O conceito de determinação e o problema da autodeterminação racional como o fundamento do conhecimento em Hegel (Projeto de Doutorado)

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Projeto de Doutorado Pesquisador: Lucas Nascimento Machado Orientador: Prof. Dr. Vladimir Pinheiro Safatle O conceito de determinação e o problema da autodeterminação racional como o fundamento do conhecimento em Hegel Resumo: Em nossa pesquisa, estudaremos o conceito de determinação, tal como esse conceito é concebido por Hegel e utilizado por ele a fim de fornecer uma fundamentação lógica para a sua concepção da autodeterminação racional enquanto fundamento de nosso conhecimento. Acreditamos que o conceito de determinação, apesar de, por vezes, aparentar ser de importância secundária, é central para que se possa compreender o projeto de colocar a autodeterminação racional no fundamento de nosso conhecimento, projeto este que seria advogado por Hegel e, antes dele, pelos outros grandes proponentes do idealismo alemão. De fato, esperamos mostrar que, para colocar a autodeterminação racional como fundamento de nosso conhecimento, foi chave, para Hegel, reformular o conceito de determinação em relação ao modo com que ele havia sido usado e entendido pelos seus antecessores. Esperamos, assim, expor como uma certa concepção de determinação estaria no cerne do projeto filosófico de Hegel. Palavras-chave: Hegel, idealismo alemão, determinação, indeterminação, autodeterminação. 1.

Introdução

Em um artigo recente, Melamed observa que “a importância da fórmula ‘determinação é negação’ para a compreensão da filosofia de Hegel e do idealismo alemão em geral dificilmente é questionada, mas uma explicação precisa dessa fórmula ainda é um desiderato” (MELAMED, 2012, p. 176)1. De fato, de uma maneira geral, o conceito de determinação dificilmente é tomado como centro da discussão feita pela literatura secundária quer sobre Hegel, quer sobre o idealismo alemão; e, mesmo quando ocorre de a discussão sobre o conceito de determinação tomar os holofotes, isso costuma se dar apenas no contexto da discussão da interpretação hegeliana de Espinosa2, embora existam algumas importantes exceções3. De fato, o próprio artigo de Melamed, embora discuta o conceito de determinação em Kant, o faz, sobretudo, a fim de discutir qual concepção de determinação estaria mais próxima da de Espinosa, se a de Kant ou a de Hegel, sem maiores interesses na relação que haveria, por exemplo, entre a concepção de determinação de Kant e a de Hegel 4. Contudo, embora seja inquestionável a importância que a relação entre o conceito de determinação de Espinosa e o conceito de determinação de Hegel teria para a compreensão da filosofia deste último5, parece-nos ser igualmente fundamental, embora tenha se dispensado menos atenção para esse ponto,

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Melamed alude aqui, particularmente, a Franks e à sua discussão sobre a aproximação tentada por Jacobi entre Kant e Espinosa por meio do conceito de determinação (FRANKS, 2005, pp.170-171) e à afirmação notável feita por Franks no mesmo livro de que “mesmo para Kant, a construção na intuição é determinação por negação” e de que “para os idealistas alemães, [diferentemente de Kant], não é apenas a construção geométrica que envolve a determinação por negação, mas também a ontologia transcendental.” (FRANKS, 2005, p. 340). (Idem ibid., p. 340). Vale notar, contudo, que, corroborando a observação de Melamed, mesmo na exposição de Franks, o conceito de determinação não é o tema central. 2 Por exemplo em MACHEREY, 2011, cap.4 e de GAINZA, 2008, cap.6. 3 Cf., por exemplo, BRANDOM, 2002, Cap. 6. 4 Cf. MELAMED, 2012, p.196. 5 De fato, chegamos mesmo a escrever um artigo sobre esse assunto. Cf. MACHADO, 2015.

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compreender como o conceito de determinação de Hegel dialogaria com os conceitos de determinação de seus antecessores do idealismo alemão, e como Hegel, por meio da sua reformulação do conceito de determinação, buscava ser capaz de satisfazer exigências lógicas e de fundamentação que, a seu ver, não teriam sido satisfeitas por seus predecessores (e mesmo por ele próprio, em sua juventude). Exigências estas que teriam de ser preenchidas, a fim de que a autodeterminação racional pudesse ser colocada como o fundamento não apenas das nossas ações, da filosofia prática, mas também – como pretendemos mostrar por nossa pesquisa – como fundamento absolutamente seguro e incontestável de nosso conhecimento, da filosofia teórica6. Nesse sentido, apesar de haver pouca literatura a esse respeito, contribuições fundamentais foram feitas, novamente por Melamed7, mas também por Breazeale8 e Schechter9, ao destacarem a importância da Satz der Bestimmbarkeit (o “princípio da determinibilidade”) de Maimon, tanto no que esse princípio dialoga com a filosofia kantiana quanto no que ele desempenha um papel central nos desenvolvimentos posteriores do idealismo alemão e nas exigências lógicas que serão tomadas como norteadoras do projeto filosófico dos idealistas alemães. Schechter chega mesmo a ver Maimon como o primeiro a “pensar a possibilidade da lógica especulativa, que seria desenvolvida posteriormente sobretudo na filosofia especulativa do idealismo alemão”10 (SCHECHTER, 2003, pp. 18-19) ao passo que Breazeale liga o terceiro princípio da Doutrina-da-ciência de Fichte diretamente ao princípio da determinibilidade, vendo o primeiro como um desenvolvimento ou uma “determinação” mais aprofundada do último11, chegando mesmo a considerar que a diferença entre Hegel e Fichte seria que Hegel generalizaria completamente a validade do princípio da determinação recíproca, ao passo que, para Fichte, deveria haver uma instância anterior e acima dela que não estivesse submetida a esse princípio12. Por fim, talvez a aproximação mais notável e de mais interesse para o nosso projeto seja a que Schechter faz entre a Aufhebung, a negação determinada hegeliana e a Satz der Bestimmbarkeit de Maimon, afirmando que “a Aufhebung de Hegel é um princípio paralelo em sua função ao princípio da determinibilidade” (SCHECHTER, 2003, p.51). Assim, o notável nestes trabalhos é indicar, por meio da referência a Maimon, como o conceito de determinação, relacionado aqui ao princípio da determinibilidade, seria um conceito chave para muitas das discussões lógicas e metafísicas decisivas que seriam travadas pelos autores do idealismo alemão e, por conseguinte, também por Hegel. Contudo, por mais que tais trabalhos sejam fundamentais e tenham um papel indispensável a desempenhar na discussão do lugar do conceito de determinação na filosofia hegeliana e no idealismo alemão como um todo, é importante notar que eles ainda ou se limitam à discussão sobre o princípio da determinibilidade em Maimon, apenas aludindo à influência posterior que este princípio teria no idealismo alemão, ou ainda tratam apenas de maneira

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É claro que, nessa discussão, também as apropriações e aproximações de outros autores em relação a Espinosa tem um papel incontestável. Cf. FÖRSTER e MELAMED (org.), 2012. 7 MELAMED, 2004. 8 BREAZEALE, 2003. 9 SCHECHTER, 2003. 10 Um ponto semelhante é feito por Melamed, quanto este afirma que o princípio da determinibilidade forneceria o “primeiro passo para o desenvolvimento da lógica especulativa no idealismo alemão” (MELAMED, 2004, p. 93). 11 BREAZEALE, 2003, p. 139. 12 Idem ibid., p. 129.

