O Conceito de Formação em Nietzsche (2016)

May 28, 2017 | Autor: Milton Torres | Categoria: Friedrich Nietzsche, Bildung, Antiessentialism
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O Conceito de Formação em Nietzsche Tania M. L. Torres Milton L. Torres

Trabalho apresentado por Tania M. L. Torres no Eixo Temático Perspectivas Filosóficas e Políticas da Educação do I Congresso Internacional de Educação – Cotidiano Escolar: (In)quietudes e Fronteiras em Conhecimentos e Práticas Educacionais, realizado pelo PPGE da Universidade de Sorocaba (Uniso), no Campus Cidade Universitária, em Sorocaba, SP, no dia 26 de outubro de 2016. Resumo: A antipatia de Nietzsche pelos ideais educacionais dos antigos gregos é bem estabelecida na literatura. As escolas alemãs de sua época seguiam o modelo grego e isso pode ter lhe provocado certo ressentimento contra o modelo grego. Este artigo analisa brevemente a tensão nele observada entre sua rejeição do racionalismo e sua necessidade de recorrer a ele para estabelecer suas ideais filosóficas e educacionais. Palavras-chave: Nietzsche; Formação; Paideia. Abstract: Nietzsche’s dislike for the educational ideals of the ancient Greeks is well established in the literature. Most German schools of his time followed the Greek model and this may have caused in him some resentment against that model. This article briefly examines the tension between his rejection of rationalism and his need to resort to it in order to establish his philosophical and educational ideals. Key-words: Nietzsche; Bildung; Paideia.

A ideia desta apresentação veio da leitura de uma nota de rodapé que sugeria um estudo que contrastasse os ideais da paideia, a antiga educação grega, com o conceito de “formação” (Bildung), em Nietzsche. Apesar de despretensiosa, a nota de Larossa (2009, p. 43, n. 4) propõe um trabalho de fôlego que investigue a própria constituição da educação na Grécia antiga e na Alemanha, na tensão entre o passado e o presente. Uma tarefa assim é obviamente muito além das limitações impostas à natureza da comunicação que aqui apresento. Por isso, não posso dizer que cumpri a tarefa sugerida, senão que me inspirei nela para desenvolver algumas rápidas considerações sobre a relação do conceito de formação em Nietzsche e alguns aspectos de sua rejeição dos ideais da paideia. A avaliação negativa que Nietzsche faz da paideia talvez emane justamente da forma como as escolas alemãs a haviam abraçado como modelo. Para Weber (2011, p. 70), Nietzsche considerava a educação de sua época “uma espécie de arremedo despotenciado do mundo grego, esterilizado por uma relação antiquária com a cultura e a língua”. Sua principal objeção à paideia em si vem da “perda do sentido da arte, da expressão dos sentimentos, das pulsões, a partir de Sócrates e Platão” (SOUSA; OLIVEIRA, 2013, p. 104). Nietzsche responsabiliza o pensamento racional pela decadência da civilização grega, por sua tendência em se tornar pensamento moral e solapar os impulsos humanos para a vida. De acordo com Sousa e Oliveira (2013, p.

104), a solução, para Nietzsche, é a tensão, em justa medida, entre a racionalidade, representada por Apolo, e a sensibilidade emotiva, representada por Dioniso. Nietzsche não rejeita, porém, a antiga educação grega como um todo. Sua obsessão pela máxima “converte-te no que és”, de Píndaro (NIETZSCHE, 1992; 1993; 2011) e pela sensibilidade antimetafísica de Ariadne (LAROSSA, 2009, p. 29-30) comprovam isso. Nietzsche se apropria, então, da máxima de Píndaro e a reinterpreta para que se torne o equivalente virtual de “sê tu mesmo”. Ou seja, quando o pensamento grego lhe permite explorar a noção de liberdade para ser, o filósofo não se acanha em usá-lo:

liberdade viril do caráter, conhecimento precoce dos homens, educação que não visa à formação de um erudito, a ausência de qualquer estreiteza patriótica, de qualquer obrigação de ganhar seu pão, de obediência ao Estado – em suma, liberdade, sempre liberdade: este mesmo elemento extraordinário e perigoso no seio do qual os filósofos gregos puderam crescer (NIETZSCHE, 2003, p. 207).

