O comunismo como superação das antinomias da socialização produtora de mercadorias [Comunicação]

July 9, 2017 | Autor: Joelton Nascimento | Categoria: Comunismo, Marxismo, Crítica Do Valor
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VIII COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELS O comunismo como superação das antinomias da socialização produtora de mercadorias1 Joelton Nascimento

INTRODUÇÃO A noção de que as sociedades capitalistas comportam em si antinomias remete a uma parte do lendário livro do filósofo e crítico literário húngaro Georg Lukács História e Consciência de Classe ([1923], 2003), chamada “Antinomias do Pensamento Burguês”. Entretanto há uma diferença significativa aqui: como o subtítulo lembra, Lukács centrava sua análise nas antinomias do pensamento, que, a seu ver, refletiam (ele ainda era legatário, portanto, da teoria marxista do reflexo) as contradições da prática, da vida social. Nossa tentativa aqui será pensar sobre as antinomias da formação social, colocando entre reticências o modo como estas antinomias repercutiriam (ou “refletiriam”) nas categorias do pensamento. Ou seja, aqui buscaremos explorar a hipótese segundo a qual uma transformação social qualitativa e positiva para além do capitalismo precisa necessariamente superar certas antinomias formadas e formadoras da socialização produtora de mercadorias, que mais do que antinomias do pensamento de uma dada classe, remetem para a vida social e prática – mas também para a cultura e para o pensamento – de todos aqueles nela socializados. Buscaremos, em primeiro lugar, expor estas antinomias (itens 1, 2 e 3) e apenas depois refletir sobre nossa hipótese: a de que o comunismo será uma superação destas antinomias ou não será de todo (item 4).

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A presente comunicação é fruto da discussão e da experiência do autor no Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (www.ideiaeideiologia.com).

1. Utilidade/valor A noção de que uma mesma coisa pode comportar estas duas dimensões, a da utilidade e do valor de troca vem pelo menos de Aristóteles ([~336 a. C.], 2000), como se sabe. Karl Marx mostrou-nos, entretanto, que esta dualidade já percebida por Aristóteles ganhava uma importância e significado inteiramente diferente com a modernidade. A emergência da forma-capital havia, segundo Marx, mudado completamente o sentido naturalista dado por Aristóteles a esta dupla dimensão das coisas2. O filósofo estagirita dizia, recordemos, que a utilidade de algo é um atributo natural das coisas e, portanto, seria mais verdadeiro, essencial; enquanto que o valor de troca era uma caraterística que lhe era atribuída externamente, era artificial e flutuava ao sabor dos mais fugidios interesses e escopos. Esta distinção naturalista entre a utilidade e o valor de troca, todavia, em uma obra como O Capital, é inteiramente ressignificado, embora Marx concorde com a existência da dualidade apontada por Aristóteles. Entretanto, aquilo que o filósofo estagirita havia entendido como mera dualidade, o filósofo alemão, dois mil e duzentos anos depois, entenderá como antinomia. Trata-se aqui daquele fenômeno bem estudado por Friedrich Hegel no qual um certo evento é retroativamente ressignificado por um evento que lhe procede. A emergência da forma capital muda retroativamente o sentido naturalista que Aristóteles atribuía à relação entre a utilidade das coisas e o seu valor de troca. A forma-capital faz com que a relação entre a utilidade de algo e seu valor de troca deixem de ser dicotômicos para serem antinômicos. Isto é, há uma ressignificação completa em operação aqui. Em síntese, a forma-capital é quando a circulação simples de mercadorias (Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria) que existe desde priscas eras da humanidade, se transforma em um movimento tautológico (Dinheiro-MercadoriaDinheiro-linha) de valorização do valor. Com isso, não é mais a avareza e a vontade excessiva de entesouramento os problemas causados pela perversão do valor de troca em detrimento da utilidade da coisa (como era em Aristóteles), mas sim o movimento sujeito-automático do valor que, ao se efetivar, torna a mercadoria em seu aspecto de

