O CÓDIGO DO PROCESSO CRIMINAL E A REFORMA DE 1841: DOIS MODELOS DE ORGANIZAÇÃO DO ESTADO (E SUAS INSTÂNCIAS DE NEGOCIAÇÃO). IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito. São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009

June 2, 2017 | Autor: Monica Dantas | Categoria: Legal History, Brazilian History, Brazilian Politics
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Monica Duarte Dantas, “O código do processo criminal e a reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado (e suas instâncias de negociação)”. Conferência apresentada junto ao IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009 (versão para discussão).

O CÓDIGO DO PROCESSO CRIMINAL E A REFORMA DE 1841: DOIS MODELOS DE ORGANIZAÇÃO DO ESTADO (E SUAS INSTÂNCIAS DE NEGOCIAÇÃO)

Monica Duarte Dantas

Em 1842 parte das elites das províncias de São Paulo e Minas Gerais se insurgiram contra as reformas conservadoras. Feijó, um dos líderes da revolta, colocava, em manifesto, que o movimento tinha por programa o combate às medidas conservadoras: a Interpretação do Ato Adicional, a reforma do Código de Processo Criminal e o retorno do Conselho de Estado. Caso não fossem atendidos estavam dispostos a separar-se do Império. Porém, considerando a cronologia da revolta – que explodiu em maio, em São Paulo, e junho em Minas Gerais – há que se perguntar o quanto da revolta dos liberais não se devia – além, é claro, da dissolução da câmara em maio de 1842 - à lei da reforma do Código, promulgada em 3 de dezembro de 1841? Até pouco tempo atrás, era consenso considerar que a Interpretação de 1840 teria destruído o edifício liberal da regência, posição compartilhada, por exemplo, por Ilmar Mattos e José Murilo de Carvalho. Já Miriam Dolhnikoff, em seu livro O Pacto Imperial, demonstra como, na verdade, a essência da reforma constitucional de 1834 manteve-se inalterada por todo o Império. Ou seja, a divisão de competências entre o centro e as províncias, possível a partir da transformação dos Conselhos Gerais de Província em Assembléias Legislativas Provinciais, continuou a existir mesmo depois de 1840, quando a “Interpretação” foi aprovada por uma câmara ligada ao Regresso. Nesse sentido, a autora demonstra que seja em 1832 – quando as matérias a serem reformadas foram discutidas no Legislativo Imperial -, seja em 1840, não havia uma discordância fundamental quanto à ampliação que se pretendia, e se fez, na representação (criando-se uma representação provincial). Disso Dolhnikoff não subentende a inexistência de discordâncias, tanto num momento quanto no outro, mas demonstra que havia sim pontos de consenso. A competência provincial para legislar, tributar, dispor de uma força policial e controlar empregos provinciais e municipais sem

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Monica Duarte Dantas, “O código do processo criminal e a reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado (e suas instâncias de negociação)”. Conferência apresentada junto ao IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009 (versão para discussão).

intervenção do governo central não foi alterada pela Interpretação (com exceção daqueles ligados ao judiciário). Em 1840, não eram apenas os políticos ligados ao regresso que viam a necessidade de rever a reforma constitucional de 1834. Certos artigos do Ato Adicional haviam, de fato, dificultado a governabilidade do país. Já em 1835, Antonio Paulino Limpo de Abreu, Ministro da Justiça e interinamente do Império, em nome do regente Feijó, assinava um decreto que dava instruções aos Presidentes das Províncias para a boa execução das leis de 14 de junho de 1831 e de 12 de agosto de 1834 “que reformou alguns Artigos da Constituição do Império”. Reconhecia o Ministro que, apesar do Ato Adicional ter dado às Assembléias Províncias a faculdade de criar, alterar e suprimir empregos provinciais e municipais era necessário observar o quão nocivo seria “à regular administração da justiça, e mesmo ao direito das partes, que elas alterem por qualquer maneira as atribuições que competem às autoridades judiciárias, pelo transtorno e confusão que semelhante medida imprimiria no sistema judiciário”. 1 Quanto a este ponto, segundo Dolhnikoff, futuros “conservadores” e “liberais” estavam de acordo acerca da necessidade de se rever o Ato Adicional de maneira a esclarecer o que seriam empregos provinciais e municipais2. A partir da leitura do “Parecer da Comissão das Assembléias Provinciais da Câmara de Deputados de 10 de julho de 1837” sobre a necessidade de se interpretar o Ato Adicional, assinado então por Paulino Soares de Souza, Miguel Calmon du Pin e Almeida e Honório Hermeto Carneiro Leão, fica evidente que, em essência, a “Interpretação” não alterou a proposta de 1837, a não ser talvez ao ter adicionado um último artigo que, normalmente, tendeu a passar despercebido.

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“Decreto de 9 de Dezembro de 1835. Dá instruções aos Presidentes das Províncias para a boa execução da Lei de 14 de Junho de 1831, que marca as atribuições dos mesmos Presidentes, e de 12 de agosto de 1834, que reformou alguns artigos da Constituição” Collecção das Leis do Império do Brazil de 1835, parte segunda, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1864. 2 Cujo entendimento, estabelecido em 1840, foi que empregos criados por lei geral só poderiam ser alterados também por lei geral. “Lei de 12 de maio de 1840. Interpreta alguns artigos da reforma constitucional”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1840, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1863.

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Art. 8. As Leis Provinciais, que forem opostas à interpretação dada nos artigos precedentes, não se entendem revogadas pela promulgação desta Lei, sem que expressamente o sejam por atos do Poder Legislativo Geral.3

Mesmo em relação à Lei de 3 de dezembro de 1841, há que se considerar a existência, já em 1833, de um certo consenso quanto à necessidade de reformulação da legislação penal e processual penal. Em 3 de outubro daquele ano, foi nomeada uma comissão para a revisão da legislação, especialmente os “defeitos e lacunas dos Códigos do Processo e Criminal”.4 Compunham essa comissão, entre outros, Eusébio de Queiroz e Paulino José Soares de Sousa. Se, então, desde a Regência, percebia-se a necessidade de interpretar o Ato Adicional e também de reformar o Código do Processo Criminal, o que teria levado à eclosão da revolta Liberal em 1842? Para tentar responder essa questão é necessário voltar às leis de 1832 e 1841, bem como a outras leis e decretos aprovados a partir da Independência do Brasil. O “Código do Processo Criminal de primeira instância”, de 1832, mantinha a divisão das províncias do Império em distritos de paz, termos e comarcas. Em cada distrito de paz determinava-se que haveria um juiz de paz, um escrivão e quantos inspetores de quarteirão e oficiais de justiça fossem necessários. Os Juízes de Paz seriam eleitos na forma da legislação em vigor, com quatro nomes na lista 5, sendo o

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Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, 5ª ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, p. 530-34. 4 Compunham tal comissão o Conselheiro da Fazenda aposentado Baltazar da Silva Lisboa; os desembargadores Antonio Rodrigues de Carvalho, José Antonio da Silva Maia, José Correa Pacheco, José Cesário de Miranda Ribeiro; os Juízes de Direito Lourenço José Ribeiro, Paulino José Soares de Souza, Euzébio de Queirós Coutinho Mattoso Câmara; e os Advogados Joaquim Gaspar de Almeida e Saturnino de Souza e Oliveira. Decreto de 3 de outubro de 1833. “Decreto de 3 de outubro de 1833. Nomêa uma comissão para a revisão da legislação”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1833, parte segunda, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1873. 5 Conforme a lei de 15 de outubro de 1827, os Juízes de Paz eram eletivos “pelo mesmo tempo e maneira por que se elegem os Vereadores das Câmaras”, podendo ser eleitos todos aqueles que preenchessem os requisitos determinados pela Constituição para que fossem eleitores. A partir de promulgado o Código de 1832, a cédula para eleição de Juiz de Paz deveria então conter quatro nomes. “Lei de 15 de outubro de 1827. Crêa em cada uma das freguezias e capellas curadas um Juiz de Paz e supplente”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1827, parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878, p.67-70; “Lei de 29 de novembro de 1832. Promulga o Código do Processo Criminal de primeira instância com disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil”, Collecção das Leis do Império do Brasil de 1835, parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1864, p. 186 a 242 (doravante citado como “Código do Processo Criminal”).