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inicial a relação que este princípio teria com outros autores como Fichte e Hegel. Assim, tais trabalhos ainda apenas sugerem uma linha de continuidade no tratamento do conceito de determinação no interior do idealismo alemão, sem, contudo, oferecer um exame mais detalhado de como a problemática vinculada ao conceito de determinação seria herdada por Hegel como uma problemática fundamental ao idealismo alemão, e de que maneira ele forneceria a sua própria formulação e solução desta problemática. Sendo assim, nosso interesse em nossa pesquisa é, precisamente, o de examinar mais a fundo como o conceito de determinação desempenharia um papel fundamental na filosofia de Hegel, sendo herdado como parte de uma problemática central ao idealismo alemão para a qual Hegel tem de oferecer a sua própria solução a fim de poder dar conta de um dos projetos mais centrais do idealismo alemão, qual seja, o de colocar a autodeterminação racional como o fundamento de nosso conhecimento. Nesse sentido, também trata-se de mostrar como a ideia de uma autodeterminação racional desempenha um papel fundamental não apenas no interior da filosofia prática de Hegel e do idealismo alemão de uma maneira geral, mas, muito pelo contrário, já tem um lugar central no interior da discussão sobre a filosofia teórica. Objetivos Nesta pesquisa, estudaremos o conceito de determinação em Hegel, no papel que esse conceito desempenha para a concepção que este autor tem da autodeterminação racional enquanto fundamento de nosso conhecimento. A partir desse estudo, esperamos poder contribuir para a compreensão de pontos centrais da filosofia hegeliana, sobretudo no que diz respeito à dimensão lógica da autodeterminação racional que Hegel pretende colocar no cerne de sua filosofia e como fundamento de todo conhecimento filosófico. Mais do que isso, acreditamos ainda que a compreensão do papel do conceito de determinação no interior da filosofia de Hegel seria de grande valia para a discussão contemporânea sobre a ontologia, sendo o conceito de determinação uma categoria central para se refletir sobre os desenvolvimentos e desdobramentos da filosofia após Hegel e o idealismo alemão 13. Justificativa A fim de examinarmos o tratamento que Hegel dá ao conceito de determinação e à sua relação com o problema da autodeterminação racional, precisamos, primeiramente, situar brevemente o histórico da articulação desse conceito com o problema da autodeterminação racional no interior do idealismo alemão – só assim poderemos compreender posteriormente como Hegel se insere no interior deste debate, constituindo a sua própria compreensão do conceito de determinação e de sua relação com a autodeterminação racional. Sendo assim, comecemos por Kant, aquele que é justamente quem estabelece o projeto comum dos autores do idealismo alemão de conceber uma filosofia fundada na autodeterminação racional. Como se sabe, a fim de colocar a autodeterminação racional, ou, simplesmente, a fim de colocar a razão como fundamento de nosso conhecimento do mundo, Kant propôs a determinação dos limites do conhecimento humano, ou, em outras palavras, a “determinação de todos os conhecimentos puros a priori” (KANT, 1974, p.15, 13

Cf. OLIVEIRA, 2014, § 4.3.1.4.

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grifos nossos). Para Kant, seria nada mais nada menos do que essa determinação que deveria ser “a medida” e o “exemplo de toda certeza apodítica (filosófica)” (KANT, 1974, p.15, grifos nossos). Afinal, é a determinação de todos os conhecimentos a priori que prova que temos um conhecimento certo e seguro dos objetos, ou seja, um conhecimento determinado e delimitado unicamente por nossa razão. Isso porque é por meio dessa determinação que se estabelece o limite do conhecimento humano, estabelecendo que este conhecimento só pode se referir aos objetos enquanto fenômenos, e não aos objetos tais como eles são em si. Desse modo, Kant garantiria, pela distinção entre fenômeno e coisa em si, a possibilidade um conhecimento racional da experiência ou, em outras palavras, de um conhecimento sintético a priori. Essa garantia, contudo, só seria possível pelo fato de que, nesse determinação dos limites do conhecimento humano, a razão tem de se haver apenas com os “princípios e as limitações de seu uso que são determinadas por eles mesmos” (KANT, 1974, p.29, grifos nossos). Assim, poderíamos dizer: para Kant, é a determinação dos limites do conhecimento humano, possível apenas porque, nela, a razão lida determina a si mesma e limita ela mesma o uso de seus próprios princípios, que possibilita que a autodeterminação racional do sujeito possa ser pensada como o fundamento da determinação dos objetos de nosso conhecimento, garantindo, portanto, que possamos ter um conhecimento certo e seguro deles. O que poderia significar mais exatamente, contudo, determinar os limites do conhecimento humano? Como essa determinação seria concebida, e como ela seria possível? Qual seria o sentido de determinação que seria aí empregado? Certamente, o conceito de determinação é utilizado em diversos contextos distintos na filosofia kantiana, e não pretendemos, nesse projeto, explorar todas as suas distintas significações. Mais especificamente, não estamos aqui interessados tanto no uso do conceito de determinação na distinção entre conhecimento teórico e conhecimento prático (KANT, 1974a, p.21), nem na diferença entre juízos determinantes e juízos reflexionantes, mas sim na concepção de determinação que parece ser expressa principalmente em algumas passagens chaves do prefácio da segunda edição, da estética transcendental e da analítica transcendental da Crítica da Razão Pura14, passagens estas que se referem ao papel que a determinação teria no estabelecimento da relação entre o princípio da crítica e o sistema que se engendra a partir dela, ou, de uma maneira mais geral, no estabelecimento da relação entre fundamento e fundado. De fato, tais passagens, acreditamos, apontam para um sentido mais geral de “determinação”, que é o sentido que nos interessa aqui e que é o utilizado por Kant, quando este se refere à fundamentação do projeto crítico ele mesmo e àquilo que dá a este projeto a sua sistematicidade, tal como na sua afirmação de que a completude de uma ciência “só é possível por meio de uma ideia do todo” e da “divisão dos conceitos que são determinados a partir dela” (KANT, 1974a, p. 107). Nesse sentido, o conceito ou, ao menos, a noção de determinação em Kant que focamos neste projeto é aquele que se encontra mais próximo da problemática, nos termos de Franks, da “exigência

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Cf., por exemplo, KANT, 1974, p. 74, p. 83 e p.97.

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monista”, segundo a qual “toda fundamentação genuína participa em uma unidade sistemática única de fundamentos, terminando em um único fundamento absoluto” (FRANKS, 2005, p.47)15 Poder-se-ia dizer, contudo, que o uso que Kant faz da palavra “determinação” ao falar da “determinação” dos limites do conhecimento humano não é um uso conceitual, filosoficamente rigoroso, mas sim um uso corrente que não implicaria nenhuma concepção filosófica mais rigorosamente definida de Kant sobre o que seja “determinação”. Contudo, como pretendemos mostrar, se, de fato, ao usar o termo “determinação” em relação ao projeto crítico como um todo e à sua sistematicidade, Kant não opera com nenhum conceito bem definido do que seja determinação, será isso que, em grande parte, se constituirá em um problema central para os filósofos que o sucederão, problema que estará por trás de algumas das primeiras críticas mais relevantes sofridas por Kant e que terá um impacto fundamental nos desenvolvimentos posteriores do idealismo alemão (de fato, bastaria lembrar, a esse respeito, que Maimon viu em seu princípio da determinibilidade o princípio que sanava as faltas do projeto crítico kantiano, exercendo assim uma profunda influência nos filósofos posteriores do idealismo alemão 16). Com efeito, como veremos, a fundamentação da filosofia e do conhecimento humano pela crítica sofreria uma série de objeções, intimamente ligadas ao estatuto problemático da determinação dos limites do conhecimento humano proposta por Kant. Nesse sentido, o que nos interessa aqui são, principalmente, as críticas levantadas à filosofia kantiana por Schulze e Maimon, dois céticos pós-kantianos de grande importância para o idealismo alemão. Schulze, em seu Enesidemo17, levantaria um questionamento central para os desenvolvimentos posteriores do idealismo alemão, a saber, o questionamento acerca do estatuto da própria crítica e do sujeito cujos limites do conhecimento ela busca determinar. Afinal, se tudo que podemos conhecer são fenômenos, e se, por conseguinte, apenas os objetos da experiência podem ser determinados (ao menos no sentido da atribuição de uma intuição a um objeto18), então, como poderia a crítica determinar os limites do conhecimento humano ou as formas de conhecimento do sujeito, sendo que esse sujeito (como a própria crítica observara19), estaria para além de toda a experiência e não poderia ser conhecido20? Em que sentido e por que meios uma determinação dos limites do conhecimento humano seria possível, sem que, com isso, a crítica ultrapassasse os limites para o conhecimento que ela mesma impôs21? Por não encontrar nenhuma resposta satisfatória a essa pergunta, Schulze acusará Kant de violar os limites estabelecidos pela sua própria crítica: pois, ao tentar determinar os limites do conhecimento humano, teria se proposto a determinar o que o sujeito é independentemente de nossas representações, de nossa experiência e como