A literatura sobre a utilidade (ou o “valor de uso”) e o valor de troca nos diferentes marxismos é gigantesca e qualquer pretensão de revisão seria excedente aos nossos propósitos. Destaco, porém, alguns autores que conseguiram alcançar as sutilezas da abordagem marxiana do problema, (RUBIN, [1924], 1980), (ROSDOLSKY, [1968], 2001), (SALAMA, 1980), NAPOLEONI, (1988), (JAPPE, 2006) e (KURZ, 2014). 2

utilidade (mas também em sua característica de desejável) submissa, subalterna em relação ao valor de troca. Ou seja, no capitalismo as mercadorias são produzidas e trocadas em primeiro lugar (e assim é enquanto se tratar de capitalismo) por aquilo que elas representam em termos de valor de troca (que, como nos mostrou Marx é apenas a forma fenomênica do valor) e apenas secundariamente, pela razão de sua utilidade e/ou de ser objeto de desejo. Ora, alguém poderá objetar neste ponto, com razão, que quando se vai a uma loja comprar uma mercadoria parece que se dá exatamente o oposto: vamos buscar algo que nos é útil e/ou que desejamos, seja um automóvel, alimentos ou um software, em primeiro lugar e apenas em segundo lugar nos certificamos de pagar aquilo que o vendedor estipulou como o preço desta dada mercadoria. Entretanto, ao visualizar o funcionamento total, completo de uma sociedade sistemicamente produtora de mercadorias, percebemos que esta é apenas uma impressão superficial dos fenômenos, uma representação fenomênica que só se apresenta como tal na sua aparência imediata. O sistema produtor de mercadorias só existe e funciona como tal na medida em que o conjunto completo dos atos de compra consegue realizar o ciclo D-M-D’ (DinheiroMercadoria-Dinheiro-Linha). E isto significa que, ainda que para cada comprador pareça que é o carácter intrínseco da mercadoria, sua utilidade e/ou capacidade de ser objeto do desejo, a principal razão da existência desta, visto como uma totalidade, apenas como portadora de um certo valor é que a mercadoria é ex-posta como tal. O capitalista só produz mercadorias para que ela carregue em si valor suficiente para, ao ser vendida, se converter em mais-valor. Este valor é obtido ao se usar a atividade humana como trabalho produtor de mercadorias – o processo longa e minuciosamente descrito por Marx em O Capital. Do ponto de vista do capitalista – que neste caso é apenas uma “máscara de caráter” do valor como “sujeito-automático” (Marx) – a mercadoria é primeiramente uma cápsula de trabalho humano objetivado e apenas secundariamente algo que tem em si alguma utilidade e/ou capacidade de ser objeto de desejo. E o que tudo isso implica? Implica antes de mais nada que a dimensão concreta e sensível de toda e qualquer mercadoria passa a ser escravizada, subalterna do abstrato, do suprassensível (JAPPE, 2006). A relação social que está extrínseca à mercadoria, o capital, passa a dominar o modo como esta mercadoria em seu aspecto material e imaterial é manejada, socializada pelas pessoas. Esta é a quintessência das crises

econômicas e ecológicas do capitalismo. As crises em geral são momentos nos quais o concreto e o sensível se “rebelam” contra os ditames suprassensíveis dos processos de valorização tautológica do valor convulsionando uma antinomia que está arraigada profundamente nesta formação social.

2. Circulação/produção Quando o dinheiro passou a submeter a atividade humana a seus ditames tautológicos vimos uma verdadeira ruptura de época sem precedentes, o capital atingia aí seu próprio Conceito – para usar uma expressão hegeliana. Se por um lado algumas figuras históricas como o dinheiro, o estado e o salário já existiam, eles ainda não formavam a constelação ao redor qual gravitaria toda a modernidade capitalista. Marx compreendeu como ninguém esta passagem, esta ruptura de época. No assim chamado “capital comercial”, o lucro é obtido através da compra por um preço baixo e a venda por um preço alto; é assim que se usa dinheiro para ganhar dinheiro, efetivando-se o movimento do valor da fórmula D-M-D’. Isto só é possível pois nesses casos, em geral, trata-se de sistemas distintos de valor, em geral espacialmente distantes um do outro, advindos de um comércio de longa distância. Comerciantes viajantes se associavam a homens ricos, obtinham mercadorias úteis/desejáveis e as vendiam repartindo com os associados os lucros obtidos. O capital industrial, por seu turno, não mais obtém mais-valor do comércio de longa distância e de sistemas de valor separados espacialmente; ao invés disso ele obtém mais-valor por intermédio da distinção sistemática de valor oriunda da clivagem entre circulação e produção. O capitalismo industrial desenvolvido estabelece uma clivagem e, por conseguinte, uma antinomia entre os modos de circulação, troca e consumo, e a produção. Mesmo boa parte do marxismo não foi capaz de compreender a crítica marxiana desta antinomia, preferindo ver por intermédio dela. O filósofo japonês Kojin Karatani nos lembrou, em obra recente, que Marx criticou tanto o mercantilismo, que enfatizava o processo de circulação ao tentar entender como ocorre o processo que culminava no lucro, quanto, por outro lado, a economia política clássica e sua ênfase na produção (KARATANI, 2014). Marx tira então daí a sua fórmula paradoxal enunciada no primeiro livro de O Capital segundo a qual o capital origina-se ao mesmo tempo na circulação e fora dela (MARX, 1996, p.