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mais votado o Juiz de Paz, e os restantes seus suplentes (que assumiriam por ordem de número de votos recebidos). Cada termo, por sua vez, teria um Conselho de Jurados, um Juiz Municipal, um Promotor Público, um escrivão das execuções e quantos oficiais de justiça fossem considerados necessários. Para a nomeação dos Juízes Municipais as câmaras deveriam, de três em três anos, fazer uma lista de três candidatos, “tirados dentre os seus habitantes formados em Direito, ou Advogados hábeis, ou outras quaisquer pessoas bem conceituadas, e instruídas”. Essas listas, no caso das províncias em que não estivesse a Corte, deveriam ser remetidas “aos Presidentes em Conselho (...) para ser nomeado dentre os três candidatos um, que deve ser o Juiz Municipal do Termo”. Cabia aos Juízes Municipais nomear os escrivães que deveriam servir nos respectivos termos6. Poderiam ser Promotores todos aqueles aptos a serem jurados, sendo nomeados pelos “Presidentes nas Províncias, por tempo de três anos, sobre proposta tríplice das Câmaras Municipais”; na falta ou impedimento do Promotor, cabia ao Juiz Municipal nomear um interino. Deveriam compor os Conselhos de Jurados todos os que tivessem as qualidades para serem eleitores; a composição da lista dos cidadãos aptos era de competência, em cada distrito, de uma Junta composta por um Juiz de Paz, o pároco e o Presidente da Câmara; sendo que qualquer decisão, acerca da inclusão ou exclusão de nomes nas respectivas listas, seria resolvida por uma Junta formada pelos Juízes de Paz dos distritos que neles houvesse. Nas comarcas, por fim, haveria no mínimo um Juiz de Direito e, a depender da concentração populacional, até três, sendo um deles o Chefe de Polícia. Ao Imperador cabia nomear os Juízes de Direito dentre os bacharéis existentes no país. Ficavam extintos, doravante, as ouvidorias de comarcas, os juízes de fora, os juízes ordinários, e a jurisdição criminal de qualquer outra autoridade. Os Juízes de Paz, além das funções determinadas pela lei de 1827 7, tornavam-se responsáveis também: por “formar a culpa aos delinqüentes”; obrigar a assinatura de

6 Os escrivães que serviam perante os juízes locais e ouvidores das comarcas continuariam a servir perante os Juízes de Direito e Municipais, tanto no crime, quanto no cível, enquanto bem desempenhassem suas funções. “Código do Processo Criminal”. 7 Segundo o artigo 5º da lei de 1827, cabia ao Juiz de Paz: §1º, conciliar as partes, por meios pacíficos; §2º, “julgar pequenas demandas, cujo valor não exceda 16$000, ouvindo as partes, e à vista das provas

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termo de bem viver e de segurança; conceder fiança na forma da lei, aos declarados culpados no Juízo de Paz; bem como julgar as contravenções às Posturas das Câmaras Municipais e os crimes a que não fossem impostas penas maiores que multa até cem mil réis, prisão, degredo ou desterro por até seis meses. Formada a culpa pelo Juiz de Paz, deveria ele então remeter o processo ao Juiz de Direito que, por sua vez, oficiaria o Presidente da Câmara Municipal do termo para que ele, juntamente com os outros vereadores, sorteassem 60 nomes dentre aqueles existentes na lista de Jurados. Vinte e três nomes dos 60 sorteados comporiam então o 1º Conselho de Jurados, ou “Jury de accusação”. A este Júri competia decidir se havia ou não matéria para acusação; sendo afirmativa a resposta, formar-se-ia a pronúncia. Uma vez pronunciado o réu, o acusador (a parte no caso de queixa ou o promotor em sendo denúncia) deveria oferecer o seu libelo acusatório, mandando o Juiz de Direito notificar o acusado para comparecer perante o 2º Conselho de Jurados, ou “Jury de sentença”. A esse segundo Conselho, que deveria ser de 12 jurados, caberia decidir. O Juiz de Direito, por sua vez, deveria apenas, se o réu fosse considerado culpado, aplicar as penas previstas na lei. Em suma, no processo ordinário, do corpo de delito, passando pela instrução do processo, pela decisão de pronúncia e daí até a declaração da sentença, tudo era essencialmente resolvido pelo magistrado eleito e pelos “Juízes do Facto”, como desde

apresentadas por elas; reduzindo-se tudo a termo na forma do parágrafo antecedente”; §3º, fazer separar os ajuntamentos, em que há manifesto perigo de desordem (...); e, em caso de motim, deprecar a força armada para rebatê-lo (...)”; §4º, por em custódia o bêbado; §5º, evitar as rixas, procurando conciliar as partes; §6º, fazer destruir os quilombos; §7º, fazer auto de corpo de delito nos casos e modos marcados pela lei; §8º, sendo indiciado o delinqüente, fazê-lo conduzir à sua presença,interrogar as testemunhas, e provado por evidência, fazer prendê-lo na conformidade da lei, remetendo ao Juiz Criminal respectivo; §9º, ter uma relação dos criminosos; §10, fazer observar as posturas policiais da Câmara; §11, informar ao Juiz de Órfãos a existência de menores e outros de sua responsabilidade; §12, vigiar sobre a conservação das matas e florestas públicas; §13, participar ao Presidente de Província todas as descobertas que se fizerem no seu distrito, de quaisquer produções úteis ao reino; §14, procurar a composição de todas as contendas que se suscitarem entre vizinhos; §15, dividir o distrito em quarteirões, com não mais de 25 fogos, e nomear para cada um oficial. Três anos depois, conforme decreto de 28 de junho de 1830, atribuía-se aos Juízes de Paz também a presidência das Assembléias Paroquiais (revogando-se as instruções de 26 de março de 1824 e o decreto de 29 de julho de 1828). “Lei de 15 de outubro de 1827. Crêa em cada uma das freguezias e capellas curadas um Juiz de Paz e supplente”, op. cit; “Decreto de 28 de junho de 1830. Designa a autoridade que há de presidir as Assembleas Parochiaes e os Collegios Elitoraes”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1830, parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1876.