Poder-se-ia dizer que o uso que Kant faz da palavra “determinação” ao falar da “determinação” dos limites do conhecimento humano não é um uso conceitual, filosoficamente rigoroso, mas sim um uso corrente que não implicaria nenhuma concepção filosófica mais rigorosamente definida de Kant sobre o que seja “determinação”. Naturalmente, este sentido de determinação terá uma relação íntima com os outros sentidos, sobretudo em função da ambiguidade que essa pluralidade de sentidos gerará e que deixará o projeto crítico vulnerável a críticas posteriores como a de Schulze. 16 Cf. notas 7 e 8. 17 SCHULZE, 2012. 18 Cf. KANT, 1974a, p.275. 19 Idem ibid., p. 344. 20 Cf. nota 6. 21 Nas palavras de Pippin: Se o conhecimento empírico depende de condições que não podem ser explicadas por uma investigação empírica ou, como chamaríamos hoje, naturalista de “o que acontece quando nós conhecemos algo” (o ‘ilustre Locke’ tentou isso e acabou caindo em petição de princípio), nem por uma metafísica do sujeito humano, uma nova explicação do que a mente realmente é em si mesma (a falha de Descartes), então, o que, afinal, é a ‘filosofia transcendental?’ (PIPPIN, 1999, pp. 53-54). 15

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fundamento dela, quer dizer, a determinar o que o sujeito é de fato, em si22.

Como, porém, a própria crítica

estabelecia a ilegitimidade de tal procedimento e de tal pretensão de conhecer qualquer coisa em si, a filosofia crítica teria falhado, portanto, em fornecer um fundamento verdadeiramente certo e seguro para o nosso conhecimento – motivo pelo qual Schulze conclui ser necessário permanecer cético e suspender o juízo quanto à relação de nossas representações dos objetos com aquilo que eles são em si mesmos. Maimon, por sua vez, outro notável cético pós-kantiano, também faz sérias objeções a Kant, embora essas sejam, simultaneamente, mais específicas e mais apuradas. Suas objeções também tenderão a apontar para um uso ilegítimo do conceito de coisa em si em Kant, mas por uma via ligeiramente oposta à de Schulze, que tinha por principal objeção à filosofia crítica a falha desta em fornecer um fundamento objetivo de nossas representações. Para Maimon, pelo contrário, Kant não teria sido suficientemente consequente no abandono da noção de coisa em si e da objetividade, entendida como uma existência independente do sujeito, como critério importante para a determinação da validade de nosso conhecimento. De fato, Kant ainda sustentaria uma ilusão do senso comum, qual seja, a de que haja um objeto externo à consciência e independente dela, quando, na verdade, o termo “coisa em si”, se deve ser referir a alguma coisa, só pode se referir ao diferencial inconsciente das representações, diferencial que é condição da representação, embora não seja, ele mesmo, representável – o que não faz, contudo, que ele seja um elemento externo à própria consciência23. Além disso, outra objeção que Maimon levanta à filosofia crítica, talvez a mais central para a nossa pesquisa (embora não seja dissociável da primeira), é que Kant teria pressuposto a lógica geral como sendo completa e autônoma em relação à transcendental e, mais do que isso, como estando no fundamento dessa última. Assim, não submetendo as formas dessa lógica geral à crítica, não pôde determinar ou oferecer o critério unicamente a partir do qual essas formas poderiam adquirir sentido e ser empregadas. Sendo assim, seria necessário fornecer um critério para que se pudesse decidir em que casos sujeito e predicado podem ser conectados de maneira a levar a um pensamento real, ou, em outras palavras, um pensamento sintético do objeto (e portanto a um conhecimento sintético

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Poder-se-ia dizer que Schulze compreende mal o que seja o sujeito transcendental, pois esse sujeito não é nada que possa ser conhecido do mesmo modo que os fenômenos podem; o eu da apercepção sintética originária, essa apercepção ela mesma, não é, como aponta Amerik (AMERIK, 2006, pp. 245-246), conhecido segundo uma espécie de teoria da reflexão, segundo a qual o sujeito conheceria a si mesmo enquanto objeto por meio da reflexão. Pelo contrário, só teríamos consciência de nós mesmos enquanto sujeitos transcendentais por meio de uma espécie de autofamiliaridade, como diz Amerik (Idem ibid., pp. 246-249), ou enquanto uma pura espontaneidade, como afirma Pippin (PIPPIN, 1997, Cap.2), de tal forma que a apercepção nunca poderia ser conhecida como um objeto isolado da mente, mas sim meramente com a minha (auto)consciência que reconheço ter que acompanhar todas as minhas representações para que estas sejam possíveis, mas que não pode ser isolada dessas representações e conhecida em si mesma. Como nota Pippin, a apercepção deveria ser compreendida como um aspecto adverbial da nossa experiência, algo que acompanha toda a nossa experiência (eu “aperceptivamente” experiencio algo, penso algo, imagino algo, etc.), mas que não pode ser separado e conhecido à parte dela (Idem ibid., p.43). Entretanto, mais uma vez, isso não nos livra de todos os problemas; pois, como o próprio Pippin nota, se é desse modo que a apercepção ou a espontaneidade kantiana deve ser compreendida, isso nos coloca em uma série de dificuldades no que diz respeito ao lugar da apercepção dentro do esquema classificatório kantiano. Como Pippin argumenta, as explicações de Kant sobre a apercepção tendem a dificultar que ela possa ser pensada estritamente quer como númeno, quer como fenômeno, quer ainda como uma mera condição lógico-formal (Idem ibid., p.35). Assim, Kant sugeriria que a apercepção seria uma espécie de quarta alternativa, a qual, contudo, não seria fornecida por ele próprio. Sendo assim, é de se compreender que Schulze objete a Kant que o sujeito transcendental não tem lugar apropriado dentro de seu sistema e não pode ser pensado e estabelecido dentro dos seus limites. O que leva naturalmente – embora não necessariamente – à conclusão de Schulze de que a apercepção, não cabendo dentro do que pode ser pensado pelo sistema da razão pura, mas servindo, não obstante, de seu fundamento, só pode ter sido concebida por Kant – ainda que ilegitimamente – como a coisa em si que é o fundamento real (e não meramente pensado) de nossas representações (Uma interpretação que, ainda hoje, possui seus adeptos e é defendida como uma objeção válida a Kant. Cf. FORSTER, 2008, Cap. 11.). 23 Cf. MAIMON, 2000, pp. 169-170. Cf. também MAIMON, 1790, pp.103-104 e MAIMON, 2010, p.249.

