as
intenções do autor, pode ser encontrada, em diversos níveis, em
todos os filmes, sendo também essa reorganização do real, em grande
medida, fruto da imaginação criadora do espectador (Betton, 1987)


Dentro da vertente idealista, encontramos entre outros, o
expressionismo que, para fazer o fator mental intervir, recorre à
estilização de cenários, iluminação e interpretação dos atores. Metrópolis
(1926) de Fritz Lang é um exemplo bem característico. Já o surrealismo,
memorável em Un Chien Andalou (1929), de Luis Buñuel e Salvador Dali,
recorre essencialmente ao sonho, ao mistério do inconsciente, à imaginação.
Dos teóricos, cuja influência ultrapassa seu tempo, podemos citar
Munsterberg, da escola neo-kantiana e Arnheim, da gestaltista, para quem a
natureza é neutra, cabendo ao trabalho do cineasta colocar sua impressão –
não neutra, mas ideológica – sobre o filme. Finalmente, em Eisenstein, tem-
se uma teoria que vai contra a ideologia burguesa presente nos filmes
clássicos, através de planos que marcam a intervenção do sujeito do
discurso fílmico, como em Outubro (1928). Ao definir o cinema intelectual,
refere-se à exposição de um processo mental, enfatizando inclusive a
importância do monólogo interior.
Voltando ao documentário, José Carlos Avelar afirma que sua função é
justamente analisar e não apenas fotografar o real, o que implica num
sujeito e não na existência do duplo do real e a conseqüente idéia de
neutralidade do realismo. Entretanto, é só mais recentemente que
encontramos, de fato, filmes documentários identificados aos movimentos,
existentes desde o meado dos anos 70, análogos à Desconstrução[9]: um
documentário auto-reflexivo, "mostrando a obra como produto, remetendo a
uma instância produtora e desnudando seu processo de produção.[10]

Metafísica e Heidegger
Ainda que tenham sido acirrados os embates entre o realismo e o
idealismo na história do cinema; tal como em Rashomom e em outros filmes
onde esses aspectos se misturam, também na filosofia as duas vertentes
"encontram-se" em vários sentidos. A fronteira entre uma e outra não é
nítida porque se sustentam sem se excluírem, num âmbito maior: a
metafísica, que, apesar de todo um discurso chamado pós-moderno, ainda
fundamenta nosso pensamento. Mas o que é a metafísica? Como ela influi em
nosso modo de pensar?
Seguindo a linha de raciocínio heideggeriana, que por buscar
justamente a superação da metafísica acaba por ser de grande importância,
somos levado a uma questão ainda anterior: o ser, ou seja aquilo que
fundamenta a possibilidade do ente, que por sua vez é tudo aquilo que é,
aquilo que se pode predicar. A história da metafísica é a história do
esquecimento do ser.
Originalmente o ser era tido como physis, o vigor imperante que
brotando permanece e que é, ao mesmo tempo e em si mesmo, o aparecimento
que aparece. Porém, o ser, antes equivalente à aparência, enquanto mera
aparência/aspecto, enquanto aquilo que aparece e enquanto esplendor, brilho
(significados referentes à etimologia alemã de aparência) acaba por se
deslocar desse escopo. E o ser deixando de ser aparência, enquanto physis
também deixa de ser "movimento", deixa de ser "vir a ser", passando a ser
permanente. A aparência deixa de ser physis e se reduz apenas à sua
primeira significação, mero aspecto. Está aberto então o caminho para a
aparência, como em Platão, ser simulacro, ser cópia de um ideal, colocado
muito claramente no seu Mito da Caverna. Dessa forma, o ser passa a ter uma
ligação de réu frente ao lógos, o ser passa a ser um dever ser, um ideal. O
determinante não é a physis ter sido caracterizada como idea, mas a idea se
haver apresentado e imposto como a única e normativa interpretação do ser.