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Monica Duarte Dantas, “O código do processo criminal e a reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado (e suas instâncias de negociação)”. Conferência apresentada junto ao IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009 (versão para discussão). 1822 já eram chamados os jurados no Brasil8. Tratava-se então de uma justiça cidadã, em que brasileiros eram julgados por seus pares, cabendo em essência à magistratura togada apenas a aplicação da pena ou a decisão em nível recursal (fosse por meio de apelação para a Relação, ou recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça). Os pares, contudo, não se faziam representar apenas no juizado de paz e nos Conselhos de Jurados. Promotores e Juízes Municipais também não precisavam ser bacharéis, sendo ainda indicados por lista tríplice da câmara. Além disso, quanto aos Juízes Municipais, vale ressaltar que deveriam substituir os Juízes de Direito, o que não era incomum.9 Porém, antes de passar à discussão das mudanças operadas pela lei de 3 de dezembro, vale destacar, contudo, uma especificidade da forma de nomeação dos Juízes Municipais. Como colocado, a lista tríplice com os nomes selecionados pelos vereadores deveria ser enviada, para escolha final, ao “Presidente em Conselho”. Em 1823, conforme lei de 20 de outubro, dava-se nova forma aos “governos Provinciais, creando para cada uma dellas um Presidente em Conselho”. De acordo com o artigo 10, cada Conselho seria composto por seis membros, eleitos pela mesma forma que se elegiam os deputados à Assembléia Geral Constituinte (sendo o mais votado o Vice-Presidente). A lei determinava que o presidente deveria despachar “por si só” e decidir “todos os negócios, em que, seguindo este Regimento, senão exigir especificamente a cooperação do Conselho”. Contudo, nas “matérias da competência necessária do Conselho, terá ele voto deliberativo, e o Presidente de qualidade. Nas 8 “Decreto de 18 de junho de 1822. Crêa Juízes do Facto para julgamento dos crimes de abusos de liberdade de imprensa”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1822, parte II, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1887, p. 23-24. 9 A indicação do Juiz Municipal era tão mais importante quanto se atenta para o fato de que a lei de 1832 também dispôs sobre a Justiça Civil, e não apenas criminal. Em seu Título único, “Disposição Provisória acerca da Administração da Justiça Civil”, constava que os “Juízes Municipais ficam autorizados para prepararem, e processarem todos os feitos, até a sentença final exclusive, e para execução da sentença”. Além disso, haveria também tantos Juízes de órfãos quantos fossem os Municipais, e nomeados pela mesma maneira (ou seja, por lista tríplice feita pelas câmaras e enviada aos Presidentes em Conselho). Nas grandes povoações, em que a Administração do Cível pudesse ocupar mais de um magistrado, haveria um Juiz do Cível “a quem fica competindo toda a jurisdição civil com exclusão dos Juízes Municipais, cuja jurisdição nessa parte fica cessando. A designação destes Juízes será feita do mesmo modo, que a divisão em Comarcas”. A divisão das comarcas e termos, de acordo com o art. 3º do Código do Processo, era de atribuição do Governo, na província onde estivesse a Corte, e nas outras províncias do Presidente em Conselho. Em suma, questões fundiárias, por exemplo, seriam de competência, no caso da maioria dos municípios do país, a um magistrado eleito localmente (mesmo que em lista tríplice), da mesma maneira que questões de sucessão.

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convocações, porém, em que não seja necessária a sua cooperação, terão os Conselheiros convocados tão somente o voto consultivo.” O Artigo 24 da referida lei determinava que eram matérias a serem tratadas “pelo Presidente em Conselho”, a proposição do estabelecimento de câmaras (“onde as deve haver”), a suspensão dos Magistrados em conformidade com o artigo 34 10, a suspensão dos Comandantes Militares, entre outras. Segundo o artigo 26 da mesma lei, não estando o Conselho reunido, o Presidente poderia prover como considerasse justo em relação a todas as matérias compreendidas no artigo 24, à exceção dos parágrafos 13 e 14, submetendo depois o que fizesse à deliberação do Conselho (o qual deveria imediatamente convocar). Os parágrafos 13 e 14 diziam respeito justamente à suspensão de magistrados e à suspensão do Comandante Militar. A diferença entre as matérias de deliberação do Conselho e aquelas exclusivas do Presidente ficava evidente inclusive na fórmula das resoluções. Se o Conselho deliberasse, a resolução teria a fórmula “O Conselho resolveu...”; se o presidente decidisse por si só, conforme estabelecido no artigo 26, a fórmula seria então o “Presidente temporariamente ordena...”; nas outras matérias em que era livre ao Presidente consultar ou não o Conselho, as resoluções tomadas por ele seriam publicadas pela seguinte fórmula o “Presidente ouvindo o Conselho resolveu...”, ou o “Presidente ordena...”.11 Em 1831, a lei de 14 de junho, “Sobre a forma de eleição da Regência Permanente e suas atribuições”, permite entender melhor alguns artigos da Constituição e da lei de 1823. “Art. 17. A atribuição de suspender magistrados será exercida pela Regência cumulativamente com os Presidentes das respectivas Províncias, em Conselho,

10 “Art. 34. Pode porém o Presidente em Conselho, e de acordo com o Chanceler, onde houver Relação, suspender o Magistrado depois de ouvido, isto tão somente no caso em que, se continuar a servir o Magistrado, se possam seguir motins, e revoltas na Província, e se não possa esperar resolução do Imperador. Feita a suspensão, dará imediatamente parte pela Secretaria da Justiça, e remeterá os autos comprobatórios da urgência e necessidade da suspensão ao Tribunal competente, para proceder-se como for de direito”. “Lei de 20 de outubro de 1823. Dá nova forma aos Governos das Províncias, creando para cada uma dellas um Presidente e Conselho”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1823, parte I, Rio de Janeiro, s/d, p. 10-15. 11 Idem.

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ouvindo o Magistrado, e precedendo informação na forma do art. 154 da Constituição. Art. 18. A atribuição de nomear Bispos, Magistrados, Comandantes da Força de Terra e Mar, Presidentes das Províncias, Embaixadores e mais Agentes Diplomáticos e Comerciais, e membros da Administração da Fazenda Nacional na Corte, e nas Províncias os membros das Juntas de Fazenda, ou as autoridades que por Lei as houverem de substituírem será exercida pela Regência. A atribuição porém de prover os mais empregos civis, ou eclesiásticos (exceto os acima especificados, e aqueles cujo provimento definitivo competir por Lei a outra autoridade), será exercido na Corte pela Regência, e nas Províncias pelos Presidentes em Conselho, procedendo as propostas, exames, e concursos determinados por Lei.”12 Ao regente cabia nomear Magistrados, tal como o cabia ao Imperador (chefe do Poder Executivo, que o exercia pelos seus Ministros de Estado), de acordo com o artigo 102 da Constituição. Contudo, aos Presidentes em Conselho cabia suspendê-los bem como prover todos os mais empregos civis (excetuando-se aqueles arrolados). Parece legítimo concluir então que, de acordo com o Código do Processo Criminal de 1832, magistrados, tal como previsto em 1824 e 1831, eram tão somente os Juízes de Direito. Contudo, de acordo com o decreto de 13 de Dezembro de 1832, que dava “Instruções para a execução do Código do Processo Criminal”, a situação parecia distinta: “Art. 9º. (...) as Câmaras Municipais remeterão ao Governo na Corte, e aos Presidentes em Conselho nas Províncias, as propostas para Juízes Municipais, para Juízes de órfãos, e para Promotores Públicos.” “Art. 12. Recebidas as propostas, estando elas nos devidos termos, o Governo na Corte e Província do Rio de Janeiro, e os Presidentes em Conselho nas outras Províncias, nomearão, dentre os cidadãos propostas para cada um dos cargos, os que hão de servir de Juízes Municipais, Juízes de Órfãos, e Promotores (...)” “Art. 30. Os Presidentes em Conselho são autorizados a designarem dentre os Magistrados, que estiverem servindo nas suas respectivas Províncias, os Juízes de Direito para cada uma das comarcas, e os Juízes especiais do Cível, havendo na Província alguma povoação nas circunstâncias declaradas no art. 13 do título único da Disposição Provisória acerca da Administração da Justiça Civil.” “Art. 33. Se na província não houver tantos Magistrados, quantos bastem para Juízes de direito de todas as comarcas, que forem criadas, nem por isso se deixará de por em execução o Código em todas as comarcas; devendo em tal caso os Juízes Municipais das comarcas, para as quais os Presidentes não designarem Juízes de direito por falta de Magistrados na Província, exercer 12 “Lei de 14 de junho de 1831. Sobre a forma da eleição da Regência permanente e suas atribuições”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1831. Primeira parte, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1875, p. 19-24.

