O “cinema-templo” de Rubem Fonseca e a experiência brasileira

July 3, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Walter Benjamin, Rubem Fonseca, Bajonas Brito, Experiência Brasileira, Cinema-templo
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O “cinema - templo” de Rubem Fonseca e a experiência brasileira

Abraão Carvalho abraaocarvalho.com “Fui ao mercado entender minha alma, o que eu preciso eu não tenho”1

Rubem Fonseca narra a cidade brasileira desde a ótica de quem por ela caminha, a atravessando de maneira que no irromper do próprio andar pelas ruas origine-se toda e qualquer enunciação acerca do espaço que hoje concentra a grande maioria da população. No entanto, o interesse e a perspectiva que move este caminhar pelas ruas ainda encontra-se inacessível em seu núcleo. Deste modo, em Rubem Fonseca o atravessar a rua entrelaça-se com o próprio

irromper

do

conhecimento

acerca

da

cidade

contemporânea

brasileira. Este conhecer, sobretudo dá-se desde um raio súbito que se efetiva junto com o gesto mesmo de caminhar, no qual o passado encontra possibilidades de ecos no presente, sempre de maneira diferenciada através da memória involuntária, da qual falam Proust e Benjamin. É justamente neste horizonte entre o passado fragmentado do homem moderno e o irromper da experiência de andar pelas ruas, o instante no tempo onde efetiva-se o súbito acontecimento extraordinário que abre a possibilidade de olhar para o passado em estilhaços sempre de maneira diferenciada. No conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, Augusto-Epifânio, o andarilho “que trabalhava na companhia de águas e esgotos”, “Acredita que ao caminhar pensa melhor”2. “Gostava de perambular pelas ruas, para ver

1

The Clash, London Calling, 1979, “Lost in The Supermarket”; Strummer/ Jones.

2

Fonseca, Contos Reunidos, p. 593.

1

pessoas3”, diz o narrador do romance “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”. Ser tomado e afetado pela vontade de andar na rua, de atravessar a cidade, na qual a ausência de laços sociais e culturais é crescente e ilimitada, consiste em uma tentativa de criar um vínculo assentado na reciprocidade junto ao próprio espaço onde se vive, sempre desde um interesse ou perspectiva possível. No conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, o andarilho Augusto-Epifânio, de uma hora para outra aparece em condições materiais de dedicar-se ao trabalho de escrever, mesmo sendo alertado, através de seu amigo João, poeta e contista, das possibilidades do ideal artístico o levar à ruína. A perspectiva e o interesse que move o andarilho, é a possibilidade de “encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade” 4. É a tentativa da vivência fragmentária, na acepção de Benjamin, de criar alguma forma de vínculo recíproco junto à cidade, ou seja, é a tentativa do homem contemporâneo de perdurar no mundo urbano desde uma ótica na qual solidão e multidão não estejam dispostos desde uma oposição. É justamente este súbito acontecimento de andar pela cidade e seus subúrbios, solitário no meio da multidão, ou mesmo por ruas silenciosas e sem movimento de passantes, que a cidade aparece e mostra-se para o andarilho, que caminha na direção contrária ao ritmo acelerado da circulação de capitais e mercadorias, capaz de seduzir, tal qual o inebriante brilho de uma pedra preciosa, ou mesmo aprisionar, por necessidade de sobrevivência, muitas vidas que na perspectiva de Benjamin “se agitam muito, mas não possuem nenhuma história5”. Ao caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro, o andarilho, pobre em experiências comunicáveis e desvinculado de uma tradição, na qual seja possível o confronto e a continuidade desta, cria um olhar acerca do espaço 3

Fonseca, Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos, p. 10.

4

Contos Reunidos, p. 600.

5

Benjamin, Sobre Alguns temas em Baudelaire, p. 137.