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a priori deste), afim de que, segundo esse critério, se possa determinar o significado das formas lógicas da lógica geral. Em outras palavras: é preciso fornecer um princípio para o pensamento sintético, assim como o princípio para o pensamento analítico teria sido fornecido por Kant por meio do princípio da não-contradição24. Só assim, segundo Maimon, se poderia fornecer para o projeto crítico o fundamento sólido que lhe faltava, por meio do qual ela pudesse descrever efetivamente as condições às quais todo pensamento sintético estaria necessariamente submetido. Maimon julga ter encontrado esse fundamento em seu princípio da determinabilidade. Segundo esse princípio, o pensamento real, ou, em outras palavras, o pensamento sintético, é aquele no qual o “múltiplo dado tem de ser internamente relacionado de tal forma que o sujeito possa ser um objeto da consciência em geral por si próprio, sem o predicado, mas o predicado não possa sê-lo sem o sujeito” (MAIMON, 2000, p. 198). Assim, um pensamento é um pensamento real sempre que o sujeito da proposição puder ser objeto da consciência independentemente do predicado (assim como “triângulo” pode ser objeto da consciência independentemente do predicado “reto” ou “oblíquo”), mas o predicado não pode ser objeto da consciência senão em sua ligação com o sujeito (assim como um “triângulo reto” ou um “triângulo oblíquo” só pode ser objeto da consciência em sua ligação com o sujeito “triângulo”). Maimon pensa ter encontrado nesse princípio o princípio de todo o pensamento sintético, pois julga que apenas ele é capaz de estabelecer uma relação necessária entre sujeito e predicado que não seja uma relação meramente analítica, uma relação em que o predicado efetivamente não está contido no conceito do sujeito e, contudo, determina-o de maneira necessária25. Entretanto, se Maimon julga assim encontrar o princípio ao qual o pensamento sintético, o pensamento real estaria submetido, é isto que, simultaneamente, leva-o ao seu ceticismo sobre a possibilidade de um conhecimento racional e necessário da experiência. Isso porque, tal como Maimon entende, apenas os objetos que podem ser construídos conscientemente segundo uma regra podem ser conhecidos como submetidos ao princípio da determinabilidade. Contudo, devido à passividade de nossa sensibilidade, não construímos conscientemente os objetos de nossa experiência por meio de uma regra; sendo assim, não podemos mostrar deles que haja qualquer relação necessária, segundo o princípio da determinabilidade, entre o sujeito e predicado, de modo que possamos ter um conhecimento sintético da experiência. Motivo pelo qual a filosofia crítica de Kant teria falhado em mostrar que temos um conhecimento necessário e racional da experiência, e que a experiência estaria submetida e seria determinada pelo nosso modo racional de conhecê-la26. O princípio da determinibilidade, portanto, ao fornecer um critério rigoroso pelo qual se possa decidir se um pensamento efetivamente nos fornece um conhecimento sintético a priori do objeto ao estabelecer a relação que deve se dar entre determinável (o sujeito) e determinação (o predicado) para que se tenha esse conhecimento, levaria fatalmente à conclusão, ao mesmo tempo, de que nenhum conhecimento racional da experiência seria possível.

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Cf. a esse respeito SCHECHTER, 2003, pp. 35-36. Cf. idem ibid., p.24. 26 Cf. BREAZEALE, 2003, pp. 121-123. 25

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Tendo isso em mente, podemos começar a compreender como Fichte considerou as objeções céticas de Schulze e Maimon em sua própria Doutrina-da-Ciência27, a fim de fornecer uma fundamentação mais sólida e consequente para a filosofia crítica28. Em sua Resenha do Enesidemo (texto que, como Breazeale aponta, é central para os desenvolvimentos posteriores do idealismo alemão 29), indo o pressuposto de Schulze de que a filosofia “deve partir de um estado-de-coisa [Tatsache]”, de modo que colocar o sujeito no seu fundamento seria colocar uma coisa em si, Fichte sugere que o princípio que deve ser posto no fundamento da filosofia deve “expressar um estado-deação30 [Tathandlung]” (FICHTE, 1965b, p.46). Em outras palavras, o fundamento da filosofia não deve ser compreendido como uma coisa ou um fundamento objetivo, mas sim como uma atividade ou um fundamento subjetivo, sem o qual o objeto, muito antes de poder existir independentemente, não seria de modo algum possível, já que todo objeto é objeto para um sujeito. De fato, para Fichte, a fundamentação da filosofia na autodeterminação racional, na liberdade do sujeito, só poderia ser concebida adequadamente por meio da Tathandlung, do estado-deação, da atividade do Eu Absoluto de por a si mesmo que, muito antes de ser condicionada por qualquer Tatsache, por qualquer estado-de-coisa, por qualquer objetividade que o condicionaria e que o determinaria em sua realidade, é condição de possibilidade de todo estado-de-coisa, de toda objetividade, e se encontra no fundamento desta e de sua determinação31. O que, em outras palavras, significa que o sujeito, que a sua autodeterminação racional deve ser o fundamento de todo objeto e de toda objetividade, sendo a condição imprescindível da determinação do objeto em sua realidade. De fato, para Fichte, só assim seria possível responder corretamente à questão sobre a possibilidade da determinação dos limites do conhecimento humano. Isso pois o sujeito, enquanto fundamento absoluto do conhecimento, enquanto Eu Absoluto, não é determinável, “não se deixa provar nem determinar” precisamente porque “deve ser o princípio fundamental e absolutamente primeiro” (FICHTE, 1965a, Primeira Parte, § 1, grifos nossos). E o sujeito, enquanto princípio primeiro, muito antes de ser determinado, é condição de tudo aquilo que é determinado, de tudo aquilo que é condicionado por ele e que tem sua realidade constituída e limitada a partir dele, de tudo, em outras palavras, que é da ordem do objetivo, do que é algo e do que só pode ser algo porque é algo para alguém. Por isso, só se pode determinar os limites do conhecimento humano tendo o Eu Absoluto como fundamento indeterminado do conhecimento, como o alguém para o qual todo algo determinado é e que não pode ser ele mesmo algo de determinado. Isso porque, se o Eu Absoluto fosse determinado, ele teria que ter um fundamento superior a ele que seria a condição de sua determinação, condição pela qual ele teria a sua realidade determinada e delimitada enquanto um objeto32. Desse modo, o Eu Absoluto seria algo determinado, seria para alguém, e seria, assim transformado em algo de objetivo e, portanto, de condicionado, que não serviria para ser o fundamento

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Para mais sobre o papel central que filósofos céticos como Schulze, mas também Maimon, desempenharam na constituição do sistema filosófico de Fichte, cf. RADDRIZANI, 2014. 28 Cf. MACHADO, 2014, Cap.3. 29 BREAZEALE, 2014. 30 Seguimos, aqui, a tradução de Tathandlung proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho. 31 Cf. FICHTE, 1965b, p.62. 32 Motivo pelo qual tentar conceber a esse Eu como um objeto nos levaria a uma regressão ao infinito. Cf. HAAG, 2012, p. 102.

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incondicionado, certo e seguro de nosso conhecimento. “O Eu Absoluto”, segundo Fichte, “não é algo (ele não tem nenhum predicado, e não pode ter nenhum)”33 (FICHTE, 1965a, Primeira Parte, § 3, seção C), posto que ter um predicado significaria ser determinado, e ser determinado significa adquirir realidade apenas na medida em que se é algo para alguém, quer dizer, ser condicionado pela determinação e delimitação de sua realidade a partir de um outro que é seu fundamento. O que não pode ocorrer com o princípio incondicional e o fundamento absoluto de todo o conhecimento e de toda determinação, uma vez que, sendo a condição primeira de toda determinação, não pode ser, ele mesmo, determinado por um princípio superior a partir do qual ele adquiria a sua realidade. Por isso, só se pode determinar os limites do conhecimento humano tendo o Eu Absoluto como fundamento indeterminado do conhecimento e como condição de possibilidade todo e qualquer objeto (de modo que não poderia haver uma coisa em si, um objeto que seja o que é independentemente do sujeito), pois só assim se terá um fundamento verdadeiramente incondicionado, necessário e seguro de tal determinação. De fato, é porque o Eu Absoluto é indeterminado que a determinação, estabelecida no terceiro princípio da Doutrina-da-Ciência, é possível e garante que “a identidade da consciência, o único fundamento absoluto de nosso saber” não seja suprimida (FICHTE, 1965a, Primeira Parte, § 3, Seção B). Isso porque o ato de determinar ou de delimitar, ou seja, de “opor no eu, ao eu divisível, um não-eu divisível” , ato que garante que o pôr do eu e o opor do não-eu operados pela consciência (segundo o primeiro e o segundo princípio respectivamente) não levem à supressão da consciência ela mesma, só é possível na medida em que houver um eu que não é determinado, quer dizer, um eu que não é limitado pela sua oposição ao não-eu e que não é, portanto, um eu-divisível. Assim, a ação do terceiro princípio, o princípio cuja maneira de ação é fornecida pela “categoria da determinação” (FICHTE, 1965a, Primeira Parte, § 3, Seção D, 9) é, ao mesmo tempo, a ação que garante que o por e o opor do primeiro e do segundo princípios, absolutamente indispensáveis para o conhecimento, não levem à supressão da identidade da consciência. Essa ação, entretanto, só é possível porque essa identidade, o Eu Absoluto, permanece indeterminado, ilimitado34, e só assim pode ser a unidade no interior da qual o eu divisível e o não-eu podem ser opostos, determinados e conhecidos, sem que, com isso, se suprima a identidade da consciência. De modo que podemos compreender também por que o terceiro princípio da Doutrina-da-Ciência, o princípio da determinação ou o princípio da determinação recíproca, daria conta também de tanto aprofundar o princípio de determinabilidade, de Maimon, quanto de superar as objeções céticas que este levantava à filosofia crítica em função deste princípio: ao estabelecer que a determinação recíproca do eu e do não-eu limitados, quer dizer, determinados, depende da atividade do eu absoluto e indeterminado, Fichte seguia, por um lado, a rigor a exigência do princípio da determinibilidade de fornecer um fundamento para o pensamento real dos objetos (quer dizer, um “sujeito” – o Eu Absoluto - que pode ser