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como substitutos dos ditos Juízes, todas as suas funções nos respectivos termos.”13 Ou seja, não só os Presidentes em Conselho escolhiam, a partir de lista tríplice, os Juízes Municipais, de Órfãos e Promotores, como também escolhiam, dentre os Magistrados existentes, aqueles que serviriam como Juízes de Direito e Juízes do Cível (resolvendo, portanto, onde ficariam lotados). E isso se houvesse número suficiente de bacharéis, e com os requisitos necessários14, caso contrário a justiça estaria nas mãos de homens sem formação específica e selecionados primeiramente pelos vereadores e, em segundo lugar, pelos conselheiros (escolhidos pelo conjunto dos eleitores da província). Tais atribuições, do Presidente em Conselho, permaneceram inalteradas até 3 de outubro de 1834, quando a lei de no. 40 deu novo regimento para os Presidentes de província e extinguiu o Conselho da Presidência criado em 1823. Doravante: “Art. 12. Fica extincto o Conselho da Presidência, e as attribuições, que competião aos Presidentes em Conselho, serão por elle somente exercidas. Art13. Fica revogada a Lei de 20 de outubro de 1823, e as mais que estiveem em opposição à presente.”15 13 “Decreto de 13 de dezembro de 1832. Dá instruções para a execução do Código do Processo Criminal”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1832, parte II, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1874, p. 195-203 (grifos nossos). 14 O decreto de 13 de dezembro de 1832 estabelecia, em seu artigo 10, que os indicados pelas câmaras para os postos de Juiz Municipal, Juiz de Órfãos e Promotores Públicos deveriam ter os “requisitos declarados nos arts. 33 e 36 do Código” e que “além dos nomes se fará menção nesta proposta da profissão de cada um dos propostos, declarando-se suas luzes, serviços, intelligencia, e quaesquer outras qualidades, que os tornem aptos para occupar os cargos respectivos para que são propostos”. Segundo o artigo 33 do Código do Processo Criminal (da “Seção II. Dos Juízes Municipaes”), poderiam ser indicados pelas câmaras candidatos “tirados d’entre os seus habitantes formados em Direito, ou Advogados hábeis, ou outras quaesquer pessoas bem conceituadas, e instruídas; e nas faltas repentinas a Camara nomeará um, que sirva interinamente”; já o artigo 36, sobre os Promotores, dizia tão somente que poderiam ocupar tal cargo aqueles “que podem ser jurados; entre eles serão preferidos os que forem instruídos nas Leis”. “Decreto de 13 de dezembro de 1832. Dá instruções para a execução do Código do Processo Criminal”, op. cit; “Código do Processo Criminal”, op. cit. 15 Tal lei foi aprovada dois meses depois do Ato Adicional; o que significa que durante quase seis anos os Conselhos da Presidência conviveram com os Conselhos Geraes de Província regulamentados. Em 1824, a Constituição Política do Império do Brazil, no capítulo V (do título 4º, “Do Poder Legislativo”), determinava a criação dos “Conselhos Geraes de Província” a serem estabelecidos em todas as províncias onde não estivesse colocada a capital do Império. Os Conselhos deveriam contar com 21 membros nas províncias mais populosas e 13 nas outras, eleitos na mesma ocasião e pela mesma maneira que os representantes da Nação. Aos Conselhos cabia propor, discutir e deliberar sobre os negócios das respectivas províncias, sendo que suas resoluções seriam tomadas de acordo com a pluralidade absoluta de votos dos membros presentes. A carta previa que o “método de perseguirem os Conselhos Gerais de Província em seus trabalhos, e sua polícia interna e externa tudo se regulará por um Regimento, que lhes será dado pela Assembléia Geral”. Os Conselhos, contudo, só viriam a ser estabelecidos quatro anos

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Se de fato, as províncias deixavam de eleger os membros dos Conselhos da Presidência, desde agosto do mesmo ano elas haviam passado a contar com Assembléias Provinciais que tinham a faculdade de criar, alterar e suprimir empregos provinciais e municipais. Mas isso só até 1840. A lei de 3 de dezembro de 1841, “Reformando o Código do Processo Penal” – aprovada, portanto, pouco depois de interpretado o direito das assembléias de legislar sobre empregos provinciais e municipais -, alterou substantivamente não só as competências da cada autoridade policial e judiciária (criando inclusive novas funções e cargos), como modificou sua forma de escolha ou indicação.16 Primeiramente, no “Capítulo I – Da Polícia”, estabelecia-se que em cada Província haveria um Chefe de Polícia, com os Delegados e Subdelegados necessários. Os Chefes de Polícia seriam escolhidos pelo Imperador e pelos Presidentes de Província dentre os desembargadores e Juízes de Direito; os delegados dentre os bacharéis e cidadãos; tanto delegados quanto subdelegados seriam, a partir de “propostas”, nomeados pelo Imperador e Presidentes de Província. Aos Chefes de Polícia e seus delegados passavam a competir, dentre outras atribuições (como conceder mandados de busca), “as atribuições conferidas aos Juízes de Paz pelo Artigo 12, §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 7º do Código do Processo Criminal”17.

depois, com a aprovação da lei de 27 de agosto de 1828 que dava “Regimento para os Conselhos Gerais de Província”. Os Conselhos Gerais de Província continuaram então a funcionar, conforme o regimento de 1828, até a aprovação do Ato Adicional em 12 de agosto de 1834, que transformou os Conselhos Gerais de Província em Assembléias Provinciais. “Lei n. 10 – de 3 de outubro de 1834. Dá Regimento aos Presidentes de Provincia, e extingue o Conselho da Presidencia”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1834. Parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1866; “Constituição Política do Império do Brazil”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1824, parte 1ª. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1886, p. 7-36; “Lei de 27 de agosto de 1828. Dá regimento para os Conselhos Geraes de Província”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1828, parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878, p. 10-23. 16 “Lei no. 261 – de 3 de dezembro de 1841. Reformando o Código do Processo Criminal”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1841. Tomo IV. Parte I, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1842, p. 101-122 (doravante “Lei no. 261 – de 3 dezembro de 1841”). 17 "§1º. Tomar conhecimento das pessoas, que de novo vierem habitar no seu distrito, sendo desconhecidas ou suspeitas; e conceder passaporte as pessoas que lhe o requererem.§ 2º. Obrigar a assinar termo de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados por habito, prostitutas, que perturbam o sossego publico, aos turbulentos, que por palavras, ou ações ofendem os bons costumes, a tranqüilidade publica, e a paz das famílias.§3º. Obrigar a assinar termo de segurança aos legalmente suspeitos da pretensão de cometer algum crime, podendo cominar neste caso, assim como aos compreendidos no parágrafo antecedente, multa até trinta mil réis, prisão até trinta dias, e três meses de Casa de Correção, ou Oficinas públicas.§4º. Proceder a Auto de Corpo de Delito, e formar a culpa aos delinqüentes.§5º. Prender os