284). Este aparente paradoxo só pode ser resolvido quando inserimos na equação uma mercadoria peculiar, única: a força de trabalho. “Diferente do capital comercial, que simplesmente compra e vende mercadorias, o capital industrial viabiliza fábricas, compra matérias-primas, emprega trabalhadores, e depois vende as mercadorias produzidas” (KARATANI, 2014, p. 186). Com isso, o capital industrial, em face das peculiaridades da compra e do uso da força de trabalho, produz uma clivagem sistemática de valor entre a circulação e a produção. Ou, mais detalhadamente: A emergência do proletariado industrial é simultaneamente a emergência do consumidor que compra as mercadorias necessárias para a vida cotidiana. Esta é a diferença mais importante entre o proletariado industrial, o escravo e o servo. Em uma economia industrial capitalista o consumo dos trabalhadores não pode ser separado do processo de acumulação de capital: é o modo que a força de trabalho é produzida e reproduzida. (...) Neste sentido, o capital industrial acumula por intermédio da margem (mais-valor) gerada quando o capital industrial obtém a cooperação dos trabalhadores pagando-os salários e depois vendendo-os de volta as mercadorias que eles produziram. Graças à existência desta mercadoria única, o mais-valor é produzido para o capital industrial simultaneamente na produção e na circulação. Esta é a solução para a dificuldade que Marx expressou como “hic Rhodus, hic salta!” [aqui está Rodes, salta aqui!]. A natureza epocal do capital industrial jaz em seu estabelecimento de um sistema aparentemente autopoiético no qual as mercadorias produzidas pela mercadoria força de trabalho são então compradas por trabalhadores a fim de reproduzir sua própria força de trabalho. Isto é o que tornou possível a penetração ao redor do globo do princípio do modo de intercâmbio de mercadorias...(KARATANI, 2014, p. 188).

Muito embora o marxismo do movimento operário tenha uma forte retórica moral contra a exploração do trabalho, o capitalismo é o primeiro sistema de extração de vantagens da atividade humana que não depende de diretas relações pessoais e, por conseguinte, é o sistema que menos pode ser descrito e criticado como moralmente condenável. Todavia, esta clivagem se dá de modo antinômico. Podemos ver de modo explícito este caráter antinômico quando ocorrem crises de um certo setor produtivo e se torna mais “viável” (do ponto de vista da valorização tautológica do valor) o descarte de alimentos consumíveis ao invés de sua circulação, venda e consumo pelo preço de

mercado de um determinado tempo/espaço. Como autóctones sacrificando animais aos deuses, homens modernos e supostamente racionais costumam sacrificar toneladas de alimentos ao deus-dinheiro em um mundo onde ainda 842 milhões de pessoas tem acesso insuficiente a alimentos (NASCIMENTO, 2015, p. 107). Isso sem falar em obsolescência programada de mercadorias, devastação ambiental, etc.