2

urbano brasileiro no qual os abismos sociais e os desequilíbrios habitacionais e ecológicos aparecem e mostram-se de maneira súbita e constante. Ora, mas como se situam as modalidades diferenciadas de vida no âmbito da experiência urbana atravessada pela ausência de laços sociais e culturais, ou antes mesmo, pelo afunilamento das possibilidades de abertura e efetivação das vontades coletivas no tempo? Desde a perspectiva de Benjamin, na nossa compreensão-apreensão inacabada, é no culto tradicional, portador de verdades arcaicas, e no jogo, que a experiência em crise encontra abrigo 6. Subitamente, em uma de suas perambulações pelas ruas, o andarilho urbano Augusto-Epifânio, por acaso encontra o “cinema-templo”, no qual “Todas as manhãs, das oito as onze, todos os dias da semana,... é ocupado pela Igreja de Jesus Salvador das Almas. A partir das duas da tarde exibe filmes pornográficos”. Ora, qual o sentido desta alteração radical entre domínios opostos em um mesmo espaço? Ou antes mesmo, o que move a dinâmica do “cinema- templo”? Uma

possibilidade

de

adentrarmos

nestas

questões,

como

que

caminhando de modo ambíguo nas ruas, ora distraidamente, ora tomado e afetado por um súbito interesse extraordinário, consiste em compreendermos o “cinema-templo” enquanto um emblema da oscilação circunstancial entre extremidades opostas na experiência brasileira. 6

Na sessão X do ensaio de Benjamin acerca de alguns temas possíveis em Baudelaire, nos

parece que Benjamin quando se remete à expressão “culto”, está se referindo à continuidade da tradição religiosa tradicional, na qual o passado necessariamente orienta o futuro das novas gerações, que devem se curvar de forma submissa e passiva diante da autoridade da tradição, no intuito de abrigar ou mesmo dissimular a experiência em crise no mundo ocidental urbano. No entanto, isto não está visível de maneira explícita, pois logo em seguida, e aí está o não-sabido acerca da interpretação deste trecho, Benjamin irá vincular o valor cultual ao valor da arte. É o que lemos neste trecho que trata do escamoteamento da experiência em crise no mundo urbano moderno, modo de vida este, desde a perspectiva de Benjamin, em que a dissimulação da crise da experiência só se faz possível “somente na esfera do culto... Transpondo este espaço, ela se apresenta como ‘o belo’. Neste o valor cultual aparece como um valor da arte” (p. 132).

3

Deste modo, apesar dos domínios do cinema pornográfico e da “Igreja de Jesus Salvador das Almas”, que movem a dinâmica de alteração do modo de ocupação do interior do espaço nomeado por Augusto-Epifâneo de “cinematemplo”, estarem em esferas radicalmente opostas, o interesse de ambos é o mesmo, ou seja, consiste na perspectiva referenciada na dissimulação ou falseamento da crise da experiência do homem urbano ocidental7.

7

Benjamin, em seu ensaio “Experiência e Pobreza”, irá tratar deste tema da dissimulação ou

maquiagem da crise de experiência do homem urbano ocidental, de modo que a perspectiva do pensador alemão consiste em vincular as transformações tecnológicas abruptas ocorridas no início do século XIX na Europa, com a tentativa em dissimular a crise da experiência no mundo moderno. Dito de outro modo, na medida em as transformações tecnológicas vão ocorrendo, intensifica-se a tentativa de encontrar um abrigo, ou mesmo um refúgio, para essa experiência em crise, desvinculada de uma tradição e sobretudo atravessada pela ausência de laços sociais e culturais. No entanto, sem que tenhamos uma compreensão acabada e fechada acerca