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Monica Duarte Dantas, “O código do processo criminal e a reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado (e suas instâncias de negociação)”. Conferência apresentada junto ao IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009 (versão para discussão). Além disso, a reforma estabelecia que as “atribuições criminais e policiais que atualmente pertencem aos Juízes de Paz, e que por esta Lei não forem especialmente devolvidas às Autoridades, que cria, ficam pertencendo aos Delegados e Subdelegados”. Ficavam também abolidas as Juntas de Paz. 18 Os Juízes Municipais, doravante nomeados pelo Imperador dentre os Bacharéis formados em Direito para servir por quatro anos, passavam a responder também pelas atribuições criminais e policiais que competiam aos Juízes de Paz; pelo julgamento do contrabando (exceto o apreendido em flagrante ou o de africanos); pela sustentação ou revogação ex-ofício das pronúncias feitas pelos delegados e subdelegados; e, tal como dantes, pela substituição dos Juízes de Direito em seus impedimentos. Aos Subdelegados, Delegados, Juízes Municipais e Chefes de Polícia cabia, portanto, a formação de culpa. Quando a pronúncia ou não pronúncia do réu fosse feita pelo Delegado ou Subdelegado, o processo deveria ser remetido ao Juiz Municipal para sustentá-la ou revogá-la, podendo proceder às diligências que considerasse necessárias para retificação das queixas ou denúncias e para esclarecimento do fato.19 Os Juízes de Direito continuavam de escolha do Imperador, “na forma do Artigo 44 do Código do Processo”. A reforma, contudo, estabelecia que depois de decorridos “quatro anos da execução dessa Lei, só poderão ser nomeados Juízes de Direito aqueles bacharéis formados que tiverem servido com distinção os cargos de Juízes Municipais, e de órfãos, e Promotores Públicos, ao menos por um quatriênio”. Além das atribuições prescritas no Código de 1832, também lhes competia: “Proceder, ou mandar proceder ex-ofício, quando lhe for presente por qualquer maneira algum processo crime, em que tenha lugar a acusação por parte da Justiça, a todas as diligências necessárias, ou para sanar qualquer nulidade, ou

culpados ou o sejam no seu ou em qualquer outro Juízo. §7º. Julgar: 1º, as contravenções às Posturas das Câmaras Municipais; 2º, os crimes, a que não seja imposta pena maior que a multa até cem mil réis, prisão, degredo ou desterro até seis meses, com multa correspondente à metade deste tempo, ou sem ela, e três meses de Casa de Correção ou Oficinas publicas onde as houver”. “Código do Processo Criminal”, op. cit. 18 Artigo 95, “Lei no. 261 – de 3 dezembro de 1841”, op. cit. 19 As sentenças de pronúncia proferidas ou confirmadas pelos Juízes Municipais deveriam ser então remetidas ao Juiz de Direito, na conformidade do Código do Processo Criminal de 1832, para que se procedesse ao julgamento, idem.

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para mais amplo conhecimento da verdade, e circunstâncias, que possam influir no julgamento.” 20 Quanto aos Promotores – pelo menos um por comarca -, eles passariam a ser nomeados e demitidos pelo Imperador ou pelos Presidentes de Província, preferindo-se sempre os bacharéis formados, sendo que na sua falta ou impedimento seriam nomeados interinamente pelos Juízes de Direito. Mudança substantiva ocorria também com a instituição do Júri. Primeiramente alteravam-se as exigências para a qualificação dos jurados; além daquelas prescritas no Código de 1832, tornava-se necessário também saber ler e escrever e possuir renda superior à exigida para os eleitores de acordo com a Constituição. Além disso, não mais cabia a uma autoridade eleita localmente organizar a lista de jurados, doravante essa atribuição seria dos delegados de polícia. Feitas as listas, os delegados deveriam enviá-las ao Juiz de Direito que juntamente com o Promotor e o Presidente da Câmara Municipal formariam a junta de revisão (ou seja, uma junta formada por duas figuras indicadas pelo centro e apenas uma de eleição local). Por fim, no que tange aos jurados, ficava abolido o “Jury de Acusação (ou Primeiro Conselho), restando somente o “Jury de Sentença”. No que tange ao julgamento das causas e dos recursos, adicionava-se mais uma poder ao Juiz de Direito, cabia a ele apelar ex-oficio, para a Relação, da decisão do Júri quando considerasse que era contrária ao “ponto principal da causa, contrária à evidência resultante dos debates; depoimentos, e provas perante ele apresentados”.21 No ano seguinte, pouco tempo depois de aprovada a reforma, o Ministro da Justiça, Paulino Soares de Sousa, passava três regulamentos.22 Em 31 de janeiro 20 Artigo 25, § 3, idem. 21 As mudanças não se atinham, porém, apenas às questões criminais, também alteravam-se alguns dos artigos da “Disposição provisória acerca da Administração da Justiça Civil” do Código de 1832. Doravante a administração da Justiça Civil ficava inteiramente a cargo dos Juízes Municipais, abolindo-se os Juízes do Cível21, sendo que aqueles mesmos juízes deveriam acumular as atribuições dos Juízes de Órfãos. O Artigo final das “Disposições Civis” da reforma deixava claro o impacto da lei de 1841: “Ficam revogadas todas as Leis Gerais, ou Provinciais que se opuserem à presente, como se de cada uma delas se fizesse expressa menção.” Idem. 22 Os regulamentos foram publicados, o primeiro, em 31 de janeiro de 1842, o segundo em 2 de fevereiro e o terceiro em 15 de março do mesmo ano. “Regulamento No. 120 – de 31 de Janeiro de 1842. Regula a execcução da parte policial e criminal da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”; “Regulamento no. 122 – de 2 de fevereiro de 1842. Contém disposições provisórias para a execução da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”; “Regulamento No. 143 – de 15 de março de 1842. Regula a execução da parte civil