O que, mais uma vez, mostra a influência do princípio da determinabilidade de Maimon sobre Fichte – pois, a fim de pensar o “sujeito dos sujeitos”, o fundamento absoluto de todo conhecimento sintético e determinado, Fichte precisa pensar em um sujeito completamente desprovido de predicados, isto é, um sujeito que possa ser pensando completa e independentemente de todo e qualquer predicado, já que, se não pudesse ser pensado independentemente de um predicado, disto se seguiria que ele mesmo seria sujeito de um predicado maior – um movimento que já Maimon apontava ao conceber o Eu como o “conceito genérico mais elevado” e como o “determinável mais indeterminado” (Cf. BREAZEALE, 2003, p. 130). 34 Cf. HAAG, pp.108-109. 33

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pensado independentemente do seu predicado, enquanto o “predicado” – o eu e o não-eu limitados – não pode ser pensado independentemente dele). Por outro lado, é precisamente por meio do Eu Absoluto, da Tathandlung, que Fichte supera a conclusão cética a que Maimon havia chegado por meio de seu princípio da determinibilidade – pois mostra que mesmo lá onde o eu aparece como passivo, ou seja, lá onde o não-eu (divisível) é posto em oposição ao eu (divisível) como não sendo construído por ele, mas sim simplesmente dado a ele, é a própria atividade do Eu (absoluto) que põe esse não-eu em oposição ao eu e que cria, assim, a aparência de passividade do eu. Sendo assim, mostra-se que é possível ter um conhecimento seguro e racional da experiência, pois mesmo a passividade aparente desta se deixa explicar por meio da atividade racional de determinação e de autodeterminação do eu35. Assim, se Kant antes havia proposto a determinação dos limites do conhecimento humano, a fim de que a autodeterminação racional pudesse ser colocada no fundamento de nosso conhecimento, Fichte, com base nas objeções e considerações feitas à filosófica crítica por Maimon e Schulze, teria elaborado mais precisamente como e em que sentido essa determinação seria possível, e com base em que ela poderia ser realizada. Para tanto, foi necessário estabelecer que, para a autodeterminação racional estar no fundamento de nosso conhecimento, é necessário não apenas que os objetos conhecidos por meio dela não sejam externos à consciência e a tenham por sua condição de possibilidade, como já afirmara Kant, mas também acrescentar a essa exigência, como fez Fichte, de que nenhum objeto possa existir independentemente da autodeterminação racional do Eu Absoluto, que todo objeto só exista na medida em que é para o eu e na medida em que o tem por sua condição de determinação. Só assim, segundo ele, seria possível eliminar quaisquer inconsistências restantes na filosofia crítica, e só assim a autodeterminação racional poderia ser um fundamento verdadeiramente seguro de nosso conhecimento. Desse modo, como podemos ver, também se realiza um deslocamento fundamental no conceito de determinação. A determinação, antes concebida de modo ambíguo e com variações de sentido por Kant, sem se estabelecer, de modo claro, o que seria passível de determinação e como essa determinação seria possível, passa a ser claramente concebida como aquilo que é da ordem do objetivo, do condicionado, do que é marcado por ter sua realidade determinada e delimitada a partir de um fundamento unicamente por meio do qual aquilo que é da ordem do determinado adquire a sua realidade. Motivo pelo qual o fundamento absoluto do conhecimento ele mesmo, o Eu Absoluto, não pode tornar-se objeto da consciência, ou seja, não pode ser determinado, de modo que venha a ser algo para a consciência, uma vez que isso seria condicioná-lo, concebê-lo como algo que adquire sua realidade apenas por meio da sua relação com um outro que é sua condição e do qual sua realidade depende36. Propondo uma reformulação da filosofia crítica que tinha como fundamento o Eu Absoluto, reformulação a qual opera um desdobramento importante no conceito de determinação, Fichte julga ter sido capaz de responder satisfatoriamente a todas as objeções justas dos céticos à filosofia crítica e ter estabelecido definitivamente a 35

Cf. BREAZEALE, 2003, p.134. Daí porque o subjetivo, enquanto subjetivo, não possa ser conhecido como um fato, mas sim como um ato; e daí porque a consciência que temos de nós mesmos, enquanto o sujeito responsável pela atividade de representar ou que realiza essa atividade, o “eu penso” kantiano que deve poder acompanhar todas as minhas representações, não é uma consciência objetiva, mas sim, como aponta Neuhouser, uma consciência não representacional [non-representational self-awareness], único modo de conceber a essa consciência que não a tornaria vulnerável às críticas de Schulze a Reinhold e a Kant (NEUHOUSER, 1990, p.72). 36

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autodeterminação racional como o fundamento de nosso conhecimento. A segurança e propriedade de seu novo fundamento para a filosofia, contudo, acabará por ser desafiada pelo jovem Hegel, notadamente no Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling37. De fato, segundo Hegel escreve nessa obra, Fichte teria falhado ainda em conceber a autodeterminação racional enquanto o fundamento absoluto e incondicionado de nosso conhecimento, posto que não teria fornecido um fundamento absolutamente e verdadeiramente indeterminado. Isso porque o Eu Absoluto era entendido como o fundamento subjetivo de toda objetividade que não pode jamais vir a se tornar, ele mesmo, objetivo; de fato, como diz Hegel,

o Eu não se encontra em seu fenômeno ou em seu pôr [quer dizer, no objeto, naquilo que é posto por ele e em sua atividade de por este objeto, o não-eu]; para se encontrar como Eu, precisa aniquilar seu fenômeno. A essência do Eu [o Eu Absoluto] e o seu pôr [o objeto que é posto pelo eu por meio de sua atividade de por a si mesmo] não coincidem: o Eu não se torna ele mesmo objetivo. (HEGEL, 1986a, p.56).

O Eu Absoluto se encontra em uma relação de oposição absoluta com a objetividade enquanto objetividade. Isso implicaria, contudo, que a objetividade enquanto tal permaneceria algo externo e estranho ao Eu Absoluto, o que faz com que ele não possa ser absoluto, posto que algo se opõe a ele é externo a ele e, portanto, o limita, de modo que ele é condicionado por sua relação de oposição a este algo que permanece fora dele e que lhe impõe um limite. O Eu Absoluto, portanto, é determinado por sua relação de oposição à objetividade e condicionado pelo fato de nunca poder vir a se tornar objetivo, “o ato da consciência de si distingue-se determinadamente [bestimmt] de outra consciência pelo fato de que o seu objeto seria igual ao sujeito; Eu = Eu é, nessa medida, oposto a um mundo infinito objetivo” (HEGEL, 1986a, p.54, grifos nossos). Sendo assim, o Eu Absoluto não satisfaz a exigência que o fundamento absoluto deve satisfazer para poder colocar a autodeterminação racional como fundamento de nosso conhecimento, a saber, de ser absolutamente incondicionado e indeterminado, de modo que nada seja oposto a ele e o determine, limitando-o e condicionando-o. Afinal, nenhuma síntese do Eu com o Não-eu (segundo a terceira proposição de Fichte38) é capaz de superar a oposição do Eu Absoluto à objetividade, o que faz com que a realidade do Eu Absoluto seja limitada e condicionada por sua oposição à objetividade39. Nas palavras de Hegel: “nessa síntese [do Eu e do Não-Eu] (...) o Eu objetivo [o Eu da síntese] não é igual ao Eu subjetivo; o subjetivo é o Eu [o Eu puro, Absoluto], o objetivo o Eu + Não-eu. [que não é, portanto, o Eu Absoluto enquanto tal]” (HEGEL, 1986a, p.58). Afinal, o Eu Absoluto, na medida em que não pode vir a se tornar objetivo, se opõe à objetividade, permanecendo, portanto, algo de condicionado, de determinado em sua realidade por sua oposição à objetividade, algo que mantém um regime de exterioridade em relação à alguma outra coisa e é determinado e condicionado em sua realidade por