O Ser como idéia converte-se no ente propriamente, e o ente, que antes
imperava no vigor, vira não-ente, pois nunca é como a idéia, nunca a
realiza. E então Descartes, levando ao extremo o idealismo platônico,
coloca a consciência como a única forma de conhecer verdadeiramente a
realidade.
Já Aristóteles, diferentemente de Descartes, mas como Platão, também
busca seu fundamento no exterior, porém esse exterior não é um mundo à
parte do sensível. Para ele, a forma ou essência é o presente mais
inaparente no ente. A natureza não é mais um simulacro, é substância
enformada. Daí a physis (agora enquanto física, natureza) ganhando tal
autonomia, pode ser investigada diretamente. "Não há nada no intelecto que
não tenha havido primeiro nos sentidos", slogan do empirismo baseado na
visão aristotélica.
É interessante pensar nessa relação realismo-empirismo. Em
contrapartida, temos o racionalismo veiculado ao idealismo. Essas duas
correntes epistemológicas, na forma de razão x percepção sensorial como
método de conhecimento são justamente dois importantes sutentáculos da
ciência moderna. Empirismo e racionalismo, realismo e idealismo, sem
fronteiras nítidas. São "opostos" que se atraem; opostos calcados, como
vimos, na metafísica.
A história do esquecimento do ser já nos introduz ao pensamento
fenomenológico, que não vem como oposição pura e simples à metafísica, mas
busca sim uma superação, dando uma resposta ao seu limite. A fenomenologia,
em Heidegger, busca um ser que não é nenhuma entidade em si mesma, como em
Aristóteles, nem mesmo uma idéia a respeito da substância dos entes, como
em Platão, mas um Ser apresentado e apreendido no ente, e este não como
coisa em si, mas enquanto presença no mundo; o Ser é visto como ser-no-
mundo. Isso é devido ao entendido original de aparência, que quebra a
dicotomia ser-ente. O Ser não se encontra por trás das aparências mas
nelas mesmas. Aparência como brilho, como mera aparência, como aparecer.
Enquanto physis e, portanto, enquanto aparecer e desaparecer, desvelamento
e velamento. Passa a ser impermanente, é um vir-a-ser que deve ser
compreendido na cotidianidade da existência. Isso rompe com os pares
metafísicos ser=substância e verdade=representação que ao longo de 2400
anos vieram se desdobrando como estrutura (única) do saber no Ocidente.
Essa superação aponta, segundo Heidegger, para a apropriação do Ser.
Na apropriação do ser, a percepção não é mais algo enganador, a
aparência é um lado do ser e não não-ser. Entrar no caminho para o ser do
ente é reencontrar a estranheza, acontecimento esse que nada mais é que o
acontecer da revelação, a abertura e a expansão do ente em sua totalidade.
Evitando que o que seja "apenas uma interpretação da realidade transforma-
se , assim, imperceptivelmente, na própria realidade"[11].
Segundo Heidegger, existem duas formas de se trazer o Ser de volta, re-
inserindo o homem no estranhamento: a filosofia que passe a lembrar o ser e
a poesia. Poetar, segundo Píndaro, é pôr à luz. E há ainda a relação poesia
- physis através da técnica.. O termo técnica (τεχνη) era o nome dado a
poiesis quando esta significava belas artes. Entretanto, τεχνη significa
saber como apreensão do que está presente enquanto tal. "A essência do
saber repousa, para o grego, na αληυεια (alethéia), a saber, na
desocultação do ente"[12]. Dessa forma, a poiesis (e a arte enquanto
tal[13]), assim como a técnica faz brilhar a physis.
A arte (como poiesis, techne, physis, alethéia) tem, portanto, uma
grande importância à investigação heideggeriana sobre o ser. Heidegger,
buscando pela origem da obra de arte, pensa em subtrair da obra o que é
mera coisa a fim de apreender o que ela traz de arte. Mas as definições
tradicionais do que seja uma coisa não lhe satisfazem. Chega então ao
conceito de produto; este encontrar-se-ia então entre a mera coisa e a obra
de arte.
