O conceito de \'funcionário\' flusseriano em Tillmans e Moholy-Nagy

July 27, 2017 | Autor: Antonio Cardoso | Categoria: Fotografia
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Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Ciências da Comunicação

Unidade Curricular: Fotografia Docente: Sérgio Mah

Trabalho final Análise dos fotogramas de László Moholy-Nagy e da série Freischwimmer de Wolfgang Tillmans a partir do conceito de funcionário de Vilém Flusser.

António da Silva Engling Cardoso Aluno nº 36342 Junho 2012

Este trabalho propõe uma análise a dois exemplos de obras fotográficas realizadas sem recorrer ao uso da câmara, e discutir de que maneira essas obras se relacionam com o conceito de funcionário do filósofo dos media Vilém Flusser. As obras escolhidas são os fotogramas de László Moholy-Nagy e a série fotográfica Freischwimmer de Wolfgang Tillmans. As obras estão separadas temporalmente em cerca de 80 anos – entre 1922 e 1946 Moholy-Nagy produziu 430 fotogramas e Tillmans produziu, desde 2002, mais de 200 imagens para a série Freischwimmer. Apesar das obras terem em comum o não uso da câmara fotográfica, foram produzidas com técnicas distintas. Os fotogramas são uma técnica fotográfica que surgiu com a invenção da própria fotografia. Os pioneiros desta prática são William Fox Talbot e Anna Atkins (que não tinha motivações artísticas, mas científicas e, em 1841, publicou um livro com fotogramas de algas marinhas, considerado o 1º livro ilustrado com fotografias). Mais tarde outros

artistas

encontraram

reconhecimento

produzindo

fotogramas,

nomeadamente Christian Schad (que lhes chamava Schadographs), Man Ray (que lhes chamava rayographs) e Moholy-Nagy (que lhes chamou photograms, termo que é geralmente usado hoje). László Moholy-Nagy (1895-1946) nasceu na Hungria mas foi na Alemanha, para onde se mudou em 1920, que encontrou reconhecimento como artista. Moholy-Nagy era pintor e fotógrafo, fundamentalmente, mas também designer, cineasta e teórico da imagem. Envolvido no movimento dadaísta e construtivista, Moholy-Nagy experimentou diversos materiais inovadores à arte (como alumínio e chapas de acrílico) e sempre defendeu uma aproximação entre as artes, indústria e ciências. Isso prova-se na sua participação, como professor, na escola de artes alemã Bauhaus (entre 1923 e 1928) que tinha como filosofia principal a aproximação dos seus estudantes à industria e como fundador do Institute of Design em Chicago. Muito experimentalista e polivalente (na Bauhaus ensinava pintura, escultura, fotografia, tipografia e metais), Moholy-Nagy acreditava que a fotografia tinha a capacidade de nos oferecer uma nova visão, uma maneira de percepcionar o mundo. Onde Moholy-Nagy experimentou mais foi com os seus de fotogramas.

A produção de um fotograma consiste em colocar objectos, transparentes, translúcidos ou opacos, sobre um papel fotossensível e expôlo à luz. O resultado é uma imagem negativa no sentido em que os objectos opacos bloqueiam a luz e mantêm o papel fotossensível branco, e onde a luz incidiu no papel sem interferências fica preto. Por não implicar o uso de um negativo, cada fotograma é uma obra original e irrepetível. Do ponto de vista formal, os fotogramas são, normalmente, imagens abstractas – apesar de se utilizarem objectos concretos e mundanos, o resultado final é muitas vezes não-figurativo, uma vez que os objectos utilizados raramente são identificáveis. Moholy-Nagy dizia, em relação aos seus fotogramas, que a ferramenta essencial ao processo fotográfico não é a câmara, mas a camada fotossensível.

Alguns exemplos de fotogramas de László Moholy-Nagy.