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Monica Duarte Dantas, “O código do processo criminal e a reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado (e suas instâncias de negociação)”. Conferência apresentada junto ao IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009 (versão para discussão). publicava-se o “Regulamento n. 120”, que “Regula a Execução da Parte policial e Criminal da Lei n. 261 de 3 de Dezembro de 1841”. Enquanto a lei de 3 de dezembro tinha 22 páginas, o regulamento do ministro chegava a quase cem páginas, detalhando, em minúcias, aspectos da lei. No primeiro artigo das “Disposições Policiais”, que determinava a quem incumbia a polícia administrativa e judiciária, esclarecia-se a hierarquia de mando: em primeiro lugar estava o Ministro da Justiça “no exercício da Suprema inspeção, que lhe pertence como primeiro Chefe e centro de toda a Administração policial do Império”; em segundo, os Presidentes de Província “ no exercício da Suprema inspeção, que nelas tem pela Lei do seu Regimento, como seus primeiros Administradores e encarregados de manter a segurança e tranqüilidade pública, e de fazer executar as Leis”; daí, por ordem do 3º ao 8º lugar, os Chefes de Polícia, os Delegados e Subdelegados, os Juízes Municipais, os Juízes de Paz, os Inspetores de Quarteirão e, finalmente, as Câmaras Municipais e os seus fiscais. O Capítulo 3 do Regulamento esclarecia acerca das nomeações e substituições dos empregados. Haveria então um Chefe de Polícia por Província, um Delegado em cada termo, e tantos subdelegados quantos os Presidentes de Província considerassem necessário. Definia-se, então, que só poderiam ser escolhidos para Chefes de Polícia os Juízes de Direito que tivessem servido ao menos três anos. Chefes de polícia, delegados e subdelegados seriam conservados enquanto bem servissem e julgassem conveniente os Presidentes de Província, ou seja, poderiam ser dispensados “por mera deliberação do governo”.23 Para o cargo de Promotores deveriam ser preferencialmente escolhidos Bacharéis formados, porém na sua falta poderiam ser nomeados indivíduos com as qualidades exigidas aos Jurados. Os Promotores seriam nomeados por tempo indefinido, pelo Imperador no Município da Corte, e pelos Presidentes nas Províncias. Seriam mantidos enquanto fosse de conveniência do serviço público, “sendo no caso contrário, indistintamente demitidos pelo Imperador, ou pelos Presidentes das Províncias nas da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”; Collecção das Leis do Império do Brasil de 1842. Tomo V. Parte II. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1843, respectivamente p. 39-134, 136-141, 199-209. 23 Artigos 28 e 29, “Regulamento No. 120 – de 31 de Janeiro de 1842. Regula a execcução da parte policial e criminal da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”; op. cit.

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Monica Duarte Dantas, “O código do processo criminal e a reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado (e suas instâncias de negociação)”. Conferência apresentada junto ao IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009 (versão para discussão). Acusação”, cabia agora às autoridades nomeadas pelo centro ou pelos Presidentes de Província proceder ou não à pronúncia dos acusados. Restava tão somente ao “Jury de Sentença”, mediante as perguntas do Juiz de Direito, afirmar ou negar a culpa do réu. O Juiz de Direito não era mais então aquela figura a quem cabia apenas aplicar as penas na forma da lei. Não só ele podia, doravante, apelar ex-oficio da sentença do Júri, como também, ao se tornar central na própria formação do Conselho – uma vez que deveria presidir à revisão e ao sorteio dos jurados –, “decidir todas as questões incidentes, que forem de direito, e de que dependerem as deliberações finais do Júri” 26. A “Reforma” e o “Regulamento” de 31 de janeiro, portanto, não alienavam apenas a localidade em relação à administração da justiça e aos negócios policiais, mas também desapareciam com a província como instância decisória. Não cabia mais aos Presidentes em Conselho, como se fazia até 1834, escolher, mesmo que a partir de lista tríplice, Juízes Municipais, Juízes de Órfãos e Promotores e, muito menos, decidir a lotação de Juízes de Direito e Juízes do Cível. Também não era mais de sua atribuição resolver sobre a suspensão de magistrados. Mas o Regulamento ia mais longe, ele esclarecia um dos artigos da “Reforma” de 1841. De acordo com seu artigo 112, as “infrações dos regulamentos que o Governo organizar para a execução da presente Lei, serão punidas, guardado o respectivo processo, com a pena de prisão, que não poderá exceder a três meses, e de multa até duzentos mil réis. O mesmo Governo especificará nos ditos Regulamentos qual a pena deverá caber a cada uma infração”27. Conforme o regulamento do ministro, aprovado menos de dois meses depois da reforma: Art. 484. As penas de prisão e de multa estabelecidas no presente Regulamento, em virtude do Art. 112 da Lei de 3 de Dezembro de 1841 serão sempre impostas com audiência verbal ou por escrito (segundo o exigir a natureza do caso e as circunstâncias) da pessoas em quem tiverem de recair, e à sua revelia quando não responderem no prazo que lhe for marcado (o qual nunca excederá a três dias) ou não comparecer. Art. 485. Se esta em sua resposta alegar fatos e declarar que quer prová-los, serlhe-ão para esse fim concedidos 8 dias, dentro dos quais deverá apresentar todos

26 Artigo 200, que regula as atribuições dos Juízes de direito na parte criminal, idem. 27 “Lei no. 261 – de 3 dezembro de 1841”, op. cit.

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os documentos e testemunhas que tiver em seu favor, cujos depoimentos serão escritos no Processo que se formar. Art. 460. Da imposição das penas de multa e prisão estabelecidas neste Regulamento por virtude do Art. 112 da Lei de 3 de Dezembro de 1841, dar-se-á o recurso de apelação para a Relação do Distrito, quando forem impostas pelos Juízes de Direito, e Chefes de Polícia, e para os Juízes de Direito, quando o forem por Autoridades inferiores. Art. 461. Esta apelação deverá ser interposta dentro de 24 horas depois de intimada a Sentença à Parte, e terá efeito suspensivo quando a pena for de prisão, procedendo-se na forma do Art. 458 § 2º deste Regulamento, quando for de multa.28 Dois dias depois de aprovado o “Regulamento” de quase 100 páginas de Paulino Soares de Souza (de 31 de janeiro de 1842), o Executivo passava nova medida para que fosse rapidamente executada a reforma do código do processo criminal; tratava-se do novo “Regulamento n. 122 de 2 de Fevereiro de 1842”, com “Disposições Provisórias para a Execução da Lei n. 261 de 3 de Dezembro de 1841”. Sucintamente, as “Disposições” determinavam que, uma vez publicada a referida lei na capital de qualquer província, os Chefes de Polícia deveriam imediatamente proceder às nomeações de Delegados e Subdelegados, enquanto aos Presidentes de Província cabia fazer o mesmo em relação a Juízes Municipais e de Órfãos.29 Os escrivães deveriam, em seguida, remeter todos os processos em andamento às novas autoridades competentes (conforme a lei de 1841). Aqueles que não o fizessem estariam sujeitos a multa de 100$000 a 200$000 réis e, no caso de reincidência, a pena de prisão por três meses. Se, em termos de Poder Legislativo, como bem aponta Miriam Dolhnikoff, as chamadas reformas conservadoras não alteraram substantivamente o que fora aprovado em 1834, no que diz respeito ao Judiciário a situação foi inteiramente diferente. Conforme estabelecido pela reforma de 3 de dezembro de 1841 (e explicitado nos regulamentos do Ministro da Justiça), às autoridades existentes e às Assembléias Provinciais não sobrava muito (em termos de “Poder Judicial”), a não ser acatar,

28 O que significava que a multa deveria ser depositada em juízo. “Regulamento No. 120 – de 31 de Janeiro de 1842. Regula a execcução da parte policial e criminal da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”; op. cit. 29 Regulamento no. 122 – de 2 de fevereiro de 1842. Contém disposições provisórias para a execução da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”, op. cit.