Não há espaço aqui para um tratamento menos monolítico da educação grega, nem para estabelecer diferenças na forma de pensar de Nietzsche durante seu amadurecimento filosófico. Contudo, ainda parece possível afirmar que é só quando se depara com os aspectos enrijecedores de uma racionalidade imperturbável e recalcitrante que o filósofo se levanta e condena a educação grega. Mas não nos enganemos: apesar de seu recurso constante ao substrato grego, ele certamente rejeita algumas de suas ideias mais populares. Enquanto Platão, por exemplo, fala que a educação é um processo de lembrança, o filósofo alemão insiste que é, em vez disso, um processo de esquecimento (NIETZSCHE, 1977, p. 39). Sua metáfora do viajante (Wanderer) empresta-lhe combustível para essa ideia de que a formação educacional deve conduzir a pessoa a ser o que é. Para ele, a “formação” ideal (Bildung) é, acima de tudo, autodescobrimento, autodeterminação, autorrealização e ressignificação constantes (LAROSSA, 2009, p. 44 e 46), no esforço para superar as limitações impostas pelo medo e pela estupidez (MENDONÇA, 2011, p. 17-26). Por essa razão, Nietzsche se estabelece numa posição antifundacionista que critica os apelos à tradição e à cultura. Ele praticamente se rebela contra o presente, o sujeito e os conceitos filosóficos anteriores:

Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como “verdade”, ou seja, que o sentido de toda cultura é adestrar o animal de rapina “homem”, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico, então deveríamos sem dúvida tomar aqueles instintos de reação e ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres e os seus ideais (NIETZSCHE, 1993, p. 30).

Embora desvestido do essencialismo platônico, este trecho nos remete diretamente à analogia do Górgias (483e) em que o filósofo grego deplora o mesmo efeito adestrante na educação ateniense do séc. V a.C.:

A meu ver, toda essa gente assim procede segundo a natureza, porém não, decerto, segundo as leis que nós mesmos arbitrariamente instituímos ou impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio, dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos, como fazemos com o leão, para domesticá-lo com encantamentos ou fórmulas mágicas, e convencê-los de que devem contentar-se com a igualdade... porém, quando surge um indivíduo de natureza bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos e alcançar a liberdade, pisa em nossas fórmulas, regras e encantamentos, e todas as leis contrárias à natureza, e, revoltando-se, vemos transformar-se em dono de todos nós o que antes era nosso escravo: é quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza.

A passagem platônica parece ter sido o modelo de Nietzsche para essas considerações. A despeito dessa recaída racionalista, a formação que o filósofo alemão defende é, ainda assim, a negação de tudo o que se dizia preexistente e a descoberta de novas experiências. Desta forma,

não fala como Cristo; nem como Sócrates; nem como um salvador do mundo que traz uma nova fé, nem como um apóstolo do bem, da beleza e da verdade que busca converter o olhar dos homens até as certezas luminosas do inteligível. O mestre puxa e eleva, até que cada um se volte para si e vá além de si mesmo, até que cada um chegue a ser o que é (LAROSSA, 2009, p. 63).

Para isso, o filósofo alemão propõe duas regras: seguir o próprio instinto e utilizar mestres “como pretextos para a experimentação de si” (LAROSSA, 2009, p. 65). Larossa (2009, p. 67) aponta que as ideias educacionais de Nietzsche desembocam, então, em quatro consequências principais: a impugnação radical do presente, o distanciamento dos problemas, a dissociação sistemática da identidade e a explosão do conceito de formação.

Segundo Ferreira (2015, p. 110),

Avesso à erudição acadêmica e profissionalizante, o jovem professor Nietzsche criticava a cultura histórica que segregou o pensamento e a maneira de viver. A essa tendência, o autor opunha uma educação artística, ou seja, uma formação para o pensamento livre e para a criatividade.

Desta forma, o filósofo alemão embarca em um projeto de quase completa rejeição dos postulados educacionais dos gregos. Trata-se de um “projeto de transmutação dos valores morais”:

a elaboração da base de uma nova ética, amparada na ideia de superação dos jugos morais cristãos e de todo preceito de ordem transcendental, herdados da tradição platônico-socrática. Ao aproximar vida e conhecimento e admitir o ser humano como o portador da atividade criadora, delineia-se o homem superior, aquele que transita pela existência e pelo pensamento de forma aventureira e vivificante – fiel ao desconhecido (OLIVEIRA; VALDEMARIN, 2013, p. 141).