Moholy-Nagy, 1924

Moholy-Nagy, 1922

Moholy-Nagy, 1924 Moholy-Nagy, 1936

Moholy-Nagy, 1940

Outro artista inovador, cuja obra é cunhada por um grande sentido experimental, é o fotógrafo Wolfgang Tillmans, que nasceu na Alemanha, em 1968, mas vive e trabalha em Londres. Tillmans ganhou reconhecimento internacional no ano 2000, quando foi o primeiro fotógrafo a vencer o prestigiado Turner Prize. Num livro comemorativo dos 20 anos do Turner Prize, a curadora Virginia Button descreve Tillmans como “um artista que, num mundo já saturado de imagens, usa a fotografia para questionar convenções estéticas e códigos de representação”. E a verdade é que poucos artistas conseguiram mudar a forma como a fotografia é produzida e interpretada nas duas últimas décadas como Tillmans. Desde de meados da década de 1990 que Tillmans tem tentado reinterpretar géneros como o retrato, natureza-morta e paisagem. Fotografando amigos, festas, pequenas situações banais do seu dia-a-dia, Tillmans foi construindo uma obra fotográfica que ilustrava o seu quotidiano. De realçar que parte importante do seu processo artístico é a forma como monta as suas exposições. É, de facto, na galeria onde a obra de Tillmans ganha nova dimensão. Uma vez exposto, o seu trabalho ganha novo significado, e o próprio artista confirma que as suas fotografias funcionam melhor como um todo no contexto de galeria. Nas suas exposições, Tillmans, arranja as fotografias na parede de maneira, aparentemente, desorganizada e misturando diferentes tamanhos. É costume nem todas merecem honras de estar emolduradas, é frequente haver imagens que apenas estão presas à parede com fita-cola. Na verdade, as apresentações de Tillmans estão mais próximas do conceito de instalação do que de exposição. O objectivo, segundo o fotógrafo, é reavaliar como a arte deve ser apresentada. Polémico por isso, mas também pela sua estética vernacular, imagens de aspecto amador, algumas sexualmente explicitas, Tillmans nunca reuniu consenso entre os seus pares. Os primeiros trabalhos artísticos de Tillmans, ainda adolescente, eram ampliações de fotografias encontradas na rua, o que demonstra um interesse precoce pela procura da abstracção, quebrar convenções e levantar questões ao espectador desprevenido. A partir dos anos 2000, Tillmans leva essa sua procura pela abstração por caminhos mais conceptuais. O interesse de Tillmans vai para

além da câmara fotográfica – o laboratório fotográfico parece ser onde Tillmans está mais à-vontade, onde ele explora os limites do negativo, ampliador e papel fotossensível. As suas experiências em laboratório fotográfico resultaram em séries como Lighter, Blushes, Starstruck ou Freischwimmer. Esta última consistia em manipular o negativo na câmara escura e expô-lo a luzes de fibra óptica. O resultado são imagens etéreas, de carácter abstracto e estranhamente belas. É importante realçar o facto as imagens de Freischwimmer têm cerca de 180cmx240cm. O seu tamanho ajuda a tornar estas imagens mais enigmáticas. O espectador quando se depara com tais imagens, sente-se desafiado a adivinhar o que está a ver. Por saber que é um trabalho fotográfico, há sempre a necessidade do espectador de se ancorar no real. Ele sabe que o que está a ver tem uma ligação física com o real, por ser uma fotografia, mas não sabe que realidade é aquela. O jogo que Tillmans quer jogar, a associação livre, começa. As imagens são sugestivas, remetem-nos para cenas sub-aquáticas, com cabelos a ondular; mas também são incrivelmente viscerais, eróticas até, como também sugerem uma experiência química. A verdade é que é luz, a matéria-prima da fotografia.

Alguns exemplos da série Freischwimmer, de Wolfgang Tillmans.