3. Economia/política É

pertinente

notar

que

nenhuma

formação

nacional

sequer

tentou

verdadeiramente estabelecer uma sociedade onde todos os seus subsistemas sociais estejam sob a égide da economia de mercado. Nem os mais ortodoxos dos monetaristas que mereça ser lembrado propugnou publicamente por uma sociedade inteiramente lançada aos desígnios do dinheiro e da propriedade privada. Isto significa que em toda formação nacional da modernidade capitalista erigiu algum tipo de estado para que sua economia de mercado pudesse funcionar (NASCIMENTO, 2014). Mais pertinente ainda é notar que as experiências de socialismo do século XX, ao invés de tentar realizar a concepção de Marx ou a de Engels de desvanecimento ou de fenecimento (respectivamente) do estado e do direito associado ao capitalismo, terminaram por reforçar as funções e as estruturas do estado. Economia capitalista e política estatal são duas dimensões antinômicas indissociáveis na experiência de emergência da forma-capital. Todas as formações sociais com esta “segunda natureza” social constituíram, ao longo de sua história, um dualismo entre o campo dito econômico, onde os sujeitos podem perseguir com liberdade seus interesses privados e egoísticos mediados pela propriedade e pelo dinheiro, e o campo dito político, onde o bem comum e a igualdade seriam os princípios basilares da ação fundada nos interesses públicos da coletividade. De modo inteiramente positivo, os polos mercado e estado se tornaram os centros irradiadores desta dualidade constitutiva (NASCIMENTO, 2014, p. 145).

Esta realidade antinômica, que Kurz nomeou de “esquizofrenia estrutural” (2002) faz parte das formações sociais capitalistas de modo inelutável. Que haja uma realidade econômica guiada pela forma-capital que se “oponivela” (Nascimento) constantemente com uma política que gravita em torno de um estado nacional, isto se trata de uma

realidade inelutável, da quintessência de uma formação social capitalista.

4. Comunismo como a superação X O poder da ideia de comunismo é o poder da superação das antinomias da formação social capitalista. É a libertação da “razão sensível” (Kurz) do jugo da abstração real do valor e do trabalho; é emergência de uma nova forma de produzir e de trocar coisas e serviços para além do jugo da valorização tautológica do valor; e, ainda, não o primado da política sobre a economia, ou o primado da economia sobre a política, mas a superação de uma formação social na qual os interesses individuais e os interesses sociais apareçam institucionalizados e instituídos como “economia” e como “política”. Ao pensar em modos de intercâmbio, Kojin Karatani fala na superação da antinomia entre circulação e produção na figura de “um modo de intercâmbio X”, cuja forma ainda não podemos divisar mas cuja necessidade já podemos claramente sentir. Concordando e ampliando o que diz Karatani, penso que não só a respeito dos modos de intercâmbio mas também a respeito das antinomias fundamentais da socialização produtora de mercadorias, devemos buscar modos X de superação que, contudo, ao contrário de Karatani, creio que podem ser agrupadas sob a designação desse nome ainda tão temido: comunismo. O comunismo então, é o conjunto dos modos “X” de superação de cada uma das antinomias fundamentais da socialização produtora de mercadorias. Entretanto ainda acho correto designar estas possíveis formas de superação, parcialmente, como modos “X”, uma vez que ainda não encontramos formas positivas nas quais encontraríamos estas superações já presentes na vida social contemporânea. Contudo, entendo que não há meios de superação do capitalismo com a permanência da vigência destas antinomias. As tentativas nesse sentido foram, mais ou menos férteis, mas não são capazes de iluminar positivamente a formas destes modos “X” de superação. A questão que deixo para ser discutida pelos companheiros desta mesa é: que tipos de eventos (eventos X?) poderiam tornar possível modos de superação X? O que pensar a respeito do caráter evental de modos de superação destas antinomias que aqui apresentei?

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. A Política. Tradução: Roberto Leal Ferreia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria. Tradução: José Miranda Justo. Lisboa: Antígona, 2006. KARATANI, Kojin. The Structure of World History. Tradução: Michael Bourdaghs. Durnhan/London: Duke University Press, 2014, LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Tradução: Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MARX, Karl. O Capital. Livro 1.Tradução: Régis Barbosa e Flavio Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1996. NAPOLEONI, Claudio. Smith, Ricardo, Marx. Rio de Janeiro: Graal, 1988. NASCIMENTO, Joelton. Crítica do Valor e Crítica do Direito. São Paulo: PerSe, 2014. ____________________. A Reprodução Social da Desigualdade. São Paulo: PerSe, 2015. ROSDOLSKY, Roman. Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx. Tradução: César Benjamin. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 2001. RUBIN, Isaak Ilich. A Teoria Marxista do Valor. Tradução: José B. de S. de Amaral Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987. SALAMA, Pierre. Sobre o Valor. Tradução: Rui Junqueira Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.

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