O CNT e a Regulamentação do Trabalho na Primeira República (1923 - 1930)

July 5, 2017 | Autor: Gabriela Nery | Categoria: Primeira República, História Social do Trabalho, Conselho Nacional do Trabalho
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS IFCH – INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

O CNT e a Regulamentação do Trabalho na Primeira República (1923 - 1930)

Trabalho de pesquisa realizado por Gabriela de Oliveira Nery Costa, sob orientação do Prof. Dr. Samuel Fernando de Souza, com financiamento de bolsa de Iniciação Científica – FAPESP.

Janeiro/2012 Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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Resumo

Este trabalho é fruto de um ano de pesquisa sobre o Conselho Nacional do Trabalho dentre o período de 1923 a 1930. Na leitura de Atas das reuniões do Conselho, assim como na leitura das publicações contidas na própria revista da instituição – a Revista do Conselho Nacional do Trabalho, encontrei pistas e indícios que permitiram identificar a maneira como operários e patrões reconheciam o CNT como parte de seu cotidiano. Neste texto, busco esmiuçar e apresentar as estar percepções, bem como o modo com que as representações operária e patronal se articularam dentro do Conselho para trabalhar com a crescente de leis sociais e trabalhistas que vinham sendo regulamentadas, além de tentar delinear a maneira como esta instituição se relacionava diretamente com as demandas das classes. Tentou-se, aqui, compreender o funcionamento da instituição através de suas expectativas de ação e também através da ação e articulação dos membros componentes do Conselho em sua totalidade. Por fim, a pesquisa tenta apontar a relação do instituto com o próprio Poder Executivo, ao qual era diretamente subordinado, e a maneira como as demandas expressas por conta desta subordinação se apresentaram contundentes dentro CNT e estabeleceram caminhos bastante específicos para o funcionamento da instituição.

A República

O período republicano, inaugurado nos últimos decênios do século XIX, é de grande importância para a história do movimento operário no Brasil. O avanço da industrialização, e consequente aumento dos centros urbanos no período, vieram atrelados ao grande número de indivíduos que se deslocaram para as cidades e ampliaram o contingente de trabalhadores urbanos. A ordem destes fatores é muito fluída – e talvez seja desnecessário estabelecer rígidas relações de causalidades e consequências - mas o que se nota é que estes trabalhadores foram essenciais para garantir que a indústria nacional prosseguisse em franco processo de expansão, a salvo ao menos de crises de mão de obra. Dentre os elementos desencadeadores deste fluxo

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migratório para os centros urbano-industriais brasileiros, a abolição do trabalho escravo, ainda no século XIX, teve papel de destaque. Com a abolição do uso de mão de obra escrava, diversas alternativas foram colocadas em prática ou se intensificaram para suprir a lacuna deixada pela falta de trabalhadores. Antes mesmo do fim da escravidão, o estado de São Paulo já empreendia uma política financiada pelo Estado para incentivar a vinda de europeus aos cafezais paulistas1. Esta política de imigração tomou corpo e se expandiu a partir do último decênio do século XIX e, entre 1910 e 1914, apenas o estado paulista contou com a chegada de 750 mil trabalhadores estrangeiros: mais do que o dobro de trabalhadores necessários para dar cabo de toda a produção cafeeira do país2. Estes tantos trabalhadores destinados ao campo, em épocas de crise nas lavouras de café, encontravam poucos locais e atividades com capacidade para absorver sua força de trabalho desempregada que não as atividades urbano-industriais. Migraram, assim, para as cidades e abasteceram as numerosas oficinas e manufaturas especialmente da capital paulista. Na cidade do Rio de Janeiro a abolição do trabalho escravo, atrelada à crise da região cafeeira fluminense, também propiciou um quadro final bastante parecido com o ocorrido em São Paulo. Os agora libertos que se concentravam nas regiões de lavoura de café se deslocaram para a capital da República e, aliados às correntes de imigrantes portugueses e demais trabalhadores nacionais que se deslocavam para o Rio, compuseram um grande excedente de mão de obra disponível para a atividade industrial3 de maneira análoga aos imigrantes que chegaram à capital paulista. Estas atividades, é importante definir, se afastavam do modelo clássico de industrialização e, consequentemente, de “produção” de um “operariado moderno” aos moldes de países europeus. Como afirma Cláudio Batalha, grande parte da atividade que empregava este operariado nascente se encontrava em oficinas e pequenas manufaturas. Batalha afirma, assim, que a própria constituição do operariado nacional passou por caminhos diferentes daquele que se pautava pela existência da grande fábrica e de um 1

CANO, Wilson, Raízes da concentração industrial em São Paulo, 3ª. Edição, São Paulo: HUCITEC, 1990, p.25. 2 HALL, Michael, apud FAUSTO, Boris, Trabalho Urbano e Conflito Social, (1890-1920), Rio de Janeiro, DIFEL, 1977. 3 CARVALHO, José Murilo de, Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi, 3ª edição, São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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operariado homogêneo com grande capacidade de organização.4 Isso não significa, porém, alheamento do operariado brasileiro em relação a lutas políticas e econômicas. A própria Proclamação da República trouxe consigo grande expectativa de participação política a setores naturalmente alijados dos cargos de decisão dentro do país. Nas primeiras eleições realizadas para a constituinte, em 1890, o Centro do Partido Operário (CPO) elegeu um representante e ainda lançou candidatos para as eleições municipais da cidade do Rio de Janeiro em 1892. O partido foi ainda principal responsável por fazer mudanças no Código Penal de 1890, especialmente em relação a questões referentes ao direito de greve5. As aspirações de inserção na vida política eram uma questão premente para os trabalhadores e algumas liberdades foram alcançadas, especialmente no momento em que as regras do novo regime ainda não estavam estabelecidas. Ao passo que a transição para o governo republicano concluiu-se e as diretrizes do novo governo foram firmadas, as classes populares perceberam rapidamente que os locais de decisão dos rumos do país continuavam vedados à sua participação. Como afirmou, mais uma vez, Claudio Batalha, a “República não fora uma revolução social e não promovera a libertação do 'quarto estado', o proletariado”6 e a ordem a ser estabelecida seguia perspectivas de fincar-se em um regime reservado ao mandonismo das elites oligárquicas. Para tanto, era necessário que as classes trabalhadoras estivessem inertes e pacificadas. Nos primeiros anos da República a indústria tinha papel marginal e pouca expressividade dentro da vida econômica, política e social do país. Consequentemente, os trabalhadores urbanos também representavam uma porção pequena da população nacional e qualquer tipo de mobilização empreendida por eles encontrava certa facilidade de ser neutralizada pelo Estado, sob franca repressão policial, tarefa facilitada pelo pequeno número de trabalhadores mobilizados.7 Entretanto, o cenário em que estas agitações se desenvolveram estava composto por uma série de turbulências que afetavam a consolidação política do novo governo. Como reação imediata aos parcos mandos dos presidentes militares, a Revolta da Armada eclodiu na capital Republicana. No Rio Grande do Sul, eclodiu o que se chamou de Revolução Federalista, de cunho 4

BATALHA, Cláudio, “Identidade da Classe Operária no Brasil (1880-1920): Atipicidade ou Legitimidade” em Revista Brasileira de História, São Paulo, v.12, nº23/24, set.91/ago.92. 5 GOMES, Angela Maria de Castro, A Invenção do Trabalhismo, 2ª Edição, Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1994. Ver especialmente “4. A proposta dos partidos operários.” 6 BATALHA, Cláudio, O Movimento Operário na Primeira República, Rio de Janeiro: J. Zahar, 2000, p.38 7 GOMES, Angela Maria de Castro, A invenção do Trabalhismo, op cit, p.60-1 Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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separatista. Na Bahia, a Guerra de Canudos precipitou as forças republicanas contras os sertanejos e garantiu a ordem no sertão nordestino. Já no século XX, as Revoltas da Vacina, Chibata e o Contestado foram controlados da mesma maneira, com extrema violência por parte do Estado. Em meio a expressivos levantes, as tentativas de organização do operariado e suas reivindicações foram igualmente tratadas de maneira violenta, apesar de que sua possibilidade de colocar em risco a ordem republicana encontrava-se em nível menor. O trato dado aos trabalhadores girou, durante todo o período compreendido na Primeira República, em torno de franca e indiscriminada repressão policial. Era esta a política destinada aos trabalhadores urbanos, política esta que encontrava respaldo no argumento da necessária empreitada para conter o avanço de correntes anarquistas e socialistas entre o operariado e, em 1922, comunistas. Esta argumentação criou uma cisão, uma classificação que o Estado deliberadamente se furtou para legitimar a contenção da ação dos trabalhadores: a classificação dos operários entre verdadeiros representantes dos anseios da classe ou baderneiros revolucionários, em sua maioria estrangeiros, que se dirigiram ao Brasil para convulsionar a sociedade importando não só suas ideias, mas também problemáticas inexistentes no país. O argumento de que grande parte do movimento operário era alimentado por idéias estranhas à realidade brasileira perpassou todo o período republicano e fundamentou diversas leis e decretos. Em 1907 foram baixados dois decretos extremamente importantes para o movimento operário. O decreto nº1637/1907 concedia direitos de organização aos trabalhadores em sindicatos, cooperativas e associações profissionais diversas sob o objetivo expresso em seu Art.1º: “É facultado aos profissionaes de profissões similares ou connexas, inclusive as profissões liberaes, organizarem entre si syndicatos, tendo por fim o estudo, a defesa e o desenvolvimento dos interesses geraes da profissão e dos interesses profissionaes de seus membros.”8.

O outro decreto também baixado no mesmo ano, regulamentava a possibilidade de expulsão de estrangeiros nos seguintes termos: “O estrangeiro que, por qualquer motivo,

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Decreto 1637/1907, acessado em 10 de janeiro de 2012: http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=55323&tipoDocumento=DEC&tipoTexto =PUB Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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comprometter a segurança nacional ou a tranquillidade publica, póde ser expulso de parte ou de todo o territorio nacional”9. O cruzamento do texto destes dois decretos indica o mesmo caminho apontado por Paulo Sérgio Pinheiro ao afirmar que um “processo de depuração dos meios proletários foi admitido como normal, mesmo sem qualquer perturbação da ordem pública”10. O uso da violência policial valia para todos os operários mas haviam especificidades. Para os estrangeiros valiam os aprimoramentos das leis de expulsões – afinado o decreto de 1907 através do decreto de nº2741 de 1913, e, posteriormente, com a lei proposta pelo Deputado paulista Adolpho Gordo e aprovada em 1921, a lei de Repressão ao Anarquismo. De forma bastante semelhante, para os trabalhadores nacionais foi exercitado intensamente o uso do desterro, inaugurado por Floriano Peixoto para punir os envolvidos na Revolta da Vacina, e que permitia ao Estado isolar trabalhadores indesejáveis em regiões bastante hostis do país, onde a mortandade dos desterrados era imensa.11 A opção pela implementação de uma política repressiva contava com a essencial contribuição da burguesia industrial. Era exatamente através das ações do patronato que a polícia era constantemente acionada para garantir uma série de pedidos patronais que se baseavam nos argumentos de defesa da liberdade de trabalho, do livre contrato entre indivíduos e uma série de reivindicações fincadas em princípios liberais. Diante disso, algumas considerações apresentadas por João Tristan Vargas sobre este debate são relevantes12. Apesar dos problemas nas análises do alcance das ideias liberais no período, Tristan Vargas faz considerações importantes ao apontar que, nas primeiras décadas do século XX, grande parte do entendimento sobre a “liberdade de trabalho” repousava na ideia de não se permitir o uso de coação para que um trabalhador aderisse a movimentos grevistas. Esta ideia pareceu ter uma importância crescente nos debates que envolviam 9

Decreto 1641/1907, acessado em 10 de janeiro de 2012 http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=55349&tipoDocumento=DEC&tipoTexto =PUB 10 PINHEIRO, Paulo Sérgio, Estratégias da Ilusão: A revolução mundial e o Brasil (1922-1935), Companhia das Letras, 1991, São Paulo, p.91 11 “5. Desterros e Campos de Internamento” em PINHEIRO, Paulo Sérgio, Estratégias da Ilusão, op cit. 12

VARGAS, João Tristan, O trabalho na ordem liberal: o movimento operário e a construção do Estado na Primeira República, Campinas: UNICAMP/CMU, 2004, p 27. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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patrões e operários, já que sua defesa, sob essa concepção, calhou perfeitamente com os anseios da burguesia industrial de refrear a agitação operária, além de encontrar respaldo nos usos do Código Penal de 189013. O Art.204 parecia tratar de questões que diziam respeito, de forma genérica, mais à organização social do que à questão grevista e reivindicatória dos trabalhadores. Por outro lado, a própria redação do art.206 encaminhava-se por tratar da ação de trabalhadores, isto considerando o espectro de paralizações, greves e movimentações de caráter sindical: “ Art. 204. Constranger, ou impedir alguem de exercer a sua industria, commercio ou officio; de abrir ou fechar os seus estabelecimentos e officinas de trabalho ou negocio; de trabalhar ou deixar de trabalhar em certos e determinados dias:

Pena - de prisão cellular por um a três mezes Art. 206. Causar, ou provocar, cessação ou suspensão de trabalho, para impor aos operarios ou patrões augmento ou diminuição de serviço ou salario: Pena - de prisão cellular por um a três mezes. § 1º Si para esse fim se colligarem os interessados: Pena - aos chefes ou cabeças da colligação, de prisão cellular por dous a seis mezes. § 2º Si usarem de violencia: Pena - de prisão cellular por seis mezes a um anno, além das mais em que incorrerem pela violencia.”14

No possível intuito de abranger em suas linhas práticas distintas que atentassem contra uma noção de liberdade de trabalho bastante abrangente, a sutileza da redação dos artigos obteve pouca notoriedade e distinção em seu uso e exercício. Tristan Vargas afirma que, na prática, a defesa deste princípio por parte da burguesia industrial buscava grosseiramente mobilizar todos os recursos possíveis que pudessem colocar ao seu lado o uso do aparato estatal na contenção de movimentos grevistas. O ponto a se chegar era simplesmente transformar a pressão operária exercida sobre o patronato em repressão policial contra os que queriam impedir que trabalhadores exercessem seu direito de

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Idem. Decreto 847/1890, acessado em 10 de janeiro de 2012 http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086publicacaooriginal-1-pe.html 14

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trabalhar, ou mais precisamente de furar greve, como estava previsto no Código Penal15. Nestes casos, a distinção ficcional entre bons e maus trabalhadores era mais uma vez apresentada pelo Estado e pela burguesia industrial na clara tentativa de acusar e criminalizar as ações do operariado: grevistas eram diferentes dos agitadores, greve era diferente de desordem, propaganda era diferente de sedição; para eles, os primeiros tem todo apoio, já os segundos, não. Faz se evidente a distinção entre o princípio de liberdade de trabalho defendido por operários e o defendido por patrões. Enquanto os primeiros o entendiam como limites a serem estabelecidos para que estes não caíssem na escravidão, para a burguesia industrial ele significava exatamente a diminuição de entraves na expansão de suas atividades industriais16. Estes possíveis entraves ao crescimento da atividade industrial fez se notar especialmente no debate travado entre liberalismo, intervencionismo de Estado e o que se acostumou denominar de Questão Social, durante a Primeira República. Primeiramente, a questão social dizia respeito a uma série de problemas que envolviam os trabalhadores atrelados a atividades urbano-industriais - e o próprio reconhecimento desta questão se deve justamente ao surgimento do operariado, ainda na Europa do XIX, com a Revolução Industrial17. É preciso ponderar que a pobreza nem sempre foi um problema e existiu durante muito tempo dentro da sociedade europeia como parte constitutiva dela e, certamente, como alvo da caridade das classes mais altas18. Entretanto, a própria organização da sociedade industrial, o crescimento da sociedade de mercado e avanço do liberalismo colocavam entraves para qualquer tipo de proteção patriarcal, típicas da modernidade, que pudessem interferir na formação de um mercado livre de mão de obra. Angela de Castro Gomes mostra como justamente este ímpeto pelo livre contrato de trabalho abriu espaço para o surgimento de debates em torno da criação de leis sociais.

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VARGAS, João Tristan, O Trabalho na Ordem Liberal, p.27-31. GOMES, Angela Maria de Castro, Burguesia e Trabalho: Política e Legislação no Brasil, 1917-1937, Campus Ltda., Rio de Janeiro, 1979, p.30. 18 GEREMEK Bronislaw, Os filhos de Caim: Vagabundos e miseráveis na literatura europeia, 1400-1700, Companhia das Letras, 1995, São Paulo. 17

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A autora apresenta um duplo movimento: o avanço da sociedade de mercado gerara uma reação de autodefesa que tentava impedir os perigos excessivos do mercado livre. Através de Karl Polanyi, Castro Gomes afirma que foram sendo criados dispositivos que conseguissem limitar a autorregulação do mercado através de leis de terras, tarifas alfandegárias e, também, da criação de legislações sociais 19. Todos estes dispositivos foram resultado do intervencionismo estatal que se revelou essencial para o próprio desenvolvimento do capitalismo industrial. Foi justamente através da ação do Estado que os recursos humanos necessários para o progresso da indústria foram preservados, mesmo à revelia dos anseios da burguesia urbana europeia. A autora ainda apresenta outro ponto que merece atenção, o fato de que o estabelecimento de legislações sociais eram atreladas ao esforço de desmobilização e pacificação do operariado urbano. O que se deu no Brasil acompanhou os modelos europeus e americanos, como Castro Gomes mais uma vez afirma, apesar de os variados processos conterem especificidades de acordo com o país em que se deram, os “atores” tinham conhecimento destas experiências.20 A questão social era alvo de debates no Brasil no começo do século XX. Mesmo nas últimas décadas do século XIX, operários já se movimentavam através de suas organizações de trabalhadores reivindicando melhores condições de vida e isso incluía a aprovação de leis que assegurassem alterações em seu cotidiano de trabalho. Estas organizações buscavam, na participação de eleições e tentativas de participação no governo, a aquisição de direitos políticos e sociais que até então se encontravam fora das possibilidades dos trabalhadores. Com o posterior fechamento do regime a suas pretensões políticas, os trabalhadores abriram caminho através de sociedades de resistência e movimentos grevistas, que se adotaram por muitas vezes ideias anarquistas e socialistas,21 não deixavam de manter grande parte de suas pautas alicerçadas nos problemas da questão social, visto que claramente não eram excludentes. Nos primeiros anos do século XX, o número de sociedades de resistência na cidade de São Paulo e na capital da República aumentou significativamente, assim como o número de paralizações. Os conflitos entre capital e trabalho ganhavam cada 19

GOMES, Angela Maria de Castro, Burguesia e Trabalho, p.31 GOMES, Angela Maria de Castro, Burguesia e Trabalho, op cit. Ver especialmente “Questão Social: um marco histórico comparativo”. 21 BATALHA, Cláudio, O Movimento Operário na Primeira República, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000 p.38. 20

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vez mais notoriedade e se agravavam profundamente nos principais centros urbanos do país à medida que as condições de trabalho do operariado se precarizavam. Em 1920, para tratar exatamente do crescimento deste problema, Augusto Olympio Viveiros de Castro, futuro primeiro presidente do Conselho Nacional do Trabalho, apresentou uma série de palestras em livro intitulado A Questão Social e inicia afirmando: “Sendo um estudioso dos fenomenos sociaes, venho de ha muito examinando o gravíssimo problema das relações entre o capital e o trabalho, procurando separar o trigo do joio, indicando as reclamações operarias que realmente são justas e não podem deixar de ser atendidas, e repelindo com firmeza as declamações revolucionarias de alguns doutrinários que pretendem modificar radicalmente a actual organização social, estabelecendo um regimen economico que não fará desapparecer a miséria, e apenas terá o tristissimo efeito de torna-la universal”22

A questão social para Viveiros de Castro parecia ter simples encaminhamento, mas a aplicação deste não seria nada simples. O autor a define como um conjunto de problemas que não diziam exclusivamente do trabalho do indivíduo, mas também de outros aspectos que extrapolavam individualidades e afetavam um grande número de pessoas, um coletivo, porquanto era também uma questão social. Mais precisamente, era uma questão que repousava nas relações e atritos entre Capital e Trabalho. Enxergava, desta forma, que o Estado tinha papel essencial na organização da sociedade como gerente do interesse coletivo e afirmava categoricamente que não acreditava na possibilidade de resolução dela “exclusivamente pela acção livre das leis naturaes”23. O autor dizia-se adepto de um intervencionismo estatal, sem exageros. Explanava em sua palestra a discordância e os perigos das doutrinas que atentavam contra a propriedade privada, apesar de reconhecer que alguns fazem mal uso de sua fortuna. Por fim, chegava a um ponto crucial que se desenvolveria em franco debate ao menos nos próximo 20 anos: existiria mesmo um problema operário urgente ou seriam só agitações superficiais que se aproveitavam de um dado momento histórico? A resposta dada por Viveiros de Castro é categórica ao afirmar que sim, existia uma questão social gerada pela industrialização, que colocou as “classes inferiores” numa situação de infortúnio e miséria. Afirmava que se destruíram as corporações de 22

CASTRO, Augusto Olímpio Viveiros de, A Questão Social, Conselheiro Cândido de Oliveira S.A., Rio de Janeiro. 1920, p.35 23 CASTRO, Augusto Olympio Viveiros de, op cit, p.38 Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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ofício que davam segurança aos trabalhadores, que foram retirados os valores religiosos de leis e instituições públicas e, os operários, atirados à mercê de patrões desumanos e à “cupidez de uma concorrência desenfreada”.24 Por fim Viveiros de Castro conclui: é necessário que se façam leis, que o Estado se faça intervir neste gravíssimo conflito entre capital e trabalho antes que a erupção revolucionária se torne inevitável. O autor baseou-se fortemente nos preceitos lançados pela Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, chegando a copiar trechos e inseri-los dentro de suas argumentações, mas especialmente destaca citando-a: “estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida.”25

A Questão Social

O reconhecimento da questão social e a busca por resolvê-la, apesar de sua evidente urgência entre os doutos da República e da Igreja, esbarrava na prática difícil do cotidiano entre patronato e operariado e no uso de ideias liberais para sustentar a relação entre capital e trabalho, por parte da burguesia urbana. Os industriais defendiam uma série de argumentos que tentava deslegitimar a intervenção do Estado nas relações de trabalho, afirmando-a, sobretudo, inconstitucional. O patronato alicerçava-se na idéia de que, no Brasil, a questão social não era um problema de fato, que esta era uma questão importada de países com uma industrialização forte e que, aqui, a incipiência da indústria jamais seria capaz de engendrar conflitos que não fossem passíveis de resolução dentro da própria relação entre trabalhador e empregado. Exaltava-se a inviolabilidade dos contratos individuais de trabalho que não poderiam sofrer ingerências de qualquer força, que não fossem as partes contratantes. Desta forma, reconhecer a questão social e aplicar a ela uma legislação que sanasse seus problemas violaria não só a Constituição, mas também o princípio do livre contrato de trabalho, ou ainda, da liberdade de trabalho. Além disso, a burguesia industrial exacerbava as possibilidades do operariado de maneira caricata. 24 25

CASTRO, Augusto Olympio Viveiros de, op cit, p.51. Idem.

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Os trabalhadores urbanos livremente venderiam sua mão de obra de trabalho para quem satisfizesse suas condições e expectativas e isso automaticamente tornaria válido e legítimo que o patronato apresentasse, da mesma maneira, condições específicas para a compra desta força de trabalho: era um mercado livre. Além do mais, como ressalta Angela de Castro Gomes, o patronato afirmava-se sensibilíssimos aos problemas do operariado, pois “somos um povo sentimental e não existe nas nossas fábricas aquela férrea e inflexível disciplina, que vigora em outros centros industriais”26, mas o argumento evocado pelos industriais era o de que não suportariam os encargos gerados por leis trabalhistas e sociais.

Nos anos de 1910, este debate era bastante importante entre as pautas parlamentares e configurou algumas posturas distintas sobre o enfrentamento da questão social. Em grande parte e na prática, ele residiu exatamente nesta discussão da possibilidade de se regulamentar leis muito brandas, de caráter majoritariamente moral e sanitário, que garantissem as melhorias das condições gerais de vida dos trabalhadores sem restringir os mandos patronais. Entretanto, grupos políticos, marcados por suas especifidades regionais e alguma ideologia divergente se enfrentavam e estas forças políticas se dividiam em três grandes bancadas: a bancada gaúcha, a bancada paulista e a bancada dos trabalhistas27. Os políticos gaúchos desenvolveram forte resistência à possibilidade de se regulamentar o trabalho, principalmente através da criação de legislações sociais – existia a ressalva de se criar uma legislação de caráter sanitário para a questão do operariado. Sob a orientação do presidente do estado, Borges de Medeiros, a bancada se posicionava contra a intervenção do Governo Federal, afirmando que legislar sobre trabalho era uma atribuição exclusiva dos estados. Mesmo assim, avançavam no debate e tratavam de desenvolver a idéia de que as questões trabalhistas e referentes ao operariado em geral encerravam-se dentro de relações privadas que não permitiam tais tipos de ingerência e sequer necessitavam delas. Isso feriria, mais uma vez, o princípio de livre contrato e de liberdade de trabalho. Além disso, estava claro para os deputados sul rio-grandenses que a indústria não suportaria, de maneira alguma, salários e ônus trabalhistas, como assim definiam.