37

HEGEL, 1986a. FICHTE, 1965a, Primeira Parte, § 3 39 Cf. HEGEL, 1986a, pp.58-64. 38

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essa relação de oposição. Não pode, por conseguinte, ser absoluto, nem pode verdadeiramente determinar inteiramente a si mesmo e ser, assim, a autêntica e absoluta autodeterminação racional. Sendo assim, para o Hegel de juventude, o fundamento absoluto e incondicionado de nosso conhecimento, para ser adequadamente concebido enquanto absoluto e enquanto indeterminado, não pode ser pensado nem como sendo em si mesmo objetivo, nem como sendo em si mesmo subjetivo. Em vez disso, para que o fundamento absoluto possa ser apreendido em sua incondicionalidade, ele deve ser apreendido como a identidade absoluta entre sujeito e objeto, “nem subjetiva nem objetiva, nem consciência de si oposta à matéria, nem matéria oposta à consciência de si, mas sim identidade que não é nem subjetiva nem objetiva, senão absoluta, pura intuição transcendental” (HEGEL 1986a, p.115). Nessa identidade, sujeito e objeto não são opostos porque ambos são, essencialmente, a mesma identidade absoluta, a própria identidade enquanto aquilo fora do qual nada subsiste e unicamente na qual os polos opostos podem subsistir tanto em sua oposição um ao outro quanto em sua unidade essencial enquanto produtos da mesma identidade absoluta, incondicional e indeterminada.40 Desse modo, nem sujeito, nem objeto seriam o absoluto enquanto tal, mas apenas manifestações distintas e determinadas de um mesmo absoluto, de uma mesma identidade absoluta que, por ser ela mesma a identidade absoluta, fora da qual nada subsiste e da qual tudo depende, não é determinada por nada e não é oposta a nada, sendo, por conseguinte, verdadeiramente indeterminada. E é somente por ser verdadeiramente indeterminada que essa identidade absoluta pode ser a verdadeira condição de todo determinado, de toda manifestação determinada e limitada do absoluto que o tem como condição da determinação e delimitação de sua realidade41, uma vez que o “determinado tem o indeterminado diante e atrás de si” e o “determinado (...) é imediatamente limitado por um indeterminado [e, portanto, só existe enquanto determinado, isto é, enquanto limitado, por meio do indeterminado]” (HEGEL, 1986a, pp.26-27). Para entendermos melhor esse ponto, consideremos a crítica que Hegel faz a todas aquelas que ele chama de filosofias da reflexão. Para Hegel, é a reflexão isolada, modo de pensar característico do entendimento, que produz e permanece nas oposições, que opera pela separação, divisão, oposição e categorização de seus objetos; de fato, em sua atividade, a reflexão pode ser definida como o “pôr de opostos”42. Segundo o Hegel de juventude, esse pôr de opostos nada mais é do que aquilo que ocorre pelo uso de conceitos para se pensar o objeto do conhecimento; pois conceitos nada mais seriam do que modos de caracterizar objetos segundo sua oposição a outros objetos, definindo-os a partir do fato de que não são outras coisas, ou seja, excluem outras coisas de si próprios. Conceitos, assim, operam pela oposição: dizer que um objeto é A significa dizer que ele não é “não-A”, como dizer que um objeto é claro é dizer que ele não é um objeto escuro. Para poder pensar um objeto segundo conceitos, na medida em que conceitos definem e determinam um objeto, é necessário que esses conceitos excluam, de forma absoluta, tudo que não pertence a eles. Determinar é limitar (como já havia sido estabelecido, de maneira bastante clara, pelo terceiro

40

Cf. Idem ibid., pp.94-97. Cf. Idem ibid., pp.26-28. 42 HEGEL, 2003, p.41. 41

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princípio da doutrina-da-ciência de Fichte43), e o papel de conceitos é determinar os seus objetos. Nessa medida, a reflexão, enquanto a faculdade que opera por meio de conceitos, é a faculdade que produz a separação e divisão entre os seus objetos para que possa pensá-los segundo sua norma, que é a da determinação44. Ocorre, porém, que os objetos pensados pela reflexão só podem, em função do próprio modo por meio do qual são produzidos, ser objetos condicionados, relativos. Isso porque tais objetos só podem ser constituídos, em sua determinação própria, a partir de sua relação de exclusão com aquilo que eles não são. Mas, que eles existam apenas nessa relação de oposição só pode significar, precisamente, que aquilo que eles são, enquanto objetos determinados, pensados sob o molde do conceito, é relativo, condicionado. Afinal, eles só são objetos determinados enquanto se encontram em uma relação de oposição com aquilo que está excluído de sua própria determinação, dependendo dessa relação e só sendo o que são na medida em que se encontram nela, e não independentemente de qualquer outra coisa. Portanto, tudo que a reflexão, agindo isoladamente, pode produzir por meio de seu pensamento a partir de conceitos, são objetos relativos, condicionados; a reflexão e, por conseguinte, todas as filosofias da reflexão, são incapazes de pensar aquilo que é da ordem do incondicionado, do absoluto, aquilo unicamente, em outras palavras, que pode ser o único fundamento verdadeiro da filosofia. É por isso que Hegel define a reflexão como a “faculdade do finito”45. Sendo assim, podemos melhor compreender por que, para o Hegel de juventude, a autodeterminação racional, o fundamento de nosso conhecimento, para ser adequadamente apreendido, deve ser concebido como a identidade absoluta entre sujeito e objeto, e por que a determinação tem que ser pensada não como o que define o objeto em oposição ao sujeito, mas sim como o que define tanto o sujeito quanto o objeto enquanto termos que se encontram em uma relação de oposição, enquanto polos opostos de uma mesma identidade originária que, ela mesma, não se opõe a nada e, portanto, não é determinada por nada, sendo, muito antes, a própria relação dos termos que se opõem e que lhes confere realidade. Com efeito, só assim a autodeterminação racional não teria nada externo a ela que a condicionasse e a tornasse incerta, posto que, concebida enquanto identidade absoluta e indeterminada dos opostos, como a relação entre eles que é a condição de sua realidade ou, em outras palavras, concebida como o absoluto ela mesma, nada poderá ser externo a ela e condicioná-la ou comprometê-la em sua certeza, segurança e necessidade. Portanto, para o Hegel de juventude, a determinação deve ser apreendida como a atividade pela qual tanto sujeito quanto objeto são colocados como limitações de uma mesma identidade absoluta e indeterminada, a qual só é absoluta precisamente na medida em que não é determinada por nada a não ser por si mesma, ou seja, na medida em que ela mesma produz e coloca em relação os polos opostos entre si que são manifestações determinadas e limitadas dela, de modo que ela mesma, por sua vez, não se encontra em uma relação de oposição ou exterioridade com qualquer coisa. Daí porque o meio próprio de apreensão deste absoluto não possa ser a reflexão isolada, que opera apenas pela oposição, mas deva ser, muito antes, a intuição transcendental, a autocognição do absoluto em que

43

FICHTE, 1988a, p.62. Cf. a esse respeito também BRANDOM, 2002, pp. 178-180. 45 HEGEL, 2003, p.43. 44