do

sentido

do

vínculo

entre

as

transformações

abertas

pela

ciência

e

o

escamoteamento da realidade da vida urbana moderna, afirma Benjamin: “Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Cristian Science e da quiromancia, do vegetarianismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização ” (p. 115). Ora, “galvanização” ganha aí o sentido de dissimulação, falseamento, escamoteamento, encobrimento e simulação. Deste modo, o emblema do “cinema-templo” consiste em uma maneira diferenciada de encontrar abrigo para este modo de vida atravessado pela ausência de laços culturais e sociais. Desta forma, a alegoria do “cinema-templo” caracteriza alguns dos traços que afetam o modo de vida do mundo urbano ocidental, em particular da experiência brasileira, atravessada que é, em muitos aspectos, pela perspectiva da dissimulação. O ensaio de Bernardo Barros “A ótica da rua carioca: lendo Rubem Fonseca através de Benjamin e Baudelaire”, abre a possibilidade de uma perspectiva que visa indicar alguns aspectos que estão em torno do “cinema-templo”, uma vez que este lembra uma situação histórica da cidade contemporânea ocidental. “A presença das palavras igreja e templo indicam, por sua vez, uma situação do mundo urbano, considerada ideal e inteiramente diversa daquela vivida por Augusto. Por um lado, igreja vem do latim ecclesia, que por sua vez vem do grego ekklesía, que significa, em primeiro lugar, ‘assembléia por convocação’ e, apenas em sentido posterior, ‘assembléia de fiéis’, remetendo para a imagem da pólis grega, em sua fase áurea, a do ‘século de Péricles’, auge da assim chamada democracia ateniense. A assembléia era o momento máximo da cidade, na qual reinava o

4

Nesta direção, o modo de ocupação do espaço nomeado por Augusto de “cinema-templo”, fundado em uma dinâmica de alteração radical entre domínios opostos, concentra por sua vez a perspectiva da dissimulação da crise de experiência do modo de vida urbano. É este modo de dissimulação que abre a possibilidade da coexistência, desde uma ausência de tensão, entre domínios radicalmente opostos, tais como o cinema pornográfico e o templo salvador das almas. Este modo de dissimulação ou charlatanice, por extensão, está vinculado à perspectiva da acumulação crescente de riquezas materiais, que deu origem, dentre outras coisas, ao próprio “cinema-templo”, situado na rua “Senador Dantas, em algum lugar perto da Alcindo Guanabara”, na cidade do Rio de Janeiro. Essa perspectiva ou interesse torna-se evidente quando tomamos a dimensão da pretensão que move o “pastor Raimundo”. Assim lemos no conto de Rubem Fonseca: “O pastor espera que o bispo compre o cinema, como fez em alguns bairros da cidade, e ali instale uma igreja permanente, vinte e quatro horas por dia, mas sabe que a decisão do bispo depende dos resultados do trabalho dele, Raimundo, junto aos fiéis.”

Ora, criar uma “igreja permanente, vinte e quatro horas por dia”, indica a perspectiva da acumulação de riquezas materiais sem limites, uma vez que abrir a possibilidade de permanência e continuidade de tal interesse, consiste em encontrar na perspectiva da dissimulação da miséria cultural e social através da charlatanice como no caso do templo do salvador das almas, ou até princípio da isegoria, o direito de todos se expressarem na ágora. A divisa de Augusto, de tom clássico (‘solvitur ambulando’), faz ecoar essa lembrança. O cinema – templo, objeto de sereno escárnio por parte do narrador do conto, representa a ruína visível da cidade dialógica, da convivência representada pelos lugares públicos: ruas, praças, templos, ruínas, enfim, da crença no diálogo,... A apresentação de uma modalidade de culto religioso bastante vulnerável ao sarcasmo do narrador tem a função de indicar o desaparecimento da cidade dialógica...” (p. 119-120).