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GOMES, Angela Maria de Castro, Burguesia e Trabalho, op cit, p.193 “2.Os discursos na Câmara: os debatedores” em GOMES, Angela Maria de Castro, Burguesia e Trabalho, op cit. 27

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Este argumento da incipiência da indústria também fundamentava a visão de outros grupos políticos e seria reverberado nos mais diferentes campos de discussão. Da mesma maneira o reconhecimento, por parte da burguesia industrial, de que essa incipiência não seria capaz de gerar conflitos sérios entre capital e trabalho também seria usado à exaustão. A soma dessas duas idéias, a forte concepção liberal das relações de trabalho e a suposta falta de estrutura da nascente indústria nacional deram o tom da posição dos parlamentares gaúchos. Além disso, suas posturas no entendimento da própria organização reivindicatória dos trabalhadores, da funcionalidade dos períodos de paralização dentro do conflito entre capital e trabalho entravam em choque com a posição da bancada paulista. Para os gaúchos, a greve era um instrumento importantíssimo de regulação da própria condição de vida dos trabalhadores urbanos. Era ela que possibilitava identificar as reivindicações e ajustes a serem feitos: qualquer intervencionismo estatal nestes espaços tornaria este meio opaco, mascararia e dificultaria a percepção de qualquer opressão a qual os trabalhadores estivessem sofrendo, e as próprias leis precipitariam conflitos e agitações que poderiam ser facilmente resolvidos dentro das relações privadas. A bancada paulista compartilhava de diversos pontos do discurso elaborado pela bancada gaúcha. Se era possível existir afinamento entre ambas, a condição em si dos paulistas modificava seu discurso e o enveredava por outros caminhos em sua relação com o operariado. O estado de São Paulo foi o mais afetado por greves durante todo o período republicano. Apenas no final dos anos de 1910, eclodiram cerca de 80 greves no estado, sendo que 64 delas aconteceram na cidade de São Paulo. Esta relação mais direta com a efervescência do operariado colocou a tanto a burguesia paulista como sua bancada – que contava com a presença de industriais, em posição de maior negociação e de maior abertura para debater a possibilidade de aprovação de leis sociais. As greves eram extremamente onerosas para o patronato paulista. O custo das agitações operárias e a instabilidade social gerada por elas começaram a ser reavaliadas face aos problemas atribuídos à elaboração de uma legislação social. Especialmente para os paulistas e fluminenses, há tempos as relações entre patrão e operários tinham extrapolado o âmbito das relações privadas e envolviam o Estado como mediador de conflitos, mesmo que isso se desse quase exclusivamente através do uso da força policial.

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A aprovação de leis trabalhistas e sociais era necessária como uma maneira de conter as agitações operárias. Elas deveriam caminhar de forma eficaz a ponto de surtirem efeito no meio operário, mas não deveriam cercear as prerrogativas liberais do patronato. Assim sendo, seriam leis brandas que não afetassem o poder de mando do patronato dentro de seus negócios. Esta posição garantiu que uma série de debates transcorresse dentro do Parlamento com reais possibilidades de elaboração de leis que amainassem a questão social e dessem conta da efervescência do operariado. Era esse o intuito da bancada paulista: conter a agitação operária28. A outra bancada que media forças com gaúchos e paulistas era a bancada “trabalhista”. Composta por deputados como Deodato Maia, Maurício de Lacerda e Nicanor Nascimento, ela trabalhava pela aprovação e regulamentação de leis que dessem conta da vasta questão social que, em sua visão, afligiam à classe trabalhadora. Foi exatamente desta bancada a autoria de vários projetos como a criação do Departamento Nacional do Trabalho e, especialmente, a pressão pela criação do Código do Trabalho que tentaria agrupar, em 1917, as leis e os projetos de leis sobre legislação social já existentes até então que incluíam: limite para jornada de trabalho, proibição de trabalho noturno para mulheres, licença remunerada às mulheres 25 dias antes e 25 dias depois do parto, idade mínima para o trabalho de menores limitada em 10 anos de idade com jornada de 6 horas por dia, adoção do princípio do risco profissional para acidentes de trabalho, além de criar Conselhos de Conciliação e Arbitragem. Os deputados trabalhistas ainda encampavam a luta contra a carestia e pediam que o Estado se ocupasse em garantir o barateamento dos preços de alimentos, além de rever a política aduaneira do país. Entretanto, faziam ressalvas quanto à ação do movimento operário. Apesar de afirmarem que não havia caminho pacífico nos conflitos entre capital e trabalho, os deputados apostavam que isso só seria evitado se o Estado se fizesse presente e trabalhasse para que todos os ganhos de greves importantes não fossem imediatamente perdidos por conta da repressão e intimidação do patronato aos trabalhadores, como era a quase regra do período. Para a bancada trabalhista, ainda, era essencial que se fizesse perder, no movimento operário, as conotações políticas dele para que fosse possível avançar no combate ao conjunto de problemas que os absorvia.

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Política era para políticos, aos trabalhadores deveriam restar apenas reivindicações econômicas. Desta forma, não negavam a extrema necessidade da organização dos trabalhadores e encaravam os sindicatos como uma evolução do capitalismo, se abordassem as questões corretas (econômicas). As organizações de trabalhadores deveriam ser entendidas como meio de mobilização e de negociação pacífica com o capital, mas que isso, mais uma vez, só seria possível a partir da aprovação de leis sociais, de um Estado atuante e da elaboração de aparelhos de prevenção de conflitos, com direito de associação e de greve assegurados. Estes grandes grupos se articularam e debateram dentro do parlamento, especialmente durante os agitados anos de 1910 e 1920. O fim dos anos de 1910 veio no bojo de grandes greves. Em julho de 1917 eclodiu a greve geral em São Paulo que desestabilizou setores importantes da cidade e repercutiu em diversos outros locais do país, incluindo a capital da República, com diversas manifestações em solidariedade aos trabalhadores paulistas. Não só, eclodiram grandes greves também na cidade do Rio de Janeiro, Santos, Porto Alegre, Petrópolis, Salvador, Juiz de Fora, e várias outras até o ano de 1920. As reivindicações por melhores condições de salário, respeito ao direito de associação, luta contra a carestia, aprovação de jornada de 8 horas, férias, regulamentação do trabalho feminino e de menores, fiscalização dos ambientes de trabalho e até mesmo greves pedindo menor violência no simples trato aos trabalhadores deram o tom das manifestações do final da década. Apesar da forte presença de ideias anarquistas e socialistas dentro destes movimentos,29 Michael Hall mostra, a respeito da grande greve paulista de 1917, como publicações da época diziam que esta paralização tinha causa maior na fome do que na questão do trabalho30 e, consequentemente, repousava mais nas graves contingências dos trabalhadores do que na derrubada revolucionária do Estado. Um dos pontos mais significativos na eclosão destas manifestações, com a intensificação da carestia e agravamento da questão social, reside no fato de que ela expôs como o modelo que integrava a ação do patronato e do Estado na repressão ao movimento operário não dava mais conta de dispersar e pacificar os trabalhadores urbanos em conflito com a burguesia industrial e afogados pela situação de carestia. 29

Para um excelente panorama sobre as diversas correntes políticas que permeavam as organizações operárias no período ver BATALHA, Cláudio, O Movimento Operário na Primeira República, op cit. 30 HALL, Michael. “A imigração na cidade de São Paulo”, in: Porta, Paula (org.). História da cidade de São Paulo. A cidade na primeira metade do século XX, 1890-1954. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, v. 3, p.272. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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Michael Hall, Paulo Sérgio Pinheiro e Kazumi Munakata afirmam como a postura do Estado é fundamentalmente repressiva em relação aos trabalhadores durante o período republicano31. Para os autores, o grande dever do Estado era o de proteção da propriedade e a defesa deste direito passava pela proteção à liberdade de trabalho – precisamente da livre exploração do operariado - que, para a burguesia industrial, era naturalmente ameaçada pela organização dos trabalhadores. Desta forma, concebia-se a intervenção do Estado nas relações de trabalho quando a violabilidade contratual ou o risco à propriedade apontavam no horizonte, ou seja, em períodos de greve. Entre diversos argumentos, surgia a ideia de que uma greve colocava o patrão em posição de coagido frente a um grupo de indivíduos, operários grevistas, o que configurava uma desigualdade contratual, a quebra do equilíbrio entre as partes contratantes, o que habilitava o Estado a agir em prol do patrão. O uso dos ditames liberais para assegurar o controle do patronato frente aos trabalhadores urbanos se resume precisamente no pensamento de Kazumi Munakata que afirma que, no liberalismo, a questão social é caso de polícia.32 Entretanto, se este modelo de contenção ao movimento operário era o recurso clássico a ser acionado pelo patronato, ele mostrou-se ineficaz justamente nas greves do final da década de 1910. As greves do período mobilizaram milhares de trabalhadores e paravam cidades inteiras, como no caso de São Paulo, ou grandes setores de importância econômica crucial como nas greves de portuários ou de ferroviários. Mobilizar o aparato repressivo diante destas grandes manifestações era inviável pela impossibilidade de dispersar e “pacificar” estes grandes contingentes de trabalhadores. Esta impossibilidade e o então crescimento das greves, juntamente com o crescente prejuízo causados por ela à burguesia urbana, foram os promotores da série de iniciativas do Estado que visavam criar, de maneira gradativa e sútil, regulamentações que proporcionassem o arrefecimento do operariado. Foi sob pressão destas movimentações que, apenas nas vésperas da década 1920, o Estado se aproximava da lei visando o trato aos operários e a política dada aos trabalhadores urbanos passava a adquirir novos contornos: a questão social começava a ser regulamentada e começavam a ser criados órgãos estatais incumbidos da regulação do trabalho. Em 1917 o Código do Trabalho começa a ser discutido no Parlamento e é retomado apenas em 1919, com a

31 32

VARGAS, João Tristan, O Trabalho na Ordem Liberal, op cit, p.17 MUNAKATA, Kazumi Apud VARGAS, João Tristan, O Trabalho na Ordem Liberal, op cit, p.18

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regulamentação da lei de acidentes de trabalho. Em 1918 é aprovado projeto que cria o Departamento Nacional do Trabalho e cria-se também, no mesmo ano, a Comissão de Legislação Social da Câmara para tratar especificamente dos problemas sociais que envolviam as classes trabalhadoras. Outro fato importante que impulsionou o Brasil em direção ao processo de regulamentação foi a assinatura do Tratado de Versalhes. Pertencente à Liga das Nações e aspirando uma cadeira em seu Conselho Administrativo, o país necessitava preservar sua boa imagem frente à comunidade internacional33 e, portanto, respeitar os termos do Tratado que, entre diversos pontos, determinava: “And whereas conditions of labour exist involving such injustice, hardship, and privation to large numbers of people as to produce unrest so great that the peace and harmony of the world are imperilled; and an improvement of those conditions is urgently required: as, for example, by the regulation of the hours of work, including the establishment of a maximum working day and week, the regulation of the labour supply, the prevention of unemployment, the provision of an adequate living wage, the protection of the worker against sickness, disease and injury arising out of his employment, the protection of children, young persons and women, provision for old age and injury, protection of the interests of workers when employed in countries other than their own recognition of the principle of freedom of association, the organization of vocational and technical education and other measures.”34

A preocupação do próprio Poder Executivo com a questão social advinha em grande medida das exigências dispostas neste tratado e a repercussão de seu não cumprimento nas relações exteriores brasileiras. Lidar com elas, em contato com uma burguesia urbana pouco maleável, demandava também a criação de aparelhos que pudessem estudar a questão do trabalho a fundo. Era necessário colocar a discussão em ambientes outros que não só o da iniciativa privada, nem exclusivamente no Parlamento. Neste sentido, no início do próprio cumprimento das disposições do Tratado de Versalhes, em 1923, era fundado o Conselho Nacional do Trabalho.