Tillmans, Freischwimmer 15, 2003

Tillmans, Freischwimmer 26, 2003

Tillmans, Freischwimmer 42, 2004

Tillmans, Freischwimmer 83, 2005

Tillmans, Freischwimmer 151, 2010

Tillmans, Freischwimmer 190, 2011

Vilém Flusser nasceu na antiga Checoslováquia, em 1920, onde estudou filosofia sem, contudo, terminar o curso devido às invasões nazis. Exilou-se em São Paulo, onde viveu de 1941 a 1972. Em 1950 naturalizouse cidadão brasileiro. Foi professor de Filosofia da Comunicação na FAAP, em São Paulo, e editor da Revista Brasileira de Filosofia. Em 1972 regressa à europa, estabelecendo-se em França. Falece num desastre de automóvel em 1991, deixando um legado de variadíssimos artigos publicados e livros escritos nas cinco línguas que o autor dominava com fluência. Flusser é um autor polémico, não só porque nunca provou a conclusão do seu curso superior em Filosofia, mas sobretudo pelos seus textos críticos, confrontativos e difíceis de digerir na sua inovação de pensamento. Assim o é Filosofia da Caixa Preta1, publicado originalmente em alemão em 1983. Nesse texto, Flusser desenvolve o que será, provavelmente, o conceito mais polémico que lhe é associado – o de funcionário. Escreve Flusser, no glossário que antecede o livro, que funcionário é a pessoa que brinca com o aparelho e age em função dele. Ora isto implica que o aparelho fotográfico não é instrumento, mas brinquedo, e que o fotógrafo não trabalha com o aparelho, mas brinca com ele. Ou seja, não é artista, mas jogador. Assim, da perspectiva do aparelho, da caixa preta, o fotógrafo é mero funcionário, pois a tarefa (produzir superfícies simbólicas) é feita automaticamente pelo aparelho, de acordo com o seu programa préinscrito. Ou seja, para o funcionário, as máquinas fotográficas são aparelhos cujo funcionamento e cujo mecanismo interno, gerador de imagens, lhe escapa parcial ou totalmente. O funcionário lida apenas com o canal produtivo, mas não com o processo codificador interno. Uma vez que permanecemos incapazes de saber o que se passa no interior da caixa preta, "somos, por enquanto, analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como decifrá-las" (Flusser, p. 11). O fotógrafo apenas pode ‘jogar’ com o programa inscrito previamente no aparelho, sendo que está necessariamente limitado às potencialidades                                                                                                                 1

‘Für eine Philosophie der Fotografie’, no original alemão. O próprio autor traduziu o texto para português em 1985.

ontológicas desse mesmo programa. Ainda assim, as competências do aparelho, limitadas mas vastas, serão sempre superiores às competências do fotógrafo. Este, ao produzir imagens fotográficas, joga contra o aparelho, tentando esgotar o seu programa, sem sucesso. Para além disto, todas as imagens que o fotografo poderá produzir com o aparelho, já estão préescritas no seu programa. O fotografo está enclausurado no funcionalismo do aparelho mas, no entanto, ele julga que o domina, porque produz imagens de acordo com as suas intenções. A verdade é que o fotógrafo apenas domina o input e o output do aparelho, ou seja, o que lhe é circundante. Ele sabe como alimentar as máquinas e como acionar os botões adequados, de modo a permitir que o dispositivo produza as imagens desejadas, nada mais. Flusser adverte, portanto, para os perigos da atuação puramente externa à caixa preta. Na era da automação, o artista, não sendo capaz de inventar ou de (des)programar o equipamento de que necessita para criar, fica reduzido a um usuário desse aparelho que não faz mais que cumprir possibilidades já previstas no programa. Perante isto, a arte, segundo Flusser, coloca-nos hoje o problema de como viver livremente num mundo programado por aparelhos. Para deixar de ser funcionário, o fotógrafo tem, necessariamente, que se libertar do programa. Só assim, o fotógrafo pode aspirar a ser artista. “Assim vejo a tarefa da filosofia da fotografia: apontar o caminho da liberdade “ (Flusser, p. 41).

Freischwimmer significa ‘aquele que nada livremente’ em alemão. Tillmans libertou-se do aparelho e produziu uma série de fotografias trabalhando manualmente o negativo num quarto escuro, expondo-o a luzes controladas por ele. Moholy-Nagy trabalhou directamente no papel fotossensível para produzir os seus fotogramas. Tanto Tillmans como Moholy-Nagy conseguiram, assim, deixar de ser

funcionários

do

aparelho,

produzindo

fotografias

livres

das

condicionantes do programa. O que temos que perguntar aqui é como isso

foi conseguido? Será que penetraram na caixa preta e foram eles mesmo o programa que produz a imagem? Ou será que se conseguiram libertar do funcionalismo

do

aparelho,

produzindo

assim

imagens

livres

das

potencialidades pré-escritas do programa? De uma maneira ou de outra, a série Freischwimmer de Tillmans e os fotogramas de Moholy-Nagy são dois exemplos bem conseguidos da vitória do fotógrafo-artista sobre o fotógrafofuncionário.

“O inimigo da fotografia é a convenção, as regras rígidas do ‘como fazer’. A salvação da fotografia vem da experimentação”. László Moholy-Nagy

Bibliografia: Dubois, P. (1992). O acto fotográfico. Lisboa: Vega Flusser, V. (1985). Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec http://www.moholy-nagy.com http://tillmans.co.uk

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