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mesmo através do espetáculo vendável do sexo como no cinema pornográfico-, a via necessária para a realização dos interesses de muitos grupos econômicos no Brasil, sempre voltados para a acumulação e concentração crescente de riquezas. – Nesta direção, nos cabe agora problematizar: existem limitações sociais para a charlatanice? É algo apropriado somente por grandes grupos econômicos, como talvez nos fizemos entender linhas acima? O sexo transformado em mercadoria, no pretenso excitante cinema pornográfico, é um negócio, desde sua produção ao consumo, que só alcança e envolve um segmento social da população, a saber, aquele que está enraizado em nossas elites econômicas e políticas? Poderíamos até apontar para uma hierarquia social da charlatanice, e afirmar que certos charlatões são de fato filhos de nossas elites econômicas, no entanto, afirmar que toda charlatanice provém das elites não é de todo condizente com a realidade. Ver no engodo e na miséria cultural e social possibilidades de sobrevivência ou enriquecimento fácil, é terreno em que a divisão social não impõe limites intransponíveis, ou antes mesmo, fixados previamente. Neste sentido, o emblema do “cinema-templo” não deve ser tomado como algo isolado e desvinculado da história do Brasil, que no raio destes cinco séculos de exploração e intensificação dos abismos e desequilíbrios sociais e ecológicos, fora capaz de abrir e assegurar espaços para a atuação de forças arcaicas com o interesse de através da dissimulação, do engodo, dar continuidade à lógica na qual se assenta a dinâmica da ambígua sociedade brasileira. Ora, mas que relação podemos visar entre o “cinema-templo” de Rubem Fonseca e a dinâmica da sociedade brasileira, assentada em abismos sociais que asseguram a continuidade dos privilégios de nossas elites econômicas? Antes mesmo, no que se refere à “Igreja de Jesus Salvador das Almas”, podemos interpretá-la como um emblema, que perdura e atravessa a história brasileira até os dias de hoje, depositário do vínculo entre a devoção cristã e a 6

acumulação ilimitada de recursos materiais. Deste modo, uma canção de Tom Zé intitulada “Glória”, pode abrir caminhos para a interpretação do aparecimento, não sem propósito, da “Igreja de Jesus Salvador das Almas” no conto de Rubem Fonseca. Canta Tom Zé tomado e afetado por um certo estado de humor e ironia: “Como um grande chefe de família Ele sempre soube encaminhar Seus filhos para a glória Glória, glória eterna Mas aguardando o dia do juízo Por segurança foi-lhes ensinando A juntar muito dólar Dólar, dólar na terra”

À nossa interpretação, lemos nesta enunciação de Tom Zé a mesma lógica que move a dinâmica do “cinema-templo”, em especial de um de seus pólos, a saber, da “Igreja de Jesus Salvador das Almas”. Tom Zé, por sua vez, denuncia a íntima relação entre a ambição pela ostentação de riquezas e a devoção cristã, historicamente responsável pelo trato violento junto às comunidades indígenas e negras, bem como junto à terra e aos recursos naturais do solo brasileiro. Assim como na canção de Tom Zé, no cinematemplo de Rubem Fonseca encontramos reunidos em uma unidade fundada no equilíbrio e na harmonia, o que nos parece estar disposto desde uma oposição inconciliável. A saber, na canção de Tom Zé encontramos uma ausência de tensão ou proximidade entre o interesse na “glória eterna” e na acumulação de “muito dólar na terra”, âmbitos opostos no pensamento idealizado pela tradição cristã ocidental - em outra perspectiva, na ação, como confirma a história ocidental, nem sempre estes âmbitos estão em lados opostos e inconciliáveis. Nesta mesma direção, em Rubem Fonseca encontramos coexistindo harmoniosamente, lado a lado, um cinema pornográfico e um templo salvador das almas para públicos radicalmente distintos. Ora, é somente o vínculo 7

entre ação e dissimulação que abre a possibilidade de reunir em uma unidade fundada no equilíbrio, o que no âmbito do pensamento está situado em uma unidade fundada na oposição e na tensão inconciliável. Dito de outro modo, é a dissimulação que reúne na ação do “grande chefe de família”, do qual fala Tom Zé, o interesse em “juntar muito dólar na terra”, tendo como perspectiva o alcance da ideal “glória eterna”. Do mesmo modo, é a dissimulação que reúne em um mesmo local, em horários distintos, o templo religioso e o cinema pagão que aparecem no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”.8 8