33

BATALHA, Cláudio, O Movimento Operário na Primeira República, op cit, p.60 Peace Treat of Versailles, Part XIII: Labour, Section I: Organization of Labour. Consultado 10 de janeiro de 2012 em http://avalon.law.yale.edu/imt/partxiii.asp, 34

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Formando os alicerces: a consolidação do CNT

Como já foi apresentado, os anos de 1910 testemunharam uma série de agitações e manifestações operárias que deixaram os grandes centros urbanos nacionais em estado de alerta. A questão social foi finalmente colocada na ordem do dia por conta da reação operária às péssimas condições de vida que enfrentavam – assolados pela forte carestia do período e pela clara falta de leis sociais e trabalhistas. Esta combinação de fatores, desencadeadora das grandes greves iniciadas em 1917, colocou em evidência mais do que a forte insatisfação dos trabalhadores, mas também a incapacidade tanto do patronato quanto do Estado de prevenir e, especialmente, de sufocar estas grandes manifestações, tradicionalmente enfrentadas “a patas de cavalo”. Este movimento de efervescência se desenrolou simultaneamente à atividade diplomática e a política externa do Brasil no pós-guerra, dedicada aos problemas da organização do trabalho e às demais disposições das Conferências de Paz, o que impulsionaria a questão social para um lugar cada vez mais central na política nacional. Assim, 1919 é, dentro deste cruzamento das pressões internas e externas sofridas pelo Brasil, bastante exemplar. Neste ano, a lei de acidentes de trabalho, que tramitava no Congresso há ao menos sete anos dentro do projeto do Código do Trabalho, foi finalmente aprovada. Ainda no mesmo ano, o Brasil assinou o Tratado de Versalhes, que dispunha uma sessão inteira de seu texto dedicada a estabelecer determinações das quais seus signatários deveriam seguir para solucionar o problema da questão social. Dentro deste cenário, a fundação do Conselho Nacional do Trabalho viria como importante ponto de partida institucional para que o Brasil começasse a considerar diversas das determinações dos tratados internacionais. Na primeira sessão do CNT em agosto de 1923, o então Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio Miguel Calmon du Pin afirmava que o país fora impelido a criar o Conselho com o intuito de examinar as possibilidades de aplicação dos projetos recomendados nas sucessivas Conferências Internacionais do Trabalho35. De fato, a fundação do instituto viria não apenas para cumprir funções diplomáticas importantes 35

Poder Judiciário, Justiça do Trabalho, Do CNT ao TST, TST, 1975, p.9-10

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além de se firmar como órgão máximo de estudo sobre a organização do trabalho no Brasil - mas também seria crucial ao delimitar um novo espaço de debate sobre a questão social fora das instâncias do Poder Legislativo. Havia, na ação do Conselho, a prerrogativa direta de emitir pareceres decisivos sobre uma série de questões que, anteriormente, se concentrava exclusivamente dentro do grande expediente do Legislativo. Outros pontos bastante significativos do novo órgão residiam em sua função de mediador de conflitos entre Capital e Trabalho, mas, especialmente, em seu caráter consultivo e em sua estreita relação com o Poder Executivo. Subordinado direto do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio e constituído diretamente por indicação do Presidente da República, o CNT foi fundado em 30 de abril de 1923, já no governo de Arthur Bernardes, para trabalhar em consonância com a Comissão de Legislação Social da Câmara dos Deputados, criada em 1918. Dentro do Conselho se fariam representar altos funcionários do Estado, conhecedores técnicos das questões relativas ao trabalho, operariado e patronato, todos reunidos para dar especial tratamento à questão social e ao conflito entre Capital e Trabalho em âmbito nacional. Assim, seria função do instituto centralizar os estudos referentes a estas questões, atender a recursos impetrados à sua apreciação, da mesma forma que teria a importante função de elaborar projetos de regulamentação e reformas de leis. Porém, se estas eram funções centrais do CNT, sua fundação teve desdobramentos aparentemente secundários, mas de extrema importância, que extrapolavam a ideia de simples criação de um novo espaço para tratar o estudo conflitos. A estruturação do Conselho foi, também, parte integrante do esforço governamental de institucionalizar o debate da questão social sob os olhos do poder Executivo, na busca por diluir a pressão operária e até mesmo neutralizá-la nas discussões sobre a regulamentação social. O CNT seria reafirmado como o novo e legítimo local para se debater os problemas relativos ao trabalho, com operários e patrões representados igualmente e, como característica fundamental ao menos em seu decreto de fundação, seria facultado aos trabalhadores e patrões entrar com recursos pedindo arbítrio e intervenção do instituto. Simultaneamente, fora dele, montou-se um sofisticado aparato para reprimir as reivindicações de trabalhadores tanto com uma intensa perseguição às organizações operárias como na aprovação de leis que

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facilitassem o isolamento de lideranças dos trabalhadores36. Assim, reivindicar seria absolutamente reprimido, como bem mostrou o próprio Presidente que fundou o CNT, Artur Bernardes. É importante ressaltar que, se esta montagem de alguma forma buscava atender às reivindicações operárias e patronais externas ao Conselho – cumprindo função de mediador e árbitro nos conflitos entre Capital e Trabalho – ela também deveria se estruturar para que fosse possível receber as reivindicações que chegassem ao CNT. Entretanto, o que se deu foi o gradativo fechamento das portas do instituto às demandas externas e o aumento da perseguição à classe operária. O governo de Bernardes se deu sob estado de sítio durante quase toda a sua duração e se empenhou fortemente por desmobilizar sindicatos, prender lideranças operárias, usar de extrema força contra manifestações e greves. Como afirma Cláudio Batalha, especialmente entre 1922 e 1926, com o vigor do estado de sítio por conta do levante tenentista, nem os sindicatos reformistas escaparam da forte repressão às organizações de trabalhadores, que foram comprometidas irremediavelmente37. É preciosa a análise feita por um representante da delegação belga presente na Conferência Internacional do Trabalho, realizada em junho de 1925, a respeito da condição dos operários brasileiros: “No começo de março, havia uma greve dos têxteis no Rio e uma greve dos ferroviários em Santos; essas duas greves, essas duas expressões da liberdade de associação, foram submetidas pela força militar. Nessa mesma cidade do Rio, no final do último ano, nos meses de setembro e outubro, lançou-se uma razzia contra as organizações sindicais e seus militantes. Sem nenhum motivo, os dirigentes das organizações sindicais foram presos; parte deles foi até mesmo deportada para o Oiapoque no estado do Pará, onde reina a febre amarela, onde o calor é extremo e onde a vida é difícil. Eis como se respeita neste país ideal o direito de associação dos trabalhadores (...). Nós somos obrigados a constatar que, neste mesmo momento em que o delegado nos explica o estado tão admiravelmente organizado de seu país, este encontra-se sob estado de sítio até 25 de dezembro de 1925, sob pretexto de perigo de revolução, mas na realidade para vencer o direito de associação dos trabalhadores”38

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É o caso exemplar da aprovação, em 17 de janeiro de 1921, da Lei de Repressão ao Anarquismo, que dava uma série de prerrogativas de ação ao Estado para sufocar o movimento operário, baseado no argumento de contenção de ideias ditas subversivas. 37 BATALHA, Cláudio, O Movimento Operário na Primeira República, op cit, p.59 38 PINHEIRO, Paulo Sérgio, Estratégias da Ilusão, op cit p.105 Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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O panorama montado pela criação de um instituto que centralizaria a discussão dos problemas referentes à questão social se deu mediante a enorme dificuldade de organização do movimento operário, dificuldade essa promovida justamente pela ação do Estado.

Desta forma, ocorria um claro descolamento entre as representações

operárias presentes dentro do CNT e seus representados, além da dificuldade para que os próprios trabalhadores recorressem individualmente à instituição. Este fato contribuiu essencialmente para uma melhor organização da representação patronal dentro do Conselho, esta que contava com plena atividade de suas organizações de classe. Outro ponto que merece destaque sobre a fundação do CNT diz respeito ao seu recebimento por parte do próprio patronato. A fundação da instituição pareceu não causar grande comoção entre burguesia industrial, como o ocorrido com seu antecessor, o Departamento Nacional do Trabalho. Na ocasião da fundação do DNT, projeto do Deputado Maurício de Lacerda apresentado em 1917 e aprovado em 1918, a classe patronal se colocou fortemente contra seu estabelecimento, refutando suas características de órgão máximo de estudo e fiscalização para o estabelecimento de uma legislação social. A característica que certamente indispôs o recém-criado Departamento frente ao patronato seria seu caráter administrativo, diferentemente do caráter consultivo do CNT.39 O Conselho Nacional do Trabalho, desta forma, seria facilmente aceito por diversos setores-chave da política nacional o que promoveria, por consequência, o esvaziamento de funções do próprio DNT, que só seria retomado no pós-30. Do ponto de vista da própria constituição do CNT, a sua vinculação e subordinação direta ao Poder Executivo se fez notar em cada ação do instituto durante os anos de 1920. Sempre que presente em qualquer sessão do Conselho, o presidente do instituto seria o próprio Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio e este era o responsável direto por intermediar as relações da instituição com a presidência da República, quando necessário. Além disso, é preciso destacar que a escolha dos membros conselheiros era feita diretamente por nomeação do Presidente da República através de decretos, o que trazia uma série de filtros para esta escolha, especialmente para no que se refere à nomeação dos representantes operários. Diante da condição e do trato dispendido aos trabalhadores pelo governo de Artur Bernardes, é importante ressaltar, mais uma vez, a falta de conexão entre a representação operária dentro do

39

GOMES, Angela Maria de Castro, Burguesia e Trabalho, p.95-7

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CNT e as organizações de classe de seus representados, a despeito do que acontecia com a representação patronal. Este com certeza foi um aspecto essencial que desarticulou e isolou estes representantes frente aos demais conselheiros dentro do instituto durante os anos de 1920. Outro ponto bastante importante é a busca por entender as prerrogativas e alcances com os quais o CNT nascera e como ele seria utilizado dentro das disputas políticas pela regulamentação da questão social e, para isso, é necessário voltar os olhos para seu decreto de fundação. Em seus dois primeiros artigos, as disposições gerais de funcionamento da instituição já eram apresentadas: “Art. 1º Fica creado o Conselho Nacional do Trabalho, que será o orgão consultivo dos poderes publicos em assumptos referentes á organização do trabalho

e

da

previdencia

social.

Art. 2º Além do estudo de outros assumptos que possam interessar á organização do trabalho e da previdencia social, o Conselho Nacional do Trabalho occupar-se-ha do seguinte: dia normal de trabalho nas principaes industrias, systemas de remuneração do trabalho, contractos collectivos do trabalho, systemas de conciliação e arbitragem, especialmente para prevenir ou resolver as paredes, trabalho de menores, trabalho de mulheres, aprendizagem e ensino technico, accidentes do trabalho, seguros sociaes; caixas de aposentadorias e pensões de ferro-viarios, instituições de credito popular e caixas de credito agricola.”40

O primeiro ponto a se destacar, como bem definiu Samuel Souza, reside na expressiva liberdade dada ao Conselho para lidar com um grande número de questões bastante caras a diversos setores importantes da política e da economia do período41, especialmente dos diversos grupos da burguesia industrial do país. Estas prerrogativas de tratar da “organização do trabalho e da previdência social” seguia destrinçada no artigo 2º, afirmando-se responsável pelas principais questões que permearam os debates tão importantes dos anos de 1910. Esta abrangência e liberdade de ação, porém, necessitam sempre ser colocadas em relatividade por conta, mais uma vez, da característica primordial do CNT de órgão consultivo, o que limitava e subordinava 40

Decreto 16027 de 1923 que cria o Conselho Nacional do Trabalho, acessado em 10 de janeiro de 2012 http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=45666&tipoDocumento=DEC&tipoTexto =PUB 41 SOUZA, Samuel Fernando de, “Coagidos ou Subornados”: trabalhadores, sindicatos, Estados e as leis do trabalho nos anos de 1930. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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qualquer decisão do instituto à imediata aprovação do Ministério da Agricultura. Apesar desta limitação, é importante observar que isso não inviabilizava o fato de que o CNT se constituía como um novo e importante espaço de atuação e disputa dentro do debate sobre a regulamentação da questão social. Além disso, justamente na função de consultor do Poder Executivo residia muito de sua importância, pois o CNT seria constantemente solicitado a elaborar regulamentações de leis aprovadas no Legislativo, reformas de leis já existentes e pareceres a cerca de projetos de lei ainda em tramitação no Congresso, o que lhe dava importância destacada no processo de implementação de quaisquer leis referentes à organização do trabalho. Mediante isso, a boa articulação das representações de classe dentro do espaço do Conselho trazia inúmeras vantagens e poderia dar poder de amenizar ou enaltecer pontos favoráveis ou não às suas respectivas classes representadas. Desta forma, como afirma Castro Gomes, o patronato esforçou-se por ocupar e se articular firmemente dentro da instituição visando influenciar seus projetos de regulamentação42. Apesar do instituo ter em seu decreto uma série de atribuições que aparentemente lhe dava trânsito para elaborar pareceres sobre diversas questões relativas ao trabalho, a própria prática que se instituiu em seu cotidiano de funcionamento foi quem ditou os caminhos a serem seguidos pelo instituto. O primeiro e mais importante deles estava claramente ligado a uma atribuição com a qual o CNT nasceu, e que estava vulgarmente listada como as tantas outras presentes no artigo 2º de seu decreto de fundação: seria de responsabilidade do Conselho se ocupar das Caixas de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários. Esta atribuição dada ao instituto era claramente diferente de todas as outras, pois estava embasada em outra lei extremamente importante no processo de regulamentação de uma legislação social, que conferia exclusivamente aos ferroviários uma série de direitos. Estes direitos foram estabelecidas através do decreto nº4682 de 23 de janeiro de 1923, que deu origem à lei Eloy Chaves. Conhecida também como a “lei dos ferroviários”, ela foi resultado do projeto proposto pelo Deputado Eloy Chaves e, além de conferir estabilidade de emprego a ferroviários com 10 anos de trabalho contínuo em uma mesma estrada, seu Artigo 1º definia que “Fica creada em cada uma das empresas de estradas de ferro existentes no

42

Cf. GOMES, Angela Maria de Castro, A Invenção do Trabalhismo, op cit.