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não se faz nenhuma oposição conceitual e reflexiva entre o sujeito e objeto, entre o fundamento e aquilo de que ele é fundamento, posto que isso seria determinar o fundamento e, portanto, condicioná-lo. Assim, a determinação deixa de ser concebida como algo que pertence exclusivamente à ordem do objetivo e da objetividade, e adquire um sentido mais rigorosa e exclusivamente lógico: determinado é tudo aquilo que é definido por sua oposição a um outro, dado que a oposição implica a exterioridade em relação àquilo a que se opõe, exterioridade que condiciona, determina e delimita a realidade dos termos que se encontram nessa relação de oposição. No entanto, - e aqui chegamos ao ponto central de nossa exposição - o Hegel de maturidade virá a se voltar mesmo contra essa concepção do fundamento absoluto, julgando-a insuficiente para conceber adequadamente a autodeterminação racional enquanto o fundamento absoluto da filosofia. Isso porque, segundo nosso entendimento46, para o Hegel de maturidade, se a autodeterminação racional deve ser adequadamente concebida enquanto o absoluto, ela não pode se opor nem mesmo à oposição. Mas o que significaria mais exatamente não poder se opor nem mesmo à oposição? Como vimos anteriormente, para o Hegel da juventude, a cognição filosófica do Absoluto só poderia se dar por meio da intuição intelectual (ou transcendental) do incondicionado em sua indeterminação característica. Disso, contudo, segue-se que a essa identidade, enquanto essa pura indeterminação, estaria oposta toda a determinação enquanto determinação. As manifestações dessa identidade, enquanto manifestações de uma mesma essência, só são iguais a essa essência no sentido de que ela é sua essência, mas não no sentido de que, consideradas em sua determinação como manifestações, elas sejam iguais ao Absoluto. A sua igualdade com a essência e sua não oposição a ela só se dão enquanto a manifestação é considerada não como manifestação, mas sim em sua essência, que nada mais é do que aquela mesma identidade. Oras, mas, sendo assim, essas manifestações só podem ser tomadas como algo acessório a essa identidade originária, como algo que, embora dependa dela, é, ainda, em algum sentido, oposto a ela, como algo que não constitui a essa identidade absoluta enquanto tal. A essa identidade absoluta enquanto essência, portanto, são opostas aquelas manifestações, enquanto manifestações, como inessenciais, como algo que não pertence à identidade absoluta enquanto absoluta e que é externo à absolutidade dessa identidade47. À indeterminação da identidade absoluta é oposta a determinação de toda manifestação, e o absoluto é concebido como o indeterminado que se opõe a toda determinação. Disso, contudo, seguir-se-á – como Hegel mesmo dirá em sua Ciência da Lógica48que esse indeterminado, muito antes de estar além de toda oposição, se coloca em oposição com toda a determinidade, e, portanto, é condicionado por ela, na medida em que esta determinidade é colocada fora daquilo que ele é (enquanto absoluto), e, portanto, é excluída dele. Mas, se algo é colocado fora desse absoluto concebido como indeterminado, então, pela própria definição de absoluto como aquilo fora do qual nada existe, essa indeterminação não pode ser o

46

Cf. MACHADO, 2014, Caps. 6 e 7. HEGEL, 2007b, p.34. 48 Idem ibid., p.99. 47

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absoluto plenamente realizado49. De onde se segue que, para que o Absoluto se realize enquanto tal, ele não pode permanecer pura e simplesmente como a pura indeterminação, e a determinação não pode ser concebida como algo meramente externo ao absoluto enquanto absoluto. Antes, é preciso que o absoluto se realize enquanto absoluto por meio dessas mesmas determinações e, portanto, que seja por meio das suas exteriorizações, e não independentemente delas, para que aquela identidade originária se realize. Em síntese, poderíamos dizer: para que o absoluto seja concebido adequadamente, quer dizer, para que nada seja concebido como absolutamente oposto a ele, então, ele não deve, enquanto absoluto, ser oposto nem mesmo à própria oposição – devendo, pelo contrário, enquanto absoluto, realizar-se por meio dela e por meio da interiorização em si mesmo, da oposição. Assim, se, para o Hegel da juventude, a reflexão, na medida em que não era aniquilada em suas determinações e oposições, se confundia com a reflexão operada pelo entendimento, de tal maneira que a reflexão só poderia ser colocada a serviço da cognição do absoluto ao voltar-se contra si própria e levar à sua própria dissolução50, ou seja, à dissolução de suas conceituações, para o Hegel da maturidade, entretanto, essa reflexão externa será apenas um momento interno à reflexão, o qual é superado, sem que com isso as determinações produzidas pela reflexão e, de maneira mais geral, pelo trabalho do conceito e da mediação, sejam simplesmente aniquiladas. Os modos de determinação da reflexão não se limitarão aos modos de determinação da reflexão externa, o que significa que as negações operadas pela reflexão na organização de seus objetos não serão mais apenas a negação operada pela reflexão externa em sua relação com o seu objeto e não serão, portanto, negações que se limitam à exclusão mútua dos termos que se encontram nessa relação de negação 51. Desse modo, enquanto antes, para o Hegel de juventude, o absoluto só poderia ser apreendido em sua indeterminação característica, para o Hegel de maturidade, é só pelo percurso interno de suas determinações e, portanto, por meio do seu desenvolvimento conceitual e mediado que o absoluto se realiza enquanto absoluto, uma vez que o absoluto consumado, o espírito, é precisamente o “que permanece em si mesmo nessa determinidade ou nesse ser-fora-de-si” (HEGEL, 1986c, p.28, grifos nossos)52. Isso porque, se o absoluto permanecesse como mero indeterminado, seria, por isso mesmo, ainda oposto à determinidade enquanto tal (sua determinidade, ou sua “qualidade”, seria a de ser oposto a toda determinidade53), sendo por isso mesmo, condicionado por ela, e não podendo ser, por conseguinte, verdadeiramente absoluto, verdadeiramente livre e autodeterminado. Deste modo, a determinação, “a determinidade (o horos)”, antes concebida como aquilo que pertencia exclusivamente ao âmbito da finitude e do condicionado, da “reflexão que apenas reside no finito” (HEGEL, 1986c, p.17), será concebida agora como a negatividade imanente do absoluto unicamente por meio da qual ele pode se realizar enquanto absoluto. Será vista, portanto, não como o resultado da mera “queda” do indeterminado para o determinado, ou como um produto secundário do absoluto e irrelevante para a sua condição enquanto absoluto, mas

49

Idem ibid., p.36. Cf. WERLE, 2012, pp.120-121. Cf. HEGEL, 2002, p.405 52 Cf. HEGEL, 1986c, pp.24-29. 53 Cf. idem, 1986f, p.82. 50 51

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sim como o meio da realização do absoluto enquanto absoluto, já que o absoluto só se tornaria verdadeiramente absoluto por meio do percurso interno de suas determinações 54, e não permanecendo simplesmente na indeterminação que deve ser apenas o seu primeiro momento. Nas palavras de Hegel, “só essa igualdade que reinstaura a si mesma, ou só a reflexão em si mesmo no ser-outro é o verdadeiro, não uma unidade originária ou imediata enquanto tal” (HEGEL, 1986c, p. 23). Sendo assim, para o Hegel de maturidade, a autodeterminação racional, para ser concebida adequadamente como o fundamento absoluto de nosso conhecimento, como a autodeterminação que estaria nesse fundamento, não pode ser mera indeterminação, mas sim autodeterminação. Não por outro motivo, o motor do movimento dialético será a negação determinada (bestimmte Negation), operação pela qual se torna possível conceber aos termos de uma oposição em uma unidade que porta a contradição, sem por isso tornar-se vazia de conteúdo tal como a mera negação simples, a indeterminação desprovida de qualquer conteúdo55. Pelo contrário, a negação determinada não é mera negação simples, mero nada abstrato e total, mas sim o “nada daquilo de que resulta; é, por isso, ela mesma determinada, e tem um conteúdo” (HEGEL, 1986c, p.74). Em suma, para o Hegel de maturidade, a autodeterminação racional só poderá ser adequadamente concebida e sustentada enquanto absoluto se não for oposta nem mesmo à oposição e, portanto, se não for concebida como a mera indeterminação que exclui toda determinidade, mas sim como o absoluto cuja indeterminação é apenas o primeiro momento e que se realiza apenas na medida em que a oposição de sua indeterminação inicial a toda determinidade é superada, o que só ocorre quando o absoluto se exterioriza na determinação, na oposição, e retorna dessa oposição para si mesmo 56, se realizando por meio dela57. Em outras palavras: se, na determinação, se delimita uma realidade a partir de um fundamento, então, será o próprio absoluto, enquanto absoluto, que terá que ter sua realidade constituída a partir dessa determinação, ou seja, a partir da limitação de sua realidade e da superação dessa limitação. Assim, o absoluto, o fundamento incondicional é concebido não apenas como o fundamento da determinação de todas as realidades condicionadas, mas também como o que é determinado por meio dessa determinação e adquire a sua realidade incondicionada unicamente por meio dela58. Disso se pode depreender o sentido do projeto da Fenomenologia do Espírito. Isso pois, do mesmo modo que o absoluto não se encontra realizado enquanto absoluto já em seu começo, também a ciência não se realiza enquanto ciência apenas em seu início e, nesse sentido, em seu fundamento. Pelo contrário, ela só se realiza no percurso inteiro do desenvolvimento dos diversos saberes a partir dos quais ela resulta enquanto ciência verdadeiro. Por isso, na Fenomenologia, tratar-se-á de desenvolver um projeto de filosofia enquanto ciência radicalmente 54