Retomando: ao situar indícios para a compreensão da dinâmica de alteração radical entre

domínios opostos, que aparecem no cinema-templo do conto de Rubem Fonseca, cabe ressaltar, que na denúncia irônica de Tom Zé, o pensamento idealizado pela tradição cristã ocidental, tem na ação do “grande chefe de família” a sua inversão, inversão que se abre sobretudo através de um certo modo de dissimulação, capaz de reunir em harmonia, o que no âmbito do pensamento está situado desde uma tensão entre opostos. É a passagem da tensão entre opostos para a ausência de tensão, que aproxima e harmoniza os opostos. Nesta mesma direção, em Rubem Fonseca, é a ação fundada na dissimulação, que abre a possibilidade de reunir de modo conciliável, o que nos parecia estar disposto desde uma oposição. Daí que, para nos situarmos diante do aparecimento do cinema-templo é necessário termos a dimensão de que só a dissimulação cria este movimento de inversão que realizada a passagem do disposto desde uma tensão inconciliável para o ex-posto desde um equilíbrio fundado na ausência de tensão, tal como aparecem o cinema pagão e o templo salvador das almas, lado a lado, sem problemas ou atritos. Na medida em que situamos aqui a dissimulação, o engodo, como aquilo que opera a passagem do disposto desde uma oposição inconciliável para o exposto desde uma proximidade ou cumplicidade entre opostos, nos é de grande importância ouvir este trecho da canção de Tom Zé acerca dos ensinamentos do “grande chefe de família”: “Ensinou-lhes bem cedo que a honra/ Todos devem cultivar/ Entretanto, ao tomar decisões/ Ela nunca deve atrapalhar/ Mostrou que as boas razões/ A causa justa e que é nobre/ Convive com milhões/ E tudo isso ensinou/ Com poucas palavras/ E muitas ações”. Daí compreendermos que dissimulação opera a cumplicidade entre opostos, a saber, devoção cristã e a possibilidade de acumulação de riquezas materiais, uma vez que no ensinamento do “grande chefe de família”, a “honra que todos devem cultivar”, precisa por sua vez, ser encoberta, disfarçada, dissimulada, quando o assunto é a vida prática, pois esta mesma “honra”, na realização das ações e tomadas de decisões mais dignas, como ouvimos na canção de Tom Zé, “nunca deve atrapalhar”. Ora, aquilo que “nunca deve atrapalhar”, em nossa experiência histórica, trata-se do que deve ser encoberto, mesmo que o que tenha de ser encoberto seja o outro, como bem nos mostrou Enrique Dussel.

8

Neste sentido, Tom Zé identifica no emblema “do grande chefe de família”, a dinâmica do modo de vida que enraizado na tradição e na autoridade do passado, busca através da dissimulação ou encobrimento, a pretensa “glória eterna”, não desvinculada da acumulação desenfreada de recursos materiais em solo terrestre. Ora, mas em que consiste esta “glória eterna”? Tornar algo digno de eternidade - se é que exista algo que não pereça - significa, antes de tudo, fazer com que determinado valor cultural esteja para além de um indivíduo temporalmente e constitua-se por extensão, enquanto o significado do elo de ligação, da herança entre pai e filho, e consequentemente

como

fio

de

continuidade,

ao

menos

provisório

historicamente, entre gerações. E o que permanece e persiste enquanto fio de continuidade necessário para a efetivação dos interesses políticos, econômicos e culturais de nossas elites, desde o período da colonização ibérica no continente americano até os dias de hoje, consiste justamente na exploração extremada do homem e da terra, que se dá desde o invólucro da dissimulação, que tanto exclui como inclui na participação do privilégio9. 9