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desobedecer ou pegar em armas (como fizeram as elites das províncias de São Paulo e Minas Gerais). Em termos de suspensões ou indicações para preenchimento dos cargos da polícia ou da justiça, os representantes da província (mesmo que apenas os seis membros do Conselho da Presidência) tinham menos poder decisório do que antes do Ato Adicional. Usualmente a historiografia tem se referido à lei de 3 de dezembro como uma “centralização do judiciário”. Considerando, contudo, as mudanças no Código do Processo e as transformações em relação ao que ocorria até 1834 (no que tange ao papel da província, ou de seus representantes) e, mais ainda, retomando as observações do principal fautor das mudanças de 1841 e 1842, nos parece que as alterações implicavam mais do que simplesmente uma reordenação do chamado Poder Judicial. Nesse diapasão, não se estranha o impacto da lei de 3 de dezembro e a revolta Liberal de 1842. Para Paulino José Soares de Sousa – Ministro da Justiça já quando da aprovação da reforma do Código em 3 dezembro de 1841 e autor dos regulamentos no. 120 e 122 – a legislação aprovada na regência e as chamadas reformas conservadoras implicavam mais do que alterações pontuais (ultrapassando a simples oposição centralizaçãodescentralização). Na década de 1860, Paulino Soares de Sousa, já então Visconde do Uruguai, olhando para o passado brasileiro, ressaltava – em seu Ensaio sobre o direito administrativo – a oposição entre um sistema de governo baseado no self-government anglo-saxão, e uma organização de inspiração francesa que tinha por base a hierarquia. Em suas próprias palavras: “Os países que não tomam por base exclusiva da sua organização administrativa o sistema eletivo (isto é que não constituírem democracias puras) não tem remédio senão recorrerem à hierarquia”.30 Ou seja, “Já se tentou entre nós excluir a hierarquia e instituir o sistema dos Estados Unidos.

30 Visconde do Uruguai, organização e introdução de José Murilo de Carvalho, São Paulo, Editora 34, 2002, p. 495.

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A ação democrática que se seguiu ao 7 de abril, em lugar de introduzir a luz e a ordem no caos que a abdicação nos deixara, proveniente da luta entre os novos princípios constitucionais e uma legislação de tempos coloniais e absolutos; de instituir uma hierarquia acomodada às nossas circunstâncias, que respeitasse quanto cumpre e convém o princípio popular da Constituição; de discriminar e definir bem as atribuições das autoridades, cercando-as de fórmulas e de garantias para os administrados, procurou o remédio exclusivamente no sistema eletivo e nos meios que lhes são peculiares. Entregou aos juízes de paz eletivos, exclusivamente, toda a polícia municipal, geral, judicial e administrativa, e a formação da culpa, em todos os crimes. Deulhe o julgamento definitivo dos delitos que não eram levados ao Júri. Somente por eles e por meio de processos podiam certos funcionários ser compelidos ao cumprimento de seus deveres. Estabeleceu o Júri que, como instituição constitucional, não podia deixar de criar, mas entregou-lhe exclusivamente o julgamento da responsabilidade de todos os funcionários públicos, ainda em questões complicadas e especiais, e por modo que prejudicava a ação sobre eles de seus superiores. Constituiu os juízes municipais, de órfãos e promotores (fazendo-os propor pelas Câmaras Municipais) meras emanações da eleição popular”.31 Assim, mesmo que em 1840 as Assembléias Provinciais tenham mantido a maioria das competências estabelecidas pelo Ato Adicional, ao se adicionar à Interpretação do Ato o artigo que permitia alterar as leis provinciais já aprovadas (mediante lei geral) – tornando possível atribuir, ao cume da hierarquia que partia do centro, poderes que estavam até 1834 nas mãos do Presidente em Conselho –, o ministério não realizava apenas uma centralização do Judiciário. Muito mais do que isso, alterava-se em essência uma legislação inspirada no modelo anglo-saxão de governo (em seu sentido mais amplo), optando-se por uma organização de inspiração francesa. Não se trata, portanto, de discutir liberalismo, mas de que liberalismo estavase falando. Tendo isso em mente não é estranha a eclosão de uma revolta. Sobra, contudo, um problema. Se a reforma de 1841 era assim tão radical, por que ela não foi alterada? Nas décadas seguintes vários projetos foram propostos, visando à sua reformulação – em 1845 e 1848, quando os liberais estavam nos ministérios, e depois em 1854 (sob autoria de Nabuco de Araújo, durante a Conciliação) –, até que, em 1871, fosse aprovada uma reforma que, essencialmente, apenas separava a polícia da justiça.

31 Idem, p. 496-97 (grifo nosso).

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“Tratou-se somente de tornar a autoridade judicial, então poderosamente influente sobre a administração, completamente independente do poder administrativo pela eleição popular./ O governo ficou portanto sem ação própria sobre agentes administrativos também, dos quais dependia sua ação, e que todavia eram deles independentes. Somente podia atuar sobre eles pela responsabilidade, recorrendo ao poder Judicial. O conhecimento de todos os crimes, ainda dos de responsabilidade passou a ser da exclusiva competência dos juízes de paz, filhos da eleição popular, criaturas da cabala de uma das parcialidade do lugar, e definitivamente da competência também exclusiva de 32 A questão da responsabilidade já estava presente na Constituição, contudo sua regulamentação só se deu nos anos subseqüentes; e, ao menos no que diz respeito aos empregados não privilegiados, ocorreu em 1832. “Código do Processo Criminal”, op. cit.

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Monica Duarte Dantas, “O código do processo criminal e a reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado (e suas instâncias de negociação)”. Conferência apresentada junto ao IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009 (versão para discussão).

jurados alistados por uma junta composta do mesmo juiz de paz, do pároco, de presidente da Câmara Municipal ou de um vereador.”33

Em 1841, contudo, essa situação seria radicalmente alterada. Se a lei extinguia de vez o primeiro conselho de jurados (ou júri de acusação), no caso dos crimes de responsabilidade ela fazia ainda mais. Passava a competir ao Juiz de Direito – além das atribuições estabelecidas pelo Código de 1832 – “formar a culpa dos Empregados Públicos não privilegiados nos crimes de responsabilidade”, bem como “julgar definitivamente” os mesmos crimes.34 Ou como explicava Paulino Soares de Sousa no mês seguinte, era atribuição dos Juízes de Direito proferir sentença definitiva, condenando ou absolvendo o réu. 35 Porém, além disso, de acordo com a reforma do código, cabia também a esses magistrados interpor ex-ofício recurso no caso da não pronúncia nos crimes de responsabilidade quando proferida por autoridades judiciárias inferiores. 36 O regulamento no. 120, de 31 de janeiro de 1842, mostrava especial preocupação com o conhecimento dos crimes de responsabilidade. Em seu capítulo 3º (“Da nomeação, demissão vencimentos, e substituição dos Empregados”), determinava-se que os Presidentes de Província deveriam enviar ao Ministério da Justiça, a cada seis meses, uma informação circunstanciada acerca do procedimento dos Juízes Municipais, de Órfãos e Promotores (que fossem bacharéis formados), mencionando especificamente todas “as queixas, que contra elles houverem recebido, quando fundamentadas, e do destino e solução”; enquanto aos Juízes de Direito cabia enviar tais informações aos respectivos Presidentes de Província. Por fim, também o Supremo Tribunal de Justiça e as Relações deveriam informar o Ministério da Justiça quando mandassem formar culpa por crime de responsabilidade a qualquer Juiz Municipal, de Órfãos ou Promotor (se bacharel formado). Tais informações, conforme o regulamento, serviriam de base para a promoção dos empregados referidos, ou mesmo para sua continuidade no lugar.37 Não bastasse isso, na seção do Regulamento relativa à “jurisdição criminal dos Juízes de Direito nas Correições”, cabia ao referido magistrado, quando das correições, emendar todos os erros e irregularidades que encontrasse, procedendo, quando necessário, contra juízes