Partindo agora por esse viés, Heidegger se pergunta o que há de
produto no produto e se utiliza para tal tarefa de um produto pintado por
Van Gogh – um quadro de um camponês. Descobre então que não podemos
apreender o que é seu caráter instrumental, que vem ao nosso encontro
somente no processo de uso do produto (ou apetrecho). Contudo, pelo quadro
de Van Gogh...
Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a
dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador(...) a angústia
do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte
(HEIDEGGER,1990, op cit..25)

Os sapatos da camponesa de Van Gogh nos abre o mundo da camponesa, a
pintura constitui a abertura que o produto (os sapatos) na verdade é. Na
abertura do ente, coloca-se a verdade. Verdade não como cópia ou como
representação adequada do ente, mas como alethéia, como desvelamento do
ser. Assim, a essência da arte seria o pôr-se-em-obra da verdade do ente.

Cinema e Heidegger – Conclusões
O caminho percorrido até aqui funciona como um "trigger" (gatilho)
para uma experiência que vá além do modo como nós espectadores assistimos a
um determinado filme ou desfrutamos de qualquer obra de arte ou ainda do
favorecimento de novas formas de se pensar ou fazer cinema. Mas um âmbito
que pode ser exercitado cotidianamente.
Como vimos, seja na filosofia seja no cinema, as teorias compõem uma
história cheia de imbricações. É interessante notar por exemplo que no
idealismo, apesar de não se conceber o "significado", a "essência" da
realidade na própria realidade, tal como no realismo, busca-se ainda assim
sua "essência", agora significada pelo sujeito. Ainda que em uma a
realidade seja subjetiva e em outra física, ainda busca-se a mesma
representação, e, nas palavras de André Bazin, a defesa contra o tempo
permanece como fio condutor. Ora, a permanência é uma das pedras angulares
da metafísica!
Várias reflexões sobre a superação metafísica no cinema tem sido
feitas, mas são questionáveis. O Desconstrucionismo promovido pelas
revistas Cahiers du Cinéma e Cinéthique, ao transportar a equação
imagem=real, formulada pelos idealistas (e realistas à sua maneira), para a
equação imagem=ideologia, mantém-se no campo idealista, pois transforma a
ideologia numa essência que segundo Jean-Patrick Lebel, paira no ar e é
captada pela câmera. Mesmo a Cinéthique, mais cuidadosa em suas colocações,
coloca o aparato cinematográfico como algo que essencial e teleologicamente
serve à cultura dominante, esquecendo-se que a noção da objetividade
visual, colocada como burguesa, é pretendida por antigas civilizações, e
ainda que assim o fosse, qualquer escola, inclusive a desconstrucionista,
estaria sempre dentro do projeto burguês, independente do que fizesse.
Já a Semiologia, cuja principal aplicação foi a tentativa de mapear as
características significantes do cinema na forma mais científica possível,
também foi pensada como oposição às visões realistas e idealistas. Mas ela
acaba saindo no mesmo "beco" do Desconstrucionismo, ao colocar a ideologia
dominante como sendo a essência do mundo.
Dessa forma e agora mais ainda, uma reflexão sobre o cinema à luz de
Heidegger se faz extremamente relevante, ainda que pouco ele tenha falado
diretamente do assunto.
Rompidas as equivalências ser-substância e verdade-representação, o
cinema deixa de se colocar, na pretensão do realismo e do idealismo, em
suas várias formas, como reveladora da essência ( seja da realidade física,
seja histórica, subjetiva, etc.) ou somente como reveladora da ideologia
(essa também essencial), do discurso. Para além das relações explicitadas e
as mais usuais, os arranjos de entes que tomávamos como a (representação
da) realidade, são agora uma interpretação.