De certo, temos a perspectiva de que não é interesse privilegiado de Rubem Fonseca, em

particular no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, tratar da formação cultural e política do Brasil no raio destes últimos séculos, no entanto, uma vez que não tomamos o emblema do “cinema-templo” enquanto algo isolado e desvinculado da história do Brasil, nos é de valiosa importância encaminhar a interpretação do que está em torno do “cinematemplo”, através de seu

vínculo ao que chamamos de experiência brasileira, que desde a

colonização lusitana até os dias atuais, fora capaz de abrir e assegurar espaços para a atuação de forças arcaicas com o interesse de através da perspectiva da dissimulação, dar continuidade à lógica na qual se funda a dinâmica da ambígua sociedade brasileira. Deste modo, as noções de inclusão social como participação no privilégio estão formuladas com mais precisão e rigor no capítulo V do livro “Lógica do Disparate”, nomeado “Liberdade e Hierarquia”, de Bajonas Brito (EDUFES- CCHN Publicações, 2001, Vitória). A seção “Liberdade e Hierarquia”, trata da formação cultural e política brasileira, de modo que a perspectiva aí desenvolvida consiste em identificar o quanto na história brasileira tem-se confundido as esferas do público e do privado, e não só isso, o quanto os vínculos sociais no Brasil estão fundados historicamente pela noção ambígua da lógica do favor, sendo que “A hierarquia,...é pré- condição do favor” (p. 193). Desde essa perspectiva, exclusão e inclusão não estão dispostas, necessariamente, desde uma oposição. Deste modo, segundo o autor, “integração e exclusão caminham juntas e, ao invés de se confrontarem, se promovem mutuamente” (p. 178). Neste sentido, a noção de liberdade em uma sociedade hierárquica

9

Ora, se este sistema assentado em desigualdades sociais radicais ainda encontra continuidade, é porque a inclusão - hegemonicamente assentada em laços de dependência que tanto punem quanto abrem para a participação no privilégio -, se dá de forma que seja possível perdurar a condição histórica da sociedade brasileira.

Tomemos como exemplo a situação sócio-histórica do

“pastor Raimundo” da igreja que ocupa o “cinema - templo”. “O pastor Raimundo migrou do Ceará para o Rio de Janeiro quando tinha sete anos, junto com a família que fugia da seca e da fome. Aos vinte anos era camelô... em Jacarepaguá; aos vinte e seis, pastor da Igreja de Jesus Salvador das Almas... Tinha sido um bom camelô, não enganava os fregueses, e um dia um pastor, ouvindo-o vender as suas mercadorias de maneira persuasiva, pois sabia falar uma palavra depois da outra com a velocidade correta, convidou-o a entrar para a Igreja. Em pouco tempo chegou a ser pastor...” Ao que nos aparece, o que lemos neste fragmento do conto de Rubem Fonseca, consiste no modo próprio como os abismos sociais no Brasil perduram e persistem, uma vez que é a partir dos laços de dependência econômica que se tornam possíveis os traços que dão continuidade aos vínculos sociais que alicerçam a lógica que predomina na sociedade funda-se pela participação no privilégio, sendo isso mesmo o que permite a continuidade das desigualdades sociais radicais no Brasil. “Considerando pois as diversas inserções do favor, devemos concluir que sua extensão cobre todas as relações sociais fundamentais da sociedade escravista brasileira e que, portanto, o modo de liberdade que lhe é próprio possuirá idêntica extensão. O favor atravessa todas as relações sociais: senhores e comissários, senhores e escravos; senhores e senhores, senhores e homens livres pobres (agregados); senhores e funcionários do estado e das instituições privadas. O favor será então, como já afirmou alguém, a mediação universal dessa sociedade hierárquica. Mas deveremos crer que seu domínio desaparece com a extinção da sociedade escravista? De modo algum, em primeiro lugar é fato absolutamente familiar a permanência do favor no modo do coronelismo, do clientelismo e do mandonismo na Primeira República e em todas as repúblicas que a sucederam” (p. 190-191).