Cf. idem, 1986c, pp.21-22 e pp. 46-47.. Cf. idem ibid., pp.56-57 e pp.73-74. 56 “Não é de se admirar que Hegel insista em falar sobre as determinações ‘se dobrando de volta’ [bending back into] aquilo a que elas originalmente se opunham. Essa é uma de suas muitas imagens representacionais do que não pode ser representado ou conceitualizado pelo Verstand [Entendimento]: o movimento dialético do pensamento no coração da Lógica da Essência e da Ciência da Lógica como um todo.” (PIPPIN, 2013, p.96). 57 HEGEL, 1986c, pp.25-26. 58 No que se pode compreender por que Breazeale afirmava que a distinção entre Fichte e Hegel seria que Hegel generalizaria completamente o alcance do princípio da determinação recíproca de Fichte (inspirado, por sua vez, no princípio da determinabilidade, de Maimon). Cf. BREAZEALE, 2003, p. 129. 55

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diferente dos vistos até agora em nosso projeto. Enquanto nos projetos anteriores de filosofia, que, como sabemos, eram projetos de uma filosofia científica, tratava-se de fornecer uma ciência verdadeira ao prover-lhe um fundamento que seria imediatamente verdadeiro, e cuja verdade estaria dada desde o princípio, na Fenomenologia, pelo contrário, a ciência verdadeira, o saber absoluto não poderá ser nem exposto, nem concebido enquanto um saber que já é verdadeiro desde o princípio de sua constituição, e cujo fundamento seria imediatamente verdadeiro. Muito pelo contrário, porque o princípio do saber, exatamente porque é princípio, ainda não é suficiente determinado, será necessária a exposição não apenas do saber absoluto enquanto resultado verdadeiro, mas também dos diversos saberes imperfeitos que, por meio de seu desenvolvimento um a partir do outro segundo a atividade reflexiva da consciência, resultaram no saber absoluto59 enquanto resultado deste processo. Por isso, o saber absoluto só é saber absoluto enquanto saber de si mesmo, ou seja, dos momentos que o constituem, do processo de passagem entre saberes imperfeitos que por fim culmina nele como resultado, de modo que a sua verdade não seja apenas asseverada, mas sim igualmente demonstrada – daí que seu desenvolvimento tenha de ser exposto, pois unicamente assim não se faz com que o fundamento do saber, aquilo que lhe concede sua verdade, tenha que ser dado como imediatamente verdadeiro, mas sim, pelo contrário, possa ser provado pelo processo que o constitui em sua verdade60. Assim, com base no exposto, parece-nos que o estudo sobre o conceito de determinação, em sua articulação com os conceitos de indeterminação e autodeterminação, é fundamental para que se possa compreender mais adequadamente um dos temas centrais da filosofia de Hegel e do idealismo alemão, a saber, o da a autodeterminação racional

como fundamento da filosofia e de nosso conhecimento. Além disso, tal estudo parece-nos abrir

possibilidades importantes de pesquisas futuras, notadamente sobre o tema de como o conceito de determinação desempenharia um papel fundamental e, em vários sentidos, similar, também na concepção da autodeterminação racional como fundamento prático de nossas ações, e não meramente como fundamento teórico de nosso conhecimento. Um tema fundamental, pois, como se sabe, o primado da razão prática é um dos grandes temas do idealismo alemão, fundamental para a sua compreensão e para a compreensão mais aprofundada do projeto compartilhado dos autores deste período de colocar a liberdade no fundamento de nosso conhecimento e de nossas ações, projeto em relação ao qual parece-nos central o conceito de determinação, enquanto aquele que forneceria um dos pilares para uma certa lógica da liberdade, que já se deixa transparecer em alguns momentos da discussão sobre a filosofia teórica. Por fim, como mencionamos anteriormente, acreditamos que essa pesquisa possa ser de grande valia para a discussão contemporânea sobre ontologia, e para a compreensão do papel que a categoria de “determinação” desempenharia nela.

59 60

Cf. PINKARD, 1994, I. HEGEL, 2007b, p.74.

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Metodologia Devido ao caráter teórico deste trabalho, recorreremos principalmente à pesquisa bibliográfica, análise e comentário crítico das obras de Hegel, mas também de outros autores do idealismo alemão importantes para a nossa pesquisa, principalmente Kant e Fichte. Naturalmente, também nos utilizaremos da literatura crítica referente aos autores desse período, travando um diálogo constante com os comentadores, a fim de nos inserirmos no debate atual sobre as questões e autores que estudaremos e propormos e argumentarmos em favor da nossa própria leitura deles. Cronograma 1º Momento (1º semestre de 2015): Kant e o problema da

Sobre o conceito da doutrina-da-ciência, A doutrina-da-ciência

autodeterminação racional no conhecimento, parte I

de 1794, Primeira Parte

Leituras centrais:

5º Momento (1º semestre de 2017): Hegel e o absoluto

Kant, Crítica da Razão Pura: Prefácios à 1ª e 2ª Edição

indeterminado

2º Momento (2º semestre de 2015): ): Kant e o problema da

Retorno da viagem de intercâmbio

autodeterminação racional no conhecimento, parte II

Leituras centrais:

Leituras centrais:

Hegel, Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e

Kant, Crítica da Razão Pura: Estética Transcendental e

Schelling

Analítica dos Conceitos

6º Momento (2º semestre de 2017): Hegel e a determinação

3º Momento (1º semestre de 2016): Fichte e a determinação

do absoluto, parte I

como marca da objetividade, parte I

Leituras Centrais:

Viagem de intercâmbio para Alemanha, para coleta de

Hegel, Fenomenologia do Espírito: Prefácio e Introdução

bibliografia e orientação com o Prof. Dr. Markus Gabriel (Uni-

7º Momento (1º semestre de 2018): Hegel e a determinação

Bonn).

do absoluto, parte II

Leituras Centrais:

Leituras Centrais:

Schulze, Enesidemo, Excerto: “A Crítica da Razão realmente

Hegel, Ciência da Lógica: Prefácios à 1ª e 2ª edição, Livro, I,

refutou o ceticismo de Hume?”

Seção “Com que a ciência tem que começar?”, Capítulos I e II.

Maimon, Cartas a Filaletes, Carta 1, 2, 5, 6 e 7.

8º Momento (2º semestre de 2018): Hegel e a determinação

Fichte, Resenha do Enesidemo.

do absoluto, parte III

4º Momento (2º semestre de 2016): Fichte e a determinação

Leituras Centrais:

como marca da objetividade, parte II

Hegel, Ciência da Lógica: Prefácios à 1ª e 2ª edição, Livro, I,

Leituras centrais:

Seção “Com que a ciência tem que começar?”, Capítulos I e II. Revisão

e

escrita

das

considerações

finais.

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