Da mesma forma que diante do poeta, do cientista e do lenhador uma
raiz aparece de forma diferente, o cinema também é uma forma de
aparecimento disso que se mostra e se retrai, isto é do ser. Porém, como
poiesis, techne, physis, alethéia nos é ainda mais, é auxílio no combate
contra o familiar para nos lançarmos na estranheza, no desvelamento.
Aqui os pares imagem=real, imagem=ideologia seriam substituídos pela
imagem=imagem, ou seja, no cinema, tal como na poesia as palavras dizem e
nos quadros as cores brilham, as imagens são mais imagens, mostram. Imagem
como aparência, aparência como brilho, como aparecer, como presença.
O cinema, freqüentemente pensado enquanto privilégio quando se coloca
como representação só tende a encobrir, a velar, ainda que esse velar
também seja uma forma de desvelamento, afinal o movimento de vir a ser Nada
está sempre presente no ser, ainda que nunca venha a ser (esse Nada).
De fato, Merleau-Ponty, Amédée Ayfre e Henri Agel, ou mesmo Bazin e
Kracauer são. Mas Bazin e Kracauer são considerados como pertencentes a uma
vertente fenomenológica realistas! Apesar de uma convergência em alguns
temas[14] como o da ambigüidade própria à realidade (e que o cinema deve
expressar), e cinema como percepção possível do inabitual do cotidiano, há
pontos importantes de afastamento. Bazin fala de reprodução e de fixismo,
dois conceitos problemáticos no vocabulário fenomenológico hermenêutico.
Já Merleau-Ponty, tal como Ayfre e Agel, apesar de considerar a arte
como "um modo de se olhar além dessa situação para um mundo de
possibilidades desconhecidas e incompreensíveis"(Andrew, D., op. cit.)
[15], como liberdade, acaba caindo em sua própria falta de liberdade quando
particulariza, privilegia um determinado aspecto ou um estilo. Na visão de
Merleau-Ponty, por exemplo, o cinema não deve tentar conferir a visão
interior. Ayfre e Agel, de forma geral, privilegiam o cinema de
contemplação e o neo-realismo.
Contudo, o distanciamento existente entre esses autores e Heidegger,
até por motivos cronológicos[16], não nos impede de nos remetermos a eles
em alguns momentos. Sobre a experiência cinematográfica, temos em Ayfre:
Pode-se examinar o cinema, afirmava, a partir da posição de seu
criador (auteur, estúdio etc.) e procurar a visão do mundo do
autor(...). Pode-se focalizar em vez disso a platéia e determinar
dessa vez a repercussão do filme(...). Pode-se finalmente, visar a
própria realidade em seu sentido mais comum(...). Mas é apenas
quando consideramos o cinema em sua totalidade que encontramos sua
verdade humana.(Andrew, D., op. cit.)
Fica mais claro assim a que essa reflexão pode nos levar. Não podemos
ler como Heidegger vê o mundo e passar literalmente para a película,
simplesmente porque isso já se encontra nela. A abertura de sentidos não
depende de uma história com várias versões. O inabitual, o vir a ser não
dependem de um filme ser exótico e provocar um distanciamento.
Se assim o fosse, o próprio Rashomon, serviria como um exemplo dessa
proposta heideggeriana, pois justamente através de sua colocação como
representação e ilusão é que o filme se questiona, se põe em xeque, pois se
desvela a todo o tempo como filme, dado pela narração dos diferentes
relatos diretamente com o espectador via câmera/tela. Se colocando enquanto
CCN e escapando de uma de suas regras básicas: a identificação.
Assim, Rashomon mais do que expor uma possível estética
heideggeriana, é um filme que expõe questões heideggerianas, a da superação
da metafísica, a (não) representação, a percepção, de forma que este
poderia ter sido nosso ponto de partida.