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hierárquica brasileira, fundada na concentração de riquezas materiais e naturais. São estes laços de dependência econômica que fazem possíveis a inclusão e a exclusão social. É situado na extremidade inferior desta hierarquia fundada em desigualdades sociais, que o pastor Raimundo não se interessa em intervir nas “altas políticas da relação de sua Igreja com a Igreja Católica, este é um problema do bispo; o problema de Raimundo são os fiéis de sua igreja, a arrecadação periclitante do dízimo.” Deste modo, incluir também significa punir, uma vez que a inclusão é assentada na hierarquia, sendo o privilégio de punir daquele que inclui na participação do privilégio. Ao menos é o que se lê neste fragmento do conto de Rubem Fonseca, quando da oportunidade em que o bispo cobra de Raimundo um aumento no índice de arrecadações junto aos fiéis: “Cada pastor é responsável pelo templo em que trabalha. A sua arrecadação tem sido muito pequena... Nossa igreja precisa de dinheiro.” Neste sentido, encaminhar

uma

interpretação do cinema-templo,

enquanto um emblema da sociedade brasileira atravessada que é, pela perspectiva da dissimulação ou encobrimento não sem propósito, da crise de experiência do homem contemporâneo, nos faz ecoar uma passagem do conto de Rubem Fonseca, na qual encontramos uma possibilidade de vínculo entre: um dos traços que afeta a modalidade histórica de memória do modo de vida urbano ocidental, enquanto memória involuntária, na acepção de Proust e Benjamin, e, por extensão, uma memória da história do Brasil, que se dá de maneira fragmentada e abrupta, como um raio ou mesmo um choque, que tem o seu acontecimento súbito no caminhar solitariamente na cidade brasileira. Dito de outro modo, Augusto, o andarilho solitário “que ensina as prostitutas a ler e a falar de maneira correta”, em sua tentativa em criar um vínculo de reciprocidade junto à cidade em ruínas, em certo lugar da metrópole carioca, mais precisamente no Campo de Santana, é tomado e afetado subitamente por uma lembrança que evoca a situação histórica que deu origem ao cinematemplo:

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“Augusto, logo que entra, vai até o lago, ali perto estão as esculturas dos franceses. O campo tem uma velha história, Dom Pedro foi aclamado imperador no Campo de Santana, tropas amotinadas ali acamparam enquanto aguardavam ordens de atacar, mas Augusto pensa apenas nas árvores, as mesmas daquele tempo longínquo, e passeia por entre os baobás, as figueiras, as jaqueiras ostentando enormes frutos; como sempre, tem vontade de se ajoelhar ante as árvores mais antigas, mas ficar de joelhos lembra a religião católica e ele agora odeia todas as religiões que fazem as pessoas ficarem de joelhos, e também odeia Jesus Cristo, de tanto ouvir os padres, os pastores, os eclesiásticos, os negociantes falarem nele; o movimento da Igreja ecumênica é a cartelização dos negócios da superstição, um pacto político de não-agressão entre os mafiosos: não vamos brigar uns com os outros que o bolo dá para todos.”

A “cartelização dos negócios da superstição”, indica o interesse ou perspectiva que move a dinâmica do templo salvador das almas, situado no cinema-templo. Isto é, como dissemos há pouco, a dissimulação da crise de experiência do homem urbano ocidental, aparece aí, como forma de abrir a possibilidade da acumulação crescente de riquezas materiais. Deste modo, uma vez que o cinema pornográfico e a Igreja de Jesus Salvador das Almas não são iguais, embora o interesse e a perspectiva que move ambos sejam o mesmo, como já afirmamos, nos ocorre o seguinte problema: ora, mas o que distingue as duas maneiras diferenciadas de ocupação do interior do cinematemplo? Na “Introdução” da “Lógica do Disparate”, de Bajonas Brito, encontramos o mesmo problema, bem como o seu encaminhamento, a saber: “o que separa o cinema pagão do templo salvador das almas? Rubem Fonseca tem a resposta: ‘À noite, depois da última sessão, o gerente guarda os cartazes com mulheres nuas e frases indecorosas num depósito ao lado do sanitário.’ É a dissimulação que opera aqui o milagre da distinção. Cada oposto ombreando imediatamente o outro,