33 Visconde do Uruguai, op. cit.¸ p. 455-56. 34 “Lei no. 261 – de 3 dezembro de 1841”, op. cit., artigos 25 e 26. 35 “Regulamento no. 120 - de 31 de janeiro de 1842”, op. cit., artigo 404. 36 “Lei no. 261 – de 3 dezembro de 1841”, op. cit., artigo 71. Vale ressaltar que em seu artigo 96, a lei da reforma estabelecia que a “forma do processo será a mesma determinada pelo Codigo do Processo Criminal, que não estiver em opposição com a presente Lei”. 37 “Regulamento no. 120 - de 31 de janeiro de 1842”, op. cit.

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Monica Duarte Dantas, “O código do processo criminal e a reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado (e suas instâncias de negociação)”. Conferência apresentada junto ao IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009 (versão para discussão).

(municipais, de órfãos ou de paz), escrivães, tabeliães, oficiais de justiça, delegados e subdelegados – fazendo-lhes “effectiva a responsabilidade”. 38

Uma vez tendo passado aos juízes de direito a “atribuição de formar culpa e de julgar

definitivamente

os crimes de

responsabilidade

dos empregados não

privilegiados”, Uruguai dava a entender que não mais o governo teria que passar pelas seguintes provações: “Suspendia e mandava responsabilizar o empregado que não executava ou iludia as suas ordens, muitas vezes acintosamente e de acordo com a parcialidade à qual pertencia. Era este acusado pelo promotor, filho da eleição em que triunfara a mesma parcialidade. Era-lhe formada a culpa pelo juiz de paz do mesmo partido. Se por acaso era pronunciado, era julgado por jurados apurados pelo juiz de paz e presidente da Câmara, eleitos pelo mesmo partido. Este estado de coisas, e as absolvições acintosas que se seguiam, acabavam de desmoralizar a autoridade superior”. 39 Ou seja, uma vez aprovada a lei de 1841 e seus respectivos regulamentos, os processos de responsabilidade tornaram-se realidade. Isso não quer dizer que, na década de 1840, o futuro Visconde do Uruguai pudesse antever os desdobramentos da reforma, mas apenas que a questão da responsabilidade (frente ao perigo do self-government) lhe parecia central. Porém ao regulamentar os processos criminais de responsabilidade, ele permitiu a utilização do judiciário como instância de mediação de disputas de poder.40

38 Idem, artigos 205 a 210. Quanto ao procedimento do Juiz de Direito, era obrigação do Juiz Municipal – quando não houvesse Relação na Província -, conforme estabelecido pelo artigo 211, verificar os fatos que fossem objeto de queixa contra o magistrado da comarca. As correições do Juiz de Direito nos termos de suas comarcas estavam previstas no artigo 26 da lei de 3 de dezembro de 1841. 39 Visconde do Uruguai, op. cit., p. 456 (n. 251), 465. 40 Vale lembrar que o Código Criminal de 1830, no capítulo intitulado “Prevaricações, abusos e omissões dos empregados público” (primeiro capítulo do título 5º, sobre os “crimes contra a boa ordem, e administração pública”), tipificava e determinava as penas para os crimes de prevaricação; peita; suborno; concussão; “excesso, ou abuso de autoridade, ou influência proveniente do emprego”; “falta de exação no cumprimento dos deveres”; e irregularidade de conduta. Ocorria crime de excesso ou abuso de autoridade, quando, por exemplo, se excedia a “prudente faculdade de repreender, corrigir ou castigar”, ou se cometia violência no “exercício das funções do emprego, ou a pretexto de exercê-las”. Já a falta de exação no cumprimento do dever, implicava “deixar de cumprir, ou de fazer cumprir exatamente qualquer lei, ou regulamento”; “deixar de fazer efetivamente responsáveis os subalternos, que não executarem cumprida, e prontamente as Leis, regulamentos, e ordens, ou não proceder imediatamente contra eles, em caso de desobediência ou omissão”; “negar, ou demorar a administração da Justiça, que couber em suas atribuições, ou qualquer auxílio, que legalmente se lhe peça, ou a causa pública exija”; “julgar, ou proceder contra lei expressa”; “infringir as leis, que regulam a ordem do processo, dando causa a que seja reformado”; “julgarem os Juízes de Direito, ou os de fato, causas, em que alei os tenha declarado suspeitos, ou em que as partes os hajam legitimamente recusado, ou dado por suspeitos”. “Código

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Monica Duarte Dantas, “O código do processo criminal e a reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado (e suas instâncias de negociação)”. Conferência apresentada junto ao IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ USP, 2009 (versão para discussão).

É necessário lembrar que a lei de 1841 não alterou o artigo 165 do Código do Processo Criminal. Tal artigo, pertencente à parte 5ª, sobre a “denuncia dos crimes de responsabilidade dos empregados públicos, e a forma de processo respectivo”, determinava os efeitos da pronúncia: ficar sujeito a acusação criminal; ser preso ou conservado na prisão enquanto não prestasse fiança nos termos da lei; “ficar suspenso do exercicio de todas as funções públicas”; e “suspender-se-lhe metade do ordenado, ou soldo, que tiver em razão do emprego, e que perdera todo não sendo afinal absolvido”.41

Se, a partir de 1842, de fato as autoridades preocuparam-se em investigar e processar os acusados de crimes de responsabilidade – considerando-se que qualquer um do povo poderia fazer tal queixa, que as próprias autoridades poderiam ser responsabilizadas caso não respondessem pelo bom procedimento de seus subalternos, que a existência de queixas e denúncias poderia atrapalhar a carreira de juízes e promotores e, que, finalmente, apenas a pronúncia já servia para afastar ainda que temporariamente um inimigo de sua função – então bastava uma queixa para atrapalhar a cadeia hierárquica de poder que partia do centro.42 Assim, as várias funções e cargos estabelecidos pela de 1841, paralelamente ao sistema de sindicabilidade que ela instaurava e reforçava, não só efetivaram uma alteração no modelo de organização do Estado (do self-government para o sistema hierárquico de inspiração francesa), como permitiram o desenvolvimento – a despeito da força do centro – de instâncias de negociação, tanto nas províncias como nas municipalidades.

criminal do Império do Brasil”, Collecção das Leis do Império do Brasil de 1830, parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1876, pp. 141-190. 41 “Art. 174. Revogada a pronúncia, ou absolvido o réu, será este immediatamente solto por mandado do Juiz de Direito, e restituído ao seu emprego, e metade do ordenado que deixou de receber”. “Código do processo Criminal”, op. cit. 42 Para os impactos dos processos de responsabilidade na política local ver Monica Duarte Dantas, “Para além do mandonismo: Estado, poder pessoal e homens livres pobres no Império do Brasil”, in Laura de Mello e Souza et alli (org.), O governo dos povos, Alameda, 2009.

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