Com a filosofia que leva à crença nas realidades interiores, nos
ideais platônicos e no pensamento racional, (...) o filme provocam,
principalmente no Ocidente, uma sensação de desconforto pela
consciência de que não só a verdade, mas qualquer percepção da
realidade, é relativa, incluindo a validade da experiência
subjetiva. No filme, a situação se radicaliza, visto que o cinema,
através de sua vocação realista, dá crença aos poderes da impressão
de realidade e faz com que espectadores testemunhem a veracidade de
cada um dos relatos.[17]




Dessa forma, nossa pretensão não é o estabelecimento de um cânone
heideggeriano para o cinema, assim como Heidegger não propôs uma nova
escola de pintura ao analisar o quadro de Van Gogh[18]. Mas pensar o cinema
dentro de uma outra perspectiva que não a usual, pensá-lo fora da
metafísica, e assim pensar, simplesmente pensar, fora dela também.
-----------------------
[1] Figueiredo, L.C., Revisitando as Psicologias: Da Epistemologia à Ética
das Práticas e Discursos Psicológicos. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes,
1995
[2] CRITELLI, D. M, Analítica do Sentido, São Paulo: EDUC/Brasiliense, 1996
[3] posições que serão discutidas aoç longo do texto
[4] BAZIN, Andre. A Ontologia da Imagem Fotográfica, In: O Cinema,
ensaios, São Paulo: Brasiliense, 1991
[5] Num artigo escrito em maio de 1896 na revista New Review- Republicado
na Sight & Sound, 1982, O. Winter questiona a expressão "não é como a
vida?!", pela falta de seleção na representação cinematográfica da
natureza, antecipando o que seria caracterizado posteriormente pela
antítese Lumière/Méliès.
[6] ARMANDO, C., 1969 apud BILHARDINO, G., Cem Anos de Cinema. Uberaba:
Instituto Triângulo de Cultura, 1996

[7] (finer)
[8]( article)
[9] Movimento promovido pelas revistas Cahiers du Cinemá e Cinéthique
contra o idealismo no cinema (este tido como "mundo pleno de sentido no
qual o sujeito é capaz de captar as verdades essenciais e o sentido de tal
mundo; linguagem como instrumento de representação que expressa em sua
clareza o pensamento do sujeito que o conhece" (Xavier, I., 1987, pg. 123-
124)), mas cujas bases encontram-se perpetradas de idealismo, pois, entre
outros aspectos, combate a noção de representabilidade do real, mas coloca
a representabilidade da "ideologia". Cf., para uma discussão aprofundada do
assunto, Xavier, I., 1987, p.123-138. E ainda, p. 13 desse presente
trabalho, onde retomo essa questão.
[10] DA-RIN, S., "Auto-reflexividade no Documentário", In: Cinemais –
Revista de Cinema e Outras Questões Audiovisuais, no. 8, Org: Carlos
Alberto Mattos et al., Nov./Dez. 1997
[11] ANDRADE, R. J., op cit., 32-33
[12] HEIDEGGER, M., 1990, p. 47
[13] "Toda a arte, enquanto deixar-acontecer da adveniência da verdade do
ente enquanto tal, é na sua essência Poesia." (Heidegger, 1990, p.58)
[14] Curiosamente Bazin escreveu o seguinte livro, numa indagação bastante
"a la Heidegger": "Quést-ce que le cinema?"
[15] Postura totalmente oposta à semiologia para qual a arte é algo
determinado.
[16] Dudley Andrew em seu "As Principais Teorias do Cinema...": "Acho,
porém, que se Ayfre tivesse vivido (na época de Heidegger) teria se ligado
ao ramo da fenomenologia conhecido como hermenêutica e procurado um caminho
para falar sobre a experiência das imagens através dessa ciência da
interpretação"
[17] VIEIRA, J.L., 1993, p. 3
[18] Tal pretensão seria ela mesma algo contra o que propõe a fenomenologia
hermenêutica e nosso caminho teria sido vão.
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