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só a dissimulação decide quem vem antes e quem vem depois...”10. Neste sentido, não somente o cinema-templo consiste em um emblema, que perdura na experiência brasileira, da oscilação circunstancial entre extremidades opostas, que se dá desde uma possibilidade de perspectiva de dissimulação da crise de experiência do homem contemporâneo, na acepção de Benjamin, mas também, trata-se aqui, de uma distinção entre opostos que acontece desde uma recíproca dissimulação, que separa e realiza o encobrimento de um sobre outro, abrindo assim a realização da alteração radical entre domínios opostos. Portanto, a dissimulação aparece aí em diferenciados aspectos, o que não nos abre a possibilidade de situarmos dissimulação na condição de conceito unívoco. No cinema-templo, os opostos, ao invés de se confrontarem, aparecem aí, desde uma reciprocidade ou conciliação, que através da distinção efetivada pela dissimulação, mostram-se em proximidade. É a dissimulação que abre a possibilidade da distinção e da cumplicidade entre esferas opostas. Este modo de dissimulação, enquanto distinção fundada na alteração radical entre opostos, que aparecem no cinema-templo, criando assim uma cumplicidade e um encobrimento entre ambos, encontramos em outra passagem do conto de Rubem Fonseca: “A partir do momento em que o pastor Raimundo coloca à frente da tela do cinema uma vela, na verdade uma lâmpada elétrica num pedestal que imita um lírio, o local torna-se um templo consagrado a Jesus”.

Neste sentido, é a dissimulação que abre o aparecimento, ora do cinema pornográfico, ora do templo salvador das almas, tornando possível portanto, a dinâmica de alteração radical entre domínios opostos no modo de ocupação do cinema-templo.

10

Introdução, p. 19.

13

No cinema-templo, quando “À noite, depois da última sessão, o gerente guarda os cartazes com mulheres nuas e frases indecorosas num depósito ao lado do sanitário”, a ação aí está fundada na dissimulação, pois encobre os vestígios de que naquele local ocorrera algo radicalmente distinto do templo salvador das almas, que realiza seus trabalhos pela manhã. Nesta mesma direção, a ação do pastor Raimundo dissimula os indícios de que naquele local, também coexiste, sem conflitos, um cinema pornográfico. É tendo a perspectiva em dissimular que no interior daquele espaço, na tarde do dia anterior, ocorreram sessões de cinema pagão, que o pastor Raimundo “coloca à frente da tela do cinema uma vela, na verdade uma lâmpada elétrica num pedestal que imita um lírio”. Referências 

A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” (p.593-627) in: FONSECA, R., Contos Reunidos. Organização: Boris Schnaiderman. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.



“Experiência e Pobreza” (p.114-119), in: BENJAMIN, W. Obras escolhidas v. I: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.



“Sobre alguns temas em Baudelaire” (p.103-149) in: __________ Obras escolhidas v. III: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994.



“A ótica da rua carioca: lendo Rubem Fonseca através de Benjamin e Baudelaire” (p.109-128), OLIVEIRA, B. in: Alea, Estudos Neolatinos. Rio de janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2000.



“Glória” in: Zé, Tom, Tom Zé, Estúdio Gazeta – São Paulo. Dezembro de 1968. Fabricado e distribuído por Sony Music sob licença de Gal Gravações Artísticas Ltda.



“Introdução” (p.15-35) e “Capítulo V - Liberdade e Hierarquia” (p.175-224), in: BRITO, B. Lógica do Disparate. Vitória: Edufes; CCHN Publicações, 2001.

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