Por outro lado, apesar de implicar com alguns dos postulados da paideia, Nietzsche não consegue, porém, prescindir deles. Para Azeredo (2010, p. 28),

Quanto à elucidação do sentido de Bildung no pensamento de Nietzsche, van Tongeren resgata o conceito de medida dos gregos, assim como sua reformulação latina em Cícero. Ele considera o conceito de medida como central para a Filosofia de Nietzsche. Uma medida de proporção que não pode ser a mesma para todos e também não pode ser para todas as circunstâncias. Nela inclui o Agón grego e a compreensão de que deve ser aberta ao crescimento e à autossuperação. Daí, a Bildung nietzschiana seguir uma medida de batalha, porque a vida é vontade de potência. Tanto a filosofia, quanto a filologia constituem uma Bildung prática que rejeitam, ao mesmo tempo, a medida dogmática e a ausência de medida.

As considerações de Nietzsche, quer voltadas para a educação grega, quer referentes a qualquer outro tipo de educação, apontam para certo grau de ressentimento (ANDRADE; FELDENS, 2015). O filósofo lamenta ter perdido tempo na escola, ter se submetido a um processo que privilegiou o racional em detrimento de suas emoções e sentimentos. Por isso, propõe esquecer e, de forma criativa, andar para frente, encontrar novas rotas, passando além das fronteiras: “seus escritos propõem um plano pedagógico de ruptura, firmados na proposta de uma nova paideia voltada para a obliteração dos

valores platônico-socráticos” (OLIVEIRA; VALDEMARIN, 2013, p. 144). Formação, para ele, significava a quebra da influência dos antigos modelos gregos e cristãos na educação a fim de que se experimentassem propostas educativas que, sobretudo, endossassem a liberdade. Como se percebe, a postura de Nietzsche é, portanto, intensamente crítica. Esse é, de fato, um traço de sua personalidade e de seu jeito de filosofar. Se, em vez de filósofo, fosse o criativo “poeta-autor” que desejava ser (NIETZSCHE, 1993), talvez Nietzsche expressasse seu ressentimento de forma menos cáustica. Talvez pudesse fazer eco à fala do poeta Manoel Barros (apud ANDRADE; FELDENS, 2015, p. 107):

Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai, mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.

De qualquer forma, apesar de sua verbosa crítica aos modelos educacionais derivados da educação grega, Nietzsche nunca chegou muito longe em seu distanciamento efetivo dela. Afinal de contas, para ele, “o pensamento não se separa das vivências, o que possui também grande convergência com o modo de ser dos gregos, para os quais o exemplo deveria ser sempre dado” (FIGUEIRA; WEBER, 2014, p. 99).

ANDRADE, Leonardo L.; FELDENS, Dinamara G. Nietzsche, ressentimento e educação: provocando desterritorializações. Cadernos de Graduação: Ciências Humanas e Sociais, Aracaju, v. 2, n. 3, p. 99-112, 2015. AZEREDO, Vânia D. Filosofia dos valores e educação em Nietzsche. Educação Temática Digital, Campinas, v. 12, n. 1, p. 25-45, 2010. FERREIRA, Débora P. Arte, educação, cultura: uma reflexão a partir de Friedrich Nietzsche e Vilém Flusser. Pensando: Revista de Filosofia, v. 6, n. 12, p. 110-123, 2015. FIGUEIRA, Felipe L. G.; WEBER, José Fernandes. A crítica ao eruditismo no jovem Nietzsche. Filosofia e Educação, v. 6, n. 1, p. 95-109, 2014. LARROSA, Jorge. Nietzsche & a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. MENDONÇA, Samuel. Massificação humana e a educação aristocrática em Nietzsche. Educação Temática Digital, Campinas, v. 13, n. 1, p. 17-26, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich W. A gaia ciência. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993. NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992. NIETZSCHE, Friedrich W. Schopenhauer como educador. Rio de Janeiro: Editora da PUC-RJ, 2003. NIETZSCHE, Friedrich W. Sobre el porvenir de nuestras escuelas. Barcelona: Tusquets, 1977. OLIVEIRA, Thabata F.; VALDEMARIN, Vera T. Educação, verdade e valor: diálogo com Nietzsche. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 27, n. 53, p. 137-160, 2013. PLATÃO. Górgias. Trad.: Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1980. SOUSA; Anderson S.; OLIVEIRA, Adelino F. Nietzsche e o tema da educação: perspectivas para uma educação integral, além da moral e do adestramento. Revista dos Alunos de Pedagogia, Nova Odessa-SP, v. 1, n. 1, p. 94-107, 2013. WEBER, José Fernandes. Crítica à moral e educação: sobre o espírito livre de Nietzsche. Educação, Porto Alegre, v. 34, n. 1, p. 65-74, 2011.

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