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paiz uma Caixa de Aposentadoria e Pensões para os respectivos empregados”43. O decreto segue com suas disposições e em seu Artigo 32º determinava: “Logo que seja creado o Conselho Nacional do Trabalho, competirá ao respectivo director o julgamento de quaesquer recursos das decisões do Conselho de Administração das Caixas de pensões e aposentadorias.” 44

O CNT foi concebido apenas dois meses depois, mas já nascia com uma atribuição enorme. Apenas em 1924, já haviam se estabelecido 32 Caixas de Aposentadorias e Pensões em todo o país, e diversas outras Estradas entravam com constantes pedidos no Conselho para estabelecimento de suas respectivas CAP. Desta forma, o CNT, com seus 12 membros conselheiros e 6 funcionários administrativos, era responsável por fiscalizar a atividade de todas as Caixas das estradas de ferro do país, setor este de clara importância para a economia do período. Por sua vez, as CAP tratavam de uma série de questões que davam ainda maior dinâmica e complexidade a sua própria função: “Art. 9º Os empregados ferroviários, a que se refere o art. 2º desta lei, que tenham contribuido para os fundos da Caixa com os descontos referidos no art. 3º letra "a" terão direito: 1. a socorros médicos em casos de doença em sua pessoa ou pessoa de sua família, que habite sob o mesmo tecto e sob a mesma economia; 2. a medicamentos obtidos por preço especial determinado pelo Conselho de Administração; 3. aposentadoria; 4. a pensão para seus herdeiros em caso de morte.”45

A lei Eloy Chaves, desta forma, trouxe ao Conselho Nacional do Trabalho uma série de questões que demandavam grande parte da atenção do instituto, esforço possivelmente justificado pela importância da categoria dos ferroviários na economia nacional. De qualquer forma, as atividades do CNT estabeleceram como centro de trabalho, inicialmente, o bom cumprimento de suas atribuições frente à lei Eloy Chaves, o que estabeleceu a dinâmica de atuação do Conselho ao menos até o final da década de 1920.

43

Decreto 4682/1923, acessado em 10 de janeiro de 2012 http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=45136&tipoDocumento=DEC&tipoTexto =PUB 44 Idem. 45 Idem. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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O CNT parecia poder transitar sobre diversas questões, mas de fato, até a aprovação da regulamentação da lei de férias em outubro de 1926, seu foco de trabalho era quase monotemático. A despeito de consultas e pedidos diretos advindos de demandas do Poder Executivo, todo o esforço do Conselho recaía sobre a estruturação das dinâmicas de trabalho e do estabelecimento de doutrinas, jurisprudências e práticas referentes à lei Eloy Chaves. Desta forma, a “lei dos ferroviários” funcionou como o verdadeiro fio condutor quase exclusivo dos trabalhos dos conselheiros até a inauguração de uma nova frente bastante volumosa, em 1927, com a efetiva aplicação da lei de férias. Além do claro foco que recaía sobre a questão dos ferroviários, o instituto, naturalmente, também passou por um período de acerto e reconhecimento durante o próprio ano de 1923, ainda nas primeiras sessões, que se dirigiam a questões organizativas importantes. A primeira questão que se apresentou, curiosamente, dizia respeito à constituição das representações de classe dentro do Conselho. O CNT era constituído por dois representantes operários, dois representantes do patronato, dois altos funcionários do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, além de seis membros de reconhecida competência sobre os assuntos tratados no artigo 2º do decreto. Mesmo com as nomeações decretadas pelo Presidente da Republica sendo feitas diretamente para suas categorias específicas de conselheiros, o que se deu no ano de 1923 já apontava para uma boa dose de parcialidade na própria constituição do instituto. Em ata de 30 de agosto de 1923, na terceira sessão do CNT, o senhor Gabriel Ozório de Almeida suscita a questão e pede atenção do presidente do Conselho, o senhor Augusto Olympio Viveiros de Castro, para a ausência de representantes dos patrões no Conselho. Ozório de Almeida afirmou que foi convidado a compor o instituto como “simples particular, e não como representante do Centro Industrial do Brasil”46, do qual era vice-presidente. Desta forma, o conselheiro pede que a irregularidade seja reparada o quanto antes, para que o patronato não ficasse prejudicado diante de importantes decisões em que o Capital é grande interessado. O conselheiro e deputado Antonio Vicente Andrade Bezerra aponta como representante patronal o deputado Carlos de Campos, o que foi prontamente negado pelo reconhecido representante patronal Libanio Rocha Vaz, sob a justificativa de que o senhor Carlos de Campos não seria um verdadeiro industrial por, naquele momento, não estar à frente de

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Revista do Conselho Nacional do Trabalho, junho de 1925, Ano 1, p, 45.

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nenhuma indústria. Mediante esta discussão, Viveiros de Castro designa uma comissão para recorrer ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio para que se levasse a angústia do Conselho ao Ministro Miguel Calmon du Pin. A sessão é encerrada e a discussão é imediatamente retomada por Ozório de Almeida na quarta sessão do CNT, realizada em 4 de setembro de 1923. Ozório de Almeida, bastante preocupado com as condições do patronato, reinicia o debate sobre a questão da representação patronal justificando mais uma vez que aquele não era o seu papel, pois foi convidado a compor o Conselho na qualidade de inspetor geral das Estradas de Ferro, e mais uma vez afirma que seu cargo não tem ligação com a sua condição de vice-presidente do CIB. Afrânio Peixoto, membro convidado por sua qualidade de professor de higiene na Faculdade de Medicina disciplina ligada intimamente aos problemas sociais - se manifesta na discussão afirmando que o colega seria sim, e seguramente, representante dos patrões junto com Rocha Vaz. O conselheiro Araújo Castro declara haver o Presidente da República nomeado Mario de Andrade Ramos para o cargo e a discussão se generalizou, até que Viveiros de Castro a deu por encerrada sob o argumento de que interpelaria o próprio Presidente sobre as posições dos conselheiros. Assim, na sessão posterior, realizada em 18 de setembro de 1923, foi apresentado aos demais membros o conselheiro Mario de Andrade Ramos. O que se percebe da análise deste importante debate, ainda nos primeiros meses de funcionamento do CNT, é que a representação patronal parecia ter certa aproximação e afinamento com outros membros do instituto. A própria dificuldade em identificar os representantes dos patrões, entre tantas possibilidades plausíveis dentre os diversos conselheiros, indicava uma real possibilidade de afinação seja por suas atividades econômicas, seja por cargos ocupados fora do CNT. Este fato já apontava para a facilidade de trânsito com a qual a representação do patronato contaria frente aos demais conselheiros, diferentemente da representação operária. Mais do que isso, é possível afirmar que este afinamento teria boa dose de responsabilidade por construir um gradativo e decisivo isolamento da representação operária dentro do instituto nos anos de 1920. Todo este panorama, superficialmente apresentado aqui, já aponta para uma característica estrutural do CNT bastante importante: seus alicerces estavam estabelecidos dentro de um fluído e intricado jogo político que se velava e revelava entre os conselheiros, tendendo para a melhor articulação patronal. Compreender e buscar pistas sobre este jogo político, em constante reelaboração, é importante para Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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entender as decisões e funcionamento do CNT. Entretanto, antes de tomá-lo como foco, é necessário buscar, inicialmente, as diretrizes coletivas de trabalho estabelecidas dentro do Conselho. Já foi explicitado como o instituto orientava seu trabalho dentro de fios condutores bastante específicos e delimitados. Ao menos durante os anos de 1920, eles foram basicamente dois: a lei Eloy Chaves aprovada em 1923 e a lei de férias, aprovada em 1925 e regulamentada em 1926. Entretanto, é preciso identificar como, quando e por quais motivos o CNT optou por deliberadamente por delimitar suas funções, apesar de todo o seu vasto campo de atuação definido em seu decreto de fundação. Durante os dois primeiros anos de trabalho do Conselho, entre agosto de 1923 e fim de 1924 o instituto trabalhou resolvendo casos pontuais relativos ao estabelecimento das Caixas de Aposentadorias e Pensões das Estradas de Ferro, assim como discutiu, nas CAP já estabelecidas, problemas na contagem do tempo de aposentadoria, discutiuse a validade da lei para as diversas categorias de trabalhadores das Estradas, trabalhou para rebater as alegações de inconstitucionalidade do artigo 3º da lei dos ferroviários que determinava a contribuição das Estradas para suas respectivas CAP com 1% de sua renda bruta anual - estabeleceu interpretações e jurisprudências diante dos casos levados à apreciação dos conselheiros referente a leis e, ainda, se concentrou na ação das agências de Seguros Sociais, que deveriam ser fiscalizadas também pelo CNT. No que se refere, ainda, ao atendimento a consultas que não do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, este período de consolidação da instituição teve um ritmo de trabalho bastante lento. Durante o primeiro semestre de funcionamento do instituto foram analisados cerca de dez atendimentos às consultas e aos recursos impetrados aos conselheiros, ritmo de trabalho que se manteve também no ano de 1924. Considerando-se uma das prerrogativas do CNT, a de árbitro dos conflitos entre Capital e Trabalho, é curioso que em um ano e meio de existência ele definitivamente não houvesse alcançado as classes trabalhadoras, já que quase não há registros de ações impetradas por trabalhadores nas atas do instituto nos anos de 1923 e 1924. De qualquer forma, dos pouquíssimos exemplos de organizações operárias que recorreram aos serviços do instituto dentre estes dois primeiros anos, o único caso ocorrido em 1923 foi bastante significativo, pois dele se firmou uma das tantas resoluções que nortearam a prática do instituto e, nele, residiria uma possível explicação para o não aparecimento do operariado nas atas do instituto posteriormente. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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Em 18 de setembro de 1923, na quinta sessão do Conselho47, o Secretário Geral procedeu a leitura de um “longo Memorial” da União dos Operários em Fábricas de Tecidos do Rio de Janeiro, a pedido do Ministro du Pin. No Memorial os operários expunham longamente as difíceis condições de trabalho nas quais estavam submetidos, afirmando que os salários atuais eram insuficientes para fazerem face a presente carestia de vida. Neste documento, os operários de fato não faziam nenhum pedido específico ao CNT, “limitando-se tão somente a expor o que pleiteiam dos industriais e afirmarem a plena confiança na justiça de sua causa”48. Da leitura do Memorial, Ozório de Almeida pede a palavrar para apontar uma questão que ele acredita ser anterior até mesmo a tomada de conhecimento do assunto levantado pela União dos Operários em questão e, como consta em ata, afirma: “Deve-se resolver a seguinte preliminar: si o Conselho tem pela lei de sua organização, autoridade para, por simples reclamação de uma das partes, intervir no conflicto entre patrões e operários. Entende que tal invervenção não encontra apoio em artigo algum daquela lei. O papel do Conselho Nacional do Trabalho é o de mediador, o de conciliador dos interesses do capital e do trabalho; mas para que elle possa assim actuar, necessario se torna que as partes em lucta mediante accordo, resolvam submetter a questão ao seu julgamento, com a declaração de a elle se submeterem” 49

A partir da argumentação apresentada por Ozório de Almeida, o CNT resolveu que, sendo o instituto órgão consultivo, como está explicito em seu decreto de fundação, não interviria diretamente nos conflitos entre patrões e operários, senão quando essa intervenção fosse solicitada por uma das partes, com plena concordância e assentimento da outra parte, e diante do compromisso formal de acatarem as resoluções determinadas pelo Conselho. Esta posição tomada pelo Conselho, de estabelecer claros limitadores para os trabalhos do instituto através da interpretação de seu decreto de fundação, teve ampla adoção dos membros e, posteriormente, foi radicalmente aprimorada em meados de 1924. Ataulpho Napoles de Paiva, desembargador recém-empossado no cargo de conselheiro, pede a palavra para relatar alguns processos em seu poder, mas, antes de iniciar, afirmou que deveria levantar algumas preliminares de grande importância. Paiva 47

Revista do Conselho Nacional do Trabalho, junho de 1925, Ano 1, p,54. Idem. 49 Idem. 48

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anunciava estar impressionado com uma observação já feita por seu colega conselheiro Mello Franco, com relação à competência do Conselho para dirimir questões que escapavam à letra da lei e prosseguiu, como consta em ata: “Quase todos os papeis que deve relatar, são consultas formuladas sobre os mais variados assumptos. Ora, nós não temos obrigação de acudir às consultas das Caixas, que estão se multiplicando de modo a embaraçar os trabalhos de maior importancia do Conselho. Só ha duas hypotheses que nos obrigam a atender consultas, que são as impostas pelos arts. Um e dois do Decreto que creou este Conselho. (lê os citados artigos). Fóra disto procurei ler com cuidado a lei e não encontro a attribuição de resolvermos consultas que a todo o momento são dirigidas ao Conselho. Este Instituto é apenas órgão consultivo do Governo, e exerce funções de Tribunal nos casos de recurso previsto pelos arts. 31 e 32, que creou as Caixas dos empregados ferroviários. Nem pode o Conselho estar resolvendo toda a sorte de recursos, (...) propõe que sejam tomadas medidas no intuito de restringir a tarefa exhaustiva que vae tendo o Conselho.”50

Após a fala de Ataulpho Paiva, os demais membros, estando de acordo com suas considerações, ressaltaram em debate como a lei de criação do instituto era falha, concorrendo para a própria ineficiência dos trabalhos de seus membros e decidiram, unanimemente, encaminhar que estas críticas ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio e também ao Congresso, para que se efetuasse uma reforma da lei que criou o Conselho. Elegeu-se como responsável por elaborar este relatório, a ser enviado ao poder Executivo e Legislativo, o próprio Ataulpho Paiva. Esta opção por não tomar conhecimento de uma série de pedidos de intervenção, a partir desta data, pode ser uma das explicações para os raríssimos registros de atendimentos prestados pelo CNT aos trabalhadores – especialmente os não assistidos pela Lei Eloy Chaves e pela lei de férias – que eventualmente necessitassem de seu juízo. A partir deste momento, as atas evidenciaram, com certa constância, o esforço do próprio instituto por limitar a amplitude de suas atividades a pontos cada vez mais específicos de atuação. Assim, é importante perceber e ressaltar o fato de que as amplas atribuições, com as quais o CNT nascera, foram tomando proporções consideravelmente menores por ação e vontade dos próprios conselheiros. Sob o argumento de buscar maior eficiência para a rotina de trabalhos do instituto, seus membros acordaram em 50

Revista do Conselho Nacional do Trabalho, Outubro de 1928, ano 3, nº 3,103-4.

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afunilar suas prerrogativas de atuação, o que culminara na sugestão de reforma dada por Ataulpho Paiva. Diante disso, durante todo o ano de 1923 e 1924, absolutamente todas as ações de fato apreciadas pelo CNT se concentraram em artigos presentes na lei Eloy Chaves, e, em menor medida, no estabelecimento e fiscalização das Agências de Seguros para tratar dos acidentes de trabalho, que também era de responsabilidade do instituto. Todos os demais recursos levados à apreciação do CNT foram colocados em posição secundária. É o caso, por exemplo, da grande maioria das disposições estabelecidas pelo já citado artigo 2º do decreto de fundação do Conselho Nacional do Trabalho, que teve sua funcionalidade anulada em diversos pontos em detrimento da exacerbação da característica de órgão consultivo da instituição. É importante notar que esta nova orientação dada aos trabalhos, votada coletivamente pelos membros e aprovada por unanimidade, ainda permitisse pequenos reveses ao passar pelo crivo dos próprios conselheiros. Isso acontecia porque os membros gozavam de uma boa dose de autonomia em seus julgamentos e isso fazia com que a própria formulação de sua argumentação a respeito de certo conflito ou consulta conseguisse - eventualmente e a partir da boa articulação política do conselheiro suplantar as disposições gerais recém-adotadas de não tomar conhecimento de uma série de recursos. Assim, diversos recursos, que possivelmente seriam rejeitados, passaram pela avaliação do instituto e tiveram força para mudar disposições importantes baseados no argumento e no parecer dado aos seus casos específicos. Exemplo disso foi do parecer dado à consulta de Alexandre Mackenzie em 1926, por Libanio Rocha Vaz, que suscitou verdadeira reviravolta na regulamentação da lei de férias, caso que será retomado posteriormente. O que é importante notar deste panorama é a própria fluidez com que as atividades do CNT iam sendo conduzidas e como as decisões tomadas no instituto dependiam, claramente, de uma série de articulações políticas, da disposição individual dos conselheiros e do seu compromisso com certos setores políticos, ou identificação com segmentos econômico-sociais específicos. Este conjunto de variantes era constitutivo de uma trama bastante complexa, que se desenrolava dentro da dinâmica interna do próprio instituto, da sua própria rotina de trabalhos. Foi através dela, na agência diária dos indivíduos e na articulação de seus diversos interesses, que o CNT foi tendendo a um posicionamento mais próximo e favorável ao patronato, nos termos

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firmados pelo Deputado Azevedo Lima em 192751. Entretanto, é importante entender que o caráter patronal que ia se imprimindo gradativamente na instituição advinha da melhor articulação da representação patronal com um grande número de conselheiros, que, muitas vezes, já tinham aproximações com a burguesia industrial52. Este panorama aponta um caminho diferente da crítica feita por boa parte da historiografia sobre o CNT e os anos de 1920, que concebia a instituição como uma instituição monolítica, que o entendia nascido com uma vocação patronal. Apesar da grande influência da burguesia industrial, imposta pela nomeação de membros técnicos aproximados dos interesses do patronato, o próprio instituto iniciou seus trabalhos buscando certa imparcialidade e assim era necessário para que fosse estabelecida sua legitimidade de ação e funcionamento. Era necessário que ele próprio possibilitasse espaços de atuação da representação operária e que se travestisse de uma retórica de igualdade e universalidade, além de montar mecanismos que refletissem minimamente estas possibilidades, para dar sentido a sua própria existência. Toda essa dinâmica interna se evidenciou a partir de 1925, quando o CNT entrou num ritmo maior de trabalho com relação ao atendimento de recursos e consultas externas, colocando com mais clareza toda essa montagem. Mas isso é caso para um capítulo a parte.

O CNT em pleno funcionamento

O novo ritmo de trabalho, inaugurado a partir do ano de 1925, demarcaria ainda mais os anos 1923 e 1924 como o período de fundação e estruturação do CNT. Com a consolidação dos modos de funcionamento do instituto, algumas questões naturalmente perderam espaço dentro das discussões realizadas nas sessões do Conselho. Desta forma, os pedidos de habilitação de agências de seguros para tratar dos acidentes de trabalho caíram consideravelmente, visto que uma grande quantidade de seguradoras já 51

Azevedo Lima discursa, na Câmara dos Deputados, contra o CNT, afirmando que o órgão era lento, burocrático, e que em nada atendia às reivindicações dos trabalhadores. Lima cita o exemplo da lei de férias, que em sua opinião teve o regulamento sucessivamente protelado por conta da ação das organizações patronais e de sua representação, dentro do instituto. Cf. GOMES, Angela Maria de Castro, Burguesia e Trabalho, op cit, p.169. 52 Angela de Castro Gomes identifica dentro do CNT uma melhor articulação, trânsito e fluidez do patronato por conta da própria estrutura de trabalhos do instituto, mais familiar às associações da classe patronal. Ver “As formas alternativas de participação no processo decisório: os mecanismos de intervenção direta e indireta” em GOMES, Angela Maria de Castro, Burguesia e Trabalho, op cit. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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estava autorizada e estruturada. Da mesma forma, as diversas discussões sobre as interpretações da lei Eloy Chaves já tinham se consolidado, em grande parte, e os questionamentos sobre a validade da lei e sua aplicação, de modo geral, já estavam bastante esclarecidos. Em virtude da diminuição do volume ocupado por estas questões, o CNT pareceu abrir espaço em seu cotidiano de trabalhos para realizar maior atendimento a recursos do que nos anos anteriores, ocupando-se de ações que não se ligavam apenas à formação de jurisprudências e solicitações do Poder Executivo. Além disso, a própria maturidade das Caixas de Aposentadorias e Pensões, finalmente estabelecidas e em pleno funcionamento, também começava a levar ao Conselho uma quantidade maior de casos, que não encontravam solução dentro das próprias instâncias das CAP. Esse novo número de ações que chegaram ao CNT, principalmente por conta de questões relacionadas aos ferroviários, proporciona uma análise importante que é fundamental para se compreender como o instituto, gradativamente, ia se colocando ao alcance de parcelas determinadas e gradativas do operariado urbano. Para tanto, alguns números são significativos e importantes de se apresentar. Durante o ano de 1925, chegaram ao CNT cerca de 70 processos que diziam respeito diretamente a assuntos que envolviam as Caixas de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários, outros dois processos que diziam respeito à Contadoria Geral das Estradas de Ferro e um processo referente à Superintendência das Estradas. Fora das questões dos ferroviários, chegaram ao CNT uma representação da Alliança Republicana de São Paulo, uma representação do Centro de Indústrias de Fiação e Tecelagem de São Paulo, uma representação da União dos Operários em Fábricas de Tecidos, além de três outros pedidos de esclarecimento realizados por seguradoras. Comparativamente aos cerca de 20 recursos analisados durantes os anos de 1923 e 1924, o número de ações apreciadas pelo Conselho foi exponencialmente maior. Mais do que isso, é bastante perceptível a preponderância dos recursos relativos a questões das Caixas e estradas de ferro, sobre todos os outros tipos de solicitação. Este fato mostra a permanência da centralidade das questões dos ferroviários dentro do CNT, como próprio resultado da consolidação da lei Eloy Chaves, e ainda aponta para a falta de trânsito de outras categorias de trabalhadores dentro da instituição: foram apenas seis ações que tratavam de temas que não se relacionavam às estradas de ferro. Assim, a análise da desproporção destes números e dos diferentes tipos de ações impetradas ao Conselho leva a outra percepção importante, a dos diferentes graus de alcance do Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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instituto para as diferentes classes de trabalhadores urbanos, e do próprio trato dado pelo CNT a estas diversas classes. Os ferroviários, a partir de 1925, deram vultoso impulso ao processo que se iniciara bastante tímido no ano anterior. A faculdade de entrar com recursos no CNT havia sido parcamente utilizada – ou habilitada - até então e o número de processos movidos por trabalhadores no instituto, que pleiteavam aposentadoria, pedidos de afastamento, auxílio médico, além de pensões por invalidez ou falecimento, cresceu significativamente apenas após 1924. Isso pode indicar não só a consolidação das CAP frente aos próprios trabalhadores, como parte da aplicação da lei Eloy Chaves, mas, principalmente, o reconhecimento e apropriação desta lei pelos próprios ferroviários, que a identificaram como asseguradora de uma série de direitos conquistados. Além disso, o constante acionamento do CNT para tratar destes conflitos pode indicar como o próprio instituto ganhava terreno, também frente ao patronato, como conciliador e árbitro destas questões. A resposta do instituto frente ao crescente número de solicitações permitiu, ainda, mapear sua relação com as diversas classes de operários e isso remonta as disposições adotadas em 1924. Todas as solicitações que cabiam ao julgo do CNT, de acordo com os artigos 31 e 32 da lei Eloy Chaves53, foram atendidas e julgadas de acordo com as interpretações já estabelecidas pelos conselheiros no ano anterior. Assim, o instituto cumpria uma clara função de árbitro quando se tratava de recursos impetrados com base na lei dos ferroviários. Desta forma, a prerrogativa de ação do CNT como mediador de conflitos entre o Capital e Trabalho era muito solicitada dentro da esfera das estradas de ferro e, curiosamente, era respaldada não pelo decreto de fundação do próprio CNT, que claramente garantia essa atuação em seu artigo 2º, mas na lei Eloy Chaves, que reafirmava e restringia esta habilitação ao instituto, então duplamente assegurada. Às outras classes de trabalhadores, que não contavam com leis específicas que 53

Art. 31. As aposentadorias e pensões serão concedidas pelo Conselho de Administração da caixa, perante o qual deverão ser solicitadas, acompanhadas de todos os documentos necessarios para a sua concessão. Da decisão do Conselho contraria á concessão da aposentadoria ou pensão haverá recurso para o juiz de direito do civil da comarca onde tiver séde a empreza. Onde houver mais do uma vara, competirá, á primeira. Esses processos terão marcha summaria e correrão independente de quaesquer custas e sellos. Art. 32. Logo que seja creado o Departamento Nacional do Trabalho, competirá ao respectivo director o julgamento de quaesquer recursos das decisões do Conselho de Administração das caixas de pensões e aposentadorias. Acessado em 10 de janeiro de 2012 http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=45136&tipoDocumento=DEC&tipoTexto =PUB Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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concorressem em auxílio a sua categoria, restava a já determinada resolução de não serem atendidos, por não se enquadrarem tanto na lei como nos artigos destinados aos ferroviários. Para ilustrar o isolamento dos demais trabalhadores frente ao instituto, alguns exemplos de representações impetradas em 1925 são significativos. Em sessão de cinco de dezembro de 1925, foi relatado pelo conselheiro Dulphe Pinheiro Machado uma representação da União dos Operários em Fábricas de Tecidos pedindo intervenção do CNT em favor dos empregados da Fábrica de Tecidos Botafogo. O instituto apenas respondeu que não tomaria conhecimento da representação, pois nenhuma das partes havia solicitado, primeiramente, o Juízo Arbitral e o assunto foi brevemente encerrado. Apesar do não detalhamento das falhas aparentemente burocráticas da requisição feita pela União dos Operários em Fábricas de Tecidos, é possível que o instituto não tomasse conhecimento do pedido com base nas disposições assumidas em 1924, de considerar da alçada do Conselho apenas certa categoria de trabalhadores, naturalmente, os ferroviários. Esta percepção, de que o CNT estivesse muito mais condicionado a leis externas que fossem atributivas de funções diretas a ele, mais do que as suas próprias possibilidades de atuação definidas por seu decreto de fundação, teve desdobramentos no julgamento de uma série de solicitações como é o caso de diversos casos apreciados em 1925. Em sessão de 24 de outubro de 1925, a Alliança Republicana de São Paulo entra com uma representação no CNT e solicita que o decreto nº4682 de janeiro de 1923 – a lei Eloy Chaves – fosse estendida aos funcionários da Light. A representação foi relatada pelo representante patronal Mario de Andrade Ramos, mas qualquer recusa do CNT não foi imediata, pois Gabriel Ozório de Almeida pediu vista do processo, que só seria retomado em 1926 e adiado novamente porque o representante dos patrões, Libanio Rocha Vaz, também pedira vista do processo e a representação não voltou mais à apreciação do instituto. Ela não foi recusada, ela simplesmente não foi concluída. Entretanto, em sessão de 11 de novembro de 1926, a mesma associação entra com nova representação pedindo que os benefícios do mesmo decreto nº4682 fossem estendidos aos funcionários de bondes, telégrafos e outras empresas. Desta vez, a representação foi relatada diretamente pelo mesmo representante patronal, Libanio Rocha Vaz, e encerrada imediatamente sob o parecer, acatado pelos demais conselheiros, de que aquilo não era matéria para trato do CNT. Após esses episódios, a Alliança Republicana de São Paulo não entrou com outros pedidos no instituto. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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É possível que o operariado, com o transcorrer destes anos de atuação do CNT, começasse a referenciá-lo como uma instituição elaborada para lidar com uma série de questões que não perpassavam pelo amplo atendimento de suas demandas, e sim como um órgão destinado, em geral, a realizar estudos técnicos para o Estado, ou para tratar de assuntos específicos das CAP dos ferroviários. Evidentemente, a percepção do operariado frente ao instituto é uma hipótese que não pode ser confirmada com exatidão, mas o ano de 1926 corroborava o mesmo panorama exclusivista do ano anterior. Durante todo o expediente de trabalho do CNT naquele ano, foram atendidos cerca de 80 consultas e recursos relacionados à lei Eloy Chaves, enquanto apenas 8 ações referentes à outros ramos da economia urbano-industrial, entre telegramas e consultas, passaram pelo julgamento dos conselheiros. Estas prioridades e ritmo de trabalho só conheceriam um segundo ponto de mudança, após o ano de 1924, com a aprovação e regulamentação da lei de férias54. Aprovada pelo Legislativo e sancionada em 24 de dezembro de 1925 a lei de férias foi encaminhada ao CNT para que então fosse elaborado seu regulamento, a ser enviado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Este foi um dos trabalhos mais significativos e de maior reverberação no meio operário e patronal com o qual o instituto lidou nos anos de 1920. Isto porque, com a lei de férias, se estabelecia uma lei que tratava de um grande número de trabalhadores, a primeira de grande abrangência sob responsabilidade direta do CNT55, e grande parte destes trabalhadores eram ativos na iniciativa privada e não mais em setores de propriedade estatal – como no caso da lei dos ferroviários56 - o que possivelmente provocou um interesse especial do patronato em relação a sua regulamentação. O início das atividades de elaboração do regulamento veio com a formação de uma comissão, como consta em ata de dois de fevereiro de 1926, composta pelo conselheiro Dulphe Pinheiro Machado e pelos representantes patronal e operário Libanio Rocha Vaz e Carlos Gomes de Almeida, respectivamente. Os trabalhos da 54

A lei de férias concedia aos trabalhadores da indústria e do comércio 15 dias contínuos e obrigatórios de férias remuneradas, após um ano de trabalho contínuo no mesmo estabelecimento. 55 A Lei de Acidentes de Trabalho corria pela Justiça Comum e não era fiscalizada pelo CNT, que tinha sob sua responsabilidade apenas as Agências de Seguro que operavam no ramo de acidentes de trabalho. 56 As estradas de ferro eram de propriedade estatal e, quando não estavam sob administração direta do próprio Estado, funcionavam em esquema de concessão à iniciativa privada. O fato de a lei de férias também abranger setores exclusivamente da iniciativa privada pode ser um dos motivos de sua aceitação mais dificultosa, se comparado à aprovação da Lei Eloy Chaves. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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comissão, incumbida de elaborar um pré-projeto a ser apresentado aos demais conselheiros, se iniciara com a solicitação de sugestões a todas as associações interessadas no projeto por meio de telegramas e de publicações na imprensa, o que de fato trouxe pouquíssimo retorno. Apesar disso, os trabalhos continuaram e foram relatados a primeira vez aos demais conselheiros em oito de junho de 1926, em sessão extraordinária, sob o parecer do representante patronal. Nesta sessão, Libanio Rocha Vaz anunciaria uma completa desconexão entre a aplicação da lei de férias aos empregados do comércio, pois isso já seria uma prática recorrente do setor, e a aplicação dela aos operários da indústria. O representante afirmava que havia obstáculos insuperáveis, como a grande escassez de mão de obra para fabril, que, com as férias, desorganizariam a produção industrial ou até mesmo a inviabilizaria. Rocha Vaz salientava ainda o agravante das dificuldades imputadas pelo Departamento de Saúde Pública em relação ao “aproveitamento de mulheres e menores”, com exigências que só “concorrem para prejuízo econômico e moral das famílias proletárias”57. Todas estas considerações, afirmava o relator da comissão, também eram constatadas por sua própria experiência e percepções como Superintendente da maior fábrica têxtil do país, a América Fabril. Por fim, Rocha Vaz chega a seu ponto e afirma ser necessário fragmentar o regulamento: uma parte, facilmente aplicável e já resolvida, destinada ao ramo do comércio, e outra, que necessitaria de ajustes e reflexões para possibilitar sua aplicação, destinada ao operariado industrial. A sugestão dada por Rocha Vaz foi aceita sem maiores discussões, contando ainda com o sinuoso comentário de Mário de Andrade Ramos, o outro representante do patronato, de que o CNT prestaria um serviço ao país se demonstrasse a inexequibilidade da lei de férias58. É justamente nesta afirmação que se encontra um dos melhores exemplos de como o espaço do instituto foi apropriado e concebido pelo patronato durante a década de 1920. O Conselho Nacional do Trabalho se configurava como um espaço de disputa essencial e significativo para a defesa dos interesses de classe do patronato frente à regulamentação social. Diante desta afirmação, nenhum outro membro do Conselho se manifestara, mas já ficava demarcada a posição do patronato em relação à lei de férias. Ainda dentro deste processo, é importante assinalar que foram realizadas assembleias com as classes interessadas no projeto, sob presidência do Ministro Miguel 57 58

Ata da 63ª Sessão do Conselho Nacional do Trabalho, dia 8 de junho de 1926. Ata da 63ª Sessão do Conselho Nacional do Trabalho, dia 8 de junho de 1926.

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Calmon du Pin, e seus resultados levados à sessão do CNT, com a presença do próprio autor do projeto da lei de férias, Deputado Henrique Dodsworth, e Augusto Lima, então presidente da Comissão de Legislação Social da Câmara. Lidas as sugestões, a primeira parte do regulamento foi aprovada e a segunda parte, após a realização de outra assembleia de classes dois meses depois, foi apresentada por Rocha Vaz e aprovada em sessão do dia 25 de setembro de 1926, sem adendos ou muita atenção no registro das atas, mas, curiosamente, também sem grandes diferenciações em relação ao regulamento dos comerciários. Rocha Vaz conquistara, a partir dos trabalhos nesta comissão, papel central nas discussões do instituto. Isso decorria de um aparente bom relacionamento do representante patronal com o novo presidente do Conselho, empossado em 1925 após um longo período de vacância do cargo, por conta da saída de Augusto Olympio Viveiros de Castro. Este novo presidente era o já conhecido Desembargador Ataulpho Nápoles de Paiva, de atuação destacada como conselheiro nos anos anteriores. Com a presidência de Paiva, o gradativo poder dado ao líder patronal despontou-se não só com as discussões da regulamentação da lei de férias, mas também em todos os outros grandes projetos incumbidos ao CNT. Entre os anos de 1925 e 1930 absolutamente todos os projetos de regulamentação e reforma que passaram pelo Conselho – projetos estes de reforma do decreto de fundação do CNT, o projeto de regulamentação da lei de férias e projeto de reforma da lei Eloy Chaves, projeto de extensão dos direitos da lei dos ferroviários aos marítimos e portuários, absolutamente todas foram relatadas por Libanio Rocha Vaz, com exceção da reforma da lei de acidentes de trabalho, que não corria pelo CNT, mas sim na justiça comum e sob o julgo da Comissão de Legislação Social da Câmara (com presença do representante do CNT, Afranio Peixoto). A posição galgada por Rocha Vaz, de relator quase exclusivo durante a presidência de Ataulpho Paiva, encontra um exemplo bastante sintetizador de sua atuação e influência no julgamento do recurso de Alexandre Mackenzie, enviado ao instituto em 1927. Em sessão de 19 de maio de 1927, já com o regulamento da lei de férias pronto e encaminhado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, chega ao instituto um pedido de consulta, feito pelo próprio Ministério aos conselheiros. Esta consulta, cujo autor Alexandre Mackenzie, um dos sócios da São Paulo Tramway, Light and Power Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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Company, conhecida como Light-São Paulo, tratava da viabilidade de se aplicar a lei de férias nos setores de transporte. Inicialmente, Gustavo Francisco Leite, representante operário, pede vista do processo, e a discussão só prossegue na sessão de junho de 1927, quando Libanio Rocha Vaz relata a consulta através de seu longo parecer, afirmando que a lei de férias não deveria se aplicar nem ao ramo de transporte nem ao de comunicações e propôs que o instituto mandasse uma recomendação ao Ministro pedindo a suspensão do regulamento nessa parte. Surpreendentemente, nesta sessão e durante a discussão deste parecer, aconteceu o primeiro embate entre a representação patronal e a representação operária. Gustavo Francisco Leite pede a palavra e se põe contra o parecer de Rocha Vaz, afirmando que o CNT não tinha competência para alterar a lei de férias, e que ela, claramente, abrangia os setores de comunicação e transportes. O representante do patronato retruca afirmando que seu parecer estava baseado no próprio regulamento da lei de férias, do qual ele foi relator dos trabalhos, e que Francisco Leite votava contra sua própria classe. No desenrolar da discussão Rocha Vaz afirma, como consta em ata: “Acrescenta o senhor Rocha Vaz que conhecia de sobra vida do operário, para não se illudir com o propalado beneficio da lei das férias, pois o que elles careciam era de amparo para a velhice e invalidez, e de assistência médica para a família. Cita factos para provar que os quinze dias de férias só podem trazer malefícios aos operários, declara que certas fábricas não poderão supportar os ônus da lei senão sobrecarregando ainda mais a produção, com o sacrifício do consumidor, e affirma que, com relação as indústrias, a lei não poderá ser cumprida pois não se adapta ao meio (...) O senhor Rocha Vaz terminou declarando que os operários precisam de leis de protecção e não de fantasias.”59

Após diversas falas e manifestações, o representante operário Gustavo Francisco Leite pediu a palavra novamente e afirmou que o que estava em jogo não era a exequibilidade da lei, pois ela já estava aprovada no Legislativo, e o momento não era o de reforma-la. Ainda afirmou que quando a lei foi votada todos sabiam que ela traria despesas, o que não seria nenhuma novidade a ponto de servir-se do argumento que ela desorganiza a produção. Afirma, assim, que a lei deveria ser cumprida e que o parecer de Rocha Vaz deliberadamente eliminava artigos da lei, o que era inconcebível. Outros conselheiros se manifestaram e por fim, o representante operário Carlos Gomes de 59

Ata da 89ª Sessão do Conselho Nacional do Trabalho, Junho de 1927.

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Almeida pede vista do processo, afirmando concordar em grande parte com o representante patronal, mas também concordava em alguma medida com Gustavo Francisco Leite. Foi dada vista do processo, o debate foi retomado em sessões posteriores, foi formada uma comissão nomeada diretamente pelo presidente Ataulpho Nápoles de Paiva composta pelos dois representantes patronais, pelo conselheiro Geraldo Rocha e pelo representante operário Carlos Gomes de Almeida, claramente excluindo-se Gustavo Francisco Leite. Evidentemente, o parecer da comissão foi o mesmo dado inicialmente por Rocha Vaz. Todo o processo de relato desta consulta mostra a força política do patronato frente a uma lei tão importante, e principalmente a força política de Rocha Vaz, a partir de seu empenho pessoal, alinhado ao outro representante Mario de Andrade Ramos. O assunto da lei de férias era manifestamente uma questão de interesse tanto do operariado quanto do patronato, mas foi conduzido pelo CNT quase exclusivamente pela ação dos representantes patronais, com exceção da tentativa infrutífera de Gustavo Francisco Leite. Essa ocasião específica ilustra, ainda, as reais possibilidades de alteração das legislações sociais no momento da confecção de sua regulamentação. Evidentemente, as resoluções do CNT estavam subordinadas ao Executivo, que as aprovava ou não, mas isso não colocava, em absoluto, o instituto numa posição negligenciável. As discussões sobre a regulamentação da lei de férias não foram só ilustrativas de como o patronato ocupava o Conselho, mas, por outro lado, também marcou a aproximação do operariado à instituição e imprimiu um novo ritmo de trabalho ao instituto, que duraria até ao menos até o final da década de 1920. Isso porque, ao CNT, finalmente foi imputada a responsabilidade de fiscalizar a aplicação de uma lei que dizia respeito a um grande e variado contingente de trabalhadores, ao contrário da lei Eloy Chaves, por vários anos restrita a uma única categoria de trabalhadores. Assim, todos os problemas relativos à aplicação do regulamento da lei de férias deveriam ser levados ao julgamento do instituto. O resultado dessa nova atribuição dada ao CNT teve desdobramentos imediatos no próprio número de atendimentos que chegavam a sua apreciação. Durante o ano de 1927, apesar da retomada das discussões sobre a regulamentação, chegaram ao instituto 96 recursos exclusivamente referentes à lei de férias, 42 referentes à lei Eloy Chaves e mais 50 comunicações e telegramas referentes às mais diversas consultas, inclusive sobre a regulamentação de lei aprovada em 1926, que estendia aos marítimos e portuários a própria lei Eloy Chaves. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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Se contado o número de recursos destinados ao CNT, além de consultas e telegramas requisitando seu juízo, o ano de 1927 recebeu quase o mesmo número de pedidos que a soma de todos os outros anos de seu funcionamento e esse fato pode ter respaldo em alguns fatores. O primeiro deles tratava de dúvidas sobre a aplicação da lei, que recaía sobre a quase absoluta maioria dos trabalhadores urbano-industriais, o que naturalmente aumentava o número de intervenções. O segundo fator advinha da própria insistência de diversos patrões em não aplicar a lei de férias, por recomendação de suas próprias organizações de classe,60 que esperavam que a lei fosse modificada ou ao menos protelada dentro do próprio Conselho. Por consequência, havia o aumento da própria iniciativa dos próprios trabalhadores em entrar com o recurso no CNT pleiteando o pagamento das férias as quais tinham direito de receber. O terceiro possível ponto viria do próprio arrefecimento da repressão política ao movimento operário – diminuição, mas não cessação – com o fim do estado de sítio e com o final do governo de Bernardes, o que possibilitou uma lenta e gradual reestruturação das associações de trabalhadores e, consequentemente, maior possibilidade de organização para recorrer ao CNT. Um quarto ponto, desdobramento do não cumprimento da lei pelo patronato, era resultado da própria falta de fiscalização da lei e de reclamações constantes em busca de maior vigilância sobre a aplicação dela. Essa falta impeliu um enorme número de operários a entrar com recursos no CNT. É o caso de diversas associações de trabalhadores que recorriam ao instituto pedindo, sistematicamente, o direito de fiscalizar a lei de férias por conta de sua clara não aplicação ou entrando com recursos denunciando a não aplicação da lei, que eram evasivamente respondidos ou negados pelo CNT.61 Foi o caso de uma série de associações de cidades como Jaú, Maceió, Campinas, Belo Horizonte, Santos, Rio de Janeiro, São Paulo e outras associações estaduais como do Ceará, Rio Grande Sul e Bahia. O alcance da lei de férias foi, indiscutivelmente, superior a qualquer outra atividade ou lei discutida no instituto até então, mas a área de atuação do CNT ainda seria expandida. Em 1928 a lei Eloy Chaves se estendeu aos marítimos e portuários, com mais um regulamento de redação de Libanio Rocha Vaz e aprovado unanimemente 60

GOMES, Angela Maria de Castro, Burguesia e Trabalho, op cit. Ver especialmente “A lei de férias e o código de menores”. 61 Exemplos destes fatos encontram-se claramente nas atas do Conselho Nacional do Trabalho da Sessão 86ª, do dia 22 de abril de 1927, da Sessão 91ª, de 30 de junho de 1927 e da 98ª Sessão, de 24 de agosto de 1927. Todos estes com sucessivos pedidos por melhor fiscalização da lei de férias, por diversas associações de trabalhadores. Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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pelos demais conselheiros, incrementando ainda mais a gama de atendimentos realizados no instituto, numa crescente constante. Ao menos até o ano de 1930, o ritmo de trabalhos, o caráter do CNT e sua orientação por atender apenas recursos referentes à leis que determinassem sua responsabilidade direta frente à aplicação delas, continuaram os mesmos. Os representantes patronais e operários, também permaneceram desde o primeiro dia de funcionamento do instituto, o que não se aplicava para os demais membros conselheiros. Cabe aqui acrescentar, ainda, uma breve consideração sobre a abrangência do CNT, não no que diz respeito às diversas classes, de operários e patrões, afetadas por suas deliberações, ou que podiam contar com o julgo do instituto, mas sobre sua abrangência nacional. O crescimento industrial do país de fato estava majoritariamente concentrado na região sudeste, da mesma forma que o instituto também tinha sua sede no Rio de Janeiro. Entretanto, isso não corrobora a imagem que possivelmente venha a se formar de que o CNT agia sobre tudo na região da capital da República e de São Paulo. De fato, este panorama já é negado pela simples atuação do instituto através da lei Eloy Chaves, que atendia às CAP de estradas de ferro de todo o país – Madeira Mamoré, Estrada de Ferro Goyaz, Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, Estrada de Ferro Paracatu, Estrada de Ferro Santa Catarina, Estrada de Ferro Vitória-Minas, Viação Férrea do Rio Grande do Sul (e várias outras). Da mesma forma, a diversidade de associações comerciais manifestando-se em relação à lei de férias tinha endereço nas mais diferentes localidades do país. O CNT era, sem dúvida, um órgão que gradativamente adquiria peso e relevância na vida política brasileira e expandia seu grau de abrangência também gradativamente, mediante a aprovação de leis sociais e trabalhistas que não diziam respeito unicamente ao seu entorno, mas projetava o instituto para além do Rio de Janeiro e de São Paulo, adquirindo um caráter cada vez mais nacional justamente na resposta de operários e patrões frente às leis trabalhistas e sociais que iam se consolidando no período. O CNT tornava-se Nacional quanto mais as leis aprovadas no abrangiam a totalidade dos trabalhadores urbanos do país.

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Política Externa: o CNT e a Organização Internacional do Trabalho

O CNT foi fundado como parte de um conjunto de medidas que deveriam ser adotados pelo Brasil, por conta da assinatura do Tratado de Versalhes. Ao menos, foi esse o tom do discurso preferido por Miguel Calmon du Pin na ocasião da fundação do Conselho, precisamente em sua primeira sessão, em agosto de 192362. Entretanto, a atuação do instituto frente às demandas internacionais, principalmente às que se relacionavam com as diversas atividades promovidas pela Organização Internacional do Trabalho não era exatamente de prioridade. Entre os anos de 1923 e 1924 não houve menção em ata sobre qualquer atividade ou trabalhos do CNT referentes às Conferências, Recomendações e Convenções da OIT, tão pouco a intenção do Conselho em organizar a participação do Brasil na sexta sessão da Conferência Internacional do Trabalho, realizada em junho de 1924. Foi apenas em 1925, com a vinda do próprio diretor da organização ao Brasil, Albert Thomas, que o instituto começou a esboçar algum esforço relativo a estes compromissos internacionais assumidos pelo país. Inicialmente, a própria expectativa da presença de Thomas em uma sessão do CNT começou a gerar algumas manifestações. Foi o caso da declaração feita pelo presidente do Conselho, Ataulpho Paiva, ao afirmar, em sessão de sete de junho de 1925, que o diretor da Organização ficaria surpreso em ver como o Brasil lidava com “as mais importantes questões de legislação proletária, em perfeito entendimento com as duas partes interessadas.”.63 Na ocasião da presença de Thomas, entretanto, é registrado em ata apenas que os trabalhos foram interrompidos para “uma demorada palestra” realizada com informação sobre as leis e os problemas sociais do Brasil64. As decorrências da visita de Thomas foram bastante restritas, como de fato não é difícil supor, mas movimentaram o instituto no ano seguinte. Em 1926, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio encaminhou ao CNT o pedido da OIT requisitando a presença completa da delegação brasileira, e os esforços por organizar as representações operárias e convocar as representações patronais, ambas tarefas incumbidas à Rocha Vaz, foram levadas a cabo e o Brasil comparece à 9ª Conferência Internacional do

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Poder Judiciário, Justiça do Trabalho, Do CNT ao TST, TST, 1975, p.11 Ata da 42ª Sessão do Conselho Nacional do Trabalho, dia 7 de junho de 1925. 64 Ata da 43ª Sessão do Conselho Nacional do Trabalho, dia 18 de julho de 1925. 63

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Trabalho. Entretanto, em 1927, após nova requisição da participação do Brasil à Conferência, consta em ata que se oficiou às organizações patronais e operárias para que mandassem nomes para compor as representações, mas não se obteve resposta e a participação do Brasil se deu apenas com presença de delegados governamentais. Nesta mesma sessão, Carlos Gomes de Almeida, representante operário, sugere que se divulguem amplamente os editais na próxima vez que o Brasil viesse a ser convidado, para que seja possibilitada a participação da representação operária. Ainda em 1927, o país também foi convidado a participar do Quinto Congresso da Confederação PanAmericana do Trabalho, do qual o CNT respondeu que não haveria tempo hábil para compor as delegações e noticiou que o país se ausentaria do Congresso. De maneira geral, a ação do CNT e a participação do Brasil em eventos promovidos pela OIT foram negligenciados pelo instituto exatamente sob o argumento de dificuldade de organizar as classes, o que raramente procedia. É o caso, por exemplo, do ocorrido em 1927, em que as organizações de classe foram noticiadas no dia 12 de maio, responderam ao instituto sete dias depois, no dia 19, mas foram informados que as delegações já tinham sido montadas por conta de sua demora em se manifestar. Com relação aos temas tratados nas diversas Conferências e à centralidade das deliberações da realizadas pela OIT, é importante ressaltar a inexistência em ata de qualquer menção sobre as atividades da Organização entre os anos de 1923 e 1925, a não ser pela presença de Albert Thomas no Brasil. Nos anos de 1926 e 1927 se discutiu a participação do instituto nos eventos internacionais, mas é o ano de 1930 que apontou, levemente, o que significava arcar com essa tarefa para o CNT. Em sessão de 15 de maio de 1930, com o conselheiro Mario de Andrade Ramos, também representante patronal, de partida para a Conferência Internacional do Trabalho a se realizar tradicionalmente em Genebra, uma longa explanação é feita pelo presidente Ataulpho Paiva sobre a situação da participação do Brasil. Paiva afirmava como a participação do país era sempre vista com ressalvas pelos demais participantes das Conferências, por aqui não existir sindicatos e organizações de classe como nos moldes europeus - consequência não declarada da instabilidade e repressão sofridas pelo movimento operário no país. Porém, Ataulpho Paiva enaltece os esforços do CNT em sempre tentar organizar as representações de classe e afirmava o quanto era dispendioso manter suas relações com a OIT, justamente por essa dificuldade de organizar as classes operárias para comporem as delegações, apesar da publicação de editais requerendo Copyright Gabriela de Oliveira Nery Costa © 2012

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representantes. Por fim, pediu que o representante Mario Ramos informasse à Conferência Internacional do Trabalho que o Legislativo, naquele momento, estudava a aprovação das recomendações da OIT estabelecidas em reuniões passadas. Apesar do discurso contemporizador de Ataulpho Paiva, de maneira geral, o que a diplomacia brasileira esperava da participação das delegações nacionais nas Conferências do Trabalho era, justamente, demonstrar a não necessidade da aplicação de suas recomendações no país, sob o repetido argumento de que as relações entre Capital e Trabalho, no Brasil, eram tão incipientes que não demandavam intervencionismos estatais para mediá-los, como nos casos europeus. Desta forma, a participação, ou a deliberada ausência da representação operária, era um fato que tentava ser contornado por argumentos como o de Paiva, mas a análise das atas do CNT mostrava o claro descaso do instituto com qualquer atividade referente à OIT. Mesmo com os relatórios das reuniões publicados na Revista do Conselho Nacional do Trabalho, as deliberações e recomendações jamais eram levadas ao Conselho para debate e estudo. De fato, a única vez que se fez menção efetiva sobre as deliberações das Conferências Internacionais do Trabalho foi justamente em 1930 na afirmação de Ataulpho Paiva, em que o Legislativo estaria estudando suas possibilidades de aplicação, sem passar pelo Conselho. De uma década de deliberações. Assim, parece pouco provável que a participação do Brasil buscasse, ali, qualquer resolução para a questão social, menos provável ainda seria através do CNT nos encontros realizados pela